quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O auto e a política

A idéia era assistir ao auto de Natal promovido e preparado por Diana Fontes, uma figura que tem longa tradição e ótima reputação no mercado das artes da cidade. Mais do que diversão ligeira e encantamento passageiro, um espetáculo de Diana Fontes, com direção de João Marcelino, era garantia certa de alumbramento duradouro para Cecília e Bernardo. Uma promessa de cartão vivo de festa de fim de ano, com a história do nascimento de Cristo embalada em papel especial onde há espaço para toda uma rica simbologia e vasta ilustração sobre o que esta data comporta, muito além da banalidade que ela também abarca. Acontece que, por engano, fui ao espetáculo errado.

Quando vi, estava diante do auto de Natal promovido pela Prefeitura da cidade - aquele mesmo que foi encomendado inicialmente a Clotilde Tavares e, depois, no vai-não-vai que virou a antipolítica cultural da cidade, acabou nas mãos de um jornalista da TV Ponta Negra, algo muito natural na belusconização (bem previsível) que vai tomando conta da política local. Enfim, não havia mais nada a fazer senão assistir ao espetáculo, sabendo de antemão que veria algo bem mastigadinho, com a didática de um comício eleitoral.

De cara, é visível o desperdício, já que a produção em si - falo de luz, som, espaço, coisas que custam dinheiro - estava lá. Mas logo ficou claro que tamanho investimento estaria a serviço de uma abordagem muito pequena de algo que sempre pode ser artisticamente gigante, que é esta invenção teatral chamada auto natalino. Havia um ar de novela das seis no uso de uma família certinha para contar a história de Maria. Nada contra a novela das seis, mas aqui se trata de um pretenso auto de Natal. Havia o uso de telões como um charmoso recurso multimídia, mas isso só fazia reforçar o ar brega-noveleiro da intervenção. Uma coisa meio mexicana, no mal sentido. Havia dança, mas não havia coreografia: a impressão era de ver atores-dançarinos espalhados a esmo pelo palco (e a música, a única peça destoante a se salvar do naufrágio geral, ainda comentava, involuntariamente: "tanta gente à deriva..."). Havia um momento Broadway, com aquela música evocativa dos grandes musicais, mas ficava nisso mesmo - uma citação que se valia de luz e som, que mesmo sem ter estado no corredor do grande espetáculo americano, todo mundo sabe que a Broadway de verdade prima pelo rigor artístico e pela qualidade soberba da dança. Havia também um instante can-can, o que só reforçava a bandalidade geral. Era como se o espetáculo quisesse dar uma "volta do mundo" recorrendo a citações, enquanto contava a história de Maria - e ainda tendo que levantar a emoção do público local; e ainda tendo que fazer bonito para os turistas que foram assistir à apresentação, afinal estávamos diante de um dos principais momentos do "Natal do Brasil".

Quando a gente lembrava disso e via a pobreza rica do auto no palco, chegava a dar uma certa vergonha. Torci secretamente para que não houvesse um só e escasso turista, como diria Nelson Rodrigues, naquela platéia. Porque não seria o "Natal do Brasil", mas o "Mico Natalino do ano". Também fiquei pensando como gente como Henrique Fontes se deixou enredar naquela teia de mediocridade. Henrique é o autor e diretor do "Pobres de Marré", que Kitéria e Titina levaram a vários palcos - este sim um espetáculo de humildade artística feito com dignidade. Valéria, a nossa voz mais instigante, também está lá, com sua turma habitual que tenta extrair algo melhor da sonoridade local criando uma nova música. Só por isso, a trilha sonora é o fator destoante. Mas ainda é muito pouco diante do tatibitate visual que arremata tudo. Enfim, cada um com suas razões - e a gente sabe que um espetáculo dessa natureza é uma produção complexa demais para que alguém tenha controle sobre ele. E como o histórico recente de atropelos que se tem visto na gestão da, digamos, "cultura municipal", há que se encontrar explicações para essas contradições.

Só sei que aqueles números de dança e aqueles diálogos primários me levaram várias vezes a lembrar da apresentação de final de ano da escola da minha filha, Cecilia, que tem 4 anos e acabou de cursar o Jardim 1 de uma pequena e discreta escola administrada por freiras aqui em Brasília. Pois o espetáculo que Cecília e os colegas de outras turmas - estou falando de meninos e meninas até 11 anos de idade - mostraram num teatro da cidade, com o tema da "importância da água", me pareceu muito mais rico, em termos de alegorias, significado e formatação mesmo, do que o auto de Natal da Prefeitura. O show dos garotos da escola de Cecília era mais instigante e sugestivo, justamente porque não apostava em suposta falta de sensibilidade artística por parte da platéia - e veja que a platéia, neste caso, eram os país, avós, tios e tias da garotada no palco. Mas, sem diálogos, só com música e dança, a escola dos meus filhos - até Bernardo, de 2 anos e meio, fez a parte dele no palco - me pareceu muito maior do que aquele caro e pretensioso auto de Natal à minha frente.

Atrás de mim, havia um grupo de garotos usando o auto de Natal da mesma maneira como o cinema deu uso à clássica comédia cinematográfica "Primavera para Hitler". Para quem não lembra, este filme, de Mel Brooks, lançado em 1968, conta a hilariante história de dois golpistas que, para ganhar dinheiro por vias tortas, preparam aquilo que pretendiam que fosse o pior musical de teatro jamais encenado. Ocorre o contrário: o tal espetáculo, de fato, é tão ruim que se torna bom. Acaba virando uma comédia de sucesso, de tão ridículo que se apresnta. E o plano dos golpistas dá com os burros n'água. Lembrei deste filme várias vezes enquanto assistia ao auto de Natal da Prefeitura e me convenci de que as risadas que ouvia atrás de mim, de um grupo de espectadores mais debochado do que a média, vinha dessa semelhança.

Uma prova candente da falta de valor do espetáculo foi a falta de aplauso durante praticamente toda a apresentação. Não havia uma só cena que emocionasse a platéia e a fizesse se doar em aplausos. Porque o formato, os diálogos, a encenação toda era de tal pobreza que não comove o coração de quem a assiste. Somente no final os aplausos vieram, mas bem discretos para o tamanho do público, que lotava todo aquele espaço gigante do anfiteatro do Campus da UFRN. E a montagem toda pede, implora de joelhos, ao final, que o público se dobre em aplausos comovidos. Mas não adianta: não é só com uma música grandiloquente e um texto final megalomaníaco que se constrói a apoteose. Esta é uma sutileza que vai se montando aos poucos, desde o início, injetando verdade no que vai para o palco. O clichê bíblico não converte ninguém. E contrariar isso - que é o que o auto da Prefeitura fez - só mostra que o produtor do espetáculo não acredita na inteligência do público. É coisa de político, não é coisa de artista.

E esta última frase deve encerrar o assunto. Se não tiver esse efeito, só resta lembrar um número não roteirizado ao final do auto, quando os atores, sem que o público entendesse por que naquele momento, vieram à boca do palco e começaram a apontar o indicador na direção da parte superior da platéia. Algo incompreensível até o dia seguinte, quando ficamos sabendo que naquele canto da platéia estava a prefeita - e que aquilo era um protesto pela falta de pagamento daqueles mesmos atores.

Volto para casa, em Brasília, e vejo, lendo os sites e blogues de Natal, que a mesma Prefeitura pagou cachê de R$ 221 mil reais para uma apresentação do Padre Fábio. A desproporção do valor tornou-se motivo de mais uma polêmica na seara cultura do município. E o pagamento foi suspenso.

Não receberam os atores do auto, não recebeu o padre Fábio. E o pior é que, pelo que se comenta em Natal, tem mais gente sem receber, especialmente em serviços de saúde, para sair um pouco do terreno da cultura e do entretenimento. Uma Prefeitura que promete, contrata, anuncia e até promove, mas não paga. Não é bem o que se espera de um "Natal do Brasil".

Receba bem o seu H1N1


Nada como o turismo, uma atividade econômica que, dizem, não polui, não explora, gera emprego e ainda valoriza a natureza, além de trazer uma imagem de simpatia para as cidades que vivem dele. Mas essa santa fonte de renda tem seus subprodutos indesejáveis, como o chamado turismo sexual, a especulação imobiliária e o aumento do custo de vida, como o que se deu na capital potiguar. O que ninguém esperava, pelo menos em Natal, era que, junto com o visitante convencional – europeu, meia-idade, carente e endinheirado – viesse também para cá um tal de H1N1. Pense num turista acidental...

O fato é que ele chegou, instalou-se e aparentemente pretende ficar na cidade por uma longa temporada. Também, pudera: jamais se ouviu notícia de turista tão bem recebido. Pra começar, informados de que a viagem do H1N1 estava prevista para o início deste mês, e de que o turista acidental, embora internacional, adora uma multidão e um empurra-empurra, as autoridades turbinaram uma festa popular já programada, é verdade, mas perfeita para o ilustre visitante sentir cada grau centígrado do calor humano da cidade. Milhares de pessoas esbarrando umas nas outras, pulando felizes, respirando o mesmo ar de início de verão. Nada melhor para H1N1 se sentir em casa. Dizem que ele mal teve tempo de deixar as malas no hotel. Chegou, comprou um abadá de última hora e sumiu, invisível com ele só, no meio dos blocos.

Encerrada a festa, era preciso garantir uma hospedagem à altura do mais viajado dos nossos convidados. Não seja por isso: autoridades de saúde – corrijo-me, do turismo – do município prontamente assinaram convênios com as melhores casas do ramo para ampliar o número de leitos que H1N1 exige, como aqueles astros da música pop que nunca viajam sozinhos, levam sempre a tiracolo um punhado de tietes e uma lista de exigências para os patrocinadores atenderem. No caso de H1N1, é basicamente isso: leitos. De preferência, vips, pra combinar com a festa de recepção.

Mas não convém reclamar demais das vaidades de H1N1. Afinal, se você pensar bem, a permanência dele na cidade, ao contrário do que ocorre em outras capitais bem mais famosas deste imenso Brasil, deve nos colocar em vantagem em alguns quesitos. Se ele gostou daqui e já está praticamente fixando residência, é porque, de uma maneira ou de outra, Natal é tão ou mais cosmopolita do que vários outros amostrados centros urbanos da costa brasileira. Se quem atesta isso, com todas as letras, é um turista como o H1N1 (e suas consequências), paciência. Seria melhor que fosse alguém como... Madonna, que praticamente se mudou para o Rio? Seria, mas, além de cosmopolitas, sejamos também realistas: cada um luta com as armas de que dispõe.

Portanto, caro leitor, se você dobrar a esquina e der de cara com uma ambulância – digo, com uma besta – cheia de amigos e cicerones de H1N1 (sim, porque ele próprio cultiva alguma discrição e prefere não ser fotografo por qualquer motivo), seja educado e solícito. Aperte suas mãos, converse com eles, tussa de emoção, chore se conseguir, e não esqueça de passar as mãos nos olhos, tudo isso sem frescuras de luvinhas, máscaras cirúrgicas e beijinhos no ar. Faça contato. Só não precisa tirar os sapatos como fez aquele ministro na alfândega – até porque há formas mais gentis de contágio, digo, de acolhida.

