segunda-feira, 28 de abril de 2008

Piri depois da febre (2)





O festival e a programação











Piri depois da febre




Foi a primeira vez que fomos a Pirenópolis depois do surto goiano de febre amarela. Vocês devem estar lembrados que o mundo quase acabou meses atrás, quando um morador de Brasília - aqui do Lago Norte, pertinho de onde digito isso aqui - foi passar o reveillon na pequena cidade histórica aqui nos arredores do DF e na volta passou a se sentir mal, até morrer rapidamente. O diagnóstico assustou todo mundo, porque se tratava de febre amarela, doença tropical de que o país se julgava imune. Depois surgiram casos esparsos em outros pontos de Goiás e, todos sabemos como é, até certo ponto é natural, tudo se transformou em surto a apavorar meio mundo. O lado bom é que corremos para as filas dos postos de vacinação e hoje sim devemos ser todos imunes até mosquito em contrário. Encerrado o flash back, a outra boa notícia é que o medo passou. Medo não é bom, nunca. Por mais justificado que seja, o medo é sempre um adversário da coragem - essa qualidade rara como doenças felizmente banidas.

Pois é, o medo passou e prova disso é que Pirenópolis estava tomada de visitantes. E pode ser até figura de linguagem disfarçada de paisagem, mas o fato é que achei a cidade muito mais bonita do que antes da febre. O ar está mais límpido, o verde mais verde, as cores que adornam o casario mais vivo e por toda parte respira-se um certo ar de qualidade artesanal, como se a força da natureza entrasse pelos pulmões, circulasse dentro do corpo até as retinas e, uma vez lá, passasse a filtrar toda impureza da atmosfera visual, revelando a beleza de uma cidade que nem uma tevê de alta definição é capaz de projetar.

Eu não ia perder a chance de cometer essas comparações, mas na verdade, e vocês por favor leiam isso baixinho como quem sussurra algo para si mesmo - algo tão secreto que você pensa duas vezes antes de dividir com você mesmo -, a verdade é que a época do ano favorece essa sensação visual aqui nos costados goianos. O inverno está chegando e, com ele, vem essa rarefação límpida de que já falei antes aqui no Sopão. As noites de Brasília, levemente frias, já estão espetaculares de bonitas. Tem um quê diferente na matéria invisível que preenche o espaço entre asfalto, grama, prédio e gente. E em Pirenópolis não seria diferente, especialmente se você lembrar que a cidade é cercada por cachoeiras que conferem à parte urbana do burgo um clima ainda mais invernal que em Brasília.

Para completar nosso passeio, só mesmo um momento de semitranscedência. E foi isso o que eu tive, meio na base da teimosia. Explico: esse fim de semana em Pirenópolis acontecia um festival de jazz, com shows na rua do lazer - o reduto boêmio repleto de bares e restaurantes e que é fechado ao trânsito - e no teatro da cidade, um mimo arquitetônico datado do século XVII onde eu assisti a uma insquecível montagem do monólogo "As mãos de Eurídice", o clássico de Pedro Bloch. Pois bem: no teatro, se apresentaram figuras como Rossa Passos e João Donato e trio. Claro que eu não pude ir - estava com os meninos e com os meninos vem a velha e boa renúncia, você sabe. Mas na rua havia uma chance. Depois de os meninos dormirem, resolvi dar uma escapada.

Rapaz, o que eu vi, hein? Peguei os cinco últimos minutos do show de Yamandu Costa, a quem eu nunca havia assistido, e saí extasiado. Veja vem: foram só cinco minutos, mas tempo suficiente para confirmar o que já me haviam dito vários amigos - Plácido e Flávia Assaf, por exemplo - sobre as performances do violonista. O homem fica tomado pela música, parece possuído por alguma força estranha como aquela de que falou Caetano. Já imaginou alguém possesso? Mas no bom sentido? Incorporado pela música, dominado por ela? Foi isso o que eu vi. Yamandu tocava acompanhado por um violoncelo e um violino. Houve uma hora em que o músico ao cello se curvou sobre o instrumento, baixou o volume, reduziu as notas ao mínimo e o que eu vi foi Yamandu submergir naquele fiozinho de harmonia, afundar de olhos fechados num poço escuro onde toda iluminação vem de dentro, das profundezas onde se esconde aquela coisa toda que chamamos de arte. Inesquecível.

Agora só falta eu assistir a um show inteiro para cair de vez no transe do músico e sair do teatro caminhando ereto na noite sobre simbólicos paralelepípedos em brasa.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Eu, meu pai e um disco de forró


Eu e meu pai ouvíamos "Eu e meu pai". Esse era o nome do LP lançado ali por volta de 1981 por Gonzagão, com participação de Gonzaguinha. Eu era admirador do filho – e papai era admirador do pai. E a gente juntava tudo na audição do disco que trazia na capa uma bela ilustração do sanfoneiro em branco e preto e, lá dentro, um punhado de xotes e baiões que agora fazem parte da memória que guardo dele e também de mim, naquela época. Eu e meu pai.

O disco abre com "Orélia", essa flexibilização tão interiorana de um nome garboso de mulher. Lá para diante, vinham coisas como "Manuelito Cidadão", perfil sanfonado de um boa-praça do sertão. Vinha ainda a simpatia melodiosa de "Sorriso cativante". Havia ainda distribuídos pelo disco pelo menos três clássicos – "Súplica cearense", "Respeita Januário" e "A vida do viajante", que minha mãe adorava – e se punha a cantar pela casa, enchendo tudo de um sentimento esperançoso ("minha vida é andar por esse país..."). E ainda havia uma outra faixa de refrãozinho pegajoso que me pego vez ou outra cantando por aí: "Eu sou do banco / do banco / do banco/ do Banco do Nordeste, cabra da peste / no Ceará, eu sou do Bec, do Bec, do Bec, do Bec, do Bec". Eram coisas dos tempos em que a estrutura do país ainda suportava os bancos estaduais, aqueles mesmos que os políticos quebraram sem dó nem piedade.

Outro dia, não sei se em Natal, achei a reedição de "Eu e meu pai" em CD e tremi nas bases de tamanho contentamento. Era a chance de ouvir de novo, em excelente qualidade, a trilha sonora que ponteou a minha convivência com meu pai, um homem mais talhado para o trabalho pesado de comerciante de frutas e verduras do que para confortos caseiros. Na companhia dele, circulei por estradas entre sítios e feiras, ele na boléia e eu na carroceria da caminhonete fretada. Mas eram passeios de criança, que se há algo de que ele sempre fez questão foi de que eu estudasse para ter oportunidade de viver de ofício menos cansativo que o dele.

Por falar em cansaço, era nos finais de tarde que meu pai parava em casa. Pegava a cadeira de balanço de fios de plástico, levava lá pra fora – morávamos numa casa de esquina e em rua sem calçamento ou calçada – e escorava os pés num toco que ele mesmo colocou na quina da casa para evitar que burros e cavalos estragassem o reboco. Assim, espichado, erguia à altura do olhar o rádio de pilhas, ainda naqueles modelos meio grandes, e saía à procura de estações que tocassem aquele forrozinho de fim de tarde (e eram tantas). Assim encerrava seu dia, ouvindo Gonzagão, Elino Julião ou Seu Vavá (Genival Lacerda, para os não iniciados, outro ídolo que tínhamos em comum, pode acreditar). Mal a noite caía, ele ia dormir, para acordar antes do sol nascer no dia seguinte. Já "Eu e meu pai" era ouvida depois do almoço, aos domingos, na radiola humilde como tudo o mais lá em casa.

Lembrei de "Eu e meu pai" hoje porque estava escutando, depois de muito ouvir falar, o CD "Samba de Latada", em que Paulo Moura divide as faixas com um descendente musical de Gonzaga, Josildo Sá – e é dos bons, viu? Dois amigos, Renato e Silvério, já haviam me recomendado o disco (um deles copiou pra mim só pra me convencer) e por falta de oportunidade ainda não havia ouvido. Pois bastou botar o bicho pra tocar no computador para imediatamente a audição me levar ao velho disco de Luiz Gonzaga. É a mesma sonoridade, a mesma tessitura de sanfonas e triângulos, a mesma lábia melódica da canção mais nordestina. A mesma música de fim de tarde que encerrava os dias do meu pai.

Se ele fosse vivo e a gente ainda morasse lá naquela casa de esquina, hoje eu ia chegar do trabalho e puxar ele pelo braço para perto do aparelho de som e botar pra tocar esse "Samba de Latada". Eu gostei, meu pai ia gostar. A gente conversava pouco, convivia só pelo tempo que o trabalho dele deixava, mas nem por isso deixava de ter umas paixões cotidianas em comum. "Eu e meu pai" era uma delas. "Samba de Latada" tinha tudo para também ser. Quem sabe, é.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Caldas Novas e o turismo de massa


Treze anos morando em Brasília e o fato é que a gente nunca tinha vindo a Caldas Novas. Eu sei bem o motivo dessa demora: é o nosso velho preconceito contra lugares consagrados pelo chamado "turismo de massa". Réu confessor, admito: já sofri disso, e era grave. Trabalhando no caderno de Turismo do Correio Braziliense, cometi um erro de avaliação, em parte devido a esse preconceito. Fui fazer uma reportagem sobre um resort em Arraial d'ajuda, na Bahia, e voltei meio chateado com o assédio excessivo do pessoal do hotel que, não há outra maneira de dizer, financiou a viagem do repórter (atenção: isso é uma prática comum em cadernos de turismo, um hotel paga a viagem, hospedagem e alimentação, para garantir uma reportagem simpática não somente ao próprio hotel, mas ao destino como um todo, mas não é isso que quero discutir aqui e agora). O fato é que, hoje, com dois meninos ansiosos por diversão, entendo perfeitamente o conceito de resort que me escapou na época. E Porto Seguro e Arraial d'ajuda são outros dos mais conhecidos destinos do "turismo de massa" no Brasil. Uma vez, ainda no Correio, indo para um congresso de turimo em Gramado (RS), ouvia no vôo conversa de jornalistas tão especializados quanto esnobes falando sobre o Sul da Bahia, comparando com Palma de Majorca, na Espanha, condenando os dois, que são apenas... turismo de massa. Pois bem: Caldas Novas também é. Multidões enchem os parques aquáticos - fui a apenas um deles mas não acho que seja diferente nos demais, e a cidade tem vários. As piscinas do próprio hotel onde ficamos estão sempre cheias - embora não tanto quanto o parque aquático onde fomos. Mas, com duas crianças pequenas, é preciso reconhecer que o hotel, o parque, a cidade oferece diversão na medida da necessidade deles. Há música de não muito bom gosto tocando o tempo inteiro? Há, mas a gente vai concentrando a atenção na água quentinha da piscina, no banho termal noturno que é realmente delicioso. Ver aquela fumacinha subindo da superfície da água. Tomar banho vendo a lua lá em cima e esquecer das agruras, da rotina e tudo o mais. Caldas Novas está aprovado. Mas se você quiser exclusividades, nem venha.

