quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Crônica do telemarketing


O dia em que esnobei um banco mundial pelo telefone - e ainda ensinei como ganhar dinheiro de verdade com este tipo de serviço

Acabei de atender uma ligação do Citybank. Parece coisa importantíssima, né? De fato, se eu entendi bem o texto que a operadora de telemarketing declamou daquela maneira automática como elas falam, queriam que eu me tornasse cliente. Vejam só: o Citybank ligando pra mim, pra meu telefone, perguntando se sou eu mesmo, me tratando de "senhor Sebastião Vicente", com uma polidez de robô, se oferecendo para que eu, esse caboclinho parelhense esquecido pelo tempo, entre para a sua dileta pasta de clientes.

Ah, o telemarketing! Um dia, acho que o telemarketing ainda vai nos salvar até do fogo dos infernos. Assim: você morreu, de preferência de velho, assim como J. D. Sallinger, e acordou na ante-sala do inferno, a um passo da eternidade propriamente dita, prontinho para torrar um a um a sua lista de pecados, assim como quem faz uma tatuagem dolorida como o cão para cada um dos deslizes terrenos. Lá está você, só esperando o assessor do capeta gritar: - O próximo! Eis que, na última hora, antes que você dê o derradeiro passo rumo à danação completa, o telefone toca (sim, porque hoje em dia, graças a Deus, celular pega até no inferno). Ainda meio abobadado como o dono daquele celular que toca no momento mais importante da reunião de trabalho, você atende e ouve a voz robotizada da operadora de telemarketing lhe oferecendo um "plano" baratinho para lhe livrar do fogo dos infernos.

Mas tenho umas sugestões a fazer aos gerentes desses tão estimados serviços. Na ligação que recebi agora há pouco, tive certa dificuldade de entender exatamente as palavras que me dizia a operadora do City - acho que, uma vez tendo sido convidado para integrar a carteira de clientes dessa respeitada instuição de crédito internacional, posso me permitir tratá-lo pelo apelido. Pois bem, parecia que a operadora estava lendo as palavras que me dizia, com a emoção, a pressa e sobretudo o desconforto de quem lê uma lista telefônica ou o cardápio de um restaurante exótico onde não se entende bem de que é composto cada prato. Eu sei que esse automatismo faz parte da proposta, que o operador de telemarketing muito provavelmente é aquele sujeito que não se ajustou a nenhum outro emprego na vida (só assim se compreende que faça este tipo de trabalho), que há metas a serem alcançadas por esses trabalhadores, tipo conseguir tantos clientes em tantas horas de trabalho, que os capatazes modernos que são os superintendentes do serviço não deixam nem as operadoras grávidas irem ao banheiro tanto quanto precisam.

Sei tudo isso, já li barbaridades sobre o trabalho de operador de telemarketing, juro que penso muito nisso toda vez que sou tentado a dizer um palavrão para aquele moço que não resolve meu simples problema de cancelamento de qualquer coisa. Mas o que me intriga mesmo é como tudo isso não faz com que os criadores desses serviços, o pessoal que verdadeiramente vive deles - seus empresários, seus controladores - não percebam a burrada que estão fazendo. Porque se eles entendessem como é sacal, frustrante e aborrecido o serviço de telemarketing tal como ele é praticado, já teriam há muito dado uma flexibilizada geral nas normas de tal serviço.

No dia em que os homens do telemarketing entenderem que a falsa educação do "senhor, senhora", que a dispensável insistência do "tem certeza que deseja cancelar?" e a paciência de fachada do "um minutinho só" são inúteis e antiprodutivas, aí sim é que eles vão ganhar dinheiro. Os homens do telemarketing deveriam é submeter seus funcionários a um belo treinamento em salões de beleza, barbearias, botequins, bailes de debutantes, almoços de família daqueles bem complicados e cheios de brigas entre cunhados. Porque aí sim, nesses ambientes de verdade, se dialogo e se negocia, se avança e se recua, negócios são fechados, propostas são apresentadas e pensadas e repensadas, tudo em linguagem de gente que se comove, fica triste, fica bravo e termina puto, mas sempre exerce sua humanidade.

Agora, esse negócio de "senhor, o Citybank tem uma proposta para a adminstração de sua conta corrente" dita em tom monocórdico de quem engoliu uma secretária eletrônica e está arrotando mensagens não leva mesmo a lugar nenhum. Se levar é, no máximo, a essa baita crise financeira internacional que assustou meio mundo no segundo semestre do ano passado.

Ah, sim: agradeci à gentileza do "City" e mantive minha humilde continha-salário no Banco do Brasil velho de guerra.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Leia na Hamaca


"Tudo isso transparece, mas o bom mesmo é ver como Erasmo, um brasileiro comum alçado à fama tanto quanto um Lula da Silva carregando isopor na cabeça, assume e defende esta condição. Como se dissesse: -Nós somos assim mesmo, uma gente fodida que precisa aprender na marra a manha de viver. Nâo faz sentido tentar bancar o sofisticado se o nosso grande trunfo na verdade é essa ginga de quem não tem nada a perder."

Continue lendo aqui, na Hamaca atualizada, que traz ainda um pequeno dicionário de "bernardês" e a presença ilustre de Waldick Soriano.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O estorvo eleitoral


Dizem que ele é o verdadeiro anti-FHC. Certo é que é a mais incômoda pedra no sapato da imprensa anti-Lula

Na edição de hoje do “Correio Braziliense”, o colunista Luiz Carlos Azedo diz que Ciro Gomes virou o “estorvo eleitoral” de Lula e Dilma. Gostei do termo e vejo nele a expressão não de um incômodo, um entrave, uma pedra no meio do caminho não só da chapa governista e muito menos de nós outros, eleitores, com a carga negativa da expressão sugere à primeira vista. Gosto da expressão, isso sim, pelo que ela sugere de contrário a isso. Em outras palavras, pelo fato de considerar que Ciro é mesmo o nosso “estorvo eleitoral” de sempre, no que de melhor isso pode significar.

Senão, vejamos: candidato à presidência em 2002, Ciro foi transformado pela imprensa na mais clássica imagem do político indigesto, intrangisente e autoritário. Um verdadeiro “estorvo”. Para quem lê os jornais, vê os telejornais, ouve a cantilena das CBNs da vida mas toma o cuidado de também olhar em volta da realidade purinha como ela é, o padrão Ciro Gomes de comportamento eleitoral poderia não ser tão intragável assim. Ao contrário, poderia ser apenas uma expressão da sinceridade que, nestes tempos de hipocrisia disfarçada de ética, todo mundo deseja tanto ver nos políticos. Imagine o sujeito, candidato a presidente da República, repudiar, aborrecido, uma pergunta ou comentário capcioso feito por um ouvinte de uma entrevista radiofônica. Nem pensar. A etiqueta do candidato manda que ele engula tudo, ainda que junto com o sapo vá também uma boa fatia de dignidade perdida.

Ciro não se fez de rogado. Bateu, levou: tratou o eleitor comum e entrevistador ocasional com a mesma hostilidade contida na pergunta que lhe foi feita. De outra maneira, dialogou com o cidadão – essa criatura que se acha no direito de criticar todos os políticos mas repete em casa, na rua, no trabalho e onde mais estiver grande parte do padrão de comportamento que condena naqueles outros, os eleitos (aliás, eleitos por quem, cara pálida?). Se é assim, bem-vindo estorvo, que permite fazer o processo eleitoral se revelar como ele é.