Enfim: receba bem e cuide da melhor maneira possível do seu H1N1, que chega como aquele derradeiro convidado da ceia de Natal, para o qual nossas mães sempre guardam um presente do tipo curinga no meio dos embrulhos da temporada. Deseje votos de boas festas, não esqueça de alimentá-lo com os pratos mais nobres da data cristã, apresente-o aos tias e tias do interior, especialmente se esses começarem a conversar sobre um parente distante que teve "cêa". Só evite que ele chegue perto das crianças e das grávidas. Não que crianças e grávidas não mereçam um pouco de convivência com pessoa tão visada. É elas são particularmente impressionáveis e pode ser que H1N1 fique entediado diante de tão pouca resistência às suas mais elementares táticas de agradar pessoas. E você, como bom anfitrião, sabe que em Natal ou em Lisboa a suprema heresia em termos de receptividade é entediar o convidado.

Uma última recomendação: não deixe, de jeito nenhum, que ele leve você para a cama. Esteja ciente de que ele vai tentar, independente do clima família presente na noite de Natal. Aliás, é o que tem acontecido por onde H1N1 passa. Dizem que, neste terreno, ele só perde para aquele ator, o Zé Mayer. Todo cuidado é pouco, porque H1N1, embora travestido de gringo desorientado que chega no fim do ano, é um sujeito muito direto, do tipo pega, mata e come. Se, depois de satisfeito, ele for embora sem dar maiores satisfações, também não reclame. Porque só então poderemos relaxar e, turistas acidentais à parte, desejar feliz ano novo uns aos outros.

*Republicado do Novo Jornal

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O homem que sabia so much


Dá gosto rever "O Homem que Sabia Demais" e reparar como o mestre do suspense capricha na engenharia de cada cena, fazendo das sequencias do filme uma obra-prima de construção narrativa em forma de cinema popular

Se um bom filme se compõe de belas seqüências, “O Homem que Sabia Demais”, um dos inúmeros clássicos populares de Alfred Hitchcock, é mesmo um grande filme. Há, do início ao fim, seqüências tão econômicas quanto reveladoras, como a de abertura; seqüências grandiosas e minunciosamente compostas, como a do concerto onde se dá a tentativa de assassinato; e também seqüências que, embora pareçam comuns, até acessórias no conjunto da história que vai sendo contada, primam pelo caráter sugestivo dos diálogos, com um humor, uma inteligência e uma perspicácia tão tocantes quanto perturbador e divertido é o suspense praticado pelo diretor do filme.

É de se concluir que o que está dito acima sobre “O Homem...” é aplicável a qualquer um dos célebres Hitchcock que, legitimados pelos críticos franceses, deixaram o terreno da diversão popular para subir ao panteão do grande cinema. Mas a questão é que o filme a que eu assisti ontem, com um sorrisão de orelha a orelha, e uma satisfação de neurônio a neurônio, foi este “O Homem que Sabia Demais”. E, nele, é impossível não se deixar tocar por essa engenharia narrativa e audio-visual que faz de cada seqüência um flash de comunicação astuta e inteligente.

Senão, vejamos. Logo na seqüência de abertura, encontramos o quieto e sensato doutor James Stewart ao lado de sua americaníssima esposa Doris Day e do filho Hank, o garoto que será um dos motores do suspense entrevisto. A cena inteira se passa dentro do ônibus e, apenas com base nos diálogos e no que acontece dentro dele ficamos sabendo que: 1) o doutor Stewart é um médico em férias com a família no Marrocos, onde acaba de chegar (a viagem é do aeroporto ao hotel); 2) Doris Day, bem a propósito, é a esposa que largou a carreira de cantora para casar com o médico do interior; e 3) Stewart aproveitou um congresso em Paris para dar uma esticada ao Marrocos, onde esteve durante a guerra. De cara, o roteiro e seu resultado filmado e montado estabelecem uma empatia entre o espectador e o filho de Stewart e Doris – o garoto é curioso, inquieto e algo precoce, cheio de tiradas inesperadas quando vindas de uma criança da idade dele. O menino vai caminhar no ônibus em movimento e um tranco do motorista lhe retira o equilíbrio – ao cair, ele arranca sem querer o pano que cobre a boca de uma marroquina e cria uma confusão a bordo. “O Islã tolera poucos acidentes”, comenta Bernard, o estranho que aproveita o episódio para se aproximar da família americana.

A cena continua, sempre dentro do ônibus, e dela absorvemos, à base de diálogos (e também do olhar de Doris, que revelou-se excelente atriz de cinema), o mistério de Bernard (que pergunta muito sobre a família mas não revela nada sobre si mesmo), a desconfiança da esposa, e a negligência do marido, o homem comum doutor Stewart que, mais tarde, como para compensar esse pouco caso, terá que se desdobrar para localizar o filho seqüestrado. Além do caráter dos personagens, a cena também explicita o estranhamento cultural existente entre a família americana e o cenário muçulmano marroquino. E mistura tudo quanto, depois de Bernard explicar que é um ofensa no local as mulheres deixarem a boca à mostra, o garoto Hank graceja, em comentário de filho de médico: “Elas se alimentam por via intravenosa?”

Adiante, em uma seqüência pequena mas não menos bem iniciada e finalizada, Doris chama a atenção de Stewart para o fato de eles estarem sendo espionados – desconfiança levantada com o comportamento de Bernard no ônibus. Doutor Stewart desdenha e encerra a cena com uma frase irônica: “Você está é com inveja porque ele não perguntou nada sobre você”. Daqui a pouco vamos entender melhor o comentário, quando ficar claro que Doris abandonou uma carreira promissora para virar dona de casa – e esta tensão adormecida entre o casal será um elemento a mais na confecção do suspense. Outro final divertido porquanto espirituoso é o da cena do restaurante, quando Stewart perde a paciência e agarra a comida com as duas mãos, contrariando a etiqueta local e levando uma repreensão do que seria o garçom.

Mas a grande cena, daquelas que já nascem clássicas, dá-se quase no final do filme – na verdade, o seu clímax, que é o momento da tentativa de assassinato no teatro, muito mais do que o resgate do garoto na embaixada. Hitchcock mostra-se um diretor soberbo, sem ser hermético. Arma uma extensa e meticulosa seqüência planos gerais e particulares, misturando closes do rosto ansioso de Doris Day com os vários instrumentos da orquestra, usando a música como elemento de expectativa, aproximando-se tomada a após tomada dos símbalos e do músico que executará o seu toque, num assombroso e espetacular crescendo de suspense visual. Para quem não viu ou não lembra do filme, é no momento em que os símbalos são tocados, precisamente naquele momento, que o assassino de aluguel vai disparar o tiro no peito do primeiro-ministro britânico. O roteiro de John Michael Hayes e a direção de Hitchcock conduzem tudo, de Marrocos a Londres, para este momento singular, onde o filme praticamente se resolve e naturalmente se amplifica e se define. Até porque a seqüência que resta, a do resgate do garoto seqüestrado, fica menor na tela, escorrendo menos facilmente pelos olhos do espectador – o que não é de se estranhar, pois o que quer que viesse após aquele grande momento do concerto teria que ficar em desvantagem.

Há ainda outros pontos menores, mas não menos interessantes. Como o contraste visual entre aquela Londres de tijolinhos e aquela Marrakech de trapos – e, em ambas, o mestre do suspense sabe como extrair sinais de mistério. Veja como um beco londrino, aquele que leva ao laboratório do empalhador, inspira tanta desconfiança quanto as vielas nos mercados marroquinos. E a ironia do discurso do falso sacerdote na igreja, que anuncia que falará sobre o valor da adversidade na vida das pessoas diante de um casal enregelado pela busca do filho que possivelmente está escondido naquele mesmo local? Hitch, se vê, é também um humorista, que sabe dosar o suspense com respiros de alívio contido. Táticas de quem domina, mais que o suspense, a matéria mais difusa do entretenimento mais certeiro, porque vale-se da inteligência do espectador.

P.S: Ganhei dos meus compradres Renato e Ana uma caixa com sete filmes de Hitchcock. Pense num presente de fim de ano festejado... De maneira que não estranhem se daqui por diante o SOPÃO volta e meia disparar uns comentários sobre o grande cinema do mestre do suspense e do entretenimento inteligente.

Rastros do futuro


Mais do que atualizar, nos anos 70, um clássico de John Ford, “Táxi Driver” antecipa padrões de violência que o mundo só conheceria no pós-11 de setembro

Grande parte da graça de rever, atualmente, “Táxi Driver”, um dos mais celebrados produtos da mente e das câmeras de Martin Scorsese, está no fato de se saber que o filme de 1976 é uma releitura do clássico “Rastros de Ódio”, de John Ford, que mostra John Wayne tentando resgatar Nathalie Wood da tribo indígena que massacrou sua família e a seqüestrou quando criança. No filme de Scorsese, vemos um semi-autista Robert de Niro tentando resgatar das ruas e dos hotéis borolentos uma Jodie Foster precocemente prostituída. Nos dois casos, emerge da aventura sombria um herói americano – falso como o nosso brasilieiríssimo Roque Santeiro. E é nisso, nessa desnudar do herói, que está a grandeza do filme.

Os tempos mudaram e, se Wayne, estrela dos westerns, já surgia na tela com a pompa do herói pronto e acabado – cuja desestruturação só se entrevia ao longo da saga de “Rastros de Ódio” – em “Táxi Driver” temos um protagonista que, de cara, já estampa suas debilidades. Ou melhor, sua falta do que quer que seja, já que a grande marca do Travis de Robert de Niro é ser um nada, criatura que não se ajusta nem no grupo de taxistas e muito menos no comitê de campanha eleitoral onde tenta se aproximar de uma funcionária burguesa. Em nenhum lugar Trevis está à vontade. Para ele, os sinais de trânsito estão sempre vermelhos. E esta falta de adequação, essa necessidade não proclamada de encontrar um encaixe na sociedade estabelecida move o protagonista e empurra o filme, como os restos de um gato atropelado que é chutado entre os pneus apressados das grandes avenidas.

“Táxi Driver” deve ter sido bem difícil de fazer, do roteiro à fotografia. Porque é um filme que, a rigor, se passa inteiro dentro da cabeça do seu torturado e confuso protagonista. De Niro, no entanto, não o interpreta com tinturas pesadas de um Marlon Brando, só pra ficar na comparação com outro grande ator do cinema mundial. Ele o faz até leve, comum e corriqueiro – faz um Travis que, por baixo da superfície de sujeito brincalhão, incorpora uma sombra viva e vazia, do tipo que passa despercebido na multidão ou no grupo de pessoas que espera o sinal abrir no cruzamento novaiorquino. Nisso, nessa invisibilidade involuntária, o personagem lembra o protagonista de um best seller que fez muito sucesso no final dos anos 80, “O Perfume”, de Patrick Süskind. Assim como o personagem do livro, o Travis do filme também se incomoda com essa falta de visibilidade – também anseia ser alguém. Mas, para isso, terá que ser notado da maneira menos recomendável – matando gente.

