sábado, 27 de setembro de 2008

Os Manos e Caetano


Nossa fome de uma novidade menos média por vezes é atendida. Às vezes por uma criatura nova na curva das estradas das sensibilidades das artes, dos mercados, dos segundos cadernos hoje tão viciados mais que ainda assim estão lá, estão cá. Outras, pela revalidação de um homem velho que deixa vida e morte para trás. Aconteceu este final de semana de esbarrar em duas dessas figuras que, como sangue novo nas veias dos aparelhos médicos que mantêm vivo um enfermo em estado terminal de tédio, me deram um delicioso choque de juventude, inconformismo, reavaliação do que está acima, embaixo, em volta.

Como o atraso regulamentar, eis que este que vos filosofa descobriu, por acaso, a música do Charles Brown Jr., graça a um CD estilo formato mais barato impossível à venda no mesmo supermercado onde o mesmo vão blogueiro-filósofo abastecia a dispensa caseira. Era um daqueles indefectíveis acústicos MTV – mas, no meu atraso regulamentar, eu ainda sou capaz de gostar disso e de outras coisas mais que fariam o meu enlevado leitor sentir-se levemente enjoado; e só por isso não vou citar (outros) nomes.
Ocorre que o material auditivo detonado quando arremessei a bolacha de prata no tocador de plays foi pura energia de iniciantes, aquela intersecção de vigor, originalidade, ousadia e sensibilidade artística que tanta falta faz aos veteranos precocemente enriquecidos. Rejane que, matreira no canto dela, manja muito mais dessas novidades do que eu (eu, este conservador que smpre faz o mesmíssimo caminho de casa para o trabalho), me disse que os rapazes de Santos já passaram da fase mais criativa. Tá bom, mas pra mim, meus ouvidos preguiçosos e moucos, até ontem eles praticamente nem havia estreado em disco.

De maneira que me extasiei como há tempos não acontecia ouvindo letras de frases disparadas como discursos em forma de balas do bem (aquelas que ferem para extirpar tantos vírus), em balanço de instrumentos livres de formatações mais quadradas (aqueles que admitem e estimulam os comentários instrumentais mais sutis em meio à barulheira mais cerrada), na voz de um moço que, eu sei, uma coisa não parece ter nada a ver com a outra, mas me lembrou o velho Mick Jagger pela ginga, por um certo escracho cantado, por uma satisfação (juro que a palavra aqui apareceu por acaso) em verbalizar aquelas idéias necessariamente pouco lapidadas que estavam no ar daquela maneira, com aquela audácia vocal e ao mesmo tempo aquela falta de preocupação em fazer o resultado soar tão perfeitamente audível quando a impressão que se quer causar.

A outra novidade do fim de semana veio ao som do velho Caetano Veloso, que não decepciona esse fã ensimesmado. Bastou eu sapecar no tocador de plays o DVD com a gravação do show originário do disco “Cê” para perceber que, para além da performance despojada tão em moda (vide Los Hermanos), existe ali uma entrega e uma verdade juvenil que há muito não aparecia nos shows do sessentão baiano. Ver Caetano e aqueles três meninos descarnarem e reconstituírem “Fora de Ordem” do jeito que eles fizeram lá é mais ou menos como essas celebrações tão comuns no mundo médio do brasileiro cristão, que “renova” casamentos de cinqüenta anos de duração (se não ficou claro, isso foi um elogio entusiasmado). E o que dizer da recuperação – e sobretudo do rejuvenescimento, incrível rejuvenescimento – de faixas do disco “Transa”, aquele que, na verdade, a gente nunca deixou de escutar (não é mesmo Augusto Lula? ). Nem é preciso lembrar da reconstituição no show das músicas de “Cê”, mas é necessário sim terminar isso aqui dizendo que, pagas as entradas, agora terei de desembolsar – mas o farei feliz – um bolo de reais a mais na compra do CD com a gravação do show, disquinho que eu, este ouvinte errático e desconfiado das novidades, até ontem vinha desprezando não solenemente como diz o clichê, mas, digamos, casualmente.

Mea culpa: não o farei mais, vou comprar o disco e desde já o recomendo aos amigos (como se não fosse o último a descobrir o seu valor, mas deixa pra lá).
Viva os Manos e viva a música de Caetano.

Linda Baby veio me visitar


Linda baby tarda, mas não falha. Desta vez, nem demorou. Chegou ontem à noite e me encontrou descansando da trabalheira da semana no sofá da sala, meia luz interior, azulão de chuva e bem vindos relâmpagos lá fora. Linda Baby entrou sem fazer barulho, caminhou pisando mansinho no chão frio e, me vendo recostado e quase adormecido, naquele estágio entre a vigília precária e o sono desaba cabeça, soprou levemente em meu ouvido. “Essa é uma terra de um Deus mar, volte sempre aqui.”

Tão bom, com um sabor de dezembros que faria milionária a indústria alimentícia, tais palavras no meu cangote anunciaram a chegada daquele surto anual que invariavelmente me acomete por esses setembros com sabores antecipados de outubros. É a velha e boa saudade daquela Natal pretérita que deve assaltar todos os natalenses residentes quando das primeiras chuvas do caju. Aqui, distante mas nem tanto, ela me chega com a primeira boa, generosa, cheia e sonora chuva que encerra a seca brasiliense. E foi ontem que tais fatos se deram, razão pela qual o dia 26 de setembro ganhou um xis especial no calendário de mi vida em 2008.
Dois fatos acachapantes, rotundos e resplandescentes para demarcar o que o dia a dia apaga com sua borracha viciada, comum e automática. A chegada da tão esperada primeira chuva brasiliense de verdade que em questão de dias terá lavado da paisagem todas as folhas secas que nossos olhos foram obrigados a engolir sem saliva nas últimas semanas. E a chegada, não menos festejada embora mais agreste e sentimental, da garota Linda Baby, aquela cidade menina feita canção com nome pop de mulher, presente na composição de Pedro Mendes.
“Isso é Natal, ninguém se dá muito mal como dizem pessoas quase sem se sentir.” Será que ainda é assim – e depois do próximo domingo, ainda será?