Neste início de 2010, Ciro, depois de um período de calmaria calculada, retorna à cena como candidato à Presidência e volta a vestir a carapuça do “estorvo” de plantão. Nesta condição, ele é o estorvo que externa certas características da, digamos, “escolha Dilma”, ainda não deglutidas pelo conjunto dos simpatizantes do próprio PT e do próprio padrinho, Lula. Mas não se enganem, que ele também é um “estorvo” para o outro lado da arquibancada, que é a composição do PSDB e de Serra. Vide sua a esta altura já histórica crítica à gestão de Fernando Henrique, sobretudo aquela do segundo mandato, que se tornou quase uma âncora do pensamento ciriniano em política econômica. Neste sentido, para Lula, ele deixa de ser “estorvo” e torna-se um aliado ideal, pronto para entrar na batalha da comparação e sem medo algum de levar uns cascudos durante o embate – coisa que Dilma talvez não consiga fazer tão bem, embora, na superfície, também traga na cara sua porção “estorvo”.

Ciro também é, de certa maneira, um “estorvo” para os verdes pouco maduros da turma de Marina, porque afinal de contas é outra alternativa a correr na raia paralela. Mas, igualmente, pode tornar-se um “estorvo” agradável, pelo fato de fortalecer uma certa visão mais periférica do que foi o governo Lula, abrindo retornos para que o simpatizante do PT e do presidente sigam pelo caminho alternativo que não condena totalmente o governo mas tampouco o aprova integralmente. Como se vê, “estorvo” é um condição de duas faces – e tudo muda de perspectiva conforme o ângulo político pelo qual se observa a corrida. O fato é que esta é a semana do Ciro. O momento em que o “estorvo” vai ou não se consolidar nesta condição. É o que dizem os analistas políticos da imprensa como o Azedo supracitado. É que, segundo eles, não passa de sexta-feira o acerto de contas na arquibancada governista, com Lula de encontro marcado com o presidente do PSB, Eduardo Campos, para convencer Ciro a abandonar de vez a corrida ora já em curso.

Se Lula tiver sucesso – e não convém subestimar o “cara”, que parece ter uma estrela brilhando só pra ele lá no céu – Ciro sai do páreo, ou pelo menos muda de corrida. E, definitivamente fora da maratona presidencial, lá se vai ele ser “estorvo” de encomenda na competição pelo governo de São Paulo. Talvez nem ganhe nada, mas pelo menos vai atrapalhar os outros, como convém a um bom “estorvo” de plantão. A questão é: quanto, enfim, Ciro – este incômodo ambulante que não perde a mania de interromper jornalistas, barrar verdades mal construídas, dizer alto lá para raciocínios nem um pouco desinteressados – vai deixar de ser “estorvo” e virar possibilidade? Este fato, se ocorrer, muda tudo, agora, em 2014, 2018 ou mais além.

O vovô do apocalipse


Revisto, “As Pontes de Toko-Ri”, clássico meio esquecido na estante dos filmes vespertinos da televisão, revela-se um contundente trailler do clássico moderno de Francis Coppola

Quem nunca vibrou com um “filme de porta-aviões” que atire o primeiro controle remoto. Penso nisso enquanto assisto a uma reprise daquelas, com gostinho da mais legítima sessão da tarde, “As Pontos de Toko-Ri”, filme de 1955 estrelado por William Holden, Grace Kelly e Mickey Rooney. Entre aviões que afundam, marinheiros que brigam em bandos e um casal americano padrão angustiado diante do fim iminente, estamos em 1952, na Guerra da Coréia, quando um ás da aviação, Holden, tenta curtir tanto quanto a angústia permitir um fim de semana com mulher, Kelly, num hotel no Japão, cientes, os dois, dos riscos da operação que o espera – justamente a derrubada, arriscadíssima, das tais pontes estratégicas. Um negócio que é morte certa – ou invalidez garantida.

E pensar que eu havia assistido a esse filme uma única vez até ontem, na ansiedade da infância passada diante da televisão em branco e preto (tanto que quase caí da cadeira quanto descobri aquele colorido tinindo do DVD), em fruição de entretenimento vespertino distante de qualquer forma de angústia adulta. Pois é: “As Pontes de Toko-Ri”, vou descobrindo à medida que o filme avança (e me faz lembrar vivamente de cenas vistas há tantos anos) é não só uma tragédia cruel (o que, enfim, todo filme de guerra é, mesmo os mais vespertinos), mas, sobretudo, a expressão sombria do sentimento que a proximidade dessa tragédia que é a guerra provoca. Enfim: não tem nada de sessão da tarde; é, antes, um filme adulto, cheio de silêncios gritantes e olhares mudos, cientes do fim e curvados à interrogação sobre o que ele significa no contexto de algo como uma guerra.

O filme vai acabando e deixando claro que há, ali, uma progressão evidente do gênero filme-de-guerra-americano-clássico. Já não há mais o heroísmo previamente justificado dos tempos da Segunda Grande Guerra; há, ao contrário, a impotência humana do protagonista que efetivamente morre no final, crivado pelas balas inimigas numa vala de lama. Nada muito digno de um William Holden de corte hollywoodiano clássico (embora o ator, só um parênteses, seja especialista em morrer em grande estilo, como fez em “O Crepúsculo dos Deuses”). O máximo que ele consegue é aquela despedida sublime, essa sim embalada em papel de seda, num tempo em que o cinema americano era pródigo neste tipo de cena – vide “Casablanca” e “O Suplício de uma Saudade”, este último com o mesmo Holden, pois não?

Por esta ótica, “As Pontes de Toko-Ri” parece um filme de transição. Ele tem as batalhas aéreas e as cenas dos caças em formação que fascinam qualquer criança grande – e, repito, atire o primeiro controle remoto que não vibra com elas. Mas tem também uma dose cavalar de angústia, a um ponto em que determinada cena parece antecipar em décadas o magistral e dramático início do “Apocalipse Now” de Francis Ford Coppola. Holden está no máximo da angústia, logo depois de uma explanação sobre as pontes que está prestes a bombardear. Ele deita na cama e a câmera quase o filma de cabeça pra baixo, como filmou Martin Sheen no clássico moderno de Coppola. No lugar do som do The Door, o “this is the end” que embala as danações de “Apocalipse Now”, ouvimos o estouro de bombas, o ribombar de explosões distantes. As expressões de Holden e Sheen são a mesma, como se “As Pontes...” fosse uma espécie de avô do “Apocalipse...”, um trailler antecipando que o pior, o Vietnan, ainda estava por vir depois daquela Coréia pós-II Guerra. E só pra completar a comparação, não dá pra não reparar na cara lacônica de depressão contida que é o rosto do almirante que comanda toda a operação. E, uma vez reparando, não dá para não estabelecer um paralelo entre ele e o Marlon Brando do “horror, horror, horror” do outro filme que ainda viria a ser feito.

De maneira que a criança que ainda há em você anima-se com a reprise da operação aérea e chafurda no porta-aviões como se lá estivesse entre os marujos. Já o jovem rapaz que você foi diverte-se com as brigas em bandos pela disputa das garotas orientais disponíveis. E o adulto que se instalou, esse vai degustando o filme crescentemente mais e mais, à medida que o clima consciente de angústia se amplifica e se justifica, lapidando “As Pontes de Toko-Ri” como este filmeco vespertino de vários níveis e leituras superpostas.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Frost, Blair, Langella e Nixon


Toda vez em que eu penso em Tony Blair, vejo a cara de Michael Sheen. Definitivamente, desde que assisti ao filme “A Rainha” – aquele belo estudo sobre orgulho, nobreza e celebridades feito por Stephen Frears – o ator Michael Sheen me parece muito mais Tony Blair do que o próprio Tony Blair. Sheen, como Blair, é a representação que supera a realidade, a performance que ofusca o protótipo, a reconstrução que diz mais do que o reconstruído. Tony Blair, pra mim, será sempre Michael Sheen, com aquela mistura de indecisão e fascínio que ele exalava diante da rainha da Inglaterra, aquela postura entre respeitosa e timidamente atrevida diante da majestade, aquele impulso contido de dizer umas verdades a Elizabeth II e a coragem de defender a mesma soberana quanto o massacre midiático contra ela passou da medida. Nem Tony Blair faria melhor do que Michael Sheen.