O resultado disso tudo é que Travis circula por uma Nova York podre e setentista, visualmente filmada em altos contrates, para dar ao espectador um pouco da visão que o próprio motorista de táxi tem do seu cenário. É um mundo saturado, perdido e impaciente. Quando Travis tenta paquerar a bilheteira do cinema pornô, ela sequer olha para ele e mal lhe dirige a palavra. Quando o funcionário do comitê de campanha reclama com um fornecedor de material de propaganda, cospe cinismo e intolerância. Mais adiante, quando passa a ser evitado pela burguesa Cybill Shepherd, Travis irá verbalizar o incômodo desde mundo que gera criaturas como ele. “Agora sei que ela é igual aos outros, fria e distante. Há muita gente assim.” Do lado de cá, o incômodo é notar que, neste final de primeiro decênio do novo milênio, mais de 30 anos depois do lançamento de “Táxi Driver’, a sentença pareça ter se reatualizado. A música de Bernard Herrman, que soa propositadamente melosa, só reforça esse desencontro entre a carência desorientada de Travis e a Nova York bruxuleantemente sinista em que ele passa as noites acordado.

Sem espaço na cidade estabelecida, com a qual ele tentou se ligar ao aproximar-se de Cybill – sendo tolerado apenas até o momento em que extrapolou o padrão de normalidade, ao convidar, autocentrado como ele só, a garota para ver um filme pornô – Travis, também sem espaço entre os colegas de volante, volta-se para o que ele mesmo chama de escória das ruas. É a prostituta mirim Jodie Foster, a quem passa a buscar, numa sanha insana de purificação pelo sangue.

É quando o paralelo entre o filme de 76 e “Rastros de Ódio” se explicita. A nova tribo indígena é o subproduto intoxicado da contracultura, com o “navajo” Harvey Keitel travestido de gigolô da “seqüestrada” Foster. A grande seqüência está chegando, com Travis de cabelo punk, explodindo de visibilidade indesejada, correndo ao hotel de quinta de armas em punho e tiros em profusão para resgatar dos novos bárbaros a garota inocente. E o que vemos é puro faroeste urbano, filmado sob um penumbra rubra, um tiroteio com tratamento hiper-realista, santos bandidos rolando escada abaixo e sátiros heróis escancarando os dentes de doentia satisfação. Se houver alguma dúvida no paralelo entre os filmes, é só ouvir os diálogos: “Eu vim salvar você”, diz Trevis à putinha. “Volte sempre, cowboy”, diz o dono da estrebaria ao xerife punk ao final da carnificina.

Mas, como um filme feito sobre outro, que empilha mito sobre mito, fazendo uma leitura dolorosa mas necessária da tal civilização americana, “Táxi Driver”, visto hoje, também explica outras síndromes das terras de Tio Sam. É impossível assistir à seqüência em que De Niro ajusta armas e correias no próprio corpo, sem camisa diante do espelho, treinando formas de sacar as pistolas, e criando pequenas engrenagens para escondê-las na roupa, é improvável que um espectador atual, vendo ou revendo esta parte do filme, não estabeleça uma conexão entre o motorista de táxi de 76 e os adolescentes que protagonizaram massacres em mais de uma escola dos EUA dos anos 90 para cá. Parece uma antevisão – um prólogo para “Elefante”, aquele estudo cinematográfico que Gus Van San fez desses episódios. Nisso, Scorsese foi premonitório, como também se adiantou, sem alarde, aos panfletos filmados do Michael Moore atual sobre a fixação dos conterrâneos pelas armas de fogo.

Esta mesma seqüência, vista hoje, bem após o 11 de setembro e o muro de Israel, também remete à triste figura do homem-bomba palestino. Travis, naqueles preparativos de põe arma aqui, esconde faca ali, bem poderia passar por um ancestral ocidental do suicida-homicida da banda árabe do mundo – no que o filme de 76 também antecipa evidências sociológicas que o tempo, os conflitos e a política americana mesmo haveriam de provocar. Neste sentido, é um filme tão bom que se credencia como visionário. E, por fim, mas não menos americano, o filme ainda comenta outra síndrome da poderosa nação do norte, que é o assassinato de celebridades da política e do mundo pop que, afinal de contas, nos dias de hoje, vai se tornando uma coisa só. Até nisso “Táxi Driver” deixa suas pistas e insinuações.

P.S: Para os fãs de Scorsese, um anúncio grátis. Já à venda nas lojas Americanas nova versão em DVD, a preço popular, de "Táxi Driver" com dois discos e um punhado de extras - incluindo o célebre roteiro do filme, escrito por Paul Schrader.

Declaração (sentimental) de princípios


Quem respira sabe que esse sentimento denominado amor é um tipo sorrateiro, múltiplo e contraditório. Sentimento malasarte, ele surpreende e trapaceia seu sujeito e seu objeto. Transforma-se, muda de aparência, oculta-se quando deveria se exibir. E também se nega a surgir poderoso no centro dos acontecimentos quanto mais o ser humano, esse seu escravo que respira, implora de joelhos para que apareça e dê algum sentido aos absurdos. O amor, esse patife disfarçado de virtude, é assim mesmo. E pode ser ainda pior quando exerce suas influências na relação entre as pessoas e o lugar onde elas vivem, viveram ou viverão.

Estou falando de um dos tipos mais subjetivos de amor, que é aquele que se pode nutrir por uma cidade. Serei mais preciso, enquanto isso é possível, pois estou falando do meu amor por Natal - um amor tão desconfiado quanto sentimentalóide e que, no entanto, não se surpreenda, pode sim, de alguma maneira, ter alguma conexão com o sentimento que você reserva para esta mesma cidade, onde circula hoje a edição inaugural deste mesmíssimo jornal. Dito isso, só me resta enumerar os lugares, momentos e circunstâncias que disparam a qualidade inquieta e esdrúxula desse amor.

Pra começar, declaro que amo, com todas as minhas forças, o epíteto de "cidade do sol" que tanto traduz quanto minimiza - e de outra maneira, também subestima - as dimensões humanas do nosso burgo. Como amo, crente de pés juntos, aquele outro ditado segundo o qual aqui "não se consagra nem se desconsagra ninguém". Acho até que o epíteto e a sentença se completam - sem que, com isso, ao contrário do que parece, sinta o menor sinal de repulsa pelo lugar em questão. Ao contrário: as duas frases juntas só me fazem amar Natal, mais e mais, numa compulsão de hospício. Porque, qual cartão de visitas involuntário, tais anunciados já lhe cortam as asas antes mesmo de seu habitante se arvorar em voos inúteis. E se, porventura e contrariamente aos prognósticos, efetivamente voar, terá que ser duplamente reconhecido.

Amo a Ladeira do Sol com o mesmo fervor apaixonado que devoto à Ladeira de Mãe Luiza. Venero os novos ares mediterrâneos de Ponta Negra com a mesma devoção que reservo ao luar dourado que ilumina as ruas anônimas do Vale do Pitimbu. Frequento a balbúrdia metropolitana da Maria Lacerda com deslumbramento idêntico ao que me toma a alma quando me vejo à sombra altiva das calçadas do Engenheiro Roberto Freire. Esquecidos ou exibidos, são cenários diversos e reais de uma mesma cidade, dona de muito mais faces do que sugere o circuito Parnamirim-Lisboa.

Choro todas as manhãs com saudades de A Modinha, mas logo recupero a esperança quando lembro que um novo e inevitavelmente defasado viaduto vem surgindo no horizonte solar que nos abençoa. Rezo fervorosamente em agracedimento à providência quando cruzo meus passos com a boçalidade mais up que é possível aos conterrâneos alcançar, e se faço isso é porque sei que por baixo de qualquer exibicionismo gritante existe, beradeiro e ansioso, um ser humano tão cabreiro quanto eu.

Festejo a eficiência dos Clowns locais tanto quanto idolatro a falta de dinheiro na banca para a tal da cultura. Morro de amores pela indigência mercantil dos artistas.
Cultuo em jejum de três dias a teimosia infantil desses mesmos artistas, amo os artistas - não tenho como não os amar, imploro a quem os detesta que tente compreender. Na sua pobreza ambulante, eles encenam involuntariamente o espetáculo de nossa decadência. Mas, que fique claro: se há algo que eu também amo, com o vigor da mais explosiva antimatéria, é a nossa decadência. O que seria de mim e de outros colegas das letras não fosse ela, essa deusa a quem tanto violentamos quanto mais ela nos conforta?

Amo a impaciência do natalense médio que buzina estridente quando eu não me oriento muito bem no estacionamento do shopping, como adoro o jeitão camarada do dono do restaurante improvisado nas sombras das árvores do Jiqui que me serve um guisado como eu jamais encontraria nos terraços da Getúlio Vargas (mas também amo os terraços da Getúlio Vargas, que não sou besta).

Amo o oitão ventilado da catedral na Deodoro, como amo a fachada e-o-vento-levou do templão da universal na Salgado Filho. Ambas são expressões do nosso gigantismo represado nos porões da religiosidade reprimida. Amo os canteiros alagados do Parque das Pedras em junho, como amo a surra de areia que a natureza nos aplica no mesmo período de uma ponta à outra da Via Costeira. São apenas duas formas que o meio ambiente tem de nos cutucar com elegância suficiente para chamar a atenção sem que a gente precise passar o recibo constrangedor de agressor da ecologia. Por falar nisso, amo de paixão os furos do saneamento – e rego esse amor todos os dias com fartas doses de nitrato envelhecido.

Amo os botecos da Tavares de Lira e arredores com como amava os ratos da Rua do Motor e adjacências. Amo o Carnatal a tal ponto que me vejo obrigado a amar o fenômeno decorrente, a que se convencionou chamar de carnatalização geral - amo, pronto, não precisa insistir, pode desligar o carro de som. Amo os fantasmas que habitam o Hotel Ducal. Movido por esse tipo febril de amor, faço oferendas aos vultos que ainda se debatem nas ruínas espirituais dos cinemas Rio Verde, a quem não me canso de amar. Todos eles, os prédios fechados, demolidos, substituídos e seus insistentes habitantes invisíveis são como salas de projeção do nosso apressado presente com data de validade vencido. Como filmes amados que envelhecem precocemente, antes de terem tido tempo de se tornar clássicos. Pelo mesmo motivo, já amo, de um amor desesperado de cometer suicídio, o Machadão que via todo dia e onde no entanto só uma vez estive. Mas amo a Copa, já que, por mais que tente, não consigo mesmo destoar da expectativa geral. Coisas do amor.

Amo Valéria Oliveira e Gilliard, Cascudo e os políticos de auditório, o turismo reluzente e o assassinato brutal na passarela, o litoral sul e o Soledade II, a Marina Badauê e os esgotos que brotam na praia, os CDs de Babau e o deslumbramento da cantora Elali. E por que não haveria de os amar, se eles formam uma cidade só? Eis a questão que explica as contradições deste amor a uma cidade. É que não dá pra separar, ir do Guairá à cidade sem ver as lojas de colchões, relembrar o lindo visual do Campus visto do Posto Planalto sem que os novos viadutos se intrometam na alumbramento. Não tem essa de joio e trigo. De um tempo para cá, as cidades se transformaram num caleidoscópio tal que vem tudo junto, deslumbramento e miséria, estupidez e contemplação. Para falar uma linguagem bem atual, ou você compra – ou não. Ame-a ou deixei-a, triste paralelo – mas que é fato. E quando me ponho diante do espelho desta cidade, vulnerável de sinceridade, vejo que a amo com todas as suas lindas e tão bem-cuidadas imperfeições.

