terça-feira, 26 de janeiro de 2010
O vovô do apocalipse
Revisto, “As Pontes de Toko-Ri”, clássico meio esquecido na estante dos filmes vespertinos da televisão, revela-se um contundente trailler do clássico moderno de Francis Coppola
Quem nunca vibrou com um “filme de porta-aviões” que atire o primeiro controle remoto. Penso nisso enquanto assisto a uma reprise daquelas, com gostinho da mais legítima sessão da tarde, “As Pontos de Toko-Ri”, filme de 1955 estrelado por William Holden, Grace Kelly e Mickey Rooney. Entre aviões que afundam, marinheiros que brigam em bandos e um casal americano padrão angustiado diante do fim iminente, estamos em 1952, na Guerra da Coréia, quando um ás da aviação, Holden, tenta curtir tanto quanto a angústia permitir um fim de semana com mulher, Kelly, num hotel no Japão, cientes, os dois, dos riscos da operação que o espera – justamente a derrubada, arriscadíssima, das tais pontes estratégicas. Um negócio que é morte certa – ou invalidez garantida.
E pensar que eu havia assistido a esse filme uma única vez até ontem, na ansiedade da infância passada diante da televisão em branco e preto (tanto que quase caí da cadeira quanto descobri aquele colorido tinindo do DVD), em fruição de entretenimento vespertino distante de qualquer forma de angústia adulta. Pois é: “As Pontes de Toko-Ri”, vou descobrindo à medida que o filme avança (e me faz lembrar vivamente de cenas vistas há tantos anos) é não só uma tragédia cruel (o que, enfim, todo filme de guerra é, mesmo os mais vespertinos), mas, sobretudo, a expressão sombria do sentimento que a proximidade dessa tragédia que é a guerra provoca. Enfim: não tem nada de sessão da tarde; é, antes, um filme adulto, cheio de silêncios gritantes e olhares mudos, cientes do fim e curvados à interrogação sobre o que ele significa no contexto de algo como uma guerra.
O filme vai acabando e deixando claro que há, ali, uma progressão evidente do gênero filme-de-guerra-americano-clássico. Já não há mais o heroísmo previamente justificado dos tempos da Segunda Grande Guerra; há, ao contrário, a impotência humana do protagonista que efetivamente morre no final, crivado pelas balas inimigas numa vala de lama. Nada muito digno de um William Holden de corte hollywoodiano clássico (embora o ator, só um parênteses, seja especialista em morrer em grande estilo, como fez em “O Crepúsculo dos Deuses”). O máximo que ele consegue é aquela despedida sublime, essa sim embalada em papel de seda, num tempo em que o cinema americano era pródigo neste tipo de cena – vide “Casablanca” e “O Suplício de uma Saudade”, este último com o mesmo Holden, pois não?
Por esta ótica, “As Pontes de Toko-Ri” parece um filme de transição. Ele tem as batalhas aéreas e as cenas dos caças em formação que fascinam qualquer criança grande – e, repito, atire o primeiro controle remoto que não vibra com elas. Mas tem também uma dose cavalar de angústia, a um ponto em que determinada cena parece antecipar em décadas o magistral e dramático início do “Apocalipse Now” de Francis Ford Coppola. Holden está no máximo da angústia, logo depois de uma explanação sobre as pontes que está prestes a bombardear. Ele deita na cama e a câmera quase o filma de cabeça pra baixo, como filmou Martin Sheen no clássico moderno de Coppola. No lugar do som do The Door, o “this is the end” que embala as danações de “Apocalipse Now”, ouvimos o estouro de bombas, o ribombar de explosões distantes. As expressões de Holden e Sheen são a mesma, como se “As Pontes...” fosse uma espécie de avô do “Apocalipse...”, um trailler antecipando que o pior, o Vietnan, ainda estava por vir depois daquela Coréia pós-II Guerra. E só pra completar a comparação, não dá pra não reparar na cara lacônica de depressão contida que é o rosto do almirante que comanda toda a operação. E, uma vez reparando, não dá para não estabelecer um paralelo entre ele e o Marlon Brando do “horror, horror, horror” do outro filme que ainda viria a ser feito.
De maneira que a criança que ainda há em você anima-se com a reprise da operação aérea e chafurda no porta-aviões como se lá estivesse entre os marujos. Já o jovem rapaz que você foi diverte-se com as brigas em bandos pela disputa das garotas orientais disponíveis. E o adulto que se instalou, esse vai degustando o filme crescentemente mais e mais, à medida que o clima consciente de angústia se amplifica e se justifica, lapidando “As Pontes de Toko-Ri” como este filmeco vespertino de vários níveis e leituras superpostas.
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