Fique aqui comigo, Linda Baby. Mas se precisar sair, volte logo. Que seja só o tempo de votar.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Enquanto a chuva não vem

Período propício para esperar a primeira grande manifestação da estação chuvosa na cidade das folhas secas. Por enquanto, o sol ainda queima, a seca ainda pulsa e só os ventos desorientados anunciam a mudança urbano-climática.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Vou te contar...


Neste ano de muitas comemorações pelo aniversário redondo da bossa nova, volta aquela pergunta a esta altura tão retórica quanto vazia: onde você estava, o que fazia e o que pensava do mundo quando ouviu pela primeira vez, no rádio, naturalmente (ou na difusora da praça da sua cidadezinha!), João Gilberto cantando "Chega de Saudade".

Chega dessa pergunta, não é não? Ou então chega dessa resposta, porque dizer onde se estava, o que se fazia e o que se pensava do mundo quando se ouviu pela primeira vez João Gilberto cantando "Chega de Saudade" virou um item indispensável no currículo prafrentex de tudo quanto é gente que quer aparentar modernidade perene.

Pois eu vou correr o risco. Mas, só pra contrariar, revelarei - o que também não será novidade se você contar que estou com 42, embora com aquela cara de uma década a mais - que não era "Chega de Saudade" a primeira canção que escutei na primeira vez em que ouvi João Gilberto. Os tempos eram outros, o local da audição não tinha nada a ver com o calçadão de Ipanema, e a canção chegou aos meus ouvidos por puro acaso. Doce acaso, devo acrescentar só para manter um pouco mais esse falso suspense.

Foi em 1980, no sertão do Seridó, e a voz do homem chegou a bordo dos sulcos de uma coletânea em vinil. Chamava-se "Disco de Ouro" e era um lançamento dos mais oportunistas. Trazia os sucessos do momento editados pela mesma gravadora - e alguns nem tão sucesso assim, mas afinal era preciso vender o peixe da velha Polydor (lembra?). Abriu com Baby Consuelo cantando "Menino do Rio", mas lá pras tantas vinha aquela deliciosa estranheza que era Elis Regina cantando "Altos e Baixos". Que desconcertante antimelodia percorria a voz da nossa maior cantora, naquele Sueli Costa ("Altos e Baixos" é Sueli Costa, não é? Se não for, tinha tudo pra ser) lancinante como dor de dente entorpecida com uísque. Também tinha Belchior na marcha paranóica "Medo de Avião", canção de êxtase disfarçada de temor.

E, ali no meio de campo, como todas as outras violentamente cortada antes da hora para que coubessem mais músicas no mesmo disco, "Wave", com a assombrosa mansidão de João. Como eu ouvi aquilo sem saber quem era João, sua fama, suas contribuições para a música brasileira, sua técnica, sua emoção e a poesia afirmativa e renovadora do seu canto e do seu violão. Eu, moço, ouvia João da maneira mais bruta - direta, sem comentários, sem indicações de amigos, sem um relógio histórico-musical que recomendasse e legitimasse aquela maneira de fazer música.

Sou grato ao acaso por aquela ignorância. Nunca mais me aconteceu coisa igual. Nem "Chega de Saudade", quando enfim fui ouvir, em data que não lembro e momento impreciso, teve mais o mesmo impacto. Vou te contar: meu "Chega de Saudade" sempre foi, na verdade, "Wave" - que os olhos já não podem ver. Coisas que só o coração faz entender.

Ela não mora mais aqui


Fim de semana, a caminho de algum lugar, o rádio do carro ligado emite a notícia: a Justiça de Brasília aceitou o pedido de falência dos proprietários da Discoteca 2001, que vem a ser a mais tradicional loja de discos de Brasília. A notícia informa ainda que a primeira loja foi aberta em 1976, no que depois se tornaria uma rede de sobrevivência valente, se você considerar que, por exemplo, "A Modinha", fechou bem, mas bem antes mesmo. Lojas de discos são uma das muitas caras de uma cidade. Se elas estão sumindo, se elas já padeceram, viraram relíquias de outras eras, levaram com elas parte do espírito do lugar a que tanto serviram.

Então: "Discoteca 2001" era a grande cadeia loja de discos de Brasília, como "A Modinha" era a maior rede de lojas de discos no Nordeste brasileiro. Mas "A Modinha", sem a qual é impossível construir qualquer tipo de evocação da rua Princesa Isabel, em Natal, cerrou as portas, como se dizia, muito antes. Corriam ainda os anos 90 e nós, consumidores, não estávamos ainda tão bestificados com as facilidades do CD e suas cópias. Não deu tempo nem de os gerentes instalarem aqueles aparelhos pela loja que permitem, mediante a checagem de um código de barras, ouvir trechos das faixas dos CDs, como acontece na Fnac ou na Livraria Cultura. "A Modinha" foi radical e orgulhosa frente ao que o futuro anunciava, embora ainda discretamente, naquele momento: fechou, e pronto. Trancou-se na sua era de vinis suculentos, no seu trono de capas grandes, agulhas finas e lançamentos retumbantes.

A "Discoteca 2001" bem que tentou bancar o brotinho, fazer-se moderninha e saltitante ante a invasão do download: abriu-se para a venda de DVDs, com vastas prateleiras e ofertas imperfeitas, enfeitou-se com o reluzir sofisticado de instrumentos musicais, desistiu dos shoppings numa última tentativa de se garantir com a antiga loja de rua da Asa Norte mas não deu. Era poderosa na era de poder do vinil, foi descolada como foram as primeiras fornadas dos vinis, fez-se multimídia com o advento do DVD, mas afinal nada disso adiantou e a "2001" teve o mesmo fim de tantas outras, pequenas, recônditas, anônimas lojinhas que pelo país afora levaram música, informação e cultura industrial para ouvintes menos ou mais afortunados.