P.S (1): Vou passar a republicar no SOPÃO as colunas que envio para o NOVO JORNAL, obviamente com atraso regulamentar, já que os textos de lá têm uma finalidade inicial que não é exatamente a do blogue daqui. O texto acima foi o primeiro da série iniciada em 17 de novembro passado, sempre nas edições das terças-feira.

P.s (2): Na foto que ilustra a postagem, Cecília, ainda mais pequenina, passeando na rua Princesa Isabel.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Natal já era, mas o carnaval... (as fotos)






Enquanto o escândalo do panetone torna sombrio o Natal em Brasília, os protestos do "Fora, Arruda" pelo menos antecipam o carnaval, como se viu no fim de semana em frente ao Conjunto Nacional.

A campanha começou

Acabo de assistir, no Jornal Nacional, ao primeiro evento da campanha eleitoral presidencial de 2010. Evento não programado como tal, mas de consequências efetivas. A primeira pecinha do quebra-cabeças que conta colocado no lugar. Foi uma reportagem de não mais de três minutos, com entrevistas dos três principais candidatos apresentados até o momento - Dilma, Serra e Marina - em que eles expõem seus pontos de vista sobre o mesmo assunto. E, que ironia: o primeiro ato de campanha que conta -porque transmitido pelo principal telejornal noturno da tevê brasileira, com audiência e alcance no país inteiro - se deu não numa praça em São Paulo, nem numa avenida no Rio, tampouco numa praia no Recife. Foi em Copenhague, capital da Dinamarca onde, você já está cansado de saber, acontece a conferência mundial sobre mudança climática.

E o primeiro tema sobre o qual os principais candidatos a presidente da República tiveram que responder - e externar suas posições numa reportagem do telejornal mais visto, na mesma edição - não foi a estabilidade econômica, a violência urbana, o socorro à educação ou qualquer outro desses brasileiríssimos assuntos. Não: foi a situação do clima no planeta. E particularmente, o que gerou respostas diferentes já que ecologia é um ótimo tema para render declarações de consenso, foi a defesa ou não da participação brasileira num fundo global contra os efeitos do aquecimento. Ou pelo menos foi o que eu consegui abstrair da reportagem na tevê, algo não muito diferente do que acontece com a média dos telespectadores distraídos, segundo dizem os próprios jornalistas que editam este mesmo jornal.

Então fica assim: 2010 está aí, na boca do calendário, quando somos surpreendidos pela primeira e rápida prévia de um provável grande debate de candidatos, daqueles que param o país. Vemos, pela primeira vez, Dilma, Serra e Marina divergindo sobre a participação brasileira no fundo anti-aquecimento. Dilma disse que o Brasil não deveria participar desse financiamento, só os ricos; Serra e Marina, ao contrário, defenderam a doação dos tais bilhões de dólares. Quer dizer, Dilma bancou a antipática-realista, mas em compensação não fez a pose de demagogo-certinho e convertido que mostrou Serra. E Marina, bem, Marina foi a única a ficar à vontade no papel de candidata-fetiche dos abastados que têm mais respeito pelo meio ambiente do que pelos empregados domésticos.

Enfim, a reportagem, o tema, o encontro do candidatos coincidentemente tão longe do país, a divergência entre eles, a postura de cada um diante do fundo em questão já são um primeiro bom teste de honestidade intelectual e sinceridade administrativa para quem está indeciso. Para quem perdeu, a reportagem logo logo deverá estar no Globo Media Center no portal do grupo Globo na internet. Basta ver (ou rever) para examinar o ponto de partida dos candidatos. E lamentar que tal encontro não tenha se dado no Brasil, de preferência no centro de uma de nossas conflagradas capitais, mas num evento que já virou moda tanto quanto vestir a camisa do Greepeace.

Natal já era, mas o carnaval...

O escândalo das propinas que estourou no Distrito Federal teve um efeito devastador sobre o Natal de Brasília. Sim, meu amigo leitor que mora além do quadrilátero local: ao contrário do que você possa imaginar, temos sim Natal em Brasília. Ano passado, a cidade ficou uma belezura, com uma nova decoração, vila de Papai Noel no gramadão da Esplanada, cenários vivos com Maria, José e o Menino Jesus, e uma portentosa e impressionante árvore de Natal gigante que projetava desenhos móveis à medida em que você a observava. Dá uma saudade, mesmo que a gente se pegue imaginando se alguém levou algum na contratação de tanto coisa bonita e singela, estragando o quadro de lembrança tão natalina. Mas, como disse, roubos à parte, dá saudades, porque este ano, faltando praticamente duas míseras semanas para o 25 de dezembro, a árvore ainda não foi acesa - sequer ficou pronta. A gente passa de carro na Esplanada - porque na Esplanada ninguém anda a pé para ver os detalhes, ainda bem - e vê aquele esqueleto de árvore semidespido, os operários ainda começando a cobrir as vergonhas do símbolo da festa cristã. Uma nudez vergonhosa de ferros e fios, como um governo corrupto pego em flagrante.

Mas temos uma compensação. Se o Natal já foi perdido, e não há o menor clima para festa de reveillon na Esplanada, resta a expectativa para o carnaval. E aí a história é outra: clima total. Graças aos penetones do Arruda, à meia do Prudente e à cueca daquele dono de jornal picareta, Brasília deve ter um carnaval supimpa. Duvida? Pois acorde, que já começou. Sexta-feira à noite, estou chegando ali em frente ao Conjunto Nacional, no coração da cidade, quando ouço um ruge-ruge convidativo daqueles que a gente só encontra mesmo nas boas e animadas cidades nordestinas. Parecia um bloco de rua antecipando o carnaval e, de certa maneira, era. Mas era, de fato e de direito, mais um ato de protesto do movimento "Fora, Arruda", com uma rapaziada animada como os foliões olindenses. Pena que, olhando bem, a gente visse aqui e ali alguém com cara de quem votou no homem e se arrependeu - mas nem por isso vai deixar de participar da festa da democracia, não é mesmo?

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O cineminha da garagem


Quem tem ou teve criança em casa, sabe que há umas situações em que você é obrigado a inventar as coisas mais esquisitas para distrair a atenção delas. Sim, porque a necessidade de atenção das crianças, hoje estou convencido, é uma das forças que move o mundo. Nâo adianta você tentar ler seu livro na rede enquanto simula que está conversando com ela, comentando alguma coisa que ela disse ou respondendo a uma de suas inúmeras e seriadas perguntas. Nada disso. Elas são espertas, hoje em dia parece que vem equipadas com detectores de desatenção: querem você todo pra elas. Fora com a concorrência. Livros, filmes, esses brinquedinhos que os adultos adoram são inimigos mortais das crianças. Quando é para você estar com elas, é para você estar com elas. Tente contrariar esse mandamento do mundo dos pais e filhos e prepare-se para a revanche: uma torrente de birra capaz de tirar a paciência de qualquer pessoa com mais de trinta e dois dentes.

Por isso, como dizia antes dessa prolongada explicação, muito frequentemente você é alertado por algum sistema interno que hoje em dia também parece ter sido instalado na sua mente no exato momento em você se tornou pai ou mãe. Aquele alarme silencioso mas incômodo, que só para de buzinar no seu juízo quando você levanta da rede (ou do sofá, ou da cama, conforme as preferências) e trata de inventar uma brincadeira que seus filhos não esperavam. Um parênteses, para quem gosta de arranjar perguntas que cortam o raciocínio do blogueiro apressado: e os tios, e as tias, por que não estão incluídos aqui? Muito simples: porque tios e tias são companhias circunstanciais das crianças. Quando muito, ficam com elas umas seis horas no sábado ou domingo ou feriado. São muito carinhosos, muito dados, quebram o maior galho para pais que os têm por perto - o que, infelizmente, não é o caso aqui em casa - mas, a bem da verdade, são seres que não estão expostos completamente aos raios de atenção que nossos filhinhos disparam certeiros em nossa direção.

Tudo isso é pra contar uma história caseira e banal para quem não está exposto àqueles raios, mas absolutamente importante para quem com eles convive. E foi assim que, sexta-feira passada, pela manhã, crianças a mil antes do turno vespertino escolar, vi-me obrigado a inventar alguma coisa para saciar a sede de atenção de Cecília e Bernardo, os dois franco-atiradores lá de casa. Como já estava todo mundo na garagem vazia, eu no fundo da rede tentando inutilmente ler meu best seller para pais burros e sem tempo para textos mais elevados, resolvi dar um jeito ali mesmo. E sapequei para os meus dois guerreiros mirins: - Que tal a gente fazer um cineminha na garagem?

Aprovação total e festiva, lógico. As crianças são as criaturas mais abertas do mundo. Topam tudo, desde que esse tudo gire em torno delas (se você conhece algum adulto que se enquadra neste perfil, compreenda, está diante de uma legítima síndrome de Peter Pan). Corri ao quarto, peguei aquele mini-DVD de oito polegadas, recolhi extensões, plugs e adaptadores, montei a engenhoca toda, botei a telinha do DVD em cima de uma cadeira grande e espalhei as cadeiras pequenas dos meninos diante do tal "cineminha". Voltei ao quarto em busca de qualquer coisa que não fosse tão batida - tem horas que a gente não suporta mais ver a cara da Barbie e nem o verde do Barney, muito menos os morangos da Hello Kitty - e deparei com, surpresa, "O Mágico de Oz". Será? - pensei. Bora ver - arrisquei.

O filme começou naquele sépia lindão e é obvio que em algum lugar Cecília, por ora muito mais tarimbada nessas coisas de filmes, desenhos e DVDs, deve ter feito um link entre a garota Dorothy e a Alice do País das Maravilhas que, Deus é justo e piedoso, já faz um bom tempo que ela não coloca no DVD player do quarto. Bernardo sentou logo na cadeirinha e prestou atenção. Cecília ainda se fez de difícil, mas a curiosidade matou o gato, todo mundo sabe, e logo estava no seu lugar no "cineminha" acompanhando as história da menina, do leão, do homem de lata e do espantalho em busca do tal mágico que atenderia ao desejo de cada um deles.

Eu, de longe, ainda me surpreendo com o poder de empatia de certas realizações como filmes, discos e livros. Pois de sexta-feira para cá, Cecília já assistiu ao "Mágico de Oz" umas oito vezes, sempre de olhos arregalados, expressão encantada de quem tem muito o que extrair daquela aventura pelo reino dos anões coloridos. Bernardo, devido à faixa etária, esse sim largou a história pelo meio e foi tratar de carrinhos, corridas e outras estrepolias mais estimulantes. Mas ela, não. Virou amiga de infância da menina Dorothy, do leão, do espantalho e do homem de lata, confirmando o fascínio que os clássicos exercem sobre muito mais do que uma geração, crianças incluídas. É bonito, espantoso e ao mesmo tempo impressionante ver como isso se processa, dentro da sua casa, sem que você planeje, prepare (coloquei o filme pela primeira vez sem dar nenhuma informação sobre ele; achando mesmo que era demais para uma menina de 4 anos), estimule ou simplesmente torça para que tal conjugação de fatores se dê.

