quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Memórias do Sopão


Salve, Rex

Acho que o sino tocava três vezes, como no teatro. Não tenho certeza. Pode ser mais uma invenção atrevida dessa minha memória que incrusta inserts na realidade vencida, deturpando lembranças. Ainda que às vezes as tais lembranças resultem bem melhoradas com essas deturpações.

O fato é que o episódio que estou tentando recuperar bem que se presta à ocorrência de invenções. É que se trata de coisa mui distante - passados del rey menino no planeta da fantasia. Tento lembrar como foi a primeira vez que fui a um cinema, o velho Rex, que por sinal estava tinindo de novo naquela ocasião.

Era uma dupla inauguração: o novo cinema da cidade e a minha primeira presença naquela sala mágica e escura. Lembro, repito, de sinos tocando três vezes - notem, rememoro sinos, e não sirenes. Há um certo romantismo aí que faz toda a diferença.

Em seguida, as luzes se apagam e alguma coisa especial se instala no ar. Mais especial ainda do que aquelas cadeiras de madeira novíssimas, enfileiradas naquele espaço nunca visto. E a tela, imensa e branquinha, pendurada no paredão. E o que mais me impressionou - disso estou certo que lembro: aquela leve ondulação no piso, fazendo com que as cadeiras mais próximas da tela ficassem numa posição ligeiramente inferior às do meio da sala, e estas das últimas, abaixo da cabine do projetor.

Iniciada a projeção - aquele processo que até hoje sou incapaz de descrever em palavras, tanto o processo quanto a maneira como meus olhos se deram conta dele - ainda havia um outro mistério a desvendar. O mistério da cabine, de onde saía aquele sopro de luz, retilíneo e ao mesmo tempo vaporoso, aquele jato de poeira brilhante e colorida que ia se diluir ternamente no espaço da tela.

O filme - e vocês hão de me dar licença de ter estreado num cinema vendo um filme menor, ordinário, popularesco e imensamente brasileiro - era "Paixão de um homem". O "artista" (como era praxe denominar o ator principal; não se usava a palavra "mocinho") era ninguém menos que Waldick Soriano - então ainda um astro vagabundo a causar certo impacto no interior do país. Era um legítimo faroeste caboclo - e, perdoem-me a incorreção cultural e política - não poderia haver filme melhor.

No dia seguinte, já me sentindo completamente veterano naquele ambiente de tiros, tela, gritos e encantamentos, assisti a um "Robinson Crusoé" bem elegante (que, desconfio, e qualquer dia tiro a dúvida, foi dirigido por, vejam só, o sofisticado Buñuel).

E vieram os tarzans, os teixeirinhas, os dólares furados, os macistes, o inesquecível king kong setentista que rendeu um belo álbum de figurinhas, e muitos outros.

Até que um dia o sino foi dispensado, a platéia foi se dispersando e vocês conhecem o resto da história.

"Alfredo, cuidado com o projetor

* Com esta postagem, o Sopão, que já está ficando velho, reprisa textos já "antigos" deste almanaque caseiro de registros, opiniões, evocações e outras formas de adoçar estes tempos terminais de terremotos.

Um comentário:

Roberta AR disse...

Eu, que vi esse filme por acaso, num desses dias em que minha tv a cabo libera canais que eu não assino, digo que não considero este um filme menor. A mim, pareceu um dos filmes dos trapalhões, mas feito para adultos, com os conflitos de relacionamento bem próprios daquele tempo e com um ar de faroeste tupiniquim.
Lembranças boas, estas de cinema na infância. Também trago as minhas.