Nesta lista, inclui-se obrigatoriamente a tão pequena quanto célebre seção de discos do "Foto Seridó", em Parelhas, onde os tais menos afortunados também podiam, naturalmente, resolver a falta de dinheiro para comprar um ou dois discos inteiros usando a fartura das doze faixas que cabiam numa fita K7. As coletâneas do possível. Hoje, quem diria, há fartura de CDs e falta de lojas especializadas onde sejam vendidos. Caprichos daquele senhor tão bonito de que falava Caetano Veloso ("tempo, tempo").

Caderno de Saramago


Hoje, num computador perto de você, uma estréia imperdível. É o blogue do escritor José Saramago que, como tantos outros blogues - e deve haver alguma lei invisível regendo esse tipo de suposta coincidência - começa seu bloco de notas virtuais com um texto sobre a cidade que mais o identifica e mais o fascina. Saramago recorre um antigo texto que escreveu sobre a capital portuguesa e o republica à guisa de inauguração de seu blogue. Pra abrir o apetite literário, segue um trecho do texto inaugural. E para facilitar a sua vida e a minha, ao lado, o link para esse novidade tão especial na blogosfera que nos ajuda a respirar melhor os ares do planeta.

"Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo. Esse filme de Lisboa, comprimindo o tempo e expandindo o espaço, seria a memória perfeita da cidade."

E o link: http://blog.josesaramago.org/por/?cat=7&lang=pt

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Clássicos do Sopão

Tim Maia, Cassiano e Hyldon estão estalando de novinhos na capa do CD, meio coletânea mas com a coerência que este tipo de disco não costuma ter, "Velhos camaradas 2". Só que mais novinho do que o trio na foto da capa é o som que tem dentro da bolachinha reluzente. Tinindo, diretamente da soul music brazuca dos anos 70, chega uma sonoridade de matar de vergonha qualquer novo músico da era do download musical.

O disco começa com um ataque de metais primoroso e festivo, aquele de "Não quero dinheiro", música de celebração, como classificaria Lenine. Era Sebastião Maia emulando o som dos negões americanos em terras brasileiras ainda muito férteis. O mesmo climão de salão de baile comparece em "Ninar contigo", a faixa seguinte, aos cuidados de Cassiano e com uma embalagem de baile black, como aquele que eletriza uma cena nostálgica do filme "Cidade de Deus", só pra dar uma dica de comparação.

Um "tchu-tchu-tchu" estilo mela-cueca introduz a pungência pop de "Primeira pessoa do singular", levada por Hyldon com aquela mesma prosódia musical que embalou o rádio AM nos tempos de "na rua, na chuva, na fazenda...". Preâmbulo prontinho para o momento seguinte, que é Tim Maia entoando sua toada quase um mantra, "Eu amo você", meninaaaaaa. Um Tim de voz muito mais límpida e cuca mais leve do que aquele dos anos terminais pós-Sullivan e Massadas. Mas isso é só um lado da moeda, porque logo outra faixa do CD "Velhos camaradas 2" vai abrir espaço para um Tim mais agressivo, mais soul no sentido de raspar o tacho da alma e devolver tudo com um vozeirão rascante em "I don't know what to do with myself".

Instalado então o clima de funk acentuado pela letra em inglês, aberto o cenário sonoro de uma atmosfera coisa-de-preto como diz e canta nossa potiguar Khrystal, está aplainado o terreno para o futuro hit "Chocolate", contracultural disfarce para transgressões que logo dominariam até o ponto do folclore a cabeça de seu Sebastião. Mas, para além das metáforas despreocupadas, repare no batidão já então presente, antecipando aquele outro que dasaguaria nas popozudas do final dos ano 90. Mas com que classe, naqueles 70.

E pra encerrar o feixe de recomendações, temos "Pelas ruas de Los Angeles", faixa que também recorre ao ataque de metais para começar mas logo desconcerta ao se vestir com uma embalagem meio cubana - um som tipo Carlos Santana que também tem muito a ver com o que se tocava, se ouvia e se procurava naquele momento.

Suicídio em Brasília


Existe uma antiga lei no jornalismo segundo a qual não se noticia suicídio. A revista piauí, que não vive propriamente de notícia no sentido estrito da palavra, acaba de quebrar, brilhantemente, esta norma. A edição de setembro, que está nas bancas, traz a partir da página 16, assinada por Daniela Pinheiro, a reportagem "O amante do Mossad". É uma primorosa, impressionante, romanesca caso não fosse real, reconstituição do suicídio de uma funcionária do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em Brasília. Não merece ser lida e relida apenas pelo fato de subverter com estilo, elegância e - também - bastante humanidade a lei que condena as notícias sobre suicídio. Deve ser lida também pelo que revela do mundo funcional das repartições brasilienses; da condição de pessoas tão bem remuneradas quanto absurdamente entorpecidas, algo muito comum nesta cidade; da capacidade que as pessoas têm de ser enganadas quando elas querem de alguma maneira colocar um sentido na rotina casa-trabalho que, mais dia menos dia, acaba acorrentando todos e cada um de nós.

Olfato urbano


Natal tem cheiro de protetor solar, com uma pitada de sal. O cheiro que me leva ao Recife, esteja eu onde estiver, é aquele de uma palmeira muito caractérista de lugares à beira mar, misturado com um odor de lama mesclada a mangue. É um dos melhores cheiros do mundo. Cheiro de humanidade. Caicó cheira a café torrado - onde quer que eu sinta aquele cheiro imediatamente me transporto para a avenida Coronel Martiniano. Se esse cheiro de café moído vier com um certo mormaço seco de asfalto bem quente, então a transmutação é ainda melhor.