Fiquei fã de "O Mágico de Oz" junto com minha filha. E aprendi o equivalente a uns cinco livros - os cinco livros que tantas vezes ela não me deixa ler - sobre a mágica das narrativas, o encantamento das histórias, o chamado das imagens, a força do cinema que perpassa nossas vidas, desde criancinha.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A Lista de Dilma


Dilma sacou sua lista. Ela também tem direito; sobretudo ela, alvo fácil - mulher, durona, ex-guerrilheira, ser humano alinhado à esquerda -; de abrir aquele papelzinho bem no meio do discurso e recolocar as coisas no seu devido lugar. É o que a candidata tem feito nos eventos de que tem participado. A internet é pródiga em listas - elas são divertidas, fáceis de ler, organizam um pouco o nosso caos informativo, rendem polêmicas quando não concordamos absolutamente com os primeiros ou os últimos colocados. A lista de Dilma é tudo isso e não é nada disso - porque está um bocadinho além: traz os dogmas da política que o governo Lula quebrou, com a evidente participação popular que muita gente de bem se nega a ver. Vamos a ela:

1-O DOGMA de que distribuir renda era incompatível com o crescimento econômico;

2-O DOGMA de que havia um teto para o Brasil crescer ou haveria inflação;

3-O DOGMA de que o salário mínimo não poderia crescer;

4-O DOGMA de que o Estado mínimo é uma exigência da modernidade;

5-O DOGMA de que o povo precisa de formadores de opinião;

6-O DOGMA de que o desenvolvimento econômico é incompatível com a sustentabilidade.

Amigo leitor, estamos em campanha, o ano eleitoral praticamente já começou. Faça sua parte, mova a peça do tabuleiro ao seu alcance para que o que foi feito de bom permaneça, independente dos desvios da imperfeição que acometem qualquer espécie de governo ou instituição, da família à igreja, do Estado à empresa privada. Passe a lista pra frente, use a rede, multiplique.

P.S: Extraí a "Lista de Dilma" de uma reportagem do jornal O Globo, domínio do PIG mais escancarado. Mas as informações estavam lá, dispersas no texto de uma matéria cujo título era "Dilma sobe o tom e ataca também a imprensa". De tudo o que ela disse e que está escrito lá, veja o que o editor achou de destacar.

Leia na Hamaca



O novo trabalho do industrial de palavras e imagens Jorge Furtado. É "Trabalhos de Amor Perdidos", um almanaque disfarçado de novela sobre os feitos, fatos e mitos em torno de William Shakespeare.

www.hamacadepoti.blogspot.com

Brasília além da política





Noiva em sessão de fotos diante do Congresso Nacional, uma cena comum nos finais de semana de Brasília.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A história faz Justiça (2)


O fato é que, com o escândalo das propinas envolvendo o governador José Roberto Arruda, o único do DEM em todo o país, seus secretários e deputados distritais, o velho – digo, novo – Democratas de guerra é obrigado a experimentar, ao menos momentaneamente, as mesmas pilhérias repetidas à exaustão que o PT e Lula tiveram que suportar em seguida ao caso do mensalão. A filósofa Marilena Chauí, tão enxovalhada pelos magos da imprensa golpista, já andou falando sobre isso, mas de maneira muito mais grave. Dizia ela, em seguida ao “mensalão”, que o próprio uso dessa palavra – cuidadosamente repetida por Roberto Jefferson naquele histórico discurso na Câmara -, assim o de outros termos e expressões que a grande imprensa associava ao PT e a Lula, era uma estratégia de linchamento linguístico de tantos quanto fizessem parte do governo. Uma técnica de repetição que procurava, no limite, comprometer definitivamente a imagem do único partido que verdadeiramente questionava as práticas e os princípios de legendas tradicionais como o próprio DEM, então PFL.

Então estoura o caso do “propinoduto” (lembra dessa?) do democrata Arruda e, para o gáudio dos redatores dos portais na internet, surge todo um vasto vocabulário relacionado ao escândalo que rende pilhérias e piadas. Arruda diz que o dinheiro que no vídeo aparece na mão dele era para comprar panetone e distribuir na campanha eleitoral. Pronto: nos bares, nos bancos, nas escolas, nas quadras, todo mundo se pergunta: - Ué, eu não recebi panetone nenhum, você recebeu? O “mensalão” já virou “demsalão”. O “Oração de São Durval”, em vídeo e texto, vai e volta em sites e e-mails graciosos. E ainda há o indefectível “dinheiro na meia” do deputado Leonardo Prudente. É apenas uma amostra, concentrada em quatro dias, de um linchamento que atingiu o Partido dos Trabalhadores durante meses – durante anos, melhor dizendo, que isso vem, mais forte ou mais sutilmente, desde 2005.

O leitor tem todo o direito de se perguntar: -Ué, mas o DEM não está apenas se igualando ao PT ao usar do mesmo recurso de distribuir propina? Eu respondo: Não. O que aconteceu com os petistas em 2005, da forma como foi exposta por Roberto Jefferson, foi um desvio condenável que não se ajusta aos princípios e às práticas histórias do partido, que já sofreu todo tipo de hostilidade por defender a igualdade de oportunidades, a redistribuição da renda, o investimento público para quem mais precisa dele, a legitimidade de o Estado definir políticas inclusive financeiras e outros dogmas que os liberais não querem ver nem pintados. Já o que acontece com o DEM, eventualmente em Brasília, é apenas um exemplo a mais de algo que está incrustado na personalidade do partido: o tirar proveito do Estado, o apropriar-se do dinheiro público, o uso do poder político como propriedade privada, como bem atesta a trajetória da legenda desde os tempos em que era a Arena, sustentáculo paraparlamentar da ditadura à brasileira.

A justiça faz História


Demorou, mas está começando a acontecer. Quando, em 1999, o então governador Cristovam Buarque, ainda no PT, perdeu a reeleição para Joaquim Roriz, numa frustrante e evidente vitória eleitoral do atraso contra o avanço em Brasília, uma frase ficou no ar, a título de explicação possível e de consolo necessário. Virou até adesivo de carro e, quem mora aqui lembra, dizia assim: “Cristovam, a História lhe fará justiça”. O escândalo que estourou no final de semana e assumiu proporções inimagináveis nos últimos quatro dias parece materializar no ar politicamente pestilento da capital do país aquela sentença que se seguiu ao que pareceu ser a mais dolorosa das derrotas eleitorais. É a História, essa dama paciente, sinuosa e surpreendente, mostrando a cara por trás da cortina rasgada.

Não houve sinal de corrupção no governo Cristovam. Houve maior preocupação com a saúde, inversão de investimentos para as áreas mais carentes no entorno da capital, muita greve apressada e precipitada de um funcionalismo oportunista, e alguma soberba intelectual que fazia parte da personalidade do governador – ninguém é perfeito, hoje a gente sabe, e entende. Roriz, um político que se veste de povo quando lhe interessa, inclusive caprichando no “falar errado” que gera empatia e rende votos, retomou Brasília como quem volta a tomar posse de sua capitania hereditária natural. Seguiram-se dois governos sem um avanço político que fosse – a não ser a cartilha tradicional do restaurante popular e do viaduto contundente. Ou seja: sempre as obras, que rendem votos e alguma coisa mais. Política de cidadania, que é bom mas nem sempre se vê e se pega, nada.

Mas era pouco: destruído pela mesma soberba política que fazia parte da personalidade do ex-governador Cristovam, o PT do Distrito Federal foi sumindo buraco adentro, perdendo cada vez mais sua expressão e sua presença neste lugar tão marcado pela segregação social e intelectual. Faltou ao PT local participar efetivamente da vida popular – quando muito, ele se alimentou precariamente de sua porção sindical, dona de uma dieta que se por um lado garante uma subsistência mínima, por outro deteriora o organismo do cidadão. Não deu outra: depois dos dois governos Roriz, veio um prolongamento com cara de dissidência mal disfarçada – o governo Arruda que, não fosse pelo estouro da boiada visto desde o final de semana, ia direto para as galeras da reeleição dada como certa. Essa dissidência mal disfarçada, aliás, está na origem da denúncia que reverbera o escândalo. A intersecção dos governos Roriz e Arruda é uma zona turbulenta, onde o excesso de interesses mesquinhos não suporta a lupa de qualquer ministério público.

E é neste ponto que a História reaparece para fazer justiça a Cristovam: tanto tempo de domínio da máquina pública brasiliense sem qualquer sombra de ameaça por parte dos aloprados petistas deu ao grupo Roriz-Arruda uma liberdade de ação que mais cedo ou mais tarde acaba provocando o que estamos vendo: divisão interna, interesses demais se digladiando pelo mesmo butim, vaidades, ressentimentos e uma eventual peça fora do lugar que não aguenta o tranco e entrega tudo e todos. É o que os físicos – ou químicos, não sei – chamam de “entropia”: um processo de auto-aniquilação provocado pelo excesso de pressões internas, como a implosão de um organismo que, não suportando mais as dilatações de tamanho êxito, precisa se abrir e se purificar.

Nada muito diferente do que deve acontecer, mais dia menos dia, com o grupo político que conquistou o poder na Prefeitura de Natal, em mais um caso que tem todas as característica para dar origem a outra “entropia do atraso”. Dessas que ao implodir fazem vítimas para tudo quanto é lado.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Meu tio Ahmadinejad


O sujeito é feioso como o capeta, tem um nome impronunciável, padece de uma falta de charme a toda prova, vem de um parte do mundo onde as mulheres andam cobertas que nem almas penadas e ainda por cima, dizem as más línguas, tem na garagem do quintal um artefato quase pronto para detonar o mundo. É muita concentração de maldade por metro quadrado de uma pessoa só. Mas o pior mesmo é que, apesar de tão maligno e nefasto, o danado do - vamos lá, a gente consegue - ahmadinejad (a quem, por questões menos de simpatia do que de praticidade puramente lulista passarei a chamar de "camarada ahma" pelos próximos parágrafos) tem um quê daquele nosso tio que, ao contrário da família inteira, sempre insistiu em viver recluso no sítio da família que um dia foi até legalzinho mas ultimamente virou uma ruína só.

Repare nas fotos nos jornais e na internet: o camarada ahma tem ou não tem um ar de seridoense ermitão, daqueles que só dão as caras "na rua" quando é festa do padroeiro? E quando a gente fica sabendo que o indigitado nega o holocausto, aí é que a semelhança aumenta. Não por questões maiores de História com h maiúsculo, mas por mera coincidência com os hábitos e manias daqueles nossos tipos esquecidos pela família e pelo mundo lá num sitiozinho onde o diabo - ops - fez sua morada. Esse tipo de tio, de péssimo humor e pouquíssima paciência, é bem o tipo da pessoa que adora negar os eventos históricos que surpreendem a humanidade. Ou você não tem um tio esquisitão que jura de pés junto, até hoje, que essa história de homem na lua é lorota de uma tal de televisão?

O fato é que, de dois dias para cá, o "camarada ahma" tem sido demonizado de tal maneira e com tal intensidade que o efeito contrário é inevitável. Não é que a gente simpatize com o regime vigente no Irã - pobre Irã, se a gente lembrar do que vinha antes do atual regime aí é que a porca torce o rabo, como diz meu tio recluso e ermitão - nem que tenha predileção pelos fundamentalimos desse povo tão sem graça. É que, mesmo com todo o saco de maldades que eles carregam, andam levando tanta pedrada que dá pena. E pena, você sabe, gera simpatia - uma coisa leva à outra.