Em trânsito

Estamos em Caldas Novas, a estância de águas termais em Goiás. Na estrada, a caminho daqui, numa rodovia nova por onde nunca havia passado antes, ia me lembrando dessa boa sensação que é a de estar em trânsito. Em movimento, com uma ligeira porção de desconhecido pela frente - o que torna a jornada ainda mais interessante. Lembrei da temporada que passei em Teresina, em 94, trabalhando numa campanha eleitoral, três meses fora de casa envolvido num projeto de trabalho diferente de tudo quanto havia feito antes. Lembrei do trajeto São Paulo-Sorocaba, outra cidade onde estive em igual temporada para igual finalidade. Não é que campanhas eleitorais sejam o máximo de uma carreira profissional: é o fato de se estar numa espécie de patamar à parte, suspenso da rotina, por um dado período (também não pode ser muito tempo, senão perde a graça e bate saudade). Isso muda referenciais, como ademais faz toda e qualquer viagem. Você sai do seu ritmo normal, pega atalhos que lhe fazem enxergar coisas que a vida comum de todo dia não deixa, enxerga determinadas cores no dia que o dia-a-dia turva com seu cinza prático. Lembrei muito de uma viagem que eu e Rejane fizemos, ainda sem os meninos, subindo de Brasília para a Bahia e de Vitória da Conquista em diante fomos descendo pela Costa do Cacau toda - Ilhéus e Itabuna, essas cidades mágicas que me trouxeram toda a respiração dos livros de Jorge Amado em suas ruas, casas e árvores - até Porto Seguro, Arraial d'ajuda e Trancoso. Lembrei das estradas do sul da Bahia, com suas matas cerradas e seus corredores artificiais para os macacos da mata formando aqueles arcos sob os quais passamos. A conexão é simples como uma rodovia de asfalto negro e firme, sem buracos e bem sinalizada cortando o horizonte do viajante: talvez seja isso o que mais desejamos, a condição de, sempre que possível, estar em deslocamento. A sensação de pertencer a todos e não pertencer a lugar nenhum. De compor não um destino, mas um percurso. De andar por aí reconhendo paisagens, tipos, climas e histórias. Daqui a pouco vamos voltar pra estrada, no retorno a Brasília depois do feriadão. Mas o que todo mundo quer mesmo é esse contínuo movimento, amostra grátis de transcedência para o nosso imobilismo também necessário.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Vicentinho no blogue, jornal e TV

Está no blogue de Carlos Magno (link ali ao lado) a foto de Vicentinho correndo com os filhos debaixo de chuva na estradinha entre Acari e o Gargalheiras, para comemorar ou pagar promessa pela cheia da barragem. Vicentinho esteve hoje cedinho aqui na Câmara, onde estou desde as 6h15 da matina. Vim fazer o Primeira Página com Paulo José Cunha e Adriana Marcondes e o convidado do programa - que mostra as manchetes e notícias dos jornais com os comentários de um deputado ou cientista político - era Vicentinho. Encontrei o homem no camarim e ele sorriu de orelha a orelha quando lhe perguntei se já havia ido a Acari ver a sangria do Gargalheiras (eu não havia visto os jornais de Natal no final de semana). Está todo contente com as fotos publicadas nas capas dos jornais, que mostram ele pulando na barragem. Diz que o prefeito de Acari o desafiou a pular e ele, claro, topou o desafio. É a segunda vez que venho fazer o Primeira Página e o convidado é o deputado acariense/paulista. E digo pra vocês: aqui na TV Câmra, temos funcionários/jornalistas de todo tipo de simpatia política, mas todos gostam da figura de Vicentinho, mesmo os que simpatizam com aquele pedaço do espectro político mais distante do freqüentado pelo parlamentar. Comentário de uma colega, logo depois do programa: "ele responde tudo com a simplicidade de quem faz parte e conhece o povo". É isso o que eu queria dizer, embora de outra maneira. Dizer que o povo, quando a gente olha pra ele com franqueza, sem expectativas e sem julgamentos, é feito o deputado Vicentinho: cativante.

Cinema traiçoeiro



"Ponto de vista" é um filme que passa a perna no espectador incauto. Um filme tipo casca de banana. Cuidado com as costas, porque a queda é traiçoeira.

Explico: na primeira meia hora, como já foi dito e todos devem saber, o filme lhe oferece uma boa soma de seqüências bem amarradas, editadas em ritmo febril mas muito atraente numa perspectiva de formato. Lembra "Corra, Lola, Corra" na edição que retoma a mesma ação segundo pontos de vista diferentes. Mas também lembra esses seriados que fazem sucesso na televisão, tipo "Lost", na eficiência dos ganchos para o episódio seguinte.

E assim assistimos a um atentado político-terrorista cuja ação é constantemente rebobinada, de maneira que a cada um desses retornos da mesma ação por outro ponto de vista um novo elemento é acrescentado, aos poucos ajudando a desvendar a real dimensão, os culpados, o andamento total dos fatos que produziram todo aquele momento de violência.

Não há, é claro, profundidade nenhuma quando se fala em personagens e motivações. A ação, o quadro geral do atentado e suas conseqüências práticas imediatas passam por cima de tudo, como numa invasão de um país fraco por outro poderoso. Nem é o caso aqui de discutir esse aspecto, porque muitas vezes o painel se sobrepõe mesmo à particularidade de um fato ou outro - isso é coisa para se ver filme a filme.

O problema, a casca de banana, o truque barato que estraga tudo - e destrói uma boa expectativa criada ao longo da boa primeira meia hora do filme (caso você entre na sala ciente de que vai assistir a algo sem muita profundidade, embora atraente e bem formatado) - é o lugar, a seqüência, o desfecho antecipado onde tudo isso vai dar. Pense rápido: qual é o maior lugar comum do cinema espetáculo norte-americano? Acertou quem pensou em cenas de perseguição - e perseguição de carro, claro, em lugar de trânsito pesado.

Pois é, "Ponto de vista" começa animador, sugere alguma inteligência na montagem do tipo volta-e-vai-e-acrescenta, mas acaba desaguando na mais banal das situações enquadradas pelo cinemão americano: uma perseguição. Antes fosse algo como o filme que lançou Sandra Bullock ao estrelado, "Velocidade máxima", com aquele ônibus cheio de crianças que não podia ser desacelerado - ao menos ali o filme inteiro era sobre a perseguição involuntária e a aflição que ela provocava. Em "Ponto de vista", a perseguição - que não tem nada de involuntária - é um adendo, um repositório nem um pouco criativo de um filme que sugeria destino melhor no seu início.

E nestes dias brasileiros de feridas em cicatrizes pela morte da menina Isabella, ainda tem uma cena lamentável em que uma criança quase é atropelada - cena filmada em naturalismo apavorante, mas que se esgota no susto, já que estamos falando de um filme assumidamente superficial.

Perseguição por perseguição, melhor rever o DVD com "Operação França", com seus policiais erráticos, suas obsessões infrutíferas, sua embalagem sombriamente setentista.

MPs sem firulas

Quer assistir a um bom debate sobre medidas provisórias, sem a ligeireza superfial das discussões políticas de praxe? Está disposto a revolver a questão a ponto de lembrar de casos de invalidação de MPs durante o governo Fernando Henrique pelo Supremo Tribunal Federal? Suporta ouvir ponderãções tanto sobre o abuso quase automático do Executivo em produzir MPs quanto sobre a incapacidade quase crônica do Legislativo em legislar? Então ligue a tevê do seu computador na TV virtual do jornal "O Estado de São Paulo" (sim, ele mesmo, essa bíblia do pensamento liberal na economia e conservador na política). A TV Estadão promove um debate de uns bons vinte minutos com dois professores, um do IBMEC e outro da Fundação Getúlio Vargas em que se discute as medidas provisórias segundo as abordagens acima descritas. Está lá o fato de o STF ter impedido, ainda no governo Collor, a reedição de medidas provisórias sobre o mesmo tema. Está o fato de o mesmo tribunal ter derrubado, por nem urgente nem relevante, uma medida provisória do governo FHC. Como está uma importante constatação, feita por um dos debatedores: desde o caso de Waldomiro Diniz, o Congresso tem assumido uma postura polítcia de muita agressividade (contra o governo Lula, claro) e pouca profundidade na análise dos temas que realmente dizem respeito à condução do país. O outro convidado também muito contribui quando lembra a diferença entre uma MP e um projeto de lei: enquanto o primeiro é feito por qualquer assessor jurídico de ministério e tem que ser votado rapidamente (ao menos em tese), o segundo passa por um amplo, demorado e necesário debate - inclusive e principalmente com a participação dos adversários da proposta contida no projeto - que lhe dá uma deputação de natureza muito democrática. Ficou curioso? Segue o link. Mas o ministério das indicações adverte: não é entretenimento, não é nada tipo "entre aspas" da Globonews, é debate mesmo, chato, meio arrastado, mas bastante inteligente. (o link abaixo serve para o primeiro bloco do debate, o outro vocês encontram lá com facilidade)

http://www.estadao.com.br/interatividade/Multimidia/ShowVideos.action?produto=Estadão

domingo, 13 de abril de 2008

"Um beijo roubado"




Premido pela lógica de uma cinematografia e vigiado pela concorrência de seus pares, o crítico de cinema do jornal de todo dia afirma: o novo filme do cineasta asiático Kar Wai Wong, “Um beijo roubado” é uma diluição de seu talento, já que foi feito numa experiência de aproximação com a indústria do cinema norte-americano. Por isso, não tem a força da inventividade dos seus filmes anteriores e pisa macio para não espantar o público médio do circuito mundial que se alimenta da fábrica de entretenimento de Tio Sam.


