terça-feira, 30 de novembro de 2010

Complexos de verão


O do Alemão é apenas um. Nesta temporada de fim de ano também sofremos com os ataques de ansiedade preventiva de FHC e a síndrome dos três porquinhos renováveis a cada semana. Para escapar dessas febres, só ligando a tevê

Este 2010 que começou tão mal, com a calamidade em forma de toneladas de terra e lama desabando sobre o cenário tropical de Angra dos Reis, tinha mesmo que terminar com alguma coisa próxima ao que se possa chamar de boa notícia – embora, como sempre, um ou outro insatisfeito contumaz teime em negar a evidência que representa a retomada do tal Complexo do Alemão pelo poder público. Então é como se os deuses do calendário olhassem aqui para baixo e tivessem a decência de, na última horinha, mandar um benefício derradeiro para um período de doze meses tão marcado por tragédias, como também foram os terremotos do Haiti e do Chile. É uma espécie de compensação – mas, cá entre nós, que compensação, hein?

O tal Complexo do Alemão sempre teve aquela pompa toda, a começar pelo nome que, longe de sugerir algum mecanismo psicológico freudiano a condicionar o comportamento humano, designava mesmo era um conjunto de favelas onde o Estado com E maiúsculo há muito deixara de se fazer notar. Só que o peso do nome, ficamos sabendo nesse domingo, era muito menor do que sua empáfia sugeria. E se alguém lhe dissesse, em dezembro de 2009, que em dezembro de 2010 o tal Complexo do Alemão seria tomado por uma força tarefa policial em apenas vinte minutos de operação, você – e eu, e todo mundo – daria aquela risada de desdém. O fato de ter sido exatamente isso o que aconteceu no fim de semana passado – e, espera-se, seja mantido pelos próximos que virão até bem depois de 2014, pelo menos – é apenas um lembrete de outro deus, o da ironia saudável, de que o desdém nem sempre é a melhor reação diante do que quer que seja. Mesmo que fosse o tão temido Complexo do Alemão.

Um outro caso de desdém veio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que por estes dias saiu de sua toca acadêmica de bom gosto e de bom tom para dizer que Dilma Roussef não pode governar no “piloto automático”. Pra ver que a mulher nem tomou posse ainda, anda atarefadíssima com os trabalhos da transição (tanto que esnobou até um convite de Obama para ir aos zéua), mas já merece críticas de FHC, aquele vulto bem conhecido dos brasileiros que viveram tanto o sucesso quanto o quase ocaso do Plano Real no final daquele segundo mandato. O homem podia segurar a vaidade ao menos até a mulher tomar posse a anunciar qualquer medida que seja – tornar obrigatória a adoção daquele penteado-tufão que ela usa entre as mulheres de sua faixa etária; ou criar o Ministério dos Três Porquinhos; ou qualquer coisa por aí – antes de abrir a boca para criticar o que quer que seja. Porque, convenhamos, crítica preventiva não pega muito bem. Se bem que o brasileiro em geral esteja tão acostumado a esses rompantes de FHC que nem liga mais.

Outra novidade atrasada que o SOPÃO deixou passar foram justamente os tais três porquinhos. Que não são mais os dois José Eduardo (o Dutra e o Cardozo) e Palocci, mas o trio Mantega-Miriam-Alexandre, guardiões da moeda, tributários das confianças dos mercados como quer a nossa mui brava grande imprensa. Gente que não assusta, não dá pesadelo, nada disso. Bom. Desenvolvimentistas sim, mas sem arroubos. Bom, tem uma galera aí que votou em Dilma, tirou a bunda da cadeira para vê-la eleita e está um dígito à frente nessa discussão, mas essa gente, felizmente, não conta para a mui brava grande imprensa. Mas a gente não pode fechar os olhos para eles e deixar de dizer que, mercado apascentado à parte, o desenvolvimentismo não ficaria mal se pressentisse a chegada do carnaval 2011 e saísse por aí pulando na rua de maneira a aumentar o bloco dos afortunados. Enfim, desenvolvimentismo sem medo de ter um arroubozinho ocasional. Se depender de Alexandre Tombini, tá meio difícil. Com aquela aparência de quem já nasceu com cara de futuro presidente do BC e cujas primeiras palavras não foram nem mamãe nem papai, mas “metas, metas”, ele não parece inspirar muita esperança nesse sentido. Mas se um dia a esperança venceu o medo e quatro anos depois também derrotou a mentira, tudo é possível.

O certo é que se tudo der errado na transição que se aproxima, confirmando não apenas as previsões mas também os desejos de certos analistas políticos da página 2 da Folha de S. Paulo, nós mortais sem espaço no jornal de âmbito nacional ainda teremos a televisão para nos distrair. Não, não estou me referindo à cobertura em tempo real da tomada da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão – olha ele de novo, com seu nome pomposo que levará tempo para adquirir a dimensão que de fato teve na batalha de domingo. E aproveito para dizer que, das muitas mitologias cultivadas pela esquerda apressada, essa de que a tevê – a Globo, bora logo dizer claramente – transformou em show o que seria um “problema social” é uma das menores. Todo o episódio do enfrentamento territorial contra o tráfico que vimos nos últimos dias é fenômeno da mais aguda natureza televisiva – e quem não vê isso, o que acontece inclusive com profissionais do meio, está apenas sendo voluntariamente cego. A Globo, em que pese todas as suas mumunhas pretéricas de campanhas eleitorais muitas, apenas viu o óbvio – e botou no ar, na hora.