Dias atrás, assisti a um filme similar à “Rainha”, de Frears. Filme muito aguardado, deste mesmo gênero informal que mistura política, diplomacia e expressivos conflitos instalados nas salas do poder mundial. É “Frost/Nixon” e, como os filmes de que a gente gosta, se você reparar bem, conversam entre si, lá está de novo, quem?, ele mesmo, Tony Blair – digo, Michael Sheen. Desta vez representando o apresentador de tevê meio bregão que furou todo mundo e conseguiu a histórica entrevista em que Frank Langella admitiu ter infringido a lei com a espionagem toda que foi o escândalo de Watergate – e, mais importante, em que finalmente pediu, à maneira dele, perdão aos americanos.

Êpa, eu disse “a história entrevista em que Frank Langella admitiu etc etc? Então, é a tal história que se repete: assim como Michael Sheen virou a imagem definitiva que me vem à cabeça sempre que alguém fala em Tony Blair, é a cara do ator Frank Langella que surge limpinha na minha mente quanto ouço alguém falar de Richard Nixon, o personagem real em questão. O curioso é que Frank Langella nem se parece muito com Nixon – ou pelo menos parece muito menos do que Sheen se parecia com Blair. Mas não tem jeito: depois de assistir ao filme de Ron Howard, Nixon vira Langella e não se fala mais nisso.

Mesmo que, nos extras do DVD, você possa assistir a trechos da entrevista real que chamou a atenção dos americanos e serviu de motivo e base para o filme. Lá, claro, aparecem o David Frost e o Nixon reais, cara limpa, inflexões autênticas, nada de encenação – quer dizer, nada de encenação em escala cinematográfica e acho que vocês me entendem. É onde vem a surpresa: a entrevista real parece muito menos impactante e muito mais mixuruca do que aquela que se vê na sua reconstituição, que é o filme. Coisa do cinema, da arte da representação, do talento de se tomar um evento real, estudar suas implicações e refazer suas circunstâncias em forma de imagem, som, representação de atores, luz, corte, ritmo.

É por isso, por causa da poesia e da eficácia dessa reconstrução, que certos episódios tomados pelo cinema e por ele reelaborados – quando bem conduzido todo o processo, claro – resultam no fato de a imagem de um ator se sobrepor ao próprio rosto da pessoa que ele representa. É uma questão de contorno, de realce das linhas daquela situação, numa engenharia humana que reedita os fatos e refaz as conexões entre eles, trazendo de volta para o debate público, via exibição, aqueles acontecimentos que custam a parar de dar o que pensar. “A Rainha” e “Frost/Nixon” são dois belos exemplos, capitaneados por Martin Blair e Frank Nixon.

(P.S: pelo mesmo motivo, quem engoliu em seco e foi ver “o filme do Lula” vai, muito provavelmente, passar o resto da vida visualizando o “Lula jovem” como a cara do ator Rui Ricardo Diaz)

sábado, 23 de janeiro de 2010

Freio de Arrumação


Do jeito que as coisas vão, se neste momento você pelo menos sentir o chão firme sob os seus pés, dê graças aos céus. Desde 1988 e o reveillon do Bateau Mouche, pra não ir muito longe, que início de ano virou sinônimo de votos de boas novas misturados a uma certa expectativa sobre qual será a primeira catástrofe dos doze meses seguintes. E não vale botar a culpa toda na natureza, que muitos desses desastres de verão tiveram a digital humana acenando impaciente para o legista distraído. Ou você já esqueceu do prédio de Sergio Naya, aquele que desabou no meio de um carnaval?

Mas 2010, definitivamente, representou uma superação, se é que se pode dizer assim. Ainda estavam frescas na minha memória as lembranças das levas de turistas e banhistas a deixar ainda mais ensolaradas as manhãs e tardes da praia de Ponta Negra na penúltima semana de 2009 quando pela televisão e pelos jornais começaram a chegar os relatos das enchentes, desabamentos e de gente morrendo soterrada em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Mal tive tempo de respirar aliviado pelo fato de termos em Natal um refúgio certo contra essas intempéries que mais parecem feitas sob encomenda para os canais de notícia e os portais da internet.

Qual o quê. Foi só o tempo de ligar a tevê e descobrir que a terra estava tremendo de Poço Branco a Pirangi, da Ribeira à Cidade da Esperança, igualzinho ao que acontecia nas noites mais quentes da segunda metade dos anos 80. Atenção que isso não é uma brincadeira de 4.5 graus na escala da ironia: quem tem idade suficiente lembra bem que naquele tempo a terra sempre tremia depois de uma tarde-noite de temperatura sensivelmente mais elevada até mesmo para os padrões potiguares. Enfim: depois de suportar um noticiário todo marcado pela presença de Sarney em 2009, começamos 2010 com as esquadrias a balançar e os sismólogos da UFRN de volta ao estrelado. Seria feliz ano novo ou infeliz retrospectiva daquela década nem tão esquecida assim?

Se o jeito é apelar para a nostalgia e twitar as memórias do primeiro terremoto, que seja. Cada um reage como pode, e o bom humor não deixa de ser uma forma de lidar com o fenômeno e o medo dele decorrente. Ate mesmo quando, poucos dias depois, o tremor de João Câmara a Natal se revela só um trailler para a catástrofe em escala hollywoodiana que foi esse terremoto no previamente arruinado Haiti. É a tal história: se nada podemos fazer para prevenir e muito pouco somos capazes de realizar para remediar, então que o terremoto nos sirva ao menos para a gente rir um pouco mais da gente mesmo. Afinal de contas, no frigir dos ovos, digo, no balanço da terra, tudo isso só reforça a nossa gigantesca insignificância.

É neste momento que o terremoto "local", agora já devidamente ofuscado pelo drama de CNN que virou o pobre do Haiti, apresenta seu lado bom, se é possível dizer isso. Já que você não é nada diante dele, use o terremoto como símbolo para uma série de coisas. E quando os talheres saírem pulando da mesa para o chão você terá ao menos um fiapo de racionalização para não se perder no contexto. Não existe agora a neurolinguística do trabalho, do sucesso e do enriquecimento certo? Pois então: coloque na mesa, antes que tudo venha abaixo, a neurolinguística do terremoto, aquela que ensina a lidar com a absoluta falta de defesa do ser humano diante dos mistérios da natureza.

O segredo pode ser encarar o terremoto como um grande freio de arrumação que a natureza acha por bem nos dar. E se você tiver tempo de pensar bem antes de buscar um refúgio vai ver que há uma razão para isso. Não valem as explicações de curto prazo, como asfaltamento de dunas, poluição do lençol freático, planos de construção de emissário submarino naquela mesma Ponta Negra ensolada. Acontece que tudo isso, por pior que seja, é muito pequeno diante da natureza maior, aquela que providencia os terremotos. Valem mais fatores menos evidentes, coisas que estão no ar, sinais de esgotamento da atividade humana que só um sismógrafo bem mais cismado consegue captar.