Tomado pela curiosidade e vencido pela dúvida, o comentarista de cinema que vos fala foi assistir, pela primeira vez, a um filme do mesmo Kar Wai Wong – por sinal o mesmíssimo “Um beijo roubado”. E o resultado da experiência foi quase que o exato oposto do que lhe advertia a crítica do jornal. Quem está certo, quem está errado? Até que ponto o veredicto do crítico profissional afasta/aproxima, condena/absolve, legitima/marginaliza um filme, um disco, um livro? E qual a força do peso, nessa balança, do eventual desconhecimento de uma obra pelo público em geral?



Fiquemos no terreno do filme – e deste “Um beijo roubado” em particular. Mesmo tendo lido a advertência do crítico, me ofereci ao filme sem receios e dele extraí a fruição desejável de um registro cinematográfico bem formatado, às vezes irônico e quase sempre pleno de ternura visual e sensorial. O filme pode ser descrito como um conto breve, tão intenso quanto cálido. Feito com imagens que pedem aquele tipo de contemplação que, quando olha para fora, na verdade está fitando a complexidade das coisas internas.


Uma garota circula por bares e estradas várias na tentativa de esquecer um abandono. Nessa aventura emocional, encontra tipos que acrescentam mais algumas camadas à matéria de sua dor – mas a descoberta de outros tipos de descaminhos lhe cicatriza a alma. Ao lhe dizer que, na tela, tal garota é a cantora Norah Jones, eu já ganho espaço e fico dispensado de dar linhas e linhas de explicação sobre o clima desse filme. Se eu acrescentar que uma das figuras que ela encontra – uma bela e atormentada mulher, tão libertária quanto carente – é Rachel Weisz em máxima forma, em muitos momentos lembrando a Jessica Lange do pico dos anos 80, praticamente já posso encerrar por aqui. Mas ainda é preciso dizer que uma segunda companheira de desventura de Norah Jones será Nathalie Portman , outra persona cinematográfica que de uns tempos para cá já diz muito sobre um filme pela sua simples aparição no elenco.


Repare que, em um punhado de parágrafos, eu praticamente não me referi ao estilo consagrado do cineasta Kar Wai Wong, diretor também de “Amor à flor da pele” e “2046” – e a nenhum dos dois eu assisti, embora tenha lido muito nos jornais sobre eles. É nisso – nessa negligência para com o absolutismo da perfomance do diretor – que reside a diferença entre o cinéfilo desprevido e o crítico compulsório. É aqui que se entrega a chave da charada exposta no primeiro parágrafo: a crítica média avalia o filme a partir da cinematografia anterior do diretor – este é o quesito supremo, abra qualquer segundo caderno agora mesmo e confira, seja qual foi a produção. Mas o espectador médio – onde este comentarista se sente mais à vontade – reage ao que vê na tela segundo outras variantes. Quando o crítico diz que o filme é bom, mas deixa a desejar diante do que o diretor já fez, supõe que o espectador médio assistiu a todos os anteriores e está tenso de ansiedade para saber em que pontos exatamente o mesmo diretor se superou no seu mais recente trabalho. Ocorre que quem está sujeito a esse tipo de tensão é o crítico – não o espectador. E nessa hora, a cartilha habitual da crítica perde a validade.
Sem falar num certo tipo de exclusividade que este tipo de abordagem encobre, embora muito mal: aquele negócio de festejar o mais novo gênio do cinema, do livro ou da música enquanto ele ainda está restrito a um círculo fechado de iniciados; quando o mestre aproxima-se de um público maior e começa a cair nas graças de clientela mais vasta, é logo banido do clube, sob o pretexto de ter praticado a diluição de praxe.

Pessoalmente, gosto de uma crítica mais reativa – aquela luta para avaliar o filme em função do que ele mesmo propõe e provoca, cena a cena. Pensou em Roger Ebert, acertou. Gosto até da idiossincrasia eventualmente errática, porém honesta. Eu não gosto, como diz a canção cantada por Adriana Calcanhoto, é do bom gosto. A cinematografia pregressa é importante, é referencial, mas não é tudo. “Um beijo roubado”, com sua estética original diluída, sua proposta facilitada – mas evidentemente não a ponto de cair na vala comum da comédia dramático/romântica do estilão americano – pode não resultar tão prazeroso e original para o crítico ensimesmado pelo ofício. Mas pode encher os olhos e embalar a alma do espectador distraído, desprevenido, surpreendido por esse Road movie estático. A propósito, e estou me referindo a um crítico de quem gosto, no cartaz está impresso o comentário de Luiz Carlos Merten, do jornal “O Estado de São Paulo”: “Saí do cinema flutuando”. É isso o que chamo de “reação”, à guisa de mera “avaliação” de um filme.


E cinematografia por cinematografia, “Um beijo roubado” ainda teve a graça de me lembrar dois personagens inesquecíveis desse mesmo tipo de cinema que joga um olhar enviesado e poético sobre criaturas desviadas dos caminhos, digamos, naturais. Vendo os tipos de Rachel Weisz e David Strathairn (outro ator capaz de dar uma alma torturada a qualquer filme) em cena, como não lembrar de Harry Dean Stanton e Nastassja Kinski em “Paris, Texas”? É como se Travis e Jane estivessem de volta à tela, vinte e tantos anos depois de se terem reencontrado uma outra vez. Há uma cena em que ela diz a Norah Jones, para explicar o desencontro com ele: “Nós bebíamos para encontrar o amor, mas na manhã seguinte não fazia efeito nenhum”. Minha ilha de edição mental cortou imediatamente para ele caminhando no deserto e em seguida para ela arrumando os ombros no vestido sexy dentro da cabine onde se exibiria para mais um desconhecido.


Mas chega de dispersão, que a matéria da boa crítica aspira à ciência. E esta é uma última observação, que mesmo aquele outro crítico – não o Merten – reconheceu, entre suspiros de reprovação. “Um beijo roubado” é uma espécie de filme de estrada sem estradas. A viagem se dá no interior de bares e lanchonetes. A rodovia é o balcão ou a mesa de jogo. Os carros, estilhaçados em acidentes que a vida promove, são os rostos dos personagens. O trânsito, seus encontros e desencontros. E é assim que “Um beijo roubado” redime cada um dos fracassos cinematográficos que a década de 80 produziu com esses mesmos personagens e cenários. Lembrou de um certo “Bar fly”, acertou. A elegância visual de Kar Wai Wong recobre com um brilho lunar as figuras e os lugares que aquelas outras produções tentavam resgatar da sarjeta, mas, sem sucesso, só conseguiam afundar cada vez mais.

Para delirar, nas nuvens

Com a tarde de sexta-feira liberada para uma sessão de cinema, fui correndo ao Pier 21 – um espécie de shopping de entretenimento debruçado sobre o Lago Paranoá aqui em Brasília – em busca de qualquer tipo de entorpecente visual. Já numa espécie de delirius tremens, se vocês me entendem. E qual não foi a minha surpresa de saber que estava em exibição “Um beijo roubado”, filme do aclamado diretor asiático Kar Wai Wong – um desses sobre o qual tanto se fala, se escreve e se comenta e tão pouco se vê, até pelo fato de os filmes dele quase sempre só passarem pelo circuito exibidor alternativo. Eu mesmo nunca havia visto nada, só lido, ouvido e presenciado uma espécie de culto em torno de sua figura e sua obra.

E me aparece o novo filme dele ali no Pier, um lugar mais reservado para os arrasa-quarteirão que eu também gosto muito de ver, confesso. E me aparece mais, viu? No alto do cartaz, como os distribuidores gostam de fazer, a frase-indicação de um crítico, normalmente retirada de textos publicados em jornais e revistas. Pois era uma frase retirada de um texto de Luiz Carlos Merten, do Estadão, a quem venho recomendando aos amigos de umas postagens para cá. Dizia algo como “Saí do cinema nas nuvens”. E o detalhe que muda tudo: havia, claro, o crédito do autor da indicação, mas a fonte era “do blog do jornal O Estado de São Paulo”.

Pode parecer bobagem, mas faz toda a diferença: os distribuidores estão ligados no fato de que o público está atento ao que os blogues estão dizendo . Que esses blogues vão assumindo um papel tão importante quando o – perdoe a repetição, mas não vou deletar, não precisa – que diz o jornal de papel mesmo. Pessoalmente, lendo Merten no site do Estadão, vejo ali uma espontaneidade, uma coisa meio making off de um profissional da avaliação do cinema, que termina sendo mais interessante do que o texto padrão, medido, reescrito (todo mundo reescreve obsessivamente o que vai ser impresso em papel) da edição impressa do jornal. Há, em suma, uma vivacidade no blogue que pelo menos a mim transmite melhor a impressão (sem trocadilho) que o filme A ou B provocou no crítico e que ele está tentando retransmitir para você, leitor.