Como ia dizendo antes do parênteses, sempre se pode correr para a televisão caso as coisas da transição saiam abaixo do esperado ou diferente da previsão. E até Eliane Cantanhede deve se divertir – pergunta importante: será que Eliane Cantannhede é capaz de dar umas risadas diante diante de uma televisão? – depois de um exaustivo dia de trabalho entrevistando oposicionistas e conspiradores em geral. Basta que a jornalista esqueça um pouco as artimanhas da política de Brasília e sente para assistir à nova aventura de Daniel Filho, esse produtor de tevê que sempre tem uma carta na manga quanto a gente pensa que ele aposentou a câmera. E até gente como Eliane Cantanhede pode se divertir com os episódios da série “As Cariocas”, embora seja uma personalidade da cena paulista. Porque ali há uma mistura de crônica safada carioca com áudio-visual conduzido com toque de mestre, um mix de literatura incidental no LCD com a pura e estonteante beleza dessas mulheres que parecem ter sido feitas para passar diante de uma câmera. Daniel Filho não vai ser o ministro da Cultura nem um dos próximos três porquinhos anunciados pela presidente Dilma, mas continua um potentado quanto o assunto é som, imagem, narrativa, clima, diversão e reflexão possível num meio naturalmente diluidor com é a televisão.

Ligue a tevê, que este ano a coisa esquentou antes mesmo do verão. Uma pressa bem-vinda, bem diversa daquela outra, praticada por um FHC cheio de desdém. Pensando bem, Complexo do Alemão talvez seja isso, essa ansiedade típica de ex-presidente falastrão, depois que ninguém mais lembrar que um dia esse foi o nome de um conjunto de favelas dominadas pelos traficantes no estado mais vibrante do Brasil.

Leia na Hamaca


Pois bem: vendo Cecília na sua primeira formatura, pela primeira vez me coloquei na posição dos antigos, dos meus pais, e devo ter sentido um décimo do que se passou por dentro deles quando me viram “formado”em todas as minhas colações, do jardim ao campus da UFRN. Uma forma muito particular de emoção intraduzível, como se você estivesse diante de algo que, por mais previsível que fosse, não parece estar acontecendo – como se aquilo tudo estivesse acima do seu merecimento. Enfim, você se anula diante do seu filho – o que, além de ser essencial à continuidade da espécie e muito vital para o cultivo da humildade, é bem emocionante, posso garantir.

Leia o texto completo sobre a formatura de Cecília no Jardim de Infância clicando aqui.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Tudo sobre as UPPs



"Para Beltrame, o projeto UPP ainda está incompleto. Falta-lhe controle técnico de qualidade. Mas não há volta. Hoje, não há convidado estrangeiro célebre que não visite uma favela pacificada. Entre eles: o secretário-geral da onu, Ban Ki-moon, o ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, o ministro de Segurança de Israel, Yitzhak Aharonovitz, a primeira-dama do Líbano, Wafaa Michel Sleiman e as pop stars Madonna e Alicia Keys. A UPP parece estar para o Rio como o Bolsa Família para o Brasil. “Os políticos não vão mexer porque perderiam votos”, concluiu o secretário."


Elas estão em alta, tanto quanto o cinema-verdade que a televisão exibe o dia inteiro. São as UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora que funcionam como uma espécie de Plano Real no histórico do combate (ou não) à criminalidade no Rio de Janeiro. Ou por outra, como um tipo de Bolsa Família colocado em outro contexto, como compara reportagem da revista Piauí em trecho reproduzido acima. Vale a pena ler o texto completo que explica, situa, define e problematiza as tais UPPs que podem, quem sabe, deixar na poeira siglas outras como CV, ADA & Cia.

Vai encarar? Então clique aqui. (a propósito: na lista de links ao lado, fica de vez o atalho para a Piauí)

Uma última dica: repare que a revista oferece a chance de você aumentar bastante o tamanho da letra, um instrumento vital para a comunidade de míopes ter condições de vencer as cinco etapas de leitura que vem pela frente. Se este for também o seu caso, use a lupa também.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Sopão por aí










Isso aí é a velha Parahyba, também conhecida como Jonhy People, by Sopão.

Pancadaria no camelódromo


Vamos à minha cena de cinema (de ação, tipo pop-oriental mesmo e não aquela coisa suave tipo chuazinéguer dos anos 80) ao vivo e a cores na banca do Paulista, já lá se vão uns meses ou até anos. Como sempre de férias em Natal, tem aquela volta obrigatória pelo bagunção do centro, sebos e camelódromo incluídos. Uma certa sede de povo que as águas claras de Brasília nem sempre contêm. Estou lá, na tal banca do Paulista (cujo nome, ou apelido, de fato, só passei a conhecer por meio das postagens de Luiz Carlos Merten, veja as voltas que as coisas dão em volta da gente mesmo) passeando o indicador e o maior-de-todos naquele batuque sem som de quem pesquisa DVDs caminhando entre eles com os dedos.

Nisso, chega alguém meio ouriçado e começa um papo meio contrabandeado. Estou sintonizado nos DVDs, de maneira que só ouço vestígios que, sem a cena que viria a seguir, iriam para a lixeira da audição sem qualquer registro. Mas, não. Agora, em perspectiva retrotativa, lembro que era uma conversa torta sobre não sei quem é gay, nordestino versus paulista, essa mistura aí que hoje em dia está infelizmente na moda - e fazendo vítimas, algumas fatais. Enfim, era o atentente da banca contra um cliente meio atrevido, cada qual mais cabreiro do que o outro - não sei se o cara da banca era o tal Paulista do apelido do lugar, mas sei que o outro sentia certo prazer em provocar e tocar fogo no circo - e, quando dei por mim, alguém havia dado um soco em outro alguém, como se dizia nas canções de amor de antigamente.