Se computador pudesse exalar cheiros e postagens fossem como cartas de papel, eu iria afundar esse texto nas fragâncias esparças que costumam ocupar minhas narinas durante essas caminhadas matinais que eu, como todo mundo hoje em dia, faz para compensar o lado sendentário e dominante da vida. Algumas horas atrás, lá estava eu caminhando daqui da 316 Norte para a 216 logo abaixo e, de lá, tomando o rumo para o Parque Olhos D'água, onde dei minha volta habitual. Você há de pensar que os tais cheiros surgiram nas alamendas do parque, mas não. Nem é preciso chegar lá para tanto. Na verdade, numa alamedinha nos fundos da comercial da 216 surgiu um cheirão doce de perfume usado em cidade do interior nos anos 70. Um cheiro de vidrinho de amostra grátis, um aroma de gente simples arrumado para a procissão da festa do padroeiro. Na hora - estava a caminho do parque - achei que vinha de uma moça que passou por mim, caminhando no sentido contrário, com cara, roupa e jeito de quem segue para o ponto de ônibus. Mas, na volta para casa, passei pelo mesmíssimo lugar e o cheiro reapareceu em toda sua intensidade.

Domingo, enquanto assistia ao show das bandas aqui na quadra de esportes da 316 (vide postagem anterior, "316 Musical"), senti, pouco depois do cheiro, pra mim muito agradável e evocativo, da velha "canabis", um outro sabor olfativo, diferente, meio seco, meio áspero, bastante rústico, um cheiro que eu diria amarelo como a paisagem da cidade nesta época. Também não sei de onde vem. Imagino que tanto este quanto o outro, adocicado, que senti hoje, venha das árvores que se espalham por todo o Plano Piloto, um dos espaços urbanos mais arborizados do país. Você passa sob as árvores e elas, junto com as folhas secas - e em muitos casos flores também - que delicamente enviam ao chão, liberam também seus perfumes particulares, essências de madeiras e fibras e pétalas meticulosamente trabalhadas pela química da natureza.

Dizem os espíritas que sentir cheiros inexplicáveis é também uma forma de mediunidade - que tais perfumes vêm de entidades iluminadas ocasionalmente presente entre nós. Uma vez, cumpri uma promessa que fiz a mim mesmo e, durante um mês, toda noite, por volta das 22h, saía de casa para dar comida aos gatos de rua. Na época, morava na 212 Norte - e por toda a Asa Norte o que tem de gato faminto nas quadras e entrequadras não é brincadeira. Pois bem: houve uma noite, noite de chuva, em que, passando por uma pracinha improvisada na esquina da 412 Norte (não estranhe: aqui tem esquina sim, só que um pouco diferente do convencional) senti um cheiro inesperado e inesquecível. Na hora, lembrei da tese dos espíritas e gostei da sensação. Mas não vi espírito nenhum. Se houve mediunidade, foí só olfativa mesmo. E não foi pouco. E se não veio de espírito propriamente dito, veio da alma da natureza mesmo. O que também nunca é pouco.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Vapor de setembro




Não há vida possível dentro de casa nos finais de semana do setembro seco de Brasília. É preciso buscar uma forma qualquer de vento e de umidade, nem que seja o espelho d'água do Congresso, a aragem da Praça dos Três Poderes, ou a sombra das árvores próximas ao Palácio do Planalto.

Folhas secas


Nestes dias inclementes de setembro, Brasília não é só a capital do país. É a capital da folha seca. É como se todas as folhas secas do mundo repentinamente decidissem se reunir aqui, em congresso de amarelo-cinza. Dispensam aeroportos, mas chegam pelo céu. Em torrentes calmas, num desabar que muitas vezes lembra uma valsa dançada sem música. Uma chuva, de outra natureza. E que não cai em espirro líquido sobre o chão, mas resvala em câmera lenta, embora em massa, como se fora uma frota de objetos voadores não identificados em efeitos especiais de filmes de ficção científica. Uma vez pousadas no barro vermelho do planalto, as alienígenas e invasoras folhas secas têm curiosamente a capacidade de fazê-lo mais telúrico ainda, esmaecendo tudo com uma colocação meio sépia, muito seca. Amarelo nem um pouco manga - amarelo deserto.

Nas ruas, você só precisa ir à esquina (elas existem, cuidado com as lendas), à padaria ou ao ponto de táxi para notar que a invasão se consumou. Folhas secas dão seus rasantes indiferentes ao deslocamento da população local. Nos bosques urbanos que são muitos, entre edifícios e postos de gasolina, que também são muitos, as folhas secas vão se acumulando em camadas como se tivessem o plano traçado e muito bem arquitetado de encobrir, lenta mas inexoravelmente, tudo, até o último andar das torres do Congresso. A verdadeira guerra dos mundos - há mais vida inteligente numa inerte folha seca do que supõe o vã Orson Welles que há em cada um de nós. Indiferentes ao perigo extraterrestre, as crianças gostam de brincar de escorregar nas muitas camadas deste segundo chão de folhas secas - solo farfalhante de colchão de secura, o algodão que tal estação planta sob os 15 por cento de umidade a que cada morador de Brasilia tem direito todo setembro de cada ano.

Não é incomum que o habitante local, sitiado por ar tão seco e chão tão desidratado e quebradiço, veja-se tomado por mirações psicodélicas - fenômeno perfeitamente natural quando se está nas ruas no horário compreendido entre 12h e 16h. Nessas horas, já me aconteceu de imaginar que cada uma daquelas tantas folhas secas seja, na verdade, um punhado de palavras disfarçadas que, agregadas no chão dos canteiros, formam frases de tradução impossível para quem não domina as cem mil forças da natureza, terrestre ou não. Quando é assim, leio de tudo na folha que cai ou na folha que descansa no chão. Sentenças sobre a vida e a morte em forma de gravetos a um estalo da decomposição total. Poemas vegetarizados em fibras esturricadas do que um dia foram folhas vívidas de boas intenções verdes. Ramos emagrecidos e vacilantes que ensaiam um discurso sobre o tempo mas desistem ante a seca constatação de que não vale a pena procurar palavras para expressar tamanho e feliz desânimo. Livros são escritos neste rumorejar hermético de antiflorações de setembro. Livros são apagados pelo mero poder de uma simples lufada de vento quente. Um escrevinhar que dura até meados de outubro - e lava seu palavreado de vez com as chuvas verdadeiras de novembro.