E tudo isso fica pior ainda quando a gente desconfia - com a desconfiança que herdamos daqueles tios que se isolaram lá longe nos grotões das serras - que o apedrejamento geral não se destina exatamente ao feio, sujo e malvado camarada Ahma, mas àquele outro cara, que se não parece com nossos tios arredios, também não deixa de ter certa semelhança com outros membros da família - como aquele nosso outro tio, simpaticão e boa-praça, embora grosso e analfabeto.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

No trampolim do tempo


Andei fazendo umas pesquisas para escrever o artigo desta semana do "Novo Jornal" - a coluna sai amanhã, mas antecipo aqui o tema - e quando vi estava era me divertindo com as mil e uma histórias da base aérea norte-americana instalada em Parnamirim durante a II Guerra Mundial - pois é, o tema é este, mas visto por uma ótica, digamos, mais atual. Enfim, a idéia era pescar informações sobre a vida natalense daqueles tempos para usar como subsídio no artigo, mas viciados em curiosidades são uma raça que não merece a menor consideração, vocês sabem. Como dizia, quando vi estava me divertindo com os detalhes da época, alguns dos quais usei no texto, outros tive que deixar de fora por questão de espaço.

Um exemplo é a história com agá minúsculo sobre como surgiu a hiperinflação de guerra nos tempos da dita cuja em Natal. Com a chegada daquele bando de ianques cheios dos dólares, era inevitável que os preços subissem qual foguete da ainda não existente Barreira do Inferno. Alta inflacionária ainda mais destacada quando a gente se lembra que a Natal daqueles tempos era quase uma aldeia, quando comparada à atual, com seus bem contadinhos 52 mil habitantes. Mas vamos à história da gênese dessa inflação deslumbrada, que, como disse, tive que deixar de fora do artigo: dizem que um soldado americano precisou comprar uma banana de um vendedor de rua - ele obviamente sem falar sequer um portunhol de terceira; o outro, coitado, mal falando português de salão. Então o americano teria, sabe-se lá como, dado um jeito de perguntar "quanto é a banana?"; ao que o vendedor de rua, apelando para linguagem universal dos dedões fazendo desenhos no ar - o mais básico dos dialetos de Dakar a Passa e Fica - levantou o indicador para cima, como a dizer "um". O americano não teve dúvida, meteu a mão no bolso e pagou a banada com um dolar - por baixo, cinco vezes o valor da mercadoria, no câmbio dos historiadores consultados. E foi assim que, da noite para o dia, blecautes incluídos, tudo em Natal passou a custar cinco vezes mais - desde que, claro, o interessado falasse aquela língua enrolada e imcompreensível.

Mas trouxe esse adendo ao artigo aqui para o Sopão com outro objetivo. Alguma coisa mais elevada do que essa piada economicamente incorreta. É que, inevitavelmente, esbarrei naquele célebre encontro dos presidentes do EUA e Brasil, Roosevelt e Getúlio, desfilando em jipe aberto em algum lugar entre a Cidade Alta e a Ribeira, em plena Natal temporariamente globalizada. E fiquei maturando: e se, por um desses artifícios caprichosos, tecnológicos e impossíveis da História com h maiúsculo, fosse possível às autoridades do mundo atual se teletransportar no tempo, como acontece em seriados de tevê? E se, por um artifício desses, Obama e Lula surgissem, como que por um milagre temporal, bem no lugar que Roosevelt e Vargas ocupavam no tal jipe?

O que pensariam natalenses e americanos daquela cena? Você se arriscaria a ir junto na máquina do tempo para tentar explicar à platéia quem eram aquelas pessoas, de onde vieram e como foram parar ali ("parar ali" é, note-se, uma expressão das mais ambíguas, que tanto quer dizer ali, no passado, quanto ali, nos cargos que eles ocupam no futuro, quer dizer, no presente)? Imagine o espanto dos brasileiros quando você afirmasse que, calma, também não é assim uma III Guerra Mundial - aquela dupla de caboclinhos no jipe eram apenas o presidente do Brasil e o presidente dos EUA. O que ia ter de gente indignada pelo fato de o presidente brasileiro ser aquele crioulo não tá escrito. Agora imagine o choque quando você disesse que o negão em questão não era o presidente do Brasil, mas o dos EUA. E que o outro, aquele com cara de auxiliar de borracharia, mas pelo menos branco, é que era o presidente do Brasil. Oh!

Pra gente ver do que a tal História é capaz, com seus caprichos e sua imprevisibilidade. Bom, para outras suposições, bem mais comezinhas, entre o que teria acontecido em Natal se a gente bagunçasse a História com base nos eventos que movimentaram "Parnamirim Field" nos anos da II Guerra, leia amanhã o artigo semanal no "Novo Jornal".

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Já começou a pancadaria


Mal foi exibido pela primeira vez, abrindo o Festival de Brasília, e já começou a previsível pancadaria da manada midiática no filme "Lula, o Filho do Brasil", que Luiz Carlos Barreto produziu e seu filho, Fábio Barreto, dirigiu. Vai ser um massacre, porque o filme se enquadra, coitadinho, perfeitamente no papel de um produto destinado sofrer todo tipo de reserva por parte das multidões elegantes e distintas, prontas para atirar pedras em qualquer coisa que venha do ex-sapo barbudo. Então, amigos (alô, Tarciano, espero mesmo estar falando "entre amigos"), preparem-se. Porque, pelo jeito, o filme - a que não assisti, como sempre serei o último - tem tudo para reforçar um a um os preconceitos de quem não suporta a figura de um Lula brasileirão na Presidência da República. E, da mesma maneira, apenas visto pelo ângulo oposto do espelho, tem tudo para martelar ainda mais as simpatias de que não vê nada de mal nisso de um brasileiro com cara de povo chegar ao topo do poder político - muito pelo contrário.

Mas toco no assunto porque acabo de ver, via links do Sopão, uma primeira e respeitável reação ao filme. Luiz Carlos Merten, o crítico de cinema de O Estado de São Paulo, está comentando no seu blogue as reações iniciais - previsivelmente marcadas pela pancadaria em coro e pelo preconceito mais cego. Leia, abaixo, o que diz Merten sobre o filme e seu primeiro impacto (para ler mais, e vale a pena ler mais, porque Merten se prolonga no assunto, pegue o link à direita; se estiver com defeito eventual, vá pelo link do jornal, também disponível):


"Fiquei hoje pela manhã em Brasília porque queria assistir ao debate de 'Lula - O Filho do Brasil'. Foi um debate travestido de entrevista coletiva, alguns jornalistas começaram querendo bater - o filme seria eleitoreiro, chapa branca etc e tal -, e eu terminei colocando minha colher na história. O filme já nasceu sob o signo da polêmica, inclusive das intenções, e só tem para se defender a si mesmo, suas qualidades. Sinto muito dizer - para quem esperava um ataque a Fábio Barreto, o mais detestado dos diretores brasileiros, graças a filmes como 'Jacobina' e 'Nossa Senhora do Caravaggio' -, mas 'Lula' pode não ser o filme dos meus sonhos e certamente não é nenhum '2 Filhos de Francisco', mas tem qualidades e a maior delas é a interpretação, como já disse. O que verdadeiramente faz a diferença é o ator que faz Lula, Rui Ricardo Dias. São três ou quatro, incluindo o bebê, e todos eles têm uma pegada muito forte. O garotinho é ótimo, na cena em que peita o pai; o adolescente tem um momento encantador, quando 'rouba' o beijo; e Rui, como já ousei escrever, é mais Lula do que o próprio. O verdadeiro continuismo não seria Dilma, mas Rui, o clone, para presidente. Um colega, na saída, brincou comigo. Estava todo mundo batendo, respeitosa e orquestradamente, quando eu desestabilizei o debate, elogiando o que me parece não apenas possível, mas necessário elogiar."

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Brasília além da política





Operários trabalham na reforma do Palácio do Planalto (sábado, 14/11/09)

O caos de Moretti


Nanni Moretti, vocês sabem, é aquele italiano sempre associado a Woody Allen - embora eu ache, francamente, que são duas praias tão diversas quanto Areia Preta e Santa Rita - que dirige e atua em filmes de um senso de humor entre agridoce e perplexo sobre as coisas do seu país. Chegou por essas bandas primeiro com uma delicada e deliciosa fábula urbana e mediterrânea chamada "Caro Díário". Depois explorou suas experiências paterno-cotidianos em "Aprile". Mais tarde realizou, com o mesmo espanto quieto que utiliza nas comédias, a tragédia "O Quarto do Filho". Ultimamente, deixou um pouco a família de lado e abriu os braços para bradar - mas sempre mansamente, como é de seu estilo - contra todos os facismos, incluindo os atuais, que se abatem sobre a política italiana. O filme, um grande filme do qual pouco se falou, é "O Crocodilo" - grande filme, reforço. Deve ter esquecido algum título, mas o espírito é esse. Porque, na verdade, o assunto aqui é outra produção, a mais recente, em que Moretti não dirige - só atua. Só... até parece.

O filme é "Caos Calmo" e há pouco tempo saiu em DVD. Pra começar, não parece haver expressão melhor para definir o cinema de Moretti - seja com ator, seja como diretor - do que o próprio nome desse filme. Daí talvez as semelhanças com Woody Allen. Esse parentesco também se dá na preferência pelo cenário urbano italiano que está para Moretti como Manhatan para Allen (estava, porque de uns tempos pra cá o americano achou de sair filmando pelo mundo afora, embora a gente tenha sempre a impressão de que não passou da esquina). Como se dá no estudo leve e autoirônico do relacionamento entre pequenos grupos de pessoas. Mas as semelhanças acabam num ponto: enquanto o cinema de Allen é docemente triste e largamento cético, o de Moretti trai alegremente sua crença na superação e um tantinho assim a mais de fé no ser humano. Sem piadinhas nem trodadilhos.

Essa diferença é um dos pontos mais marcantes de "Caos Calmo", filme que, embora não dirigido por Moretti, parece conter o dna do seu cinema a cada fotograma. Ele é um sujeito que, meio catatonizado pela morte da mulher, resolve passar os dias, daí pra frente, diante da escola da filha pequena, esperando a hora de levar a criança de volta para casa. O Moretti deste filme é uma espécie de empresário do ramo do entretenimento que, efetivamente, só para justificar as lógicas desta ficção, pode se dar ao luxo de, traumatizado por um evento, largar o tragalho e se postar o dia inteiro diante de uma escola.