Mas chega de teorização: leia o blogue de Merten e veja o que você acha. A propósito de teorizações, me estendi um pouco mais sobre a crítica de cinema mais convencional – mais “profissional” no pior sentido da palavra – escrevendo sobre o filme “Um beijo roubado” para o site da editora Casa das Musas, daqui de Brasília, empresa bancada por gente como o nosso amigo Gustavo de Castro. Mas vou postar o texto também aqui no Sopão (veja a postagem acima). Você lê aqui ou lá (lá, claro, há muito mais para ler, na lavra de outros colaboradores, não deixe passar a oportunidade).

Link para Luiz Carlos Merten: http://blog.estadao.com.br/blog/merten/
Link para Casa das Musas: http://www.casadasmusas.org.br/

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Mais Isabella

A edição da reportagem sobre a MP do álcool nas estradas está quase pronta e nem por isso me sobra tempo para entornar o caldo aqui do Sopão. Hoje acordei cedo porque fui convocado para coordenar o Primeira Página, que acabou há pouco mais de duas horas. De maneira que continuo sem disponibilidade e tempo - não só tempo mensurável, mas especialmente o tempo de maturação mesmo - para novas postagens. Em compensação, o fato de estar na redação garante o bombardeio ininterrupto de notícias e com isso o caso da menina Isabella volta a gritar nos ouvidos. Agora a tendência da investigação se inverte de novo e volta a apontar para os pais. Se assim for - continuo duvidando, me apegando como tanta gente a um fino fio de fé, que a esta altura a coisa já está ganhando uma feição quase religiosa, é inevitável - será um golpe sobre outro golpe. Achei na edição de hoje do jornal Folha de S. Paulo um artigo de uma jornalista cujos textos muito raramente leio, Barbara Gancia. Hoje, li, e cedo ao impulso de copiar aqui, para os não assinantes também terem acesso. Ela diz exatamente o que eu penso do caso, como ademais, acredito, muitos de vocês. Segue o artigo:

Não venha me dizer que foi ele

Se eu me convencer do envolvimento de Alexandre, comprometo minha fé no sucesso da humanidade

ESCREVO SEM conhecer o resultado da investigação sobre a morte de Isabella. Enquanto batuco o teclado, na TV os repórteres ainda dão plantão na entrada do prédio de onde ela caiu e o apresentador do canal de notícias repete mais uma vez que a polícia já teria terminado de montar o quebra-cabeça que irá indicar o culpado (ou os culpados). Desde o primeiro momento em que tomei conhecimento deste caso, tenho me recusado terminantemente a aceitar o fato de que o pai possa estar envolvido. Algo me diz que, a partir do momento em que eu me convencer de que Alexandre Nardoni teve alguma coisa a ver com a morte da filha, minha crença no sucesso do ser humano ficará irremediavelmente comprometida.

Minha convicção também está respaldada em um punhado de fatos. A eles: 1) Não foi estabelecido um motivo para o crime; 2) Segundo o exame toxicólógico, na noite da morte de Isabella, Alexandre Nardoni não teria consumido drogas ou álcool; 3) Quem já tentou cortar uma rede de proteção, como a instalada na janela de que Isabella teria caído, sabe que se trata de uma operação hercúlea, que leva tempo e empenho e não pode ser empreendida em uns poucos minutos; 4) Porteiros de prédio não são cientistas da Nasa. Não é incomum que eles deixem passar pela portaria quem deveria ficar de fora; 5) As imagens dos familiares feitas no supermercado, poucas horas antes do crime, não trazem evidências de desentendimentos entre eles. São essas imagens emblemáticas, aliás, que reforçam minha fé de que Alexandre Nardoni não pode estar envolvido de jeito nenhum. Se eu for deduzir o contrário, como vou cruzar impunemente no supermercado com a próxima família de classe média que vir empurrando um carrinho de bebê? Como vou deixar de pensar nos segredos tenebrosos que eles escondem, nos ódios reprimidos que nutrem uns pelos outros ou nas violências que são capazes de cometer?

Digamos que, num ato do que chamam de "insanidade temporária", Alexandre tenha, de fato, machucado a filha. Será que, passada a emoção do momento e baixada a adrenalina, ele não iria cair em si, desmoronar e confessar dizendo que sua vida acabou? Quem seria capaz de escrever uma carta para a filha morta jurando amor eterno depois de cometer uma barbaridade dessas? Nos últimos dias, muito tem se especulado sobre a possibilidade de que Alexandre esteja encobrindo a culpa da mulher, Anna Carolina. A justificativa para isso seria o fato de ele ter mais dois filhos com ela. Se essa hipótese -que é aventada, inclusive, pelas autoridades- tiver algum fundamento, a mãe de Isabella, Ana Carolina com um "n" só, terá me fornecido o conforto que procuro. Poucas vezes se viu uma jovem de 24 anos demonstrar publicamente tamanha maturidade, propriedade e comedimento depois de passar pelo que ela passou. Estive presente na missa de sétimo dia de Isabella e fiquei impressionada com a sua serenidade. Se a madrasta teve alguma responsabilidade na morte de Isabella, Ana Carolina será, para mim, a prova de que nem tudo está perdido neste mundão de meu Deus.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Álcool, férias e falta de tempo






O dia vai ser cheio e a tarde toda tomada pela edição de uma reportagem especial sobre essa polêmica em torno da proibição de venda de bebida alcóolica nas margens de rodovias federais. A matéria vai para o Panorama, a revista de fim de semana da TV Câmara. Decupando entrevistas, discutindo encaminhamentos e acompanhando a discussão política dos deputados sobre a medida provisória que baixou a proibição cheguei a algumas conclusões. A princípio, a medida parece válida e até elogiável. Mas se você refletir um pouco mais, num segundo momento vai ver que o impacto econômico - na micro-economia mesmo, no comércio miúdo que alimenta a subsistência de tantos municípios - pode ser tão negativo quando a irresponsabilidade de um motorista embriagado. A MP na verdade nada contra a corrente de grande parte das medidas adotadas pelo governo Lula, as mais importantes - como o Bolsa Família, voltadas para fortalecer justamente aquela economia de varejo de que falei. Parece muito mais coisa de tucano esclarecido. Mas vou voltar ao assunto quando puder. Era só pra dizer que hoje não vai dar para blogar como manda o periodismo e como pede a vontade. Enquanto isso, deixo vocês com mais um pouco das últimas férias - das quais já começo a sentir uma boa saudade.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Oração por Isabella


Nas últimas postagens eu vinha tangenciando o assunto, tentando até fugir dele pelo peso excessivo que tem, procurando escapar mas sempre deixando vazar um pedaço dessa dor coletiva que nos assalta a todos. Há dias, assim como deve estar acontecendo com você que me lê agora, o caso da menina Isabella não sai da cabeça da gente. É assim: estou dirigindo o carro de volta pra casa, ocupado entre sinais fechados e motoristas agressivos, e a imagem do sorriso da menina estoura na minha mente, como se fora do nada. Estou em casa, lendo alguma coisa e - flash - lá está ela novamente. Estou no trabalho, ocupado com temas áridos das coisas do Legislativo e lá está ela novamente. Acho que tem sido assim com muita gente.

Com Rejane também tem acontecido o mesmo. No nosso caso particular, há uma série de coincidências que reforçam essa mistura de horror com pesar. Isabella, nas fotos que os jornais e revistas publicaram, lembra muito Cecília, apesar da diferença de idade - nossa filha vai fazer três anos e a menina que morreu em São Paulo iria completar seis. Mas a expressão é muito parecida, os olhinhos pretos e apertados também e principalmente o sorriso. É no sorriso que o meu choro contido se anuncia quando lembro da tragédia: aqueles dentinhos pequenos e separados são iguaizinhos aos de Cecília. Isabella despencou do sexto andar - nós também moranos no sexto andar. Desde que essa história começou, toda noite quando chego em casa e Cecília já está dormindo entro no escuro do quarto pisando leve para conferir como é que nossa menina está - se o sono é leve, se tem frio, se respira sem nariz entupido, essas coisas. Como Cecília tem sono pesado e dorme bem, eu não costumava fazer essas inspeções paternas noturnas. Pelo menos não com a freqüência com que passei a fazer depois que a sombra do caso de Isabella passou a nos rondar a todos.

Há poucos meses vivemos situação parecida: foi quando daquele acidente com o avião da TAM, que matou todos os passageiros e tripulantes no aeroporto paulistano. Na noite em que saíram as primeiras notícias de que alguma tragédia havia ocorrido em Congolhas - porque no início, quem acompanhou deve lembrar, não se sabia exatamente o que havia ocorrido - estávamos arrumando as malas para quatro dias de folga em Pirenópolis. Liguei a televisão ao acaso e havia umas entradas ao vivo no Jornal Nacional, coisa ainda muito confusa. A noite foi passando e fomos tomando conhecimento, aos poucos e apavorados, do real tamanho da tragédia. Mas só manhã seguinte, enquanto já providenciávamos para levar as malas à garagem, foi que soubemos da dimensão exata, da morte de todas as vítimas, da tentativa desesperada de frear o avião, do incêndio, do pavor completo. Pegamos a estrada para Pirenópolis meio calados, sem muita vontade conversar, com aquele drama ricocheteando na cabeça.