P.S: Cecília, dia desses, na caminhada que faz da nova escola onde agora freqüenta o Maternal II, atravessando calçadas simpáticas, mendigos bacanas, pequenos bosques planejados e uma avenida movimentada, olhou para o alto e disse que as árvores choram quando as folhas caem. É a segunda imagem que ela organiza na cabeça. A outra, quem leu aqui deve lembrar, é a "lua quebrada", como ela chamou a meia lua de uma noite especial.

As falas calculadas do ministro


Dizem que quando Michelangelo terminou de esculpir seu "Moisés", teria dito: "fala!", tal a beleza da escultura. Pois de uns tempos para cá eu estou quase convencido de que, quando vestiu a capa ritual de presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes se olhou no espelho do gabinete e disse: "Fala!"

A diferença é que, enquanto o escultor renascentistas estava impressionado com a qualidade de sua obra, o ministro do Judiciário brasileiro parece embevecido com o poder do cargo que ocupa. Senão, vejamos: durante o governo Fernando Henrique Cardoso, Gilmar Mendes era advogado-geral da União. Era muito freqüente, na época, que reportagens de televisão necessitassem de uma entrevista rápida, uma palavrinha do então advogado-geral, o que a gente, no jargão das redações, chama de "sonora". Pois era um sacrifício conseguir um mísera, boa e extensa que fosse sonora do advogado-geral Gilmar Mendes. Parece que, a meio caminho da carreira judiciária que ele seguia e planejava, naquele momento não convinha a Gilmar Mendes se prolongar em comentário sobre o que quer que fosse - ainda que se tratasse de assunto pertinente à função que ele exercia.

Como editor na TV Bandeirantes, cansei de reclamar da dificuldade de "cortar" (a palavra, aqui, outra do jargão, não tem o sentido de "censurar", mas de "formatar" dentro da narrativa que é uma reportagem de TV) uma "sonora" de Gilmar Mendes. Enquanto hoje o ministro fala sobre tudo e sobre todos (estando ou não sendo gravado por câmeras de TV ou grampos ilegais), na época, cumprindo muito bem o ritual de quem está ascendendo na carreira e não pode se comprometer com malabarismos verbais, ele media cada palavra. Quando dava uma entrevista para televisão, Gilmar Mendes parecia estar ditando suas palavras para um repórter obediente. Palavras meticulosamente escolhidas, frases absolutamente desprovidas de qualquer espécie de contundência. Naquele momento, não convinha.

Hoje, ah, hoje, devidamente alçado à maior corte judiciária do país pelo mesmo presidente que o tinha com advogado-geral da União, o ministro - melhor, o "presidente" Gilmar Mendes - sente-se plenamente à vontade até para "chamar o presidente (aquele outro) às falas". Não satisfeito em fazer de suas próprias falas uma manifestação plena de poder (transitório, alguém deveria lembrá-lo), o ministro ainda exige que a autoridade maior do país - porque, afinal e diferente do presidente do STF, eleita pelo povo - também "fale", embora, naturalmente, não como expressão de poder pleno e legítimo, mas de coação constrangedora.

Mas, como diria "Lula, o constrangido", "deixa o ministro falar". Dia sim, dia não, o verbo solto, esse indisciplinado contumaz, queima-se a si próprio. É esperar pra ver.

P.S: E a imprensa brasileira, hein? Nesse domingo, os jornais e revistas expuseram, involuntariamente, suas próprias carnes mal passadas nas bancas de todo o país. Daniel Dantas é o açougueiro maior, do filé à carne com osso. Sobra uma ou outra publicação só pra confirmar a regra geral. É impressionante como, de facão em punho, o banqueiro conseguiu invalidar bife por bife cada uma das postas da operação policial que quase o levou para atrás das grades.

316 Musical


O domingo mais uma vez comprovou o quanto é furada a idéia de que Brasília é a capital do tédio. Em que outro lugar do país - excluindo, claro, o manjado eixo Rio-São Paulo - você pode matar a preguiça de uma tarde dominical quente e seca descendo do bloco e dando uma chegadinha na quadra de esportes da sua quadra residencial para assistir ao show de duas bandas - uma de raggae com garotos que, apesar do estranhamento das cabeleiras dreads, moram por ali mesmo, e outra de pop-rock com sotaque mineiro mas também natural da cidade? Em Brasília, viu, Carlos Magno Araújo! Pode vir que tem.

Pois é, já vão longe os tempos em que nosso amigo Carlos Magno se divertia em Brasília atirando pedras nos ônibus desavisados, plantado no alto das paradas dos camelos, pressagiando um futuro incerto felizmente corrigido a tempo por Rosa Lúcia, no que se explica o fato de Pedro e Luís não se espelharem nem um pouco no exemplo paterno. Mas isso são conversas codificadas entre amigos não convém prolongar, visto que o Sopão tem a saudável obsessão de se fazer acessível, embora nem sempre consiga.

Então: nesse domingo, a quadra de esportes da gloriosa SQN 316, ou "316 Norte" como se diz comumente, virou palco para a apresentação de duas bandinhas desconhecidas mas entusiasmadas. Vou precisar passar bem devagar, brecando o carro na entrada da (super) quadra para ver o nome da banda de raggae - que, por estranho, esqueci completamente. Mas juro que não esqueci do som da rapaziada, sonoridade cheinha e malemolente como convém ao ritmo, numa raggaeira quase mística dado o sotaque religioso. Havia momentos em que, dá-lhe Jah, parecia até uma facção evangélica do grande movimento jamaicano. Mas foi legal, preces meio rapeadas incluídas enquanto o contrabaixista evoluía entre as cordas.

Depois, veio o trio pop mineiroso que forma a banda Sonora Chama. Simpatia imediata, até porque eles abriram a apresentação atacando com "Nada será como antes". Entre outros covers ("Vamos fugir, baby, desse lugar", essa canção tão pop quanto docemente transgressora) e composições próprio do CD à venda ali mesmo, a banda encheu a quadra de esportes com um espírito de imatura mas por isso mesmo saborosa jornada juvenil-musical.