Mas o fato é que tal lugar se torna o ponto de equilíbrio para o personagem. Repare bem: quando algum desses eventos dramáticos - toc toc toc - ocorre na vida da gente, parece que viramos algo assim como uma agulha de bússola enlouquecida, agitando-se caotimente do sul ao norte, inquieta, sem parar, sem achar um ponto de equilíbrio. E a gente sofre para recuperar a quietude mental novamente - para achar esse ponto de equilíbrio tantas vezes físico que, para o Moretti do filme, é o banco da praça em frente à escola da filha. E lá ele fica, estabelendo contatos mínimos (mas ricos) com uma moça que passa com seu cachorro grande, uma mãe com seu filho excepcional, o moço do restaurante ali perto. O filme fala disso, mostra isso: o quanto é importante zerar a vida quando aqueles eventos ocorrem, criando um cenário novo e limpo, sem sinais do que era antes, para que o ser humano vá se recompondo aos poucos, sem balbúrdia, sem poluição de sentimentos e impressões. Moretti ora se distrai e se entedia com as conversas das mães dos outros alunos, ora recupera a concentração fazendo listas mentais aparentemente absurdas - como "as companhias aéreas pelas quais já viajei". De um jeito e de outro, são finos cordões onde se sustentar para conseguir caminhar normalmente outra vez. Termina que, lá naquele banco, ele acaba tendo despachos informais com sócios, discutindo uma fusão empresarial que corre como pano de fundo da história, ouvindo as confiências de um amigo posto sob suspeita de roubo, aconselhando em vão a cunhada intempestiva. Quer dizer: o grande sofredor acaba, lá no seu banco de praça, consolando os demais personagens que não passaram pelo trauma que o abateu, mas igualmente têm suas pequenas dificuldades a pesar nas costas.

"Caos Calmo" é um filme assim, bastante terapêutico - e é por isso que acabo me prendendo muito mais ao conteúdo do que vai na tela do que às estratégias formais que sustentam a narrativa visual. Sei que a categoria "filme terapêutico" contraria o mandamento das artes segundo o qual o cinema, a literatura, a pintura e outras formas de manifestação humanas neste terreno devem ser praticadas sobretudo para incomodar e interrogar. Jamais para qualquer espécie de consolação. Mas não me conformo, que o consolo, a morfina eventual também faz parte do processo humano, essa experiência tão rica e tão pouco restritiva, de fato. E ademais os filmes têm esse segundo poder subjacente que é mexer com as entranhas da gente enquanto imaginamos que estamos a lidar apenas com material de natureza puramente estética.

E por tudo isso que este "Caos Calmo", com sua febre de temperatura ambiente, funciona como um emplastro audio-visual que a gente pode grudar nas fissuras da alma sujeita às intempéries do imponderável.

*A propósito, passe agora para a "Hamaca" e assista a trechos de "Caos Calmo" e outros filmes de/com Nanni Moretti na barra de amostras de videos do Youtube.

sábado, 14 de novembro de 2009

Albimar, Ana e eu


Na próxima terça-feira, 17 de novembro, começa a circular em Natal um novo jornal, cujo nome é este mesmo, "Novo Jornal", e que, por acaso, será também uma nova oportunidade para os leitores deste blogue passaren alguns minutos do seu dia na minha, estimo, agradável companhia. Acontece que o "Novo Jornal" terá um espaço diário, imagino que nos últimos cadernos, onde cinco jornalistas poderão discorrer sobre os temas que julguem valer a pena, num revezamento com dias fixos. Um deles serei eu, às terças-feiras. E o negócio já começa na base da maior responsabilidade, porque, se você leram com atenção o início deste texto, notaram que a primeira edição do jornal a ir às bancas é justamente a de uma terça-feira. De maneira que, para o bem ou para o mal, serei o primeiro.

Estou meio ansioso, mas contente e animado. Sobretudo, estou orgulhoso. E o motivo desta postagem, além de naturalmente avisar ao pessoal que vou estar cometendo textos por lá, é explicar onde o orgulho entra nessa história. Acontece que, entre os seis titulares deste espaço, que vai se chamar justamente "o jornal de fulano" (e onde está fulano é só cravar o nome do titular do dia) estão duas figuras entre as quais eu nem em sonho imaginei estar assim, lado a lado, dividindo a mesma tarefa, o mesmo espaço: Albimar Furtado, o "Branco", e Ana Concentino. Os dois foram meus professores na Universidade Federal do Rio Grande do Norte quando eu sequer imaginava que poderia trabalhar num jornal diário. Coincidentemente, os dois davam aulas juntos - sim, os dois professores com a mesma turma, na mais emblemática disciplina deste curso hoje tão desvalorizado, e que se chamava, quem é do ramo vai lembrar com saudade, TPDJ - ou Ténica de Produção em Jornalismo (esqueci a que o "D" se referia). Era a matéria que nos transformava efetivamente em repórteres - a parte mais técnica do curso, o aprendizado mais direto, uma espécie de semente em volta da qual vinha a epistemiologia toda, tão igualmente necessária como fica claro hoje em dia.

Ana Cocentino era uma professora dedicada e estimulante, do tipo que dizia pra gente ao final da aula: "Agora vamos lá, pessoal, ler muito jornal, ver muito noticiário de televisão, muita revista, muita reportagem." E Albimar, o "Branco" como a gente era doido para ter o direito de chamá-lo (era o apelido dele nas redações onde a gente ainda não tinha passe para estar), fazia mais: sacava quem no meio da turma tinha realmente jeito para a coisa e dava um jeito de a gente ir parar no lugar com o qual a gente mais sonhava - a redação de um jornal diário, pra valer. Foi assim que saí do jornal "Dois Pontos" (um antigo semanário, e como custa classificá-lo assim) e fui para a reportagem da "Tribuna do Norte", trabalhar sob o comando de Albimar, o editor-geral do jornal. Com ele, aprendi, na base do enxerido que ficava olhando de longe como é que os caras trabalhavam, como valorizar as fotos da primeira página: não esqueço da foto dupla de Rosa, acusada de mandar matar o marido, com duas expressões durante e ao final de seu júri popular; fotos escolhidas e cotejadas por Albimar. Com ele, tive o prazer de me sentir valorizado ao cobrir, absolutamente novato, o incêndio que destruiu uma sapataria na calma noite provinciada da Natal daqueles tempos - Albimar esperando o texto para colocar na primeira página que ainda estava fechando na última hora. Como o "Branco", entendi instintivamente os caminhos que a busca por informações nos leva a percorrer, quando tentava de toda maneira, num outro plantão noturno, arrancar dados sobre uma senhora que ganhara na loteria e em torno da qual, numa casa do Alecrim, uma corrente de filhos marmanjos montara um muro humano de proteção (mas, na base da conversa fiada, deixaram escapar o suficiente para a matéria publicada na capa da Tribuna pelo mesmo Albimar confiante).

E eis que agora, tantos caminhos depois, várias redações deixadas para trás, até um certo desencanto com os rumos que tomou esta prática e seus praticantes, surge o convite para participar desse espaço no novo jornal. E, por fim, vem a lista com os "colegas", onde estão Albimar e Ana, meus professores. É como fechar um ciclo, com um discreto sorriso de satisfação no rosto. Agradeço ao amigo Adriano de Sousa, que foi quem teve a temerária idéia de me botar no meio desse pessoal - mas só ele mesmo, um outro professor, embora informal, de um outro momento desta minha vida de escrevinhador de jornal e noticiário de televisão, para fazer isso por mim. Só espero estar à altura, deles e de vocês que porventura lêem o Sopão e igualmente porventura queiram um pouco mais: a idéia é enxergar o dia-a-dia natalense sob a ótica de quem não está lá o tempo todo - ver de longe, com distanciamento mas, já acrescento, com um pouco de doçura, que a vida não está fácil e a gente não precisa tornar as coisas ainda mais penosas. Para vocês terem uma idéia, o primeiro texto fala do meu amor por Natal - que, imagino e digo lá, pode ser que tenha muito mais a ver com o seu, que mora na cidade, do que a gente imagina à primeira leitura.

Espero, mais uma vez, a companhia muito estimada de vocês.

HAMACA a mil por hora

Refeita e incrementada, a nova sede da Hamaca merece mais algumas chamadas nos domínios do Sopão. Para dizer que, acessando a nova versão do blogue, você terá atalhos para sites que vão tornar ainda mais aprazível a leitura das postagens que pretendem - é uma promessa, faça figa que eu aqui também estou firme - se tornar diários - quem sabe até com várias edições ao dia.

Indo agora à Hamaca (LINK na lista ao lado), você vai ler uma série de postagens sobre um ano de casa "nova", com um balanço do que uma mudança de moradia pode fazer pela sua vida - ou não. Assunto da maior relevância para a ordem mundial das coisas, que fique claro.

Também na nova Hamaca, uma lista com os dez últimos livros que o blogueiro teve a sabedoria de ler ou a imprudência de se aproximar, conforme a aceitação/rejeição dos títulos listados. Para você imitar, escolher, descartar ou achar simplesmente um absurdo.

Ainda no cardápio fixo da nova Hamaca, uma série de links para rádios e tevês on line (por enquanto, três rádios e uma tevê, que o négócio precisa ser minimamente selecionado, não é assim no oba-oba não senhor). Entre os indicados, a rádio que é gerada aqui do bairro onde a Hamaca é produzida.

E para completar, no mais manjado dos recursos à disposição dos blogueiros amadores, aquele espaço com mini-exibições de vídeos do Youtube, selecionados especialmente para o seu bom gosto. O primeiro traz Elis Regina, a melhor cantora do mundo, só isso. Revezando, Maria Gadu - que é pra atualizar um pouco - e Chat Baker, que além de bom também pega muito bem. Quem conhece o recurso sabe que, enquanto lê, você pode ver/ouvir o video sugerido.

É isso aí: a nova Hamaca, apressada e meio irresponsável, tá dando um banho no Sopão, que precisa de tempo para que se consolidem os textos que ele tem pra oferecer, coitado. Mas ele também há de passar por mudanças de final de ano, vamos aguardar. Por hora, à Hamaca, todo dia - depois de passar pelo Sopão, sempre.

http://www.hamacadepoti.blogspot.com/

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A nova Hamaca

A Hamaca mudou de endereço, abrigando-se agora no mesmo telhado sob o qual já se encontra o Sopão. A página anterior será invalidada e os motivos estão explicados na postagem inaugural da nova Hamaca - que, a rigor, vai continuar balançando ligeira do mesmo jeito, quiçá com atualizações mais frequentes, conforme a rotina e o humor do escrevinhador. Convido os amigos a conferirem - e a mudar seus endereços padronizados, também, é claro. (no link ao lado, a alteração será feita já).

http://www.hamacadepoti.blogspot.com/

Entreblogues - para ler o "Caótico"

Acrescento mais um pernambucano, além de Samarone Lima, na lista dos blogues humildemente recomendados pelo "Sopão". É o "Caótico", de Inácio França, que você lê com a agilidade, a destreza e o espírito brincalhão que têm as pedras chatas arremessadas de leve sobre uma lagoa ou um açude. Traduzindo: triscando na água, parágrafo por parágrafo, postagem sobre postagem, meio na base do sem-parar, rindo por dentro, com o prazer fortuito de dividir no silêncio da leitura essas impressões tão óbvias e no entanto tão vagas que a gente tem, sobretudo sobre os livros - que são a matéria primordial do blogueiro.