Na verdade agora está sendo bem pior - e eu não vou nem fazer comparações maiores entre um caso e outro, botando de um lado o número de vítimas e de outro o grau da crueldade. Esse comentário paterno aqui é só para dar vazão a uma conversa que não estava conseguindo deixar de fora aqui do Sopão - preferencialmente um espaço pessoal para a gente, eu e você que me lê, tornar a vida mais interessante, procurar graça onde se a gente baixar a guarda só vai enxergar desgraça e infortúnio. Só sei que não consigo, contra todas as evidências, admitir a possibilidade de um pai matar a filha daquela maneira - a não ser num caso de surto que mesmo a paranormalidade ainda será pouco para explicar. A sensação final que tenho é de que a menina Isabella - por sinal o mesmo nome da pré-adolescente aqui de Brasília que sumiu no bairro do Sudoeste e cujo corpo reapareceu dias depois, em outro caso trágico de difícil explicação - tornou-se assim como uma espécie de filha sentimental de todos nós, que temos ou não nossos próprios filhos. Somos todos agora uma espécie de órfão ao contrário da presença dela.

Se você é religioso, reze por Isabella. Peça que sua alma tenha amparo, consolo e carinho que qualquer criança merece. Se você é ateu, elabore sua dor da maneira que lhe for possível, mas de maneira que ela não se perca no vazio. Se você é agnóstico, aproveite para rever suas dúvidas, mas por um momento ponha seu ceticismo um degrau abaixo de sua humanidade. Só não vamos morrer junto com Isabella. Vamos fazer de sua triste história uma matéria especial de transcedência que nos faça mais do que meros mortais condenados a não ver a luz, seja qual for a forma como ela se apresenta.

terça-feira, 8 de abril de 2008

O horror, na tela e fora dela


Mais do que um suspense clássico, "O homem que odiava as mulheres" é um filme de terror na completa e verdadeira acepção da palavra. Um esplêndido filme de terror, capaz de soterrar com baldes de sangue e toneladas de teias de aranha qualquer vampiro ocasional, qualquer Fred Kruegger aposentado. É quase um lugar comum ler por aí centenas de comentários sobre grandes filmes, especialmente neste momento em que muitos são relançados em DVD ou em novas edições especiais recheadas de extras. Mas também acontece muito de, na hora agá, esse ou aquele não se revelar tão impactante assim quando diz a crítica canônica. Pois com "O homem que odiava as mulheres", um desses títulos relançados há pouco tempo - e logo transformado em destaque de jornais e revistas - a qualidade do que se vê na tela faz valer cada palavra impressa. É tudo aquilo que a gente, na urgência de divulgá-lo entre os amigos, economiza as palavras e chama logo de "filme bom".


Pense num "filme bom". Eficiente, inteligentemente formatado, dramaticamente muito bem conduzido. Para quem, como eu até a tarde de hoje, ainda não o viu: estamos nos anos 60, na cidade norte-americana de Boston, onde um maníaco comete uma série de assassinatos de mulheres. A polícia, capitaneada por um Henry Fonda que muito sabiamente começa a pisar o terreno da terceira idade, vasculha inferninhos, empurra contra a parede a manada suspeita de sempre - gays, queens, loucos e simpatizantes - apenas para descobrir, perplexa, que o criminoso é um embotado homem comum. Só que ele tem dupla personalidade - e seu lado normal nem imagina o que a sua porção letal anda fazendo de estragos por aí.


Livre do enredo, posso voltar ao argumento inicial e explicar porque "O homem que odiava as mulheres" é um filme de terror tão integral. O filme é claramente dividido em duas partes. Na primeira, o que nos causa horror e medo é a seqüência irrefreável de assassinatos, um trem sangrento e descarrilhado que corre pela tela com velocidade turbinada graça à técnica de montagem abraçadas pelo diretor Richard Fleischer. Ele usa o recurso de dividir a tela em quadros - às vezes dois, às vezes três, às vezes dez, dependendo da necessidade da cena, de maneira que o espectador possa ter pontos de vista privilegiados enquanto os personagens se vêem reféns do assassino serial. Mas esse é apenas um exemplo e, de chofre, lembro de outro, talvez o mais eficiente no uso dessa técnica de edição: é quando os investigadores policiais fazem uma varredura no submundo dos sub-sexos para checar a condição de vários tipos suspeitos. O filme mostra essa ação subdividindo e subdividindo cada vez mais a tela, de maneira que acompanhamos de uma forma impensavelmente contínua o caráter ligeiro - e infrutífero e frustrante - da investigação. Em síntese, o que esta primeira parte explora, com o uso da divisão da tela reforçando as impressões, é o medo da ação do criminoso, na fórmula consagrada da "próxima vítima".


Na segunda parte, que começa quando Tony Curtis - o assassino tão procurado - surge pela primeira vez em cena, beijando a filha e vendo televisão, outro tipo de medo, outra qualidade de horror se instala no filme - e este sim é o pavor genuíno, aquele que não tem cara de monstro nem garras de Fred Kruegger e tampouco precisa de efeitos especiais de som - como os usados por Alfred Hitchcock, só para ficar num exemplo de peso. É o medo de uma realidade que o ser humano não pode admitir. Não consegue, porque é uma realidade dura e cruel demais. Lembrou do caso da menina Isabella? É por aí. A realidade de Toni Curtis é que ele, sem saber, tem dupla personalidade. Na superfície, é um sujeito normal que trabalha com caldeiras. Nas profundezas, é um assassino compulsivo de mulheres. Ele é preso, a polícia enfim conclui que é ele o crimonoso procurado, mas resta ao acusado - e a nós, espectadores, que dividimos essa angústia com ele, igualmente aterrorizados - descobrir por meio de interrogatórios quase freudianos a condição de sua própria mente, assassina, incurável, perigosa e doentia.


A cena em que Curtis finalmente se enxerga como um cérebro onde cabem duas personalidades - uma delas responsável pelos crimes mais cruéis - é de pertubar o tambor do coração do espectador. Vendo o filme em casa, em DVD, num horário que, por mais quieto que seja, sempre é marcado pelos ruídos domésticos, mesmo assim meu coração disparou quando este momento em especial começou. A seqüência que altera os nervos do protagonista (melhor dizendo, antagonista) e em conseqüência os seus também, diante da tela (e imagine-se isso na câmara fechada que é uma sala de cinema), é quando Curtis tem um "insight", aquele flash-relâmpago da lembrança do momento em que deu uma "gravata" e rasgou a blusa de uma de suas vítimas. Eu ia dizer que a partir daí é adrenalina pura, mas seria cair no clichê: mais apropriado é dizer que desse momento em diante o horror - essa matéria tão tangível quanto rarefeita que se instala em momentos desesperadores da vida - ocupa todos os espaços. Plasticamente, tal horror sai ainda mais reforçado porque tudo foi filmado numa sala totalmente branca, com o prisioneiro Curtis vestindo roupas igualmente brancas. Não há mais nada com que distrair o olhar: somos nós e Tony Curtis, olho no olho, em supercloses que falam sozinhos. Logo ele, já meio entorpecido pelas lembranças mal reprimidas, tentará atacar a própria mulher, no lance que finalmente lhe dá a medida do seu drama. E não acabou: meio hipnotizado pela revelação, algo tomado pela sombra branca de sua metade assassina, ele ainda encena, quase que só com o rosto, um dos crimes que cometeu. Lembrei de Stanley Kubrick e fiquei em dúvida sobre quem influenciou quem.


Filmes de terror eficientes que fizeram muito sucesso nas décadas passadas exploravam esse mesmo recurso - o do mal que se confunde com o real. Lembrei de "A Profecia", onde havia jorros de sangue, varas trespassando padres, suicídios quase rituais mas cujo medo primordial era produzido a partir de uma realidade terrível - no caso, o fato de o diabo ter vindo à Terra no corpo de uma bela e inocente criança. Este, por sinal, é outro filme que, sem deixar de ser um produto de consumo para as salas do cinema mais comercial, capricha na maneira como põe as câmeras para enquadrar esse drama, aproximando-se e nos aproximando de personagens tomadas pelo terror - ou pelo mal, dependendo da situação.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

A marca de Charlton Heston




Olha os neurônios acordando! Bastou botar eles para lavar o rosto nas águas do blogue de Luiz Carlos Merten para os bichinhos estabelecerem as primeiras conexões do dia. O crítico do Estadão fala um pouco sobre Charlton Heston e lista os principais filmes de que o Moisés de celulóide participou ou estrelou. Lendo os filmes citados, me dei conta de que não lembro de Charlton Heston em "A Marca da Maldade", um primor que Orson Welles dirigiu mas, como tudo o que fez depois de "Kane", ficou em segundo plano. Não deveria: "A Marca da Maldade" é um noir esplêndido, embora breve (ou vai ver que tal brevidade apenas lhe favorece a qualidade), onde brilha o rosto e a expressão de uma Marlene Dietrich inesquecível. E se eu não lembro de Charlton Heston no filme - putz, acabo de lembrar, e não é que ele é o protagonista? - certamente tal falta de memória se deve à intensidade do brilho dela, Dietrich. A memória se agitou, lembrei nesse instante mesmo que Heston é o americano meio perdido numa trama complicada na cidade mexicana na fronteira com os zéua, acompanhado por Janet Leigh (aquela do chuveiro de Psicose, sim). Mas, homenagens póstumas à parte, "A Marca da Maldade" que ficou foi mesmo a da cara de sapo de Welles como um policial corrupto e a face de Dietrich como uma dama misteriosa, fumando sua piteira e exalando suas maldições de poucas e demolidoras palavras.

Fora isso, lembro, sim, muito bem, de Heston como o herói do primeiro "Planeta dos Macacos", montado no cavalo, com a morena na garupa e a ruína gigantesca da Estátua da Liberdade ao fundo - e areia, muita areia em redor de tudo. Imagem que o canhão da infância dispara sem dó nem piedade. Merten ainda fala de outro filme com Heston que a minha memória seletiva também se nega a processar. É "Da terra nascem os homens", belo título de um - disso lembro, da impressão geral - belo filme, meio épico, meio anti-épico, um western filtrado ao drama. E finalmente, claro, deu vontade de ver "El Cid" - nunca vi, se você também está nesta condição, saiba que não está sozinho - e rever "Ben-Hur" na idade do DVD. Só não deu vontade de (re)ver o filme de Michael Moore (que eu comprei, não sei pra quê), que pega o Moisés pra Cristo. A campanha contra a fixação do americano médio pelas armas era justa mas realmente Michael Moore passa da medida.