O terremoto pode ser um baita freio de arrumação não só no crescimento desordenado mas na desordem em crescimento. Um alerta para que os homens e mulheres do lugar atingido tratem de recolocar tudo no seu lugar. Quem sabe o Haiti, tão errático mesmo com ajuda estrangeira (e logo a brasileira), não se ajeita depois desse susto? E no nosso caso: quem sabe as coisas não ficam um pouco menos bagunçadas? Por exemplo: um freio de arrumação na política poderia deixar as coisas menos confusas, nestes tempos em que não se sabe mais quem é Alves e quem é Maia. Na cultura, nada melhor do que uma sacudida geral, que mostre o quanto as autoridades estão gastando em shows o que poderiam investir na formação teatral que ilustra, no incentivo à leitura que esclarece, no projeto constante que forma público atento e criterioso. E na área da segurança, quem em sã consciência não está esperando por um terremoto que reduza as estatísticas de mortes violentas praticadas sem que a falha de João Câmara se mova um milímetro sequer?

Ninguém quer ver prédios caindo, não está nos planos de pessoa alguma assistir à morte em massa de gente espremida entre lajes, muito menos virar manchete de desgraça internacional. Mas nem por isso dá pra dizer, como também está na moda entre certos segmentos, que Natal é o melhor dos mundos e a gente não precisa fazer nada além de manter o bico calado. Como aliás disse certo general-presidente sobre o Brasil em tempos de péssima memória. Por isso mesmo, quem garante que o "nosso" tremor de terra da semana passada não tenha vindo justo para negar essa falsa placidez? Como um pitaco da natureza a dizer que, em primeiro lugar, "yes, nós have terremoto". E, pra variar, temos também problemas urbanos, políticos, culturais e de segurança, só pra ficar em quatro áreas sujeitas a sérios abalos, tão críticos quanto os de qualquer outra cidade, estado ou país.

*Publicado no Novo Jornal

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Leia na Hamaca


"Mas é bom poder dizer que, mesmo com as férias da garotada e a procura incansável por atividades recreativas no turno matutino, o que inclui visitas a parques variados em dias alternados, este início de 2010 já me trouxe uns bons dividendos sapienciais depositados no bisaco das ilustrações que a gente proporciona à gente mesmo. Pois bem, são 19 dias e 44 anos redondos exatamente hoje, dois livros lidos, pouco mais de meia dúzia de filmes - uns vistos, outros revistos; uns em casa e dois (dois! viva!) no cinema -, parques revisitados e até um dia na cachoeira de Itiquira, em Formosa, Góiás. Enfim, um panorama renovado tanto quanto possível neste ano que começa salpicado pela dor de tantas desgraças. Não é pouco, e pode ser muito mais do que o bastante. Vamos a uma síntese deste almanaque inaugural."

Continue lendo aqui.

Memórias do Sopão


Salve, Rex

Acho que o sino tocava três vezes, como no teatro. Não tenho certeza. Pode ser mais uma invenção atrevida dessa minha memória que incrusta inserts na realidade vencida, deturpando lembranças. Ainda que às vezes as tais lembranças resultem bem melhoradas com essas deturpações.

O fato é que o episódio que estou tentando recuperar bem que se presta à ocorrência de invenções. É que se trata de coisa mui distante - passados del rey menino no planeta da fantasia. Tento lembrar como foi a primeira vez que fui a um cinema, o velho Rex, que por sinal estava tinindo de novo naquela ocasião.

Era uma dupla inauguração: o novo cinema da cidade e a minha primeira presença naquela sala mágica e escura. Lembro, repito, de sinos tocando três vezes - notem, rememoro sinos, e não sirenes. Há um certo romantismo aí que faz toda a diferença.

Em seguida, as luzes se apagam e alguma coisa especial se instala no ar. Mais especial ainda do que aquelas cadeiras de madeira novíssimas, enfileiradas naquele espaço nunca visto. E a tela, imensa e branquinha, pendurada no paredão. E o que mais me impressionou - disso estou certo que lembro: aquela leve ondulação no piso, fazendo com que as cadeiras mais próximas da tela ficassem numa posição ligeiramente inferior às do meio da sala, e estas das últimas, abaixo da cabine do projetor.

Iniciada a projeção - aquele processo que até hoje sou incapaz de descrever em palavras, tanto o processo quanto a maneira como meus olhos se deram conta dele - ainda havia um outro mistério a desvendar. O mistério da cabine, de onde saía aquele sopro de luz, retilíneo e ao mesmo tempo vaporoso, aquele jato de poeira brilhante e colorida que ia se diluir ternamente no espaço da tela.

O filme - e vocês hão de me dar licença de ter estreado num cinema vendo um filme menor, ordinário, popularesco e imensamente brasileiro - era "Paixão de um homem". O "artista" (como era praxe denominar o ator principal; não se usava a palavra "mocinho") era ninguém menos que Waldick Soriano - então ainda um astro vagabundo a causar certo impacto no interior do país. Era um legítimo faroeste caboclo - e, perdoem-me a incorreção cultural e política - não poderia haver filme melhor.

No dia seguinte, já me sentindo completamente veterano naquele ambiente de tiros, tela, gritos e encantamentos, assisti a um "Robinson Crusoé" bem elegante (que, desconfio, e qualquer dia tiro a dúvida, foi dirigido por, vejam só, o sofisticado Buñuel).

E vieram os tarzans, os teixeirinhas, os dólares furados, os macistes, o inesquecível king kong setentista que rendeu um belo álbum de figurinhas, e muitos outros.

Até que um dia o sino foi dispensado, a platéia foi se dispersando e vocês conhecem o resto da história.

"Alfredo, cuidado com o projetor

* Com esta postagem, o Sopão, que já está ficando velho, reprisa textos já "antigos" deste almanaque caseiro de registros, opiniões, evocações e outras formas de adoçar estes tempos terminais de terremotos.

Sopão por aí






Formosa, GO

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O Haiti, à distância


Até a noite de ontem, evitei deliberadamente me deter diante da televisão ou dos jornais que estamparam a catástrofe infernal que se abateu sobre o Haiti. Este país previamente arruinado que, à distância, já era uma espécie de território absoluto da mais absoluta falta de consenso, como se fora um exemplo no mapa do mundo a chamar a atenção dos demais países, em atitude de completo auto-sacrifício, sobre a importância de costuras mínimas que mantenha íntegro o tecido de uma nação. Ocorre que, na desgraça mais destituída de explicações, todos os tecidos do Haiti se romperam, em exemplo outro, e tremendamente mais nefasto e sobrenatural, de uma realidade construída – diria melhor, destruída – em desastre muito aquém da vã incapacidade humana. O Haiti parece que se quebrou em dois pedaços, como um guri arrebenda distraído um palito de picolé. Uma catástrofe natural, indigna de tal adjetivo irônico, que parece vir cimentar a calçada desfeita de um país já então lutando contra a decomposição.

Evitei até ontem, como dizia, qualquer atitude que significasse me deter sobre os vastos panoramas dessa tragédia. Não fechei os olhos para o terremoto, não desliguei a tela do canal de notícias, tampouco deixei de ler as manchetes dos jornais. Mas não sentei defronte à tevê como fiz quando o mundo acabou em Angra dos Reis, numa decisão que redundou em lágrimas silenciosas diante do Jornal Nacional do último dia do ano. Do jornal de papel não ultrapassei a primeira página, negando por um momento uma leitura que muito me agrada, independente do exercício profissional e da qualidade adjetiva da imprensa de nossos dias. Mas não foi nada decidido, estabelecido, normatizado na mente que adota resoluções de maneira praticamente automática. Só evitei, mal notando que o fazia.