Um soco, não. Um estrondo, uma coisa de trovão de He-Man explodindo naquele espaço apertado que é a banca do Paulista. E o resto foi tudo muito rápido, como um acidente de trânsito que, do nada, termina em capotagem, fogo, corpos. Calma que ninguém morreu: o exagero da figura de linguagem é só para demonstrar o poder de fogo da briga que felizmente limitou-se aos socos e pontapés. O problema é que, naquele aperto, qualquer soco e pontapé tem poder de botar tudo abaixo. E pelo que vi antes de tirar o time de campo foi quase isso o que aconteceu. Um soco cujo objeto humano desviou-se a tempo foi provocar seu efeito sobre a débil estrutura da barraca, praticamente derrubando uma das paredes de lata. Alguém gritou para chamarem a polícia - e isso numa banca daquela natureza, que mistura o melhor do cinema de arte inacessível por outros meios à legislação de direitos autorais que teimosamente ainda vigora neste mundo virtualizado, não deixa de ser irônico. Achei melhor não presenciar o camelódromo vindo abaixo como peças daqueles dominós japoneses gigantes dos anos 70 que faziam sucesso caindo um por um na tela do Fantástico.

Só lamentei pelos três ou quatro exemplares da espécie cópia-não-autorizada que estava disposto a levar para casa por um preço bem modesto, como sempre costumava fazer quando estava de férias no bagunção do centro de Natal.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

LCM na banca do Paulista


Vocês me perdoem, mas uma vez colonizado, sempre condicionado. E isso explica o fato de eu ter que reproduzir aqui a postagem de Luiz Carlos Merten, crítico de cinema do jornal O Estado de S. Paulo, em que ele conta de sua visita à banca de DVDs do Paulista, ali no camelódromo da Ulisses Caldas, em Natal. Sim, Merten, um sujeito que anda mais do que a burrinha do padre, esteve em Natal por estes dias. Ainda estou lendo as postagens mais recentes do blogue do homem, cujo link está na lista ao lado, mas acho que o objetivo era ver o festival de cinema local ou por outra assistir à "Sua Incelença Ricardo III", pelos Clowns com direção de Gabriel Vilela. Enfim, ao texto propriamente dito - apenas uma das postagens em que ele conta de sua estada na cidade - onde sobressai o fato de se encontrar cinéfilos e suas demandas em tudo quanto é lugar (o que inclui Natal e transparece, claro, uma certa dose de provincanismo paulistano, mas a gente gosta tanto do LCM que deixa pra lá). Boa leitura:

Sétima Arte

Cheguei de madrugada em São Paulo. O voo saiu com atraso e Natal, como outras praças do Nordeste, não tem horário de verão, o que aumenta a diferença de horário. Terminei desembarcando em Guarulhos às 3 horas e chegando em casa às 4. Não tive muito tempo de postar enquanto estava no Rio Grande do Norte. Já havia estado em Natal anos atrás com a Lúcia, minha filha, quando a cidade era parada obrigatória para quem ia a Fernando de Noronha. Agora, pode-se ir ou se vai, preferencialmente, via Recife. Fui (re)ver sábado à noite ‘Sua Incelença Ricardo III’ e gostei ainda mais. À tarde, o César, integrante do elenco, um dos clowns de Shakespeare, nos levou – a Dib Carneiro e eu – para conhecer o ‘Paulista’. Desde que cheguei a Natal, esse passeio estava prometido. Paulista é daqui, claro, mas vive há décadas em Natal. Tem uma barraca na qual vende DVDs – piratas, a 5 reais – somente de filmes de arte. Espero não estragar o negócio do Paulista, mas ele é um personagem admirável. Sabe tudo de grandes diretores e filmes premiados. Eu próprio fiz umas ‘comprinhas’ – a ‘Medeia’ de Lars Von Trier, ‘A la Ricerca di Tadzio’, de Visconti, ‘Bande à Part’, de Godard. O Éverton trabalha com o Paulista. Me reconheceu, batemos um papo rápido, porque chegamos tarde (e já estava fechando). Lá estava também o Armando, português – conterrâneo e contemporâneo de Ruy Guerra – que sabe tudo sobre Ava Gardner e possui um acervo dedicado à grande estrela. Uma de suas preocupações é o que fazer com esse material que acumulou ao longo de décadas. Num lampejo, ele, que é leitor do ‘Estadão’, me disse que gostaria de doá-lo ao arquivo do jornal. Ao lado da banca –’Sétima Arte’ – do Paulista, tem uma só de DVDs de sexo explícito e atrás outra de cinema de ação, só Stallone, Schwarzenegger, Steven Seagal etc. Cada um na sua. Para quem trabalha com esse negócio de cinema, como eu, sei que me sujeito a desagradar amigos produtores, distribuidores e exibidores, mas há um lado da que4stão que me parece relevante. Natal só tem cinemas em shoppings. Uma olhada nos filmes em cartaz neste momento aponta somente para blockbusters (nacionais, ‘Tropa de Elite 2’, e estrangeiros, ‘Harry Potter e as Relíquias da Morte Parte 1’). Como em todo lugar, há em Natal um público de cinéfilos, que quer ter acesso a outras coisas e o ‘mercado’ não as fornece. Não é como São Paulo, que tem a Reserva Cultural, o Belas Artes, o Espaço Unibanco. Paulista tem um catálogo com mais de 500 títulos. Se não tiver o filme que o cliente procura, ele pede um prazo e o consegue. Onde? Tem as suas fontes, conforme me disse, e uma delas deve ser a internet. Pode-se ‘baixar’ hoje praticamente tudo na rede. Dib arriscou uma cobrança – ‘Sétima Arte’, a banca, tem comédias românticas? Só as que passam pelo ‘controle de qualidade’. Genial! Em todo o mundo, encontro esses malucos por cinema. Em Paris, tem aquele cara da butique ‘Reflets Médicis’. O francês é mais apurado, ou então é o fato de me comunicar com ele na língua de Corneille e Molière que faz a diferença. A paixão é a mesma e ambos possuem a mesma alegria em satisfazer o pedido raro, seja de um DVD, em Natal, ou de um livro ou revista, em Paris. Um trabalha no limite da (i)legalidade e essa é a verdadeira diferença. Mas trabalha atendendo a uma demanda que existe. Essa droga chamada cinema… Tenho pendente o compromisso de falar sobre o DVD de ‘Viver a Vida’, de Godard. Me deu mais vontade de falar sobre ‘Bande à Part’. Admiro Godard, mas são poucas coisas dele que ‘amo’. ‘O Desprezo’, as cenas do ‘bando’ correndo no Louvre… Devia ter usufruído mais os conhecimentos do Paulista. Houve uma espécie de timidez de ambas as partes. Afinal, lhe fui apresentado como crítico do ‘Estadão’. Acho que nos intimidamos e não conseguimos nos soltar na nossa paixão comum. As coisas que a gente não faz…