* O link para Luiz Carlos Merten: http://blog.estadao.com.br/blog/merten/

Inverno potiguar no UOL

Reclamei da falta de assunto e ele apareceu rapidinho, em forma de notícia na rede. É que as cheias nos açudes e barragens do Rio Grande estão em destaque no portal UOL, com reportagem de Paulo Francisco e fotos de Gargalheiras e de Cruzeta. Traz também informações importantes sobre a barragem Armando Ribeiro Gonçalves, a barragem do Açu, cuja sangria se aproxima do ponto em que é preciso fazer romper parte da parede, num sistema construído especialmente para tal situação. Deixo o link pra você chegar mais rápido, antes que o inverno potiguar deixe de ser destaque no UOL, substituído por uma desgraça sulista ou pela última provocação contra o governo Lula: http://noticias.uol.com.br/ultnot/2008/04/07/ult23u1762.jhtm

Bernardo e Cecília estão chamando

Nem um filme, nem um livro, nem um programa de televisão, nem mesmo os jornais e seus obritagórios cadernos de supérfluos. O fim de semana foi todo de Bernardo e Cecília - e se eu e Rejane tivéssemos, no lugar de apenas dois, quatro corações, seis mãos, oito bocas e dez cabeças para atender aos pedidos - e necessidades - deles, ainda seria pouco. É por isso que o blogue pisa no freio quando o sábado vai se aproximando e só "torna" da, como dizia a professora Madalena, "síncope", quando a segunda-feira já vai alta. Minto: enquanto dava atenção a Cecília e revezava com Rejane nos socorros a Bernardo, consegui ouvir uns discos. Mas era um negócio muito mais para fundo musical do que para audição de verdade. Apenas um som a mais na algaravia sábado-dominical. E antes que alguém se confunda, isso nem é um lamento - é só uma satisfação para quem entrou no blogue e deu de cara, de novo, com a imagem da sangria do açude Caldeirão. Quando penso na tragédia da menina Isabella - por sinal, e são tantas Isabelas hoje em dia, o mesmo nome da filha dos nossos vizinhos, amiga de Cecília que brincou sábado à noite lá em casa - fico imediatamente feliz pelas crianças exigirem de nós tamanho esforço.

O fato é que as demandas familitares existem e têm seus efeitos. Um deles é essa falta de assunto que ora assalta o blogueiro. De maneira que hoje passo por aqui muito mais na condição de leitor. Assim como vocês que também passam por aqui e deixam um comentário aqui e ali. Que fazer? Comentar minhas próprias postagens? Construir um monólogo em forma de blogue? Contrariar a máxima segundo a qual a possibilidade de emissão individual é a arma suprema da blogosfera? Vamos com calma, que amanhã será outro dia e os vizinhos de porta aí ao lado estão com idéias vazando como gás desconhecido na Câmara. Leia Titina e descubra a emoção que é encenar um espetáculo teatral numa pequena cidade do interior do Maranhão diante de uma platéia de 532 pessoas. Leia Moacy e impressione-se com uma impensável lista de "melhores títulos de folhetos de cordel" que só o professor mesmo pode pescar. Ou então leia Jesus, que conta a história do dia em que um certo Toninho foi tomado por santo milagreiro. Enquanto isso, vou me distraindo aqui com os apontamentos de Luiz Carlos Merten enquanto meus neurônios paternos se decidem a começar a semana, de vez.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Caldeirão

A esta altura vocês já sabem que o maior reservatório de água do Seridó - a barragem do Boqueirão, em Parelhas - está sangrando também. Era o último ato que estava faltando para completar a seqüência de cheias e comemorações na região inteira. Pois bem, nossa amiga Flávia Assaf, paulista de Piraju aclimatada na Bahia que adotou o Rio Grande e também tornou-se fã do Seridó, me enviou fotos da uma outra sangria lá em Parelhas: é a do açude Caldeirão que, até a construção da barragem do Boqueirão, reinava soberano como o principal da cidade.

Jorge Amado vem aí

Você ainda vai ouvir falar de novo de Jorge Amado. É que vem aí uma campanha mercadológica pesada para recuperar o nome e a reputação do escritor baiano, a quem grande parte da crítica despreza por debilidades estéticas e grande parte do público leitor venera pela qualidade de narrador. Virou chavão dizer que Jorge Amado é "um ótimo contador de histórias populares", comentário no qual está embutido seu inverso, "um péssimo esteta literário". A investida que a editora Companhia das Letras prepara deve - ou ao menos espera - provocar uma revisão nesse conceito.

A editora entrou numa disputa e tirou da Record os direitos de publicação dos livros de Jorge Amado. Agora prepara o relançamento de toda a obra, em edições mais bem cuidadas. E conseguiu isso oferecendo à família do escritor a possibilidade de que, junto com a reedição, a obra do escritor baiano seja reestudada e vista com outros olhos. A arma utilizada é destacar nas narrativas de Amado um viéis antropológico que ajuda a explicar o Brasil como o fizeram cientista como Gilberto Freyre ou Darcy Ribeiro. Amado seria na literatura o que esses outros dois aí foram na academia. Os livros de Amado, reeditados, ganharão posfácios, caderno de ilustrações e outros recursos extras para marcar esse diferencial. Entre os primeiros a sair, com tratamento gráfico renovado e à altura de Amado, o clássico "Capitães de Areia" e o derradeiro "Tocaia Grande".

Resumo da história: se a universidade deu as costas a Jorge Amado e no seu esnobismo intelectual não reconheceu o valor do escritor, tal tarefa vai acabar nas mãos de um dos grandes inimigos dessa mesma academia - o mercado. É o consumo das histórias de Jorge Amado - o mesmo consumo que o consagrou, com a vendagem de tiragens recordes dos anos 50 aos 80 - quem vai redimi-lo. Como um dos muitos filhos da paixão literária que Jorge Amado gerou, assisto a toda essa movimentação com duas opiniões que divido com vocês:

1) Que toda a literatura de Jorge Amado tem um viéis antropológico é o óbvio correndo desembalado pelas ladeiras de Salvador. O fato de se escolher esse aspecto, digamos, científico, para trazer o trabalho de escritor de novo à tona apenas reforça o preconceito de que ele foi vítima a vida inteira nos tais setores mais esclarecidos. Ora, a antropologia já estava lá, tão sólida quando o elevador Laderda. Se só agora descobriram, foi cochilo dos experts - e não do autor. Mas, se é para o bem de todos e a felicidade geral da academia, que o prato apimentado seja servido e um acadêmico aqui e outro ali passe a demostrar alguma simpatia por Jorge Amado, ao menos para ficar de bem com a opinião dominante, seja ela conservadora ou discordante.

2) Nunca é demais lembrar que nada é definitivo - nem as opiniões. Pois não é que, ao menos neste caso, cumpre rezar aos pés do deus-mercado e reconhecer sua soberana capacidade de expressar o que se passa na mente de quem não tem voz? Ironia das ironias, mas o grande público leitor que Jorge Amado formou ficou sempre na dele, gostando calado da prosa do autor de "Dona Flor", sem abrir o bico para qualquer elogio sob o risco de ser imediatamente calado pela soberba intelectual da boa crítica. Pois isso também está mudando, via, segure-se na cadeira, mercado. E novamente eu lembro do livro de Paulo César de Araújo, "Eu não sou cachorro, não", cuja emergência tem tudo a ver com o que se discute aqui. Falando à revista Carta Capital (que foi onde encontrei a notícia da reedição), o editor Luiz Schwarcz comenta que o momento é perfeito para a revisão dos livros de Jorge Amado: "A idéia de que algo popular pode ser bom é coisa recente no Brasil". Bingo.
Em tempo: há pelo menos um caso notório de acadêmico que se deu ao trabalho de estudar atentamente os motivos pelos quais a obra de Jorge Amado caiu no gosto popular. É Eduardo de Assis Duarte, da UFRN, cujo trabalho resultou no livro "Jorge Amado: romance em tempo de utopia". À tarde, conforme o volume de trabalho permitir, volto ao assunto com trechos da dissertação de Valente.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

O rio

Entre a imensidão do Itans e a humildade do barreiro, corria a perenidade provisória do rio. Era ele que fazia a nossa festa, que nos alegrava a infância quando dele se dizia que "o rio chegou com água". Com o reforço linguístico que o tempo subtraiu do discurso sertanejo, "de barreira a barreira". Quando a temporada de chuvas se estabelecia e o rio perenizava-se, instituições naturais irmãs do açude, do barreiro e do rio vinham se somar, no leito desse ou em torno dele, à galeria de diversões que tinham data para acabar. Era o poço onde se atirava o valentão da hora, era o redemoinho temido, era a correnteza translúcida, eram as piabas inquietas e presas fáceis dos mesmos meninos, como era a brancura fina da areia da nossa praia interior e o domingo predestinado a fazer moradia na memória. O rio era tudo isso e antes de tudo era um muxoxo que todas as crianças ribeirinhas dirigiam às suas mães: o "snif, snif", aquele fungado fingido do nariz para provar que não se estava gripado e, portanto, se estava sim em plenas condições de ser liberado para "tomar banho no rio", essa outra expressão que o português falado guarda em relicários mudos.