E se você pensava que tudo o que o Sete de Setembro oferece em Brasília é aquele desfile - ainda hoje campeão de audiência na Esplanada, não duvide - se enganou quadradamente. Lá na 316 Norte, declaramos outro tipo de independência enquanto ouvíamos o som in natura de músicos pacientes e despreocupados em busca de algum tipo de caminho.

Vendo os dreads, os músicos de tênis carregando tambores, fios e pluges, as crianças correndo entre eles, o povo da quadra - público pequeno, mas decente - ali em volta, lembrei de Antônio Bivar, da contracultura, dos hippies e de toda essa gente arejada que anda freqüentando minhas leituras recentes.

Também lembrei de meu amigo Carlão de Souza fritando os miolos em temporada forçada em Mossoró, morrendo de calor, de saudade e de tédio. Um dia você volta aqui, Carlão, e sua visita cai num dia feito esse domingo assim, de bandas na quadra de esportes.

A gente vai ver, ouvir, dar umas risadas e lembrar de Jô e de Alex. E de Carlos Magno, claro. Se brincar, é capaz até de a gente sair por aí atirando pedras nos ônibus em homenagem a esse outro nosso amigo.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Ouçam Tácito

Mentiras e mistificações

As pessoas são livres para fazer suas escolhas. Em todos os campos. E eu tenho o maior respeito pelas escolhas alheias. Para que respeitem as minhas. Para que tenhamos também uma convivência com mais tolerância. Agora, essas escolhas não podem ser justificadas com base na mentira histórica ou na mistificação. A história não pode ser adulterada para se adequar à vontade ou caprichos pessoais. A morte pode muito, menos transformar bons em maus e maus em bons. Embora num país que cultiva tão pouco a memória como o Brasil, esse risco esteja sempre presente. A revisão histórica se torna ainda mais escandalosa quando parte de pessoas esclarecidas, algumas até cultas, porque aí a mentira soa cínica, interesseira. Porque sabemos que aquela pessoa sabe exatamente como os fatos ocorreram, mas deturpa e confunde propositalmente, movida por interesses pessoais os mais variados. Nem a gratidão, que Dom Quixote, instado por Sancho, diz ser uma das mais importantes qualidades humanas, pode se sobrepor à verdade. Por isso, soa estranho que se venha agora a público, como ocorreu recentemente em um programa eleitoral, dizer-se que o ex-senador Carlos Alberto de Souza foi um bom político. Quem acompanha a política do Rio Grande do Norte sabe que a trajetória de Carlos Alberto foi marcada pelo oportunismo, populismo, demagogia e reacionarismo. Começou sua carreira no antigo MDB, passou por vários partidos, até chegar a líder do último governo da ditadura militar, o Governo João Figueiredo, e defensor do 'inquérito' forjado pelos militares para abafar o Riocentro. Como prêmio ganhou o seu canal de televisão. Uma trajetória como essa não pode ser enaltecida e nem servir de modelo para ninguém.

Do jornalista Tácito Costa, o homem do Substantivo (Plural), link ao lado.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Terra


Na calçada da Matriz de Nossa Senhora da Guia, coração do Acari, quem tem juízo toma posse do território que herdou.

Pança


Não tem "orgulho de ser nordestino"? Pois também tem "orgulho de ser barrigudo".

Obama segundo Veríssimo

Daqui de baixo, o gaúcho espia os acontecimento de lá de cima e traduz como ninguém o que se passa:

"Obama como hipótese era um candidato diferente, mais diferente do que qualquer outro na história do partido e do país. Obama confirmado provoca especulações sobre a viabilidade política do sonho. Especula-se que talvez ele seja diferente demais.

(...)

"a novidade que ele representa é a de um jovem com outras idéias, em contraste com o velho McCain, e não a de um enigma que se aproxima da Presidência para fazer ninguém sabe o quê. Esta última alternativa é a que a propaganda dos republicanos enfatizará, numa campanha que - segundo comentaristas americanos - já é uma das mais sujas da história. Pode-se imaginar que até as eleições de novembro um lado insistirá que Barack Obama é normal e outro que ele é um mistério de quem se pode esperar tudo, até o sacrifício de galinhas no Gabinete Oval"

Domingo no museu da utopia







Comentário dos comentários

Postagem rápida para intercalar com os tijolões anteriores, absolutamente involuntários mas também inevitáveis. Agora, o propósito é dar respostas e fazer eco aos comentários que o Sopão tem recebido - alguns com novos leitores se apresentando, o que é sempre estimulante, outros com leitores antigos, gente muito querida, que discordou aqui, reclamou dali. É preciso falar com todos eles. Vamos ver se dá certo.

. Silvio Andrade e Edineuza, sejam muito bem-vindos, voltem mais vezes, deixem sempre que puderem nem que seja uma linha que é para o bloguista solitário aqui saber que não está falando sozinho - embora, de fato, e não contem pra ninguém, a solidão faça parte do negócio.

. Sobreira, só você mesmo para não deixar o dinossauro do Antônio Bivar pastando sozinho na paisagem do blogue. Como bloguista mais bem sucedido do que eu, você sabe que às vezes a gente prepara uma postagem que é, a gente pensa, muito mais pra gente mesmo do que para qualquer dos prováveis leitores. E, surpresa, vem um comentário inesperado como o seu no post sobre o autor de "Longe daqui aqui mesmo". (P.S: estou devendo o endereço, eu sei, não esqueci, uma hora dessas providencio)