*A propósito. tenho uma história particular sobre algo bem cinematográfico que presenciei na banca do Paulista, mas fica para outra postagem. Segura a onda que eu volto.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Entrelinhas

Agora são águas passadas, mas não me sai da cabeça que na campanha eleitoral era assim: um negócio tão absorvente que não adiantava olhar para o lado, tentar se distrair com um livro, um filme. Eu bem que tentei, bem mais do que uma vez. Mas a campanha, fosse qual fosse a história na tela ou nas páginas do livro, dava um jeito de se intrometer por lá. Vamos ver se consigo lembrar, assim de passagem, os exemplos concretos, já que disso tudo me ficou muito mais a impressão geral dos efeitos do que a citação dos casos específicos.

E não convém reduzir o peso – não só o peso material mesmo daquelas mais de 700 páginas, embora elas tenham seu efeito nos braços que sustentam o livro – de A PEDRA DO REINO, o romance dos romances de Ariano Suassuna, a um mero caso específico como aquilo aqui em questão. A Pedra de Suassuna foi, sempre que aberta na vã tentativa de fugir dos embates ardentes da eleição, uma piada de gaiato sertanejo a tirar sarro do pobre leitor, como a lhe dizer: quer moleza vá no Balaio! Porque quem conhece o livro sabe que ele, além de ser o Dom Quixote armorial-brasileiro de Suassuna (e digo isso sem nem ter lido o farol Cervantes que ilumina essa e outras milhares de comparações), é também, num dos inúmeros veios narrativos, ensaísticos e literários praticados pelo autor ao longo de sua contra-epopéia molambenta de brasileiro desprovido de tradições consagradas, uma cutilada de faca peixeira nos padrões políticos que desde sempre fazem parte da vida nacional.

Na PEDRA, o anti-herói Quaderna tem por seus pares uma dupla atrapalhada composta por um intelectual pateta de extrema direita e um ativista caboclo quase em transe permanente em favor da extrema esquerda. O personagem central diverte-se como só mesmo o povo sabe se entreter diante dos embates entre essas duas faces da mesma moeda. Extrai dos seus conselheiros as contradições e as perplexidades, debocha de suas certezas, aproveita-se de seus furos para, gaiato como convém, afirmar-se. E assim, narra sua trama que é evidentemente muito maior do que esta postagem de dia útil. Só lendo, mas o que queria dizer aqui é que ler essa dita história como tentativa de fugir do debate eleitoral que tivemos é como fugir de uma chuvarada inesperada buscando abrigo num carro conversível de capota arriada. Ou por outra, trocar o chuvismo pela biqueira, o toró pelo banho de cuia.


Havia o DVD, essa bênção permanente contra o tédio. E lá vou eu à locadora em busca de velharias que têm sido o meu cardápio audiovisual customizado para momentos exasperantes nos vários setores da vida. O que eu levo, entre outros títulos que, por mais que tente, não consigo lembrar? Este RECONTAGEM, drama político feito pela HBO e que reconstitui a igualmente exasperante apuração (certamente fraudada) da eleição de Bush filho para a presidência dos EUA. Todo mundo lembra da história, embora não retenha os detalhes. Pois os detalhes estão todos lá, no filminho do canal de tevê a cabo. E nos detalhes é que a gente vê o tamanho do susto: foi só por meio de um deles que me dei conta da extensão do imbróglio dos filhos de Tio Sam. Precisamente aquele que conta, já bem a caminho do final do filme, que passaram-se umas tantas semanas sem que o povo americano – essa coisa pesada como o livro de Suassuna e que por isso mesmo também muito intimida os plebeus chamada “povo americano” – soubesse exatamente quem ganhara a eleição. Pronto, novamente o detalhe me escapa: teriam sido três meses? É demais, me diz o bom senso. Por aí, arrisca a memória. Só sei de fato que o período foi tão longo – tão mais longo do que ficou na nossa memória coletiva – que Al Gore, aquele que depois passou a tirar uma onda de ativista de responsa contra o aquecimento global, resolveu jogar a toalha antes que as instituições do seu país tivessem de fazê-lo, o que seria bem pior. Fico imaginado se fosse um tal de José Serra no lugar dele... pobres instituições!