O barreiro

Se o Itans valia por um oceano, o barreiro era o pingo dele a que tínhamos direito. Na medida em que as estatísticas das chuvas passaram a compor uma linha cada vez mais descendente, essa pequena instituição da natureza do mundo rural foi sumindo do mapa. Tanto que a própria palavra - barreiro, que é bem auto-explicativa - também caiu em desuso. Alguém ainda sabe o que é um barreiro hoje em dia? Era uma pequena lagoa, geralmente situada no terreno dos fundos das casas dos sítios, em pés-de-serra ou de serrotes, com úma água bem barrenta, naquele tom amarelo-arenoso. Não chegava a ser um açude, não tinha estatura para tanto, mas devia ter sua utilidade. O que acabei de descrever, por sinal, é o barreiro que havia nos fundos da casa do sítio onde moravam meus avós maternos, na Timbaúba, em Parelhas. O barreiro - ao menos o que me ficou daquele barreiro em particular - era querido como se quer bem a uma pessoa da família. Quando se chegava ao sítio, corria-se logo para vê-lo, como se uma promessa de inverno farto estivesse contida na sua pouca e turva água.

O Itans

A notícia da sangria do açude Itans, em Caicó, hoje na hora do almoço, tem o poder de me remeter ao país do passado. Naquele tempo, como dizia o padre Raimundo, o Itans não era só um açude. Morador de Parelhas, província da metrópole sertaneja Caicó, para o menino que fui o grande reservatório de água da região sugeria algo muito maior. O Itans não era só um açude, era quase um oceano. O Atlântico que nós, crianças matutas do interior, podíamos ter a ambição de um dia ver – e toda hora imaginar. Na estrada para Caicó, na carroceria das caminhonetes que meu pai fretava para levar frutas à feira da grande cidade, eu sacolejava sob sol fervente quando a certa altura uma linha azulada passava a compor a paisagem. Era o Itans, equidistante, mas companheiro da rodagem. Menino, eu só o via ao longe – e quanto mais sua visão me era negada, mas o idealizava, enchendo-o ainda com mais água do que ele já continha, criando, qual um deus-menino, sangrias imaginárias. O Itans era imenso, do tamanho da minha imaginação. Vê-lo inteiro era supérfluo, se para a mitologia infantil bastava a matéria quase invisível das chuvas muito esparsas. Pensando bem, e da perspectiva de hoje, o Itans era o próprio inverno liquefeito, a bonança espraiada em forma de água sobre terra, o espelho da nossa sede de tempos melhores.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

O inverno dos afogados (2)

Como disse na primeira parte dessa postagem, não sei explicar a atração que transforma em afogados um punhado de sertanejos mais acostumados com a falta do que com a abundância de chuvas. Mas deveria saber, uma vez que eu mesmo quase morri afogado quando tinha de 11 para 12 anos de idade, no açude do Urubu, caminho de Jardim do Seridó. Um vizinho que tinha um caminhão saiu, como fazia em tempos de chuvas, em passeio ao açude e também como sempre levou vizinhos, amigos, convidados. Lá estava eu. Nada daqui, nada dali, aparece uma canoa e alguém promete uma travessia do açude, que não era tão pequeno. Mas, antes, veio o alerta: quem não quiser atravessar pode pular da canoa aqui. Como não sabia nadar, fiquei ressabiado e pulei. E cadê o chão? Aprendi na marra a nadar de um jeito que só o risco da morte ensina e sobrevivi, atingindo exausto a beira dágua depois do maior susto da minha então breve vida. Nem preciso explicar porque até hoje não sei nadar e não entro em água que não dá pé.

O blogue do Bráulio (Entreblogs)

Por falar na Paraíba, aproveito para recomendar mais um blogue que vem se tornando de leitura obrigatória para mim e pode também passar a fazer parte da sua lista de favoritos. Na verdade, embora enquadrado no formato tradicional de blogue, é quase um site, onde Bráulio Tavares - um sujeito que dispensa maiores apresentações e que todo mundo conhece como músico, poeta, escritor, cronista e irmão de Clotilde Tavares, pra ficar em apenas alguns itens - despeja toda a riqueza de artigos que vem escrevendo ao longo dos anos para o Jornal da Paraíba. É coisa para você se empolgar todo, porque todo dia Bráulio coloca lá um punhado desses artigos, que tanto podem versar sobre Edgar Allan Poe quanto sobre o Dilema de Tosca. Se esses dois rápidos exemplos lhe despertaram a curiosidade, corra para lá. Nem vou dar maiores detalhes, porque tentar resumir o pensamento ágil e literariamente ardiloso do irmão de Clotilde não é fichinha, não. Segue o link: www.mundofantasmo.blogspot.com.

P.S: não se impressionem, a grafia é essa mesma, o blogue se chama "Mundo fantasmo", como "ó".

O inverno dos afogados (1)

Dou um passeio rápido pelos sites dos jornais da Paraíba e deparo com um noticiário que me lembra invernos pretéritos. Com a grande quantidade de chuvas que têm caído no interior nordestino, açudes transbordam, paisagens ficam verdes e a seca vira uma lembrança. Tudo isso é muito bom, mas lendo a imprensa paraibana me dou conta de um contraponto nem sempre lembrado. Talvez porque, como um inverno farto é algo raro, o que os jornais noticiam com destaque parece mais coisa do chamado "tempo antigo".

Estou falando dos afogamentos, algo que era muito comum na minha infância seridoense. Naquele tempo em que as chuvas eram mais fortes e mais freqüentes, não era brincadeira o que chegava de notícia de gente que havia morrido afogada em açudes e barragens. Lembro de casos em Patos, em Santa Luzia e em Pedra Lavrada – cidades cujos nomes até hoje me remetem, quando ouço, à imagem de pessoas perdendo a vida num domingo de festa nas águas de um açude. E eram casos, sempre, de gente bem jovem.

Por coincidência ou sabe-se lá o quê, Santa Luzia é justamente um dos municípios paraibanos onde ocorreram afogamentos neste inverno de agora, conforme noticia o Jornal da Paraíba. Também é fartamente destacado o caso de um grupo de jovens que perdeu a vida numa aventura dentro d’água, nadando pertinho da sangria de uma barragem, vejam vocês. A água levou todos e até agora já encontraram quatro corpos. Já tem gente se mobilizando e reivindicando, através dos jornais e do Ministério Público, que seja proibida a abertura de bares improvisados juntos a açudes e barragens, algo muito comum quando esses reservatórios de água transbordam, alegrando e, vê-se, também entristecendo o sertanejo.

O caso do grupo de jovens levados pela sangria e encontrados mortos se deu em Itabaiana, uma cidade cujo nome, só assim de ouvir de passagem, já me lembra chuva. Foi lá que passei o maior temporal da minha vida, que atravessei dentro de um carro, indo de carona com um amigo para Recife, em 1984, onde estudava. Por isso – e por outro motivo que digo já - tenho um apego especial por Itabaiana. O segundo motivo é o fato de a cidade ter uma famosa feira livre – o que já me lembra meu pai, que era mangaeiro como os personagens da música de Sivuca, outro paraibano. Mas Itabaiana ainda me lembra um segundo paraibano de quem muito gosto e a quem só vi uma vez pessoalmente – depois do que passei a gostar ainda mais. É o cineasta, o documentarista Wladimir de Carvalho, que mora aqui no DF e nos deu de presente obras primas como os filmes "Conterrâneo Velho de Guerra" (o melhor documento sobre a construção de Brasília) e "O País de São Saruê" (o melhor registro sobre o semi-árido dos anos 60, pobre, miserável, mítico).

Comecei tratando dos afogados, descambei para Itabaiana, passei pelas feiras livres e volto à tona para dizer o que fico matutando quando leio essas notícias sobre o lado escuro do inverno. Deve haver algum fator misterioso, alguma atração que vai além da nossa compreensão, para explicar como tantos nordestinos morrem como moscas bêbadas de alegria nas águas novas que nos enchem barragens, transbordam açudes e perenizam rios há muito dados por mortos.

tempo, tempo

Ainda a tempo, uma informação caseira: ontem, eu e rejane completamos 15 anos de casamento, também chamado de "união estável" segundo as normas do direito de família. A foto acima foi tirada numa noite em Pirenópolis (GO), em algum momento dessa década e meia, provavelmente em meados desse período, por Plácido ou Marleide, companheiros de viagem, não lembro exatamente qual deles. Passa rápido demais, né? Com esse anúncio atrasado, cumpro minha promessa de ontem e informo também que até agora os efeitos do gás não me derrubaram.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Uma máscara, por favor


Os humoristas vão fazer a festa: hoje à tarde, um cheiro de ovo podre começou a se espalhar pelos corredores dos anexos II e III da Câmara dos Deputados. Três pessoas que respiraram esse ar pestilento passaram mal e foram atendidas. O detalhe: o mau cheiro, logo identificado como algum tipo desconhecido de gás, começou a se propagar justo no serviço médico da Câmara. Por causa disso, hoje aqui só se falava em vazamento - mas vazamento mesmo, literal, não aquele outro que também tem feito a festa da imprensa.
Como vocês sabem, trabalho na TV Câmara, que fica, claro, aqui dentro desse conjunto de prédios (um principal e quatro anexos) que é a Câmara dos Deputados. A tevê fica no chamado edifício principal, num semi-subsolo abaixo do Plenário (que por sua vez fica sob o famoso prato "pra cima" que, dizem, é um belo receptáculo das piores energias cósmicas ou telúricas; deve ser mesmo). Daqui até o corredor das comissões, no anexo II, que foi até onde o gás mau-cheiroso chegou, é um pulo. E nesse grande buraco que é o prédio do Congresso (só escapa aquele "H", onde uma das pernas é da Câmara, o anexo I, e o outro pertence ao Senado) toda a atmosfera que respiramos vem dos dutos de ar condicionados interligados.
Sim, você acha que eu e meus colegas fomos prontamente evacuados. Que nada, só esvaziaram os anexos II, III e IV, como se fosse um desafio para qualquer espécie de gás circular pelo resto das instalações da Câmara. Estamos até agora (cheguei às 16h, agora são 20h05) trabalhando normalmente, respirando o já nem tão puro assim ar que circula nos nossos dutos cívicos, expostos a que raio de gás seja esse que nem os bombeiros ainda conseguiram identificar.
Pensando bem, é melhor eles deixarem essa tarefa para os chargistas da grande imprensa: amanhã os jornais estarão em festa com essa metáfora perfeita que mistura vazamento, mal cheiro e podridão. Quando a nós, poderemos estar mortinhos da silva, por um efeito retardado qualquer de um gás anônimo. E eu nem vou falar da (in) segurança que permite o livre trânsito de quem quer que seja num dos lugares mais visados do país. Não é restringir, não. É tomar precaução porque de maluco o mundo está cheio. Espero poder continuar o papo amanhã. Façam figa aí.