. Rosália: acabo de ler, com anos luz de atraso, seu comentário na postagem em que eu falava sobre o prazer que era ler a edição do dia da Folha de S. Paulo de manhã cedinho, no computador, em Acari. Acontece muito de, passando em revista postagens já envelhecidas, eu encontrar um comentário que havia perdido, que não havia percebido. Foi o que aconteceu com o seu. Também preciso dizer que, na verdade, esta postagem aqui, esta mesma, está sendo feita especialmente para eu me entender com você. Um blogue que já tem poucos leitores não pode nem em pensamento admitir a hipótese de perder os que já tem: e você, assim como Ana Luiza (Nossa Mana), é uma das leitoras que mais prezo. É das primeiras, fiel e engrandece a existência deste espaço. Então: quando eu falei sobre "provincianismo renitente" dos acarienses que adoram demais a si mesmos, estava falando de um sentimento, de uma maneira de ver e estar no mundo que acaba não contribuindo para melhorar este mesmo mundo. Mundo aqui, claro, é alegoria para cidade. Eu começei o texto falando sobre a facilidade de comunicação, de acesso à informação do mundo atual, e terminei discorrendo sobre a atitude de pessoas que, de tão exageradamente apaixonadas pelo seu próprio mundo em volta, próximo, atávico, correm o risco de perder de vista o outro, o mundo além-muros, o distante, o diferente. Além de também perder a capacidade de avaliar este seu próprio e próximo e acolhedor mundo - cidade - próprio. Era isso. Continuo gostando de Acari tanto quanto me permite a minha capacidade de ver as limitações da cidade e de sua gente. Que para mim são umas, para você - que lá morou e para lá sempre volta - serão outras. Sinto que o texto da postagem tenha incomodado você e assumo as conseqüências pela escrita rápida como acho que convém a um blogue. Mas acho que você vai entender e me dar outra chance.

. Gustavo, nosso breve debate sobre ênfase em educação ou em distribuição de renda, nas postagens próximas à que me referi no papo com Rosália me dão esperança de estar fazendo um blogue tão apaixonado quanto não-intolerante. Obrigado pelo feed.

.Délia, poeta: passei pelo seu blogue, sim, embora sem deixar comentários. Não era um momento bom, achei melhor esperar por hora mais tranqüila, ler com calma, sem afobamentos. É que a volta a Brasília depois das férias não foi fácil não. Muito problema caseiro para resolver. Mas eu volto lá, sim.

Dança da chuva em Brasília


Na postagem anterior, o Sopão sugeria, com alguma sutileza, que uma visita a Brasília pode não ser exatamente uma passagem para o tédio como supõe a vã e gasta imagem que a capital do país transmite aos cidadãos que não moram aqui. Pois bem: tem mais. Neste final de semana, se a gente tivesse encomendado a Rejane uma bela programação urbano-cultural para toda a família, talvez ela não tivesse caprichado tanto. Duvida? Experimente ler esta outra postagem até o (distante) fim.

Sábado de sol forte, umidade baixa e um estranho ar de que, sim, apesar da seca inclemente típida desta época, havia uma possibilidade de chuva no ar. Veremos. Saímos de casa na hora do almoço, devidamente resolvido numa churrascaria acessível do shopping Pátio Brasil. Para digerir, o primeiro item da agenda providenciada por Rejane: visita à Feira do Livro, um evento já tradicional em Brasília, que acompanhamos desde que aqui chegamos, já lá se vão uns 13 anos. A Feira do Livro acontece, já há algumas edições, nas amplas calçadas desse mesmo shopping onde almoçamos. Ao contrário dos eventos do tipo que acontecem em Natal, por exemplo, tenho que dizer que é mais uma oportunidade de adquirir livros interessantes por um bom preço do que um espaço para discussões literárias ou afins. Há palestras, homenagens, sempre um escritor tomado como tema (este ano foi o poeta Thiago de Melo), mas o forte mesmo é o consumo.

E não é que seja ruim: saí da Feira do Livro deste ano com um exemplar do Dicionário de Cineastas de Rubem Ewald Filho (um crítico que não está entre meus preferidos, mas é sempre uma referência) por módicos R$ 10,00. Também comprei uma coletânea de textos de teatro de Miguel Falabela e Maria Carmem Barbosa (tenho grande curiosidade pelos textos porque das poucas peças de teatro a que assisti, uma foi "A Partilha", de que gostei e que infelizmente não está no livro) por ainda mais módicos R$ 5,00. E ainda levei, de lambuja, por igualmente módicos R$ 5,00, um exemplar de "O quieto animal da esquina" - coisa fina, biscoito gaúcho de João Gilberto Noll, que é pra vocês não largarem a leitura por aqui achando que meu nível de consumo, embora econômico nos gastos, está anêmico nos conteúdos.

Depois da Feira do Livro, aí pelas 17h, já tínhamos outro compromisso marcado por Rejane: ir ao Conjunto Cultural da Caixa Econômica para assistir ao espetáculo "Cantigas de Trabalho", do grupo de artistas e pesquisadores "Cabelo de Maria". Como o nome indica, é um pocket show tão mínimo e artesanal quanto verdadeiro e próximo de quem o assiste, feito todo sobre canções tradiconais usadas em comunidades pelo Brasil afora enquanto se realiza algum trabalho - debulhar milho, pilar sementes. Uma apresentação de ar brejeito e sonoridade toda acústica, quase uma canção de ninar para adultos, poucos mas entusiasmados, reunidos num espaço único que rende um parágrafo.

Há 13 anos em Brasília, o fato é que nunca havíamos ido ao Conjunto Cultural da Caixa, composto por teatro e café num prédio e, no outro, logo em frente, espaço para exposições e, como vimos no parágrafo anterior, palco improvisado. Ficamos espantados com a beleza do interior do prédio-sede da Caixa Econômica em Brasília. Por fora, é um prédio meio feio, redondo, que pela forma se destaca na paisagem da cidade - meio que compondo um paralelo com o prédio do Banco Central, aquele que parece formado por caixotes pretos suspensos. O da Caixa parece uma... caixa d'água comum. Isso por fora, porque lá dentro a coisa muda de figura.