Acontece que a desgraça em escala também precisa ter suas gradações. Depois do choro da também distante Angra, não queria mergulhar meu auspicioso início de ano em outra bacia de sangue e clamor. Talvez eu tenha o coração fraco, além do miolo mole. Mas consultei minha humanidade e ela me disse para não ter vergonha deste tipo de autopreservação. Meus filhos estão de férias, é preciso que eu dê para eles um pouco mais da minha companhia, que invente passeios, que aproveite os dias de sol que enfim se instalaram sobre o solo despovoado deste janeiro brasiliense. Que eu não negue o sofrimento, mas que não deixe que ele me paralise. Que não me torne refém do noticiário mais triste desde muito tempo, embora compreenda a natureza desse noticiário que se alimenta do grito do soterrado e da mais dura imagem, aquela que mostra o rosto da nova leva de órfãos que o mundo acaba de parir. Corro para os meus filhos, fujo com eles para o parque de diversões mais próximo, o reino infantil deles me abriga na manhã ensolarada, não tenho como não fazer isso. Reajo à maneira que me está mais à mão. E confirmo involuntariamente minha humanidade tensa e temerosa diante da catástrofe – qualquer catástrofe mas sobretudo esta última, que muito bem poderia fazer jus ao adjetivo e efetivamente ser, mas sabemos de antemão que não o será, a derradeira.

Ontem à noite, finalmente, o dique se rompeu, como haveria de acontecer mais cedo ou mais tarde. Para me inteirar sobre a terrível notícia do terremoto, a indesejada reportagem sobre o segundo fim do Haiti, resolvi ler o texto da revista “Veja” que, longe de ser a melhor fonte jornalística em assuntos outros, sobretudo os pátrios, ainda tem a vantagem de consolidar melhor em poucas páginas este tipo de evento que surpreende e choca o mundo. O que eu buscava, de fato, era um breve resumo, aprofundado e ao mesmo tempo suficiente, para me colocar a par do terremoto e seguir em frente, sem me expor a um sem número de videos diante dos quais muito pouco se pode fazer além de exercitar uma perplexidade já tão curtida por eventos outros. Com a revista na mão e os olhos nas palavras, não precisei ler muito para sentir o estômago embrulhado, o remorso revirado, a incredulidade dando saltos.

A fotografia em página dupla do homem procurando pessoas da família entre corpos já inchados pelo processo de decomposição; a notícia terrível do pesadelo que se seguia à sobrevivência, pela falta de qualquer lugar para onde voltar e qualquer hospital onde calar a dor; a narrativa dos últimos momentos de Zilda Arns, rodeada por sacerdotes interessados em uma fórmula simples para melhorar a vida de quem já é o próprio sofrimento em forma de pessoa; tudo isso é muito mais do que aquela mão pendente na capa da revista poderia sugerir. E ainda há as pequenas biografias dos militares brasileiros mortos, quase todos da mesma idade – 23 anos – e com idêntica disposição de servir a um país carente de qualquer forma de reconstrução.

Era tudo isso o que eu estava evitando e que, a esta altura, quase 24 horas depois, já se encontra assimilado em meio a uma sensação de torpor esclarecido. Outras catástrofes virão, polêmicas pré e pós-carnavalescas, os jornais e revistas mais uma vez reabastecidos de futilidades que nos fazem esquecer e seguir em frente. Ontem, um vôo turbulento sobre o oceano Atlântico. Amanhã, uma garota de vestido curto que vira do avesso uma universidade particular. Anteontem, uma menina de seis anos morta aos pés de um prédio e uma história de pais estressados que não bate com a sensibilidade normal do ser humano. Daqui a pouco, o relógio roubado de um apresentador de tevê ou os erros gramaticais de uma celebridade no twitter.

E, nisso, alguém pode perguntar: de que a gente estava falando mesmo? Ah, do Haiti, o país daquele terremoto – onde fica mesmo? A porta por onde entraram relatos, fotos e imagens de tamanho cataclismo já terá se fechado, lentamente, com os poderes da memória humana que tanto garante a lembrança que machuca (mas alerta) quanto o esquecimento que consola (mas subestima). Nossa imensa insignificância estará refeita e intacta, embora a gente não se dê conta disso. Até que outro apocalipse nos sacuda, in loco ou ao longe, pelos jornais, pela tevê, cutucando nossa humanidade latente, este apicentro de plantão dentro de todos e de cada um de nós.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Os servos de Zilda


Havia em Zilda alguma coisa de Irmã Dulce e outro tanto de Madre Tereza. Não necessariamente a auréola da caridade, embora também. Mas algo mais ligado à matéria da serenidade. Talvez por isso eu - e imagino que muita gente mais - pensasse que Zilda, mais do que missionária, era freira mesmo. Talvez isso explique a surpresa de saber, somente após a morte estúpida em algo tão pouco sereno como é um terremoto, que Zilda foi, antes, mulher e mãe. Não vou nem dizer avó, que muito provavelmente também terá sido - e o comentário se faz aqui sem consulta às vastas biografias nos jornais e na tevê -, pois que na qualidade de ser avó há também muito da característica de ser uma madre, superior.

Zilda fica sendo assim nossa santa não canonizada, por dispensável o ritual vaticânico. Se ficamos sem ela em pessoa, é certo que sua morte abrupta acaba por magnetizar definitivamente aquele halo que já a envolvia enquanto entre nós exercitava sua presença no mundo. Pois que o desaparecimento corporal dessa padroeira informal, essa unanimidade bem-vinda, nos sirva, no calor do noticiário retroativo e das homenagens paridas às pressas, para ao menos deslocar um pouco o foco da pessoa e de sua nobreza humanitária para aqueles de quem tal sentimento se fazia objeto: as pessoas menos favorecidas, que delas ainda as temos em demasia. Que as missas à santa Zilda nos lembrem, inadvertidamente que seja, da existência de seus apóstolos invisíveis, que são as pessoas pobres, os despossuídos de qualquer chance, os mortos-vivos para os quais ninguém presta atenção, quanto menos homenagens. Nâo foi, mas não foi mesmo, o caso de Zilda.

A lenda do cajueiro e da estrada


De tempos em tempos, as cidades e seus moradores ganham de presente uma novidade inesperada que coloca em cheque os valores da própria comunidade. Pode ser um buraco de rua que adquire dimensões inoportunas, a proposta de demolição de um casarão centenário para dar lugar a um apart-hotel de ocasião, ou uma ressaca marítima que lava as ruas da orla como há muito não se via ou se imaginava. Neste exato momento, os moradores de Natal (os de fato e os de direito, como julgo ser o meu caso) estão diante de um desses fatos inesperados - e definidores da alma de uma cidade. Estou falando, se é que você ainda não adivinhou, dessa polêmica em torno do crescimento do cajueiro de Pirangi, o maior do mundo, e suas consequências para o trânsito de quem passa o verão nas praias do litoral sul.

Pra começar, há um componente de estravagãncia, qualquer coisa de deslocado que faz desse fato - o crescimento antes desejado e agora nem tanto de uma árvore anômala - uma espécie de teatro do absurdo encenado em via pública, debaixo de um sol de rachar. O cajueiro, que sempre foi motivo de orgulho, agora é um incômodo. Para quem frequenta o blogue mas não a cidade, esclareço, em tempo: além de já ser o mais exemplar da espécie no mundo (segundo o livro dos recordes, sempre citado), o cajueiro de Pirangi, já no município de Parnamirim, colado a Natal, é também uma árvore em constante crescimento. Ou seja, não satisfeito em já chamar a atenção de meio mundo, continua avançando seus galhos e ramos para os lados (a característica de sua anomalia é essa, a de crescer não para o alto, mas lateralmente) totalmente indiferente a quem esteja pela frente. E quem está pela frente? A estrada que leva não só a Pirangi, onde está o cajueiro, mas a uma infinidade de outras praias litoral sul adentro.