Cheguei ao "Caótico" empurrado pelas dicas do "Estuário" e lá encontrei Inácio França entusiasmado com alguns livros que também me haviam chamado a atenção, como as peripécias criadas por Georges Simenon, pra ficar só num exemplo. Uma certa perplexidade na maneira de enxergar a forma como atualmente é praticado esse ofício que é de tantos de nós - o jornalismo - também é outro ponto em comum que surge nos textos do "Caótico". Enfim, segue o trecho regulamentar (de um texto sobre o livro "Hiroxima"), como é de praxe nas postagens da impressionante série "Entreblogues" (e o link já está ali na lista ao lado):

"A leitura de Hiroshima leva a sentir o peso da responsabilidade que caí sobre um repórter ao escutar relatos como aqueles, transbordantes de dor e sofrimento inimagináveis. Quem se dispõe a escutar, precisa estar consciente de que assume o compromisso de traduzir, de passar adiante, o que ouviu, viu e o que as pessoas sentiram. E também o que sentiu.
E Hersey sofreu, não tenho dúvidas disso. Se não sofreu, porque ele voltaria lá, quarenta anos depois, em plena década de 80, para descobrir qual o destino das seis vidas que desnudou em 1946?
Ele sofreu e faz sofrer quem de dispõe a ler seu texto, leve e fácil, capaz de contar histórias duras e difíceis.
Além da linguagem clara, Hiroshima contém outro recurso que prova que Hersey era bom todo. Os seis relatos são apresentados em fragmentos intercalados. Ora você está lendo o testemunho do médico Fuji, em seguida é o jesuíta Klinsorge, depois o pastor Tanimoto e por aí segue, até Fuji entrar em cena novamente. Esse recurso garante a sensação de simultaneidade, de que as coisas aconteceram ao mesmo tempo, como realmente foi.
Na verdade, o que Hersey fez foi Jornalismo. Não entendo a razão de juntar o adjetivo “literário”. Minha hipótese é que criaram esse rótulo para que continuemos a chamar de “jornalismo” as baboseiras publicadas nas revistas, nos jornais e transmitidas pelos telejornais."

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Seu Tarantino e seus bastardos


A bem da verdade, não sei se investi mais tempo lendo textos e mais textos sobre "Bastardos Inglórios", o novo e celebradíssimo Tarantino, ou assistindo ao filme propriamente dito. A prosopopéia antecipatória dos filmes hoje em dia é um negócio de tal magnitude que o pobre espectador ansioso, coitado, já entra na sala do cinema desconfiado, olhando para os lados, como se estivesse ingressando num lugar para interrogatórios policiais, igualmente escuro, povoado por sombras suspeitas, de onde ele só sairá depois de admitir, um "sim" após o outro, que o filme exibido confirmou uma após outra cada uma das sentenças que os mil escribas dos jornais, revista e internet cometeram empolgados antes do lançamento.

É claro que o indigitado espectador não é obrigado a ler o catatau de comentários, críticas, reportagens, avaliações, oba-obas que antecedem o dito lançamento. Mas quem respira sabe que hoje em dia é impossível ficar indiferente ao cobertor multimídia que cerca a vida humana, tanto quanto é impossível a uma pessoa que esquia no gelo fazer de conta que não está vendo a avalanche iminente. De maneira que não resta alternativa a não ser se arriscar, comprar o ingresso com cuidado para não ser espionado, entrar na sala sorrateiramente, escolher um lugar pouco visado, fechar - digo, abrir - os olhos e, seja o que Deus quiser. Se você olhar de relance, discretamente para não ser visto, vai notar, como eu percebi, que a sala de cinema está cheia de pessoas que normalmente não passariam por ali: uma platéia múltipla, que vai de adolescentes a pessoas de meia idade, casais, solteiros, barulhentos e silenciosos, todo tipo de gente, como se fosse a família inteira diante da televisão na final da Copa do mundo. Tarantino tem esse poder, de atrair a média do público com há muito não se via - desde os primeiros Spielberg, acho.

Mas não divague muito, porque o perigo pode estar na poltrona ao lado - um daqueles críticos que consideram Tarantino - talvez justamente, mas não é esta a questão - a mais perfeita tradução da época atual, porque ele sabe como ninguém conjugar em imagens os restos simbólicos que as épocas passadas deixaram, e quanto mais vulgar for essa herança, tanto melhor. Se não for absolutamente pop, não serve para estar vivo. Olhaí a divagação lhe traindo de novo: se continuar assim, ao final da sessão você não vai conseguir, por mais altos que sejam os gritos de quem lhe interroga, admitir que gostou do filme, que é realmente uma obra-prima da história do cinema e por aí afora. Portanto, aprume-se, comporte-se, alinhe-se com as novas diretrizes da cultura atual.

Ou por outra, relaxe. Porque ali pelos dez primeiros minutos de projeção, você já viu tudo: vai ser moleza passar no interrogatório. "Bastardos Inglórios" é tudo aquilo que os especialistas disseram, apenas com um pouco menos de empolgação. Se não, vira empulhação. É divertido, tenso, paródico e sério ao mesmo tempo, dependendo do momento - e é esta mistura e a imprevisibilidade com que ela é feita que confere sabor ao filme. A trilha sonora desta vez é explicitamente referente, mas eu fico pensando é se grande parte da platéia não está apreciando aquilo pelo fato de estar vendo e ouvindo tais ilustrações pela primeira vez - pela idade de grande parte dela, não há como ter visto "Era uma vez no Oeste", "Por um punhado de dólares" e outros títulos num cimema de verdade (em VHS e DVD, sim, mas o impacto é completamente menor). Então, o que parece satisfação intelectualmente superior de ver citações inteligentes pode ser na verdade o deslumbramento da primeira vez - não é coisa menor, que fique claro, mas é preciso colocar cada coisa em seu lugar.

Hum, tem um moço de costeletas anos setenta e brinco na ponta do nariz olhando atravessado pra mim enquanto eu faço essas considerações mentais. Achei que não estava dando a menor bandeira. Melhor eu relaxar de novo. O que não é difícil, é fácil como tirar bala soft de menino do seriado Anos Incríveis. Porque Tarantino nos dá um banho de nostalgia pop - sim, por que não? de novo não é esta a questão - que leva a gente de volta para o velho cinema poeira do interior, num tempo em que o ingresso não custava 18 pratas, nem se precisava devorar sacos e sacos de pipoca pagos pelos olhos da cara - não, a gente prezava pelos olhos, que eram essenciais para ver aquele delicioso lixo de matinês, com duelos, assobios e supercloses. "Bastardos Inglorios", se é que você ainda não viu ou não leu, deixa a gente à vontade para vestir calças curtas mesmo tendo grande parte dos cabelos brancos; nos libera sem censura para fruir daquilo que chamamos de "filmes" - algo mais amplo do que o que chamamos "cinema". Porque a segunda palavra vem com uma acepção que comporta um exercício artístico ambicioso (e necessário), enquanto a primeira é uma sala maior, onde cabem todos os gêneros, com direito a sobrevida em forma de seriados televisivos e figurinhas para colar no álbum.

Acho que com essa última desculpa vou me safar do interrogatório. Qualquer coisa, peço para dar uma olhadinha na sala de projeção - um velho sonho, jamais realizado. Sei que não vai ser como aquela que aparece no próprio filme, tampouco será como a do velho, saudoso e querido cine Rex da minha cidade primeira. Certamente será um lugar high-tec e digitalizado, sem poeirinha pelos cantos e ratos circulando à vontade, mas ainda assim seria a melhor maneira de encerrar a sessão de um filme como "Bastardo Inglorios". Pensando bem, além de ser uma bela jogada de marketing, seria um atrativo a mais para o público: oferecer, ao final de todas as sessões, uma visitinha à sala de projeção. Moderno ou antigo, lugar bem apropriado para aquele interrogatoriozinho do qual ninguém escapa hoje dia quando abre a boca para dizer que está pensando em ir ao cinema.

Portanto, depois não diga que não avisei: todo cuidado é pouco com seu Tarantino e os filhos bastardos que ele espalha por aí, em cinemas, bares e redações.

Leia na HAMACA


"Sem falar no capricho maior dos clássicos, que é o de nos desafiar nas primeiras páginas, tirando a mente do leitor do registro coloquial em vigor e arrastando-o para outros domínios, de uma escrita congelada pela qualidade mas ainda assim dificultada pela prosódia absolutamente diferenciada. É como um muro: o leitor do clássico tem que saber escalar esse paredão antigo e compacto, achar as cavidades quase imperceptíveis numa superfície alisada pela ação do tempo literário, agarrar-se aqui e ali, subir mais um pouco, chegar o topo e, enfim, lá pela página cem, passar para o outro lado. Pronto: aí ele já estará em outro tipo de território, perfeitamente aclimatado. É quando vem o prazer da fruição que apaga as referências do computador ao lado, da tevê ligada, da vida multimídia, do compromisso esperando no tampão da escrivaninha."

Leia o texto completo ("Os caprichos dos clássicos"), em http://www.hamaca.zip.net/

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Jacob Gorender, a esquerda respeitada

O Partido Comunista Brasileiro, o velho "partidão", tinha adeptos seus infiltrados na Força Aérea Brasileira dispostos a bombardear, em 31 de março de 1964, a brigada militar comandada pelo general Mourão que descia de Minas em direção ao Rio de Janeiro para o golpe sem sangue que derrubou o governo constitucional de Jango. Mas Luiz Carlos Prestes disse não. Prestes, por sinal, era um brilhante militar mas um péssimo político. E a luta armada que marcou a atuação de grande parte da esquerda política brasileira quando a ditatura militar cortou praticamente todas as formas de atuação política no país foi um erro, sim - mas foi digna e, de alguma maneira, engrandece a trajetória dessa mesma esquerda perplexa e perdida em momento tão difícil da história da (falta de) democracia no Brasil.

Essas opiniões não são minhas - embora eu concorde com grande parte delas. As informações, claro, também não. Quem diz tudo isso é o historiador Jacob Gorender, autor de um referencial quando se trata da recuperação do que aconteceu nos anos escuros da noite ditatorial que se abateu sobre o país por longos vinte anos - o livro "Combate nas Trevas". Pois bem: Gorender, antes de ser historiador, foi um militante do velho PCB e é com a vasta experiência e a ampla reflexão de quem passou por essas duas condições que ele avalia os erros e acertos da esquerda brasileira na história do Brasil. O testemunho, veemente e instigante, está no documentário "Jacob Gorender - A Esquerda Revelada", realizado pela TV Câmara, com direção da jornalista Gloria Varela, em exibição neste canal legislativo de televisão.

Você não precisa ter antena parabólica ou tv a cabo para assistir ao doc sobre Gorender na TV Câmara. O programa está disponível, em boa definição, na página da tevê na internet (http://www.tv.camara.gov.br/). Além de assistir a essa reflexão lúcida e ao mesmo tempo apaixonada sobre o envolvimento de um homem com causas que efetivamente fazem um país, ainda que passíveis de enganos e desacertos, você ainda poderá baixar o material para o seu próprio computador - e até copiar e usar em exibições para outros grupos de pessoas, nas escolas, onde quiser. Recentemente, a gente assiste a uma espécie de cínica reavaliação sobre a atuação da esquerda armada no Brasil da ditadura, com uma condenação peremptória, apressada e interesseira que não ajuda nem um pouquinho a levar às novas gerações a compreensão preventiva sobre o que aconteceu naquela longa noite. O documentário da TV Câmara ajuda a combater esse tipo de precipitação desonesta - e também a manter de cabeça erguida a consciência de quem não confunde história com política partidária imediatista, como vem acontecendo tão frequentemente.