Um plano (quase) perfeito




De pé, na livraria, experimentei o primeiro parágrafo, que é uma espécie de teste que faço quando analiso livros. Tem gente que prefere ler o final, eu me agarro é no início. Pois bem: passei do primeiro, passei do segundo, quando vi já havia lido umas cinco páginas, de pé, na livraria mesmo. "O Mundo é Plano - Uma breve história do século XXI" expõe a tese de que, se Colombo descobriu que a terra era redonda e isso mudou todo o referencial humano no século XV, estamos nós mesmos agora passando por uma outra dessas mudanças revolucionárias (no sentido de transição, claro, não no sentido marxista) que faz do planeta uma grande planície inteligada.

Um mundo plano onde um norte-americano pode ligar para um número de telefone de assistência técnica de determinado produto e ser atendido por um indiano em Bangalore, falando um inglês tão fluente que o interlocutor nem vai perceber que aquela voz vem não de uma região distante dentro de seu país, mas do outro lado da Terra. O mundo dos call centers, a idade da informatização, a era da TI - a tecnologia da informação, tudo isso é matéria de análise neste delicioso ensaio que é "O Mundo é Plano", escrito pelo jornalista Thomas L. Friedman e primeiro lugar na lista dos mais vendidos do New York Times.

O cidadão constata que a era da informação eletrônica está planificando - ele, ou seu tradutor, adora usar o termo "achatando", ainda mais literal - o mundo inteiro, fazendo com que o trabalho, por exemplo, seja repartido e executado em diversas partes do mundo, conforme o mercado sugere. Na avaliação dele - naturalmente muito "americana", e o livro inteiro tem esse "sotaque" da prosa tipicamente estadunidense - o efeito é bom para todos, mesmo para os indianos ou chineses que fazem o mesmo serviço antes feitos por americanos só que ganhando um quinto a menos. É discutível, mas sou tentado a dizer que ele tem razão - desde que se lembre do que havia de alternativa de renda para esses mesmos indianos e chineses antes da terceirização global dos serviços.

Mas aí já entramos em outra discussão - debate no qual eu imediatamente me filio à corrente dos esquerdistas pragmáticos, se é que vocês me entendem - e o que queria aqui era me ater mais à riqueza do ensaio contido no livro no que ele recupera e compila em termos de efeitos das novas tecnologias mesmo. Thomas L. Friedman puxa o fio do novelo digital e volta à queda do muro de Berlim, ao mundo bipolar e seus entraves, à massificação dos PCs e à criação da web para mostrar, passo a passo, como cada novidade dessas aí foi modificando a face do mundo atual, planificando tudo, encurtando distâncias, imediatizando procedimentos, criando uma nova língua universal chamada HTML e por aí afora.

A conclusão dele - e eu ainda nem passei da primeira metade do livro, mas o capítulo inicial já entrega o conteúdo completo da tese - é de que tudo isso está gerando o que chama de Globalização 3.0, em que o indivíduo - eu, você, nós - será o produtor, mediador e circulador de conteúdos que determinam como o mundo se comporta, produz, se diverte, se vê. Pensou em blogues, web sites e similares? Acertou.

Nisso, "O Mundo é Plano" me lembra um clássico do gênero "comunicação e futurologia", o muito comentado e pouco lido "O Meio é a Mensagem", de MacLuhan, que também era muito eficiente em mostrar que analisar o conteúdo dos novos meios (naquela época, o rádio e uma novíssima televisão) não era o bastante. Dizia que a mudança fundamental era provocada a partir da linguagem nova que os próprios meios, rádio e tevê, traziam. Mas MacLuhan, você percebe depois de ultrapassada a primeira metade das páginas do livro, era otimista demais. Vamos ver se vai acontecer o mesmo quando eu passar da primeira metade das páginas de "O Mundo é Plano". Mesmo assim, convido você a experimentar essa leitura.

Meu exemplar custou R$ 60 e o livro é divulgado o suficiente para ser encontrado em qualquer livraria razoável.

Leo e a arapuca paraguaia

Umas postagens atrás eu comentei aqui a arapuca em que Antônio Melo jogou nossa amiga Leônia Régia - pra quem não tem o prazer de conhecer, jornalista, natalense, divertida e dura na queda. Leo, quem diria, com aquela elegância nata que os deuses lhe concederam, foi parar no Paraguai. Agora falando sério: Leônia trabalha na equipe de brasileiros que faz a campanha eleitoral do general Lino Oviedo - aquele mesmo acusado de tentar dar um golpe por lá e que passou meses em asilo político aqui em Brasília - à presidência da República. A eleição é dia 20, Oviedo está em segundo nas pesquisas - perde para o ex-bispo católico Fernando Lugo - e a polêmica da hora por lá deve-se a um anúncio. A propaganda de Oviedo associa o general a Lula e a Cristina Kirchner, destacando a capacidade de negociação do general - no que, por inversão, seu adversário é taxado de intempestivo e imediatamente associado a Evo Morales e (quem? quem? ele mesmo, meu ídolo) Hugo Chávez. Para situar, é preciso lembrar que um dos temas da campanha é a renegociação do valor que o Brasil paga pelo uso da hidrelétrica de Itaipu, a binacional que dividimos com os paraguaios. Lugo quer mais dinheiro e Oviedo apresenta-se como um moderado que não vai criar conflitos gratuitamente. O governo Lula, diz a FSP, já adiantou que não vai pagar um centavo a mais. E mais: além da briga em torno do conteúdo da propaganda, há ainda um aspecto legal, porque a peça usa a imagem de Lula, o que seria vetado pela legislação local. É esta a arapuca em que nosso amigo Melo meteu nossa amiga Leônia. Imaginem o estado de ânimo da mulher quando voltar ao solo da nação potiguar. (Ah, sim, amanhã Lugo vem a Brasília encontrar com Lula; Oviedo já fez essa visita mas ao que me consta, passou batido como um exilado discreto)

O rumo da manada

Na mesma FSP de hoje, Clóvis Rossi explica didaticamente aquela mudança de que falava na postagem anterior. Reproduzo para permitir a leitura pelos não assinantes, mas sobretudo para que você já passe a prestar atenção na forma como se dá o fenômeno da mudança de opinião. Repare como - Clóvis Rossi mesmo é um exemplo - o rebanho geral opinativo já vai mudando de caminho, com os colunistas à frente da manada:

"Do ponto de vista político, marca, claramente, alguma inflexão no "laissez-faire" cada vez mais absoluto que foi tomando conta do mundo desde que o Muro de Berlim caiu sobre a cabeça do intervencionismo estatal, cujos apóstolos nunca mais conseguiram sair com vida inteligente dos escombros. A partir daí, tornou-se virtualmente consensual que o Estado-empreendedor era um redondo fracasso. Mas deu-se também um passo adicional, o de supor que a incapacidade do poder público estendia-se à regulamentação, à vigilância da atividade econômica, em especial a financeira, e até à formulação de políticas."

Um novo consenso

A notícia bombástica que abre o dia na telinha do computador é sobre as decisões econômicas do governo dos Estados Unidos, que dá um passo para trás e, revendo tudo o que foi dito sobre mercados pelo menos nos últimos dez anos, revolve baixar um mínimo de regulação sobre o setor financeiro. Trecho do principal editorial da Folha de S. Paulo:

"Seja qual for o resultado dessa disputa, um aperto na normatização da finança mundial tornou-se indispensável. Como disse o secretário do Tesouro, Henry Paulson: "A estrutura de nossa regulamentação não está adaptada a um sistema financeiro extremamente complexo, globalizado e heterogêneo". Mercados financeiros mal regulamentados e supervisionados tendem a exacerbar riscos na busca de ganhos extraordinários. Quando as bolhas estouram, o erário é chamado a salvar aventureiros, com prejuízos monumentais para toda a sociedade."

Li isso aí com a minha amiga pulga-atrás-dos-miolos gargalhando de rir às minhas costas (ou então dando aquela clássica risada entredentes do Rabugento, personagem do desenho animado de Hanna Barbera). É, pessoal: quem não entendeu a piada só precisa lembrar do que dizia o grosso dos economistas, políticos, presidentes, jornais, telejornais e revistas há dez anos. Um discurso como esse aí do editoral da FSP de hoje era considerado, naquela época, um absurdo completo. A própria FSP dizia, nos mesmos editoriais, exatamente o contrário - quanto menos regulamentação, melhor; regulamentação é atraso, liberação total é avanço; quem não concorda está morto e não sabe. Lembro de uma colega na redação do Correio Braziliense que, no auge daquela crise de 1999 - a da Rússia - com o mundo pegando fogo e nós também em conseqüência, dizia, conformada, sobre a dificuldade do governo FHC em tomar qualquer outra atitude além daquela mesma de não contrariar nem por um milímetro que fosse a ordem econômica mundial estabelecida. "Que opções a gente tem? Nenhuma", dizia ela.

Pois é, a decisão americana e o editorial da FSP de hoje mostram que o consenso (de Washington, que seguiremos todos que nem carneirinhos?) agora é outro - ou pelo menos, está começando a mudar. Isso quer dizer que vai ter também muita gente mudando de conversa, pra ficar em dia com a ordem, com a moda ou com a conveniência mesmo.