Daí a polêmica: poda-se o cajueiro para preservar a estrada ou muda-se a estrada de lugar para preservar o cajueiro? Parece simples? Não é o que indicam toneladas de artigos em jornais de Natal, pilhas de especialistas de ambos os lados - os ecologistas e os pragmáticos, só pra tentar simplificar um pouco - e sobretudo a também mui criticada indefinição do poder público diante do problema. O fato é que a polêmica do cajueiro tem um caráter tão, digamos assim, literário, que chega a parecer mais ficção do que realidade. Lembra um pouco aquele texto famoso de Ibsen, "Um Inimigo Público", que mostra o inferno em que se transforma a vida de um cidadão que denuncia a contaminação das águas de uma cidade que vive justamente do turismo aquático. Por outra via, sugere aquele clássica imagem do teatro do absurdo, que é a peça onde se entroniza um elefante em cena aberta, como que para despertar o público do torpor habitual.

Eis a imagem: um cajueiro em crescimento a olhos vistos, como sob a visão de uma câmara em rotação acelerada, espandindo-se da costa de Pirangi rumo a Nova Parnamirim, dali até Ponta Negra, daqui a pouco os galhos insaciáveis escalando qual uma aranha verde o Morro do Careca, logo tingido de folhas cheirosas o asfalto da avenida Engenheiro Roberto Freire, para minutos depois encobrir de bulbos e castanhas o Machadão e o Machadinho. E assim por diante, até desaguar suas galhas nos mangues de Santos Reis, não sem antes lançar um ramal por baixo da ponte até as hostes da Redinha, para o gáudio de galeras nem tão ecológicas assim.

Não tenho resposta nem palpite para o dilema do cajueiro, como bem pode indicar a fantasia antifuturista do parágrafo anterior. Já me dou por safisfeito só com a qualidade do debate que ele, o dilema, implanta bem na entrada da Rota do Sol, suficiente bem mais do que para dar uma cara à estação neste 2010 ainda principiante, como também para fazer a cidade e sua região metropolitana se pensar e se repensar. Agora, quanto ao que, no final das contas, vai ser feito - aí é cada macaco no seu galho para sofrer as consequências, já que o histórico recente das decisões municipais, ao menos na seara estritamente natalina (ops, natalense) não tem sido dos mais estimulantes, ainda que sob os auspícios de um mandato verde. Ou por isso mesmo, se o eleitor tomar o adjetivo em mais de um sentido.

Para sempre, Taiúva

Ainda bem que a idéia não foi pra frente. Mas, mesmo assim, pense bem: em termos de estragos à cidade, o mínimo que vereadores mal intencionados podem fazer é trocar os nomes de algumas ruas, ou de pedaços delas. Porque, na verdade, enquanto gente atenta bota a boca no mundo para evitar que a Rua dos Panatis, por exemplo, vire Rua Desembargador José dos Anzóis, os vereadores podem muito bem, na surdina e se aproveitando da atenção desviada para outro assunto, mudar de cabeça pra baixo as normas de construção na cidade, que, coitadas, parecem já ter sido bem mais respeitadas. Por isso mesmo, convém continuar de olho aberto.

O fato é que, no calor da polêmica, fui me refrescar olhando o mapa da cidade, via Google, como quem busca informação à distância, e descobri um verdadeiro almanaque sobre os nomes de nossas ruas. A primeira constatação é que daria muito trabalho (e esse é um motivo suficiente para que não tentem de novo) alterar todos os nomes de ruas com palavras indígenas na cidade de Poti. Só ali no Pitimbu (o nome do bairro já adianta que o negócio não iria ser moleza), que é minha praia favorita embora não seja banhada por uma só gotinha do generoso Atlântico que nos limita, há um pequeno dicionário de, vulgarizemos, "ruas indígenas".

Para se chegar lá, é preciso pegar a Avenida dos Xavantes. Uma vez no bairro, temos a Rua Tamboara, a Rua Arabutã, a Rua Serra Icaraí, a Rua Rio Tamamduateí, a Rua Cumaru, a Avenida dos Caiapós e por aí afora, embora muito provavelmente eu já esteja misturando o Pitimbu com o Satélite. De qualquer maneira, o meu endereço preferido, a Rua Taiúva, parece que também está incluído no pacote. Ainda não consegui descobrir se trata-se ou não de palavra indígena, mas a sonoridade me basta. Sem falar no luar, porque o brilho da lua nos paralelepípedos da Rua Taiúva vale mais que a etimologia descrita em qualquer Aurélio, seja de bolso ou daqueles que se usa para encostar porta que range.

A viagem pelas denominações no mapa do Google revela também como são belos os nomes de ruas onde a gente nunca esteve, ou se esteve nunca reparou no nome: Rua Encanto, na Cidade da Esperança; Rua Agrestina e Rua dos Cometas, no bairro Planalto; avenidas Mar Vermelho e Mar Mediterrâneo na Zona Norte. Mas não tem jeito e para qualquer lado que se olhe no mapa, lá está uma rua de nome indígena, como que para fazer vergonha ao cosmopolita senhor vereador que advogava a mudança. Na Zona Norte, assim, de cara, saltam aos olhos as avenidas Itapetininga e Acaraú, sem falar na cabocla Rua Araruna que, assim como a Taiúvas, se não for indígena tem prosódia poética e só por isso já é superior a qualquer Avenida Ranieri Mazzilli, que existe sim, em Felipe Camarão. Pra quem não lembra, esse aí é o nome do deputado que assumiu a Presidência da República quando os militares chutaram João Goulart do Palácio do Planalto em 1964, mas essa já é outra história, bem mais barra pesada.

Acabo de passar por Felipe Camarão e noto que o bairro, de reputação menos nobre, é vasto em belos nomes de ruas, que ironia. É lá que fica a rua que tem um dos mais poéticos e representativos nomes de toda Natal: Rua Mar e Céu. Tem coisa mais bonita? Tem a Rua Peixe Boi, para quem é de espírito mais aquático. Tem a Rua Manágua, para onde podem se mudar os fãs da revolução sandinista. Tem a Rua Arco Íris para o pessoal GLS. Tudo isso em Felipe Camarão que, aliás, não corre risco nenhum de ter o nome mudado por não se chamar, como poderia ser, bairro Poti.

Querem um lugar mais arejado pela maresia da Zona Sul? Só se for agora, em Capim Macio, por sinal um nome de bairro que, mesmo não sendo indígena, também não pega muito bem. Lá estão, uma após a outra, a Rua das Violetas, a Rua das Orquídeas, a Rua dos Antúrios, a Avenida das Tulipas e, ali pertinho, a Rua das Gardênias. Um jardim, pelo menos nos nomes. Os mais sensíveis aos efeitos do endereço no estado da alma tem lugar certo para se instalar: a Rua da Saudade, paralela da Nascimento de Castro, vizinhanças do restaurante Mangai, que é outro de péssimo gosto, mas é propriedade privada e vereador nenhum tem nada a ver com isso, ainda bem.

A propósito, se vereadores tentaram, sem sucesso, mudar parte do nome indígena de uma rua do Alecrim, a gente ganhou uma ótima desculpa para revidar. Que tal propor mudanças nos nomes de ruas que nada tem a ver com a gente? A Avenida Ayrton Senna, por exemplo, bem que podia ter outro nome, bonito e sugestivo como aquela discreta e elegante Rua Céu e Mar. Tudo bem que a Zona Norte tem a Rua Noel Rosa, mas uma coisa é casario com nome de compositor da música brasileira e outra, bem diferente, é via principal com nome de piloto de corrida. No mínimo, pode sugerir uma pisada mais forte no acelerador.