Acontece que os blocos de concreto gigantes que, superpostos, dão uma forma arredondada ao prédio da CEF, são na verdade molduras para um conjunto de imensos vitrais. Por fora isso passa derpercebido, mas quando você entra - especialmente se for no final da tarde, com o sol naquele amarelado típido da seca brasiliense - a impressão é de que se está penetrando numa catedral de cristais coloridos. Sombras de vários tons preenchem o largo vão interno, de onde parte uma escadaria em espiral. Lembrei, assim de relance, do Mercado Municipal de Fortaleza. Mas aqui na CEF há os vitrais gigantes, cada um representante um estado brasileiro. O de Minas é de babar, com aqueles profetas do Aleijadinhos estilizados se derramando em acrílicos trespassados pela luz da tarde. O do RN, dada a idade do prédio que, não sei mas imagino datar dos anos 70, mostra apenas pescadores, jangadeiros, salinas e afins - ícones de uma era pré-Ponta Negra e turismo de massa.

Vistos de longe, o conjunto de vitrais enche os olhos do visitante. Vale a pena passar por lá mesmo que não esteja em cartaz um show como o "Cantigas de Trabalho". Infelizmente, não levei a máquina fotográfica para completar a postagem com uma imagem que leve o leitor do Sopão visualmente a este espaço. Se encontrar na internet, prometo colocar. E se eu disser que, à noite, ali ao lado, no teatro, iria acontecer mais um espetáculo da "Cena Contemporânea", o festival de teatro que nesta época movimenta a cidade você vai entender melhor porque aquela história de capital do tédio é coisa dos anos 80 (se é que era mesmo, vide o rock brasiliense de então).

Mas a programação cultural não acabou aí, não. Noite instalada, seguimos para o final da Asa Sul, onde acontece durante todo este mês a tradiconal quermesse do templo budista da cidade. Brasília, é preciso que se diga antes de mais nada, adora uma quermesse. Aqui, quermesse não é algo visto como festa de carolas como acontece em qualquer outro lugar do país. Aqui, quermesse é pop, meus amigos. Nada mais pop, então, do que uma quermesse promovida por um templo budista. A fila do macarrão ia-qui-sso-ba era quilométrica - mas você olhava para as caras das pessoas esperando e elas tinham aquele arsinho de riso meio dalai-lama. No palco, garotos e garotas faziam exibições de karatê. Nas bancas, toda sorte de mercadorias de ascedência oriental.

E, acreditem, no céu, inesperados pingos de chuva em plena seca de Brasília. O dia seguinte, domingo, amanheceu brancão. Logo o brancão, qual espuma redentora apertada pelas mãos de um deus piedoso, transformou-se em chuva em pontos localizados da cidade.

Choveu lá em casa, choveu forte ali em frente ao Conjunto Nacional, o ar da noite estava bem melhor. Quem sabe, resultado da dança da chuva que foi a programação que Rejane bolou pra gente no fim de semana.
Legenda: na foto, já meio antiga, o setor bancário com destaque para os caixotes negros do BC

Utopia no museu



Arquitetura moderna e tropicalismo, estandartes coloridos e concreto recortado, mosaicos que ganham movimento e anos dourados em fotos de tamanho natural. Está tudo na exposição "Utopia da Modernidade", que reúne no mesmo espaço registros do arrastão estético que gerou Brasília e ícones reprocessados da jornada pop-antropofágica dos tropicalistas. É um programão caso você, por um motivo qualquer que a providência providencie, veja-se na iminência de - programa de índio? olha lá, pode não ser - visitar Brasília.

A exposição tornou ainda mais interessante o visual urbano do Conjunto Cultural da República, formado pela biblioteca (ainda sem livros, até quando?) e pelo museu, aquele vastamente conhecido como "Cuscuz de Niemmeyer" (para Cecília, que acompanhou a gente, traduzi como o "museu da bolona"). Acontece que parte das "peças" da exposição - como o seu próprio nome, "escrito" em garrafais caracteres de concreto em tamanho gigante - estão dispostas naquele pátio imenso que cerca a bola-museu. Você passa na rua - no caso , numa das seis pistas do Eixo Monumental - e é impossível não esticar o rabo do olho para entender melhor o que são aquelas letronas, aquelas molduras imensas de concreto, aqueles portais que até um dia desses não faziam parte da paisagem da cidade.

E vale a pena voltar no final de semana para ver de pertinho cada uma das intervenções concreto-paisagísticas que compõem a exposição, viajar pelas imagens que recuperam os movimentos vários daqueles tempos de explosão e implosão estética - tempos que pariram uma cidade e fermentaram tendências culturais (e comerciais, na conexão pop inevitável) várias.

Assim, um mosaico de Athos Bulcão ganha vida - no que parece uma dança sincronizada de andorinhas estilizadas no céu de Brasília. Uma tevê em preto-e-branco simulada transporta o olhar para outro tempo, um cone vai buscar no passado a música urbana da era JK e despeja sobre você a trilha sonora incidental de uma cidade em formação, um país em afirmação.


Se você tiver tempo, ainda pode aproveitar a visita ao Museu da República e percorrer, no andar de cima, outra exposição em cartaz - embora radicalmente diferente da que ocupa o primeiro piso e o pátio de cimento. É trabalho de artistas poloneses sobre tema bem menos inspirador, embora, vamos fazer o quê, igualmente legítimo sob a perspectiva das indagações humanas. O tema é a morte - e mesmo que o material de divulgação não informasse, você iria perceber assim que pisasse no primeiro ambiente onde há, no chão, projetada e continuamente repetida, a imagem de um pássaro debatendo-se em agonia.

Cecília e Bernardo estavam com a gente, ficamos enbatucados. Mas percebemos que as crianças têm um filtro: elas vão no que interessa a elas, ignorando nus do tipo "decadance avec elegance" e outras expressões sobre a finitude do pobre humano. Bernardo e Cecília, na verdade, propriciaram pra gente um momento-intervenção (como diria um artista plástico dos mais modernos): se divetiram mesmo foi com uma projeção interrompida, que apenas exibia aquele "protetor de tela" de DVD vazio, com a marca (Sansung? não lembro) batendo nas extremidades do quadro, quicando como uma bolinha. O que os garotos correram, pularem e riram enquanto tentavam "pegar" a sombra da marca que quicava na projeção não foi brincadeira. Foi arte - espontânea, viva, inquieta.

Breve, aqui, mais fotos da "Utopia da Modernidade".