E ainda houve uma felicíssima descoberta, o documentário MONDO VINO. Aquele que só na aparência, embalagem, primeira impressão trata dessa frescurite moderna que é o consumo socialmente correto do vinho, origens da bebida, teores de excelência e quejandos. Necas. O grande lance do filme é mostrar, por meio de vinícolas e vinicultores de várias extrações e pensamentos, como aquele outro negócio bem menos nobre chamado mercado global está pasteurizando bebidas outras e não só a preferida de Baco – assim como o mundo que as fabrica, vende, consome. MONDO VINO é como uma janela que se abre para mostrar como as ingerências do mundo empresarial e financeiro têm o poder de solapar frágeis mas belas filosofias mercantilistas que davam alguma humanidade ao ato de consumir o que quer que seja. O mais políticos dos filmes jamais feitos, disfarçado de doc bonitinho sobre líquido socialmente recomendado. Fico pensando na cara que deve fazer grande parte do público que aluga o petardo querendo uma coisa e encontrando o seu inverso.

Isso eu também teria, de outra forma e em filme diverso, numa cena de REDE DE INTRIGAS – o único dos aqui citados que foi visto (revisto) já fora do período de turbulências da campanha presidencial brasileira. Novamente, um caso em que o tema explícito do filme esconde para o espectador menos atento as questões de fundo que ele também tem a capacidade de atacar. Se no MONDO VINO, a exposição da cultura empresarial das vinícolas desnuda o que há de pior na globalização, em REDE DE INTRIGAS começamos acompanhando as artimanhas mil de uma rede de televisão americana para conseguir audiência mas desaguamos mesmo é no momento antecipatório em que o executivo da empresa diz ao apresentador em transe que não existe mais capitalismo, comunismo e as várias gradações entre os dois sistemas. O que existe, reza o engravatado, é IBM, ATT &T e outras siglas instaladas nos tronos que recebem alegremente as bundas dos novos deuses. Isso em 1974, quando o filme foi feito: bem antes do 1989 que redividiu o mundo trocando a régua concreta do muro da vergonha pelos esquadros virtuais bem menos exatos da nova era liberal e financeira.

E todo o resto – a ameaça, no ar, do apresentador de se suicidar ao vivo e a cores para todo o país, com a conseqüente decisão da executiva em ascensão de fazer dele um item indispensável de audiência garantida – é detalhe, de natureza bem diversa daqueles de que falei quanto ainda estava na conversa sobre o filme RECONTAGEM. Ao fim e ao cabo, tudo isso quer dizer que, no período da campanha, tudo se tornou tão urgente que nem os filmes nem os livros sobreviveram ao impacto de sua presença. Mas será que é só em períodos assim? Ou seria sempre – e a gente apenas não percebe, porque, afinal, precisa aqui e ali de um tempo pra recompor coração e mente? Vamos ver no próximo lote de filmes a sacar na locadora – e nos livros que virão depois de um marco obelístico como é a PEDRA de São Suassuna.

*Para ler mais sobre essas e outras recentes sessões de cinema caseiro, vá à Hamaca, clicando aqui.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Nem nem


O exame do ensino médio virou um prêmio de consolação na retórica pós-eleitoral das viúvas serristas. Mal estourou a notícia sobre os mil e um furos na organização da prova, a tigrada de terninho que tanto pode estar no programa do Jô quanto nos painéis raivosos e travados da GloboNews jogou-se sobre a carcaça da incompetência colossal como cães cheirosos que suspendem as patas da elegância e se atiram afobados sobre um osso qualquer de rua.

Numa dessas sessões de descarrego do canal de notícias dos Marinho, Eliane Cantanhede, com aquela cara de pedicure de tucano derrotado, arreganhou os bem cuidados dentes quando se falou no primeiríssimo ponorama pós-eleições: “Gente, e o Enem?! O que é o Enem, gente?! Eu, telespectador privilegiado e ao mesmo tempo punido pelo modelo de comunicações no país, fiquei ouvindo aquela comemoração ziguezagear na minha mente, como um eco que gracejasse: “Gente, e a Eliane Cantanhede?! O que é a Eliane Cantanhede, gente?!” E a reposta veio, de algum momento da década de oitenta, quando uma outra estrela do jornalismo pátrio foi escorraçada da mais disputada bancada do país por transparecer certa simpatia por notícias ruins. Lílian alguma coisa, lembra dela? Não. Normal, afinal somos e reafirmamos todos os dias que somos um paiseco sem memória. Lílian-vale-por-um-bifinho dava notícias sobre o crescimento vertiginoso da inflação com um esgar de maldade satisfeita no canto do lábio. Foi chutada. Hoje, os jornais, os portais e as telas, das grandonas e defasadas às mais brilhantes e fininhas, estão coalhadas de Lílians mal amadas e ninguém vê o menor problema.

Mas o papo era sobre o Enem e é preciso que se diga: por pior que seja, por falho, por sujeito a furos, por vergonhosamente vazado, ele ainda é – ou talvez, por tudo isso mesmo, seja cada vez mais – um sistema nacional de seleção de alunos para o meio universitário superior ao vestibular tradicional, porque aberto a preencher vagas onde elas estão, calafetando as ociosas que, em última instância, são um luxo num país que precisa desesperadamente de educação, seja básica ou superior. A pior educação universitária será sempre melhor do que a negação de uma vaga para quem, ainda que não inteiramente preparado para o vasto debate que rege o mundo acadêmico, deve ter o direito de ingressar nele. E o Enem, bom ou ruim, bem feito ou detonado, realiza, favorece, fortalece, investe nisso.

Na verdade, o "defeito" maior do Enem - e aquele que nenhum comentarista bem pago das redes oficiais conceitua e explicita - é o fato de ele democratizar o acesso à universidade. E parece que tudo que democratiza para a massa o que antes era um privilégio numérico para poucos no Brasil passa antes por essa penitência pública de ser execrado por contrariar interesses bem privados. Com o Enem não seria diferente. Mas com ele, independente do apuro aplicativo da prova em si, muda a política de ingresso nos bancos acadêmicos. E isso, meu leitor, ninguém perdoa e poucos permitem. Este é o nó do Enem. O resto, não vale mais que um nem-nem de conversa dispersiva.

Gervázio, o retorno


Adivinhe quem me parou o carro ontem mesmo ali naquela mesmíssima faixa de pedestres entre o Palácio do Planalto e os anexos do Senado? Acertou: ele mesmo, Gervázio, o líder informal dos ratos expulsos dos porões do Planalto que sobrevive – sim, ainda sobrevive, mas o prazo de despejo se aproxima – nos porões da casa revisora do Congresso Nacional. É cada vez pior a situação de Gervázio, mas ele, como todo rato que se preza, guarda um pedacinho de queijo podre que pode lhe garantir não só a sobrevivência futura, mas até um certo charme final de ricaço decadente.

Às explicações: começando pela situação atual, substantivamente falando. A turma de Gervázio, se sabe, tinha pouca esperança mesmo de voltar aos porões do Palácio do Planalto. Mas eis que, na reta final da campanha presidencial, começou a surgir um cenário neoconservador que muito lembrou a Gervázio e sua gente os bons tempos dos generais de casacão que nunca deixaram faltar comida da boa nos subsolos do palácio. O cheiro de bonança vinha de uns papos sobre aborto, sapatas e panfletos apócrifos. De repente, os ratos notaram que o que havia de pior – quer dizer, de melhor, na perspectiva deles, claro – em certa religiosidade pátria estava mostrando suas garras e exibindo certa capacidade de articulação para chegar lá. E por um momento, Gervázio e seus pares viram a luz.

Mas foi uma ilusão que, ao não se confirmar, tornou ainda mais difícil até mesmo a atual circunstância da comunidade dos ex-ratos do Planalto. É que, além de não poder voltar à sua antiga moradia, Gervázio e os seus ainda se descobriram acuados na própria moradia provisória que encontraram, os subsolos do Senado. Com uma nova composição nos plenários e corredores da superfície lá em cima, ficou claro para os ratos que a partir de primeiro de fevereiro de 2011, data da posse dos novos senadores eleitos, não vai haver muito espaço de simpatia para com eles, os ratos.

A carta na manga de Gervázio – digo, o queijo podre que ele guarda em um buraco secreto – é a recente onda de neoconservadorismo racista que também emergiu do final da campanha e vem ganhando corpo até mesmo depois de proclamado o resultado da eleição. Se sabe que, onde há o tom de ódio social, a cusparada lateral diante de um legítimo nordestino de chapéu de couro e seus descendentes integrados à vida econômica e social do país e a repulsa aos desqualificados de todos os estirpes haverá sempre um rato por perto, metaforicamente ou não. Aliás, destaque-se desde logo, Gervázio e seus liderados choraram lágrimas há muito represadas ao ouvir o discurso de reconhecimento da derrota (!) de José Serra. Para o grupo de amotinados nos porões do Senado, o verbo belicista do candidato soou como iguaria de fim de noite temperada em molho de sarjeta ao luar. Coisa fina, pra quem é do ramo.

Enfim, os ex-ratos do Planalto estão na pior, mas não estão mortos.

*Na ilustração, o ator Luiz Carlos Vasconcelos em cena de "Romance do Vaqueiro Voador", de Manfredo Caldas - um dos melhores filmes para quem quer conhecer a Brasília real dos descendentes de nordestinos, para além da fama arquitetônica da capital do país.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Dino


Rex, matinê, Canal 100, Maciste, Dino De Laurentiis. Todas essas palavras, pelo mero fato de serem pronunciadas, têm o poder de acender no meu inconsciente o clarão das mais remotas salas de cinema. Hoje, ao abrir o habitual cardápio de notícias dos portais da internet, encontrei a informação sobre a morte de Dino de Laurentiis e me ocorreu, de pronto, a consciência do quanto a mera pronúncia do nome desse afamado produtor de filmes me remete instantaneamente - e não sem uma poética carga de sentimento - ao universo do cinema. Não necessariamente o cinema das grandes bilheterias mundiais, nem o cinema aprovado dos críticos mais abalizados. Tampouco o alternativo ou o conformadamente comercial. Todos esses e nem um deles, ao mesmo tempo. Porque basta ouvir pronunciado ou ler no jornal ou na revista o mero nome Dino de Laurentiis para eu me remeter, qual um foguete humano disparando rumo à sua própria e sentimental memória, para o mundo do meu cinema. Meu, e como tal de mais ninguém.

E isso porque Dino de Laurentiis foi o produtor de um dos filmes que mais me marcou a infância de menino dos anos 70, o remake de "King Kong" menos aclamado pelos críticos e mais amado pelos ex-garotos que fazem parte da minha pobre e abestalhada geração interiorana. Nâo bastava assistir ao filme em duas sessões, enquanto durasse a exibição ligeira que marcava a programação do velho Cine Rex, em Parelhas. Houve também, com qualidade diferente mais intensidade idêntica no fruir da emoção, o álbum de figurinhas que, como um storyboard mais soberbo, reproduzia em stills o conteúdo do filme a que a gente assistira na tela. Em um e outro, no cartaz do filme e na capa do álbum que o reproduzia para frisson de nossas retinas famintas de iconografia mais variada, lá estava a palavra mágica, o nome do produtor que hoje faleceu. E assim Dino de Laurentiis, aquele desconhecido, fundia nas impressões de nossas memórias em construção o seu nome ao do grande sucesso que lotava as sessões no prédio que anos mais tarde seria transformado em loja de madeira para construção.

Bem mais tarde, na juventude, seriam os diretores que reinariam absolutos naquela mesma memória em progressão que só entrega seus frutos maduros depois dos 40 anos de idade. Scorcese, Glauber, Coppolla e afins. Ficara para trás o tempo dos produtores, essa figura tão definitiva em um filme quanto os cineastas mais consagrados que todo intelectual de caderneta tem na ponta da língua. Dino foi, novamente, o pioneiro para o espectador que lhes escreve - e nessa condição permaneceu no filme do tempo, como uma relíquia esquecida, coberta por algum lençol branco produzido no tear das décadas. Qual um objeto de cena, trenó de Orson Welles perdido em subsolo de catedral empoeirada, traça audiovisual sagrada no altar de um cinema que tinha em palavras como Rex, Maciste, Canal 100 e Dino De Laurentiis seu catecismo pagão de crenças maravilhosamente fabricadas. Fosse arte ou comércio, transcendência audiovisual ou um vintém a mais na bilheteria onde alguém calmamente trocava dinheiro por senhas que davam acesso àquele outro mundo imerso entre as sombras da sala de projeção.

domingo, 7 de novembro de 2010

A presidente, o tempo e o parênteses


Foram mais de 40 postagens em um mês, média de duas por dia. Uma freqüência nunca vista desde que este blogue passou a funcionar, já lá se vão três anos agora em novembro. E depois, voltou um certo silêncio. O leitor deve ter se perguntado: esgotou-se o blogueiro, estafou-se o escriba? Sim e não. Depois do esforço textual do mês que antecedeu o segundo turno da eleição presidencial, o que todo mundo – e o Sopão incluído – mais precisava era de um tempo.

Todos precisamos dessa pausa. E não deixa de ser irônico o fato de a pessoa que mais necessita desse intervalo, a própria presidente eleita Dilma Roussef, anunciar que tiraria apenas quatro dias de descanso entre o anúncio da vitória e a volta ao trabalho com a equipe de transição. Só a duração desse recesso já diz muito sobre a presidente que teremos. Muito mesmo – bem mais do que o caminhão de análises, muitas comemorativas, outras tantas reservadas e tantas outras francamente contrariadas, feitas sobre o significado dessa vitória.

O fato é que é preciso dar tempo para que a vitória da continuidade seja assimilada. E todo precisam desse tempo, Dilma mais que qualquer um. O eleitor de Dilma precisa de tempo para se refazer do esforço pessoal que há de ter feito, de uma maneira ou de outra, para contribuir com a vitória (um blogue, uma tuitada perdida, uma conversa com um amigo indecido, um toque, o que seja). Também precisa de tempo o eleitor de Serra, pra não fazer como a tal estagiária de Direito que meteu os pés pelas mãos no teclado fácil do computador e confundiu desabafo com preconceito. Tivesse a moça contado calmamente até dez antes de cometer sua tuitada intolerante e talvez não o tivesse feito.

No filme “Nosso lar”, espíritos recém-desencarnados que chegam ao retiro espiritual em desassossego são estimulados a manter na boca, sem beber, o conteúdo de um copo de água. Religiosidade à parte, nada mais demonstrativo da qualidade desse tempo que se faz necessário agora. É preciso que todo mundo – eleitores, militantes, candidatos a ministro ou meros espectadores passivos que adoram não fazer nada no momento preciso só para terem o prazer fugaz de reclamar depois – encham a boca com aquele copo de água apaziguador. Não foi o que fez o candidato derrotado, com aquele discurso belicista construído com imagens de trincheiras logo depois do anúncio da vencedora. Poderia ser outro caso de combustão da gasolina verbal do tempo antes da hora, mas como o discurso do derrotado veio – quebrando os protocolos da boa educação – depois da fala da vencedora, há que se admitir que, nesse caso, tempo houve – faltou humildade mesmo. Água para Serra, nem que seja para manter a boca cheia e portanto impedida de pronunciar palavras equivocadas.

Ainda sobre o tempo, é preciso registrar um conceito extraído entre o sem-número de análises pós-eleitorais, especialmente na seara do jornalismo inconformado com o resultado das urnas. Foi dito, não com essa imagem mas com tal significado, que o governo Dilma que vem aí será um mero parênteses entre o período Lula que está terminando e a futura era que virá daqui a quatro anos com Aécio, Marina ou outro nome da oposição. E é como se Dilma não tivesse a legitimidade que acabou de obter na urna, como não existisse o mandato que ainda sequer começou. É a negação da vitória da maneira menos disfarçada. Dilma, nesta leitura, será um breve parênteses de quatro anos entre Lula e Aécio, ou Marina, ou mesmo o Serra “até mais” do discurso de contrariado reconhecimento da derrota.

Quem pensa assim novamente está subestimando a matéria do tempo. Pois ele, tanto quanto é necessário agora, como um piso sobre o qual serão construídas as bases do governo Dilma, estará presente no futuro imediato do país sob o mandato de sua primeira presidente. E não dá para compactar em um arquivo de nulidade arbitrário a extensão, o impacto e as conseqüências de um governo inteiro que vem por aí, queiram ou não os derrotados no pleito que ainda acabou de terminar. O tempo, sempre ele. Essa criatura maior do que os homens, pois que a este sobrevive com infinita permanência.

Agora, Dilma e os brasileiros precisam desse tempo de reacomodação de tudo e de todos. Amanhã, no ano que vem, em 2012 e até 2014, o tempo se vestirá com as roupas que os homens se dispuserem e conseguirem colocar sobre seu corpo ambíguo. De maneira que pode ser um engano pequeno confundir mandatos com parênteses, tempo com vontade. E o Sopão aqui, muito provavelmente, vai retomar sua lentidão reflexiva dos períodos normais, como quem faz sua genuflexão diante do deus tempo e admite a necessidade de mais espaço entre uma postagem e outra como intervalo essencial para que as idéias façam sentido e tragam suas pequenas revelações.

Aliás, vem daí o significado da palavra espanhola para jornalismo, “periodismo”, que destaca o caráter periódico, ou seja: etapas consideradas em intervalos mínimos, do melhor jornalismo. Coisa que o tempo real, com sua urgência desesperada e competitiva, deixou em terceiro plano. Mas essa já é outra história, que não se enquadra no tempo breve que deve ter esta postagem aqui.

Bennett e Lang


O baixista é um mafioso das emoções disfarçado de músico profissional. Ele despetala cruelmente a epiderme romântica do standard romântico que é "La vie en rose" como quem martela com ternura um coração desarranjado. Mas quem supera mesmo esse doce martírio é a dupla que interpreta a canção, estraindo de uma composição cantada e gravada à exaustão o que ela ainda conserva de mais sincero e pungente. O Sopão está falando da dupla Tony Bennett e K. D. Lang, o cantor americano e a antidiva canadense em duetos de escalpelar com beijos sonoros a pele do ouvinte no CD "A wonderful world". Era uma antiga obsessão do blogueiro, enfim satisfeita há algumas semans atrás - aliás a mesma em que se deu a aquisição daquela coletânea de Luiz Ayrão, só pra deixar claro como certas mistura sujas satisfazem o gosto musical torto da voz que lhe escreve agora. O CD está por aí, nas prateleiras caras e nas promocionais, nos sites de vendas on line e nos shows gratuitos do Youtube, de onde sai essa pequena amostra, disponível para a sua atenção e o seu deleite, bastando para isso que você clique bem aqui.

Sopão por aí












Outro dia em Pirenópolis, Goiás

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Bela noite no Alvorada


Calçadão do Palácio da Alvorada, nove-dez da noite desse domingão. Um grupo de abnegados simpatizantes petistas tenta mostrar, diante da residência oficial do presidente da República, sua alegria com a eleição de Dilma para a sucessão de Lula. Nada planejado, ao contrário: uma turma formada por casais, pequenos núcleos familiares, jovens buscando uma festa, gente querendo simplesmente desabafar a esperança contida depois de uma campanha tão acirrada e, em muitos momentos, injusta. Pouca gente, e não muito barulhenta. Bandeiras, algumas crianças e um espírito que lembrava o carnaval em Recife ou comício das Diretas Já. Outro grupo também estava ali, mas notadamente por obrigação – os repórteres e produtores de jornais, rádios e tevês.

O que essa gente toda, o narrador que lhes fala incluído, estava fazendo mesmo lá? O que queriam? Ver Dilma chegar para comemorar com Lula a vitória? Sim, naturalmente. Mas não necessariamente. Festejar, apenas. Também, mas não só. O que a gente queria ali, esses vários tipos de pessoas que, ao anúncio do resultado da eleição, tiveram o impulso de sair de casa e fazer alguma coisa, era expressar o valor dessa vitória. Exercer o direito de comemorar a continuação de um projeto de governo tão combatido pelos setores mais privilegiados e ao mesmo tempo tão aprovado pelos menos favorecidos. Se Dilma, afinal, entrou no Alvorada por outro caminho e não viu nem foi vista por esse grupo animado de plantão, nada se perde. Aqui, ali, naquele momento da noite de ontem, tudo se transformou, pela química contida na alegria da militância que usa como arma desacreditada o velho e bom entusiasmo. E que, com esse instrumento sem preço na mão, foi em grande parte responsável pelo resultado eleitoral de ontem.

Mas é preciso uma nota final sobre um desses militantes em particular que lá estava na porta do Alvorada. Era um galego de Florianópolis, baixinho, comum, classe média tradicional, roupa