Mas, pensando bem, se a gente tomar esse caminho de associar o nome da rua com a prática que se pode desenvolver só por estar nela, admito que a coisa descamba. Ou você imagina que quem mora na Rua Batuque, no bairro Nordeste, é necessariamente chegado numa festança? Se for assim, feliz de quem vive na rua Altaneira, na Zona Norte. Talvez não seja por aí, pois pode ter sido assim que surgiu entre vereadores a idéia de suprimir o nome indígena de parte de uma rua do Alecrim, como se tal nome espelhasse uma origem tribal que a gente não pode, em nome do bom gosto e da evolução, admitir. Que ela exista, não há o que fazer. Agora, que seja nome de rua, para o mundo ver no Google e nos chamar de nativos, nem pensar.

Vai ser complicado, porque muito mais do que ruas, temos praias bem conhecidas pelo país e pelo mundo que atendem por nomes tão indígenas quanto os tororós e pajeús da vida. Genipabu, afinal, vai virar a Praia Vereador Fulano de Tal? Ainda bem que, pelo menos desta vez, eles recuaram.

*Publicado no Novo Jornal

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Merten, Lula, Antônio Marcos e o preconceito


Não dá pra deixar passar despercebido o comentário mais recente do crítico de cinema Luiz Carlos Merten (O Estado de São Paulo) sobre o "filme do Lula". Em primeiro lugar, pela declaração de amor que o homem faz à música considerada "brega" (e é impossível ler o texto sem lembrar de Paulo César Araújo, o biófrago desautorizado de Roberto Carlos e seu outro livro "Eu não sou cachorro, não"). Em segundo, por se juntar à denúncia do preconceito que, parece, para sempre estará associado ao filme dos Barreto. Ao texto (para ler mais, é só clicar no link ao lado em Outros Cardápios):

"Já tenho falado bastante sobre 'Lula, o Filho do Brasil', mas até agora não tinha dado maior atenção à trilha assinada por Antônio Pinto. É um compositor sofisticado - trabalhou com Michael Mann -, mas que tem um bom ouvido para o popular e nenhum pudor em assimilar o brega. Estava outro dia no Espaço Unibanco do Shopping Frei Caneca quando se abriu a porta da sala que exibia o filme de Fábio Barreto. O público foi saindo ao som de 'Pau de Arara', de Luiz Gonzaga. Me emociono só de pensar, mas minhas favoritas no CD são 'Como Vai Você', na voz de Antônio Marcos, e 'A Última Canção', cantada por Nana Caymmi. É incrível como certas músicas - bregas - foram incorporadas ao meu imaginário por causa do cinema. Sempre que me lembro de 'O Amuleto de Ogum', de Nelson Pereira dos Santos, a primeira coisa que me vem é a cena do baile, quando o apresentador anuncia 'o canarinho do Gandu' e entra aquele cara, que eu nem sei quem é, cantando 'O show já terminou/Vamos voltar à realidade...' Nana é sublime, mas, pensando bem, quando ela não é? Em Cannes, no ano passado, encontrei na Croisette, correndo de um filme para outro, Georges Gachot, que fez aquele documentário bonito sobre Maria Bethânia e que em maio trabalhava no seu outro documentário sobre Nana. Ele estava entusiasmado e no seu francês aportuguesado me disse que o começo estava de arrepiar - Nana canta, o que poderá surpreender muita gente, música sacra. Mal posso esperar para ver. E o Antônio Marcos, então? Podem me atirar quantas pedras quiserem, mas Antônio Marcos cantando 'Como Vai Você' para mim não é brega, é clássico. Me comove vê-lo tentar conter seu vozeirão para ser delicado em versos como '...que já modificou a minha vida'. E o Paulo Sérgio? Não sei por que, mas quando penso num o outro me vem, instantaneamente. Ambos tiveram mortes prematuras. Paulo Sérgio cantava Roberto melhor que o próprio - 'Já nem sei dizer se sou feliz ou não...' Coisa mais linda, tchê! Agora só o que me falta é alguém postar para dizer que a trilha de 'Lula' é ruim. Não é mesmo, como o filme também está longe de ser ruim. Nenhum filme que tenha Glória Pires, Milhem Cortaz e Rui Ricardo Diaz naquelas criações viscerais pode ser ruim. A propósito, de tudo o que escreveram contra o filme nos comentários do blog, nada me entristeceu mais do que o veneno da Tatiana, ironizando porque eu disse que 'O Filho do Brasil' tinha ido bem no Ceará e em Pernambuco. Tem gente que é caso perdido, de direita e só fala m... mesmo. Mas a Tatiana mexeu comigo. Pelo Cine Ceará não posso falar, porque não frequento, mas o público do Cine PE é um dos mais calorosos do Brasil. Tatiana devia assistir a uma daquelas sessões para tomar vergonha e não se achar superior à plateia de 'nordestinos' (coloco entre parênteses porque o preconceito, obviamente, é dela)".

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Sobre o "filme do Lula"


Além de servir como saco de pancadas para quem tem preconceito contra operário que vira presidente da República, o “filme do Lula”, em cartaz desde o dia primeiro do ano, tem várias outras utilidades: denunciar, involuntariamente, o oportunismo do Barretão (o produtor, Luiz Carlos Barreto, se é que alguém aí não liga o nome à pessoa); mitificar Luiz Inácio em vida; eleger Dilma contra Serra; puxar o saco de quem está eventualmente no poder; faturar uma grana na bilheteria apelando para o choro fácil de um melodrama infalível; fazer média com o brasileiro médio que sonha em “subir na vida” como fez o presidente. A lista é infinita e, daqui até a eleição presidencial, várias outras utilidades serão denunciadas bravamente por críticos de cinema, analistas políticos, especialistas em semiótica e por aí afora.

Assisti ao filme no dia da estréia, uma data praticamente morta aqui em Brasília, numa sessão vespertina de poucos espectadores, mas grande parte deles de cabelos brancos, como eu mesmo estou ficando ano-novo após ano-novo. E, deglutidas e processadas todas as informações prévias que o filme levantou desde que se anunciou que seria feito até aquela estréia para convidados realizada também aqui em Brasília, entrei na sala até pronto para sair meio decepcionado – que filme muito falado, se sabe, tem grande possibilidade de desapontar. De qualquer maneira, tentei abstrair tudo assim que as luzes se apagaram.

Quando as luzes novamente se acenderam, ao final da exibição, concluí que: 1) O “filme do Lula” desce fácil e passa rápido, numa narrativa que obrigatoriamente deixa de fora inúmeros outros fatos importantes de uma biografia maior; 2) O “filme do Lula” realmente não se detém em mostrar as ambiguidades de um homem torturado pelos fatos; antes, prefere deliberadamente exibir a dimensão achatada de alguém que enfrentou tantos obstáculos e chegou lá, naquele lugar inacessível para a imensa maioria do meio majoritário que o gerou; e faz isso mostrando um Lula quase sempre sorridente diante do rosto de uma realidade que quer vê-lo praguejar o tempo inteiro; 3) O grande mérito do filme pode não estar na ilustração da trajetória em si, na loa da ascenção contra todas as possibilidades, no lustre de realidade que impregna cenários, cenas e locações, nem mesmo no típico gancho de roteirista que é a ligação quase metafísica entre mãe e filho; o grande mérito do filme, abstraído todo o debate (tanto o legítimo como o ilegítimo) em torno dele, pode estar no fato de mostrar não o crescimento de um brasileiro pinçado da massa para a cadeira do poder, mas sim o momento crucial deste mesmo brasileiro indefeso enfrentando o Estado policial que ainda éramos na passagem dos anos 70 para a década de 80.

É ali, no comando da greve, na claustrofobia do sindicato cercado ou na amplidão humana da cena do discurso no estádio de futebol, que a gente está pronto para entender este Lula. É ali que o filme se faz válido, quando vemos o líder operário comum à frente de uma investida que ameaça uma estrutura política das mais incomuns e perigosas – a ditadura brasileira de então. Naquele momento, Lula não tinha a proteção presidenciável de que goza hoje, não tinha sequer a segurança simbólica que garante, por exemplo, os atos de um líder de partido político que ele também se tornaria. Não tinha a imunidade do deputado que também seria, nem mesmo o cordão de proteção informal que mantém a integridade do candidato à presidência da República que ele seria por tantas vezes. Lula estava à frente de uma multidão de operários, mas nunca esteve tão só. Talvez nem mesmo a célebre "solidão do Alvorada" se compare à matéria específica daquela solidão.

O que o “filme do Lula” mostra, oportunismo e intenções à parte é que, no enfrentamento de empresários mimados pelo protecionismo e, por tabela, do sistema vigente no país naquele momento, Lula se arriscou e se burilou. Passou a coragem pessoal no torno mecânico do momento político. E, tendo se mostrado vencedor nos limites desta mesma realidade, credenciou-se para sempre a estar onde, afinal, chegou. Afinal, o que é uma crise moral como a do "mensalão", ou uma topada circunstancial como a dos "aloprados", quando comparados ao abismo sem mureta de proteção que era aquele instante crucial das greves no ABC paulista nos anos de chumbo?

Talvez por isso o “filme do Lula” tenha um tom de parábola, o que o aproxima de uma narrativa bíblica e o reveste de uma cor mitológica. Mas provavelmente seja apenas um conto sobre a coragem que uma pessoa comum precisa ter para fazer algo que se espera dela em circunstâncias extraordinárias. Enfim, isso que acontece com todo brasileiro, todo dia, aqui, ali, ao nosso lado, na cidade, na periferia ou no campo. A reinvenção inevitável que todos nós praticamos tão automaticamente que ninguém se dá conta, mas que, no fundo, garante a sobrevivência de cada pessoa e de um país em formação. A diferença, com Lula, é que ele fez isso dentro da moldura de um lugar e de um momento no qual todos estavam de olho: a reconstrução da democracia no Brasil.

Leia no Sopão

"São os tempos da Embrafilme e do combate elitista à vergonha que era a pornochanda, num enfrentamento legitimado pelo sistema autoritário instalado pelos mesmos militares que aqueles cineastas-intelectuais também tentavam contestar. Enfim, as contradições brasileiras que, o livro também destaca, a busca de uma certa “identidade nacional” também tentava ocultar."

"O cinema brasileiro, por Jean-Claude", nova postagem na Hamaca de Poti. Continue lendo aqui.

Lobo noturno em luz de neon


Existem filmes que dão um trabalho danado pra gente entender por que tanto gosta deles. Mais do que isso, dá um certo temor buscar essa explicação. Porque parece que, uma vez entendido os meandros da mágica que neles se processa, nunca mais serão tais filmes objetos daquela admiração burra e jamais analisada que foram antes. Toda vez que eu pego o DVD com "Paris, Texas" para rever, corro este risco. Esta semana, não resisti e aproximei-me do perigo mais uma vez. Felizmente um cansaço de volta às atividades de início de ano comprometeu grande parte do que seria o processo de análise acurada do filme e o manteve, terminada a exibição, intocado naquele lugar cercado de brumas subjetivas onde a gente guarda tais tesouros. Quero dizer: não consegui achar as chaves que destrancam os segredos e deixam à mostra os mecanismos do fascínio que "Paris, Texas" exerce sobre mim (talvez sobre você que me lê também, daí tamanho falatório), embora tenha recolhido umas pistas - talvez, falsas - pelo caminho.

Notei, por exemplo, uma tentativa de expor em geografia humana os dilemas de viver nos domínios da América com "a" maiúsculo. Vocês sabem: o filme, vencedor da Palma de Ouro de 1984, foi feito pelo alemão Wim Wenders nos desertos americanos, entre Los Angeles e Houston, numa paisagem que parece ressurreição desesperada do Monument Valley que ilustrava os westerns de John Ford. Assim, sem reler nada sobre o filme (sobre o qual há vastos textos, um deles em livro), fiquei com a impressão de estar vendo um cineasta estudar dois tipos marcantes do cenário americano que tanto o fascinava.

Um deles, o acessório (segundo a ótica do filme) é o self made man, o bem-sucedido trabalhador que "make money", o tipo médio meio autista que segue em frente sem dar bola para angústias e, de jeans e cigarro no bico, ajusta-se à terra das possibilidades. Não por acaso (isso é um chute, mas arrisco) chama-se Walt (Disney?). Na tela, é o Dean Stockwell que dá duro com sua empresa de (não por acaso, novamente?) montagem de out-doors, quando não está às voltas com as trapalhadas em que o irmão, Travis, se mete. O outro tipo é justamente este Travis perdido nas consequências de uma crise pessoal envolvendo amor, desejo e ciúme obsessivos. É dispensável relembrar a história contada. O fundamental é que, na geografia áspera mas cheia de possibilidades da grande América, Walt é um cowboy ajustado que toca a manada, quer dizer, a vida; enquanto Travis é o lobo noturno sempre banhado por luzes de neon que não encontra pouso certo entre motéis e viadutos. No nível da metáfora, o filme me pareceu uma ampla e sedutora ilustração deste caminho que se bifurca na encruzilhada de uma nova civilização.

E ainda tem Nastassja Kinski, loura e linda com aquele a esta altura inconográfico vestido roxo, na posição de pivô desse desajuste em fragmentação. De maneira que "Paris, Texas" continua sendo pra mim um grande filme, justamente porque sigo incapaz de saber exatamente o que o faz ser assim. Só tenho pistas e elas me bastam.

Ligue a tevê


Nasce um ator na televisão brasileira. Até as 22h de ontem, havia um rapaz chamado Fábio Assunção que, se não fazia feio, também não impactava bonito. Então, veio uma prisão espalhatosa, um escândalo público, um vício daqueles capazes de transformar atleta olímpico em farrapo humano, e tudo mudou. Fábio Assunção viu o fundo do poço e isso, pelo que nós vimos ontem à noite na tevê, fez muito bem a ele, como se fora um "batismo da sarjeta" que faz falta a tanta gente pretensiosa. O Herivelto Martins que ele trouxe para a minissérie global que estrou nessa segunda é carismático sem muita elegância, simpático porque cafajeste, trôpego porquanto verdadeiro. Tropeça em cena como quem tira um sarro de si mesmo e segue, riso solto e postura gaiata de quem diz "não foi nada". Um bonachão brasileiro, como há tempos a gente não via na televisão. Mesmo com a cara de bom moço de Fábio Assunção.

A Dalva de Adriana Esteves está mais para heroína chorosa de novela das oito - e fugir disso não é nada fácil, já que a biografia da representada não favorece coisa melhor. A estrela Dalva sofreu que nem cometa que vê sua luz minguar em céu de brumas. Mais um motivo pra gente cuspir no chão da sala toda vez que aparece o canalha do Herivelto, motor desse sofrimento tão anos cinquenta, tão Antônio Maria. Mas, surpresa, não é isso o que acontece, porque o Herivelto de Assunção é jorgeamadiano, um Vadinho de terno branco que ressurge no cenário da era do rádio carioca. Malandro como aqueles de letra de samba canção, leve como a mão do punguista de antanho, divertido até quanto impaciente e autoritário.

Não é o primeiro caso: já vimos nascer uns grandes e inesperados atores de extração global pelos quais não dávamos um oscar de lata. Uma lista que começou com uma Glória Pires e que tem entre os mais recentes exemplos um Rodrigo Santoro. Fábio Assunção está prontinho para entrar na lista. Só precisa manter o sopro de novidade que seu Herivelto assobiou no primeiro capítulo até esta sexta-feira, quando termina a nova minissérie biográfica de verão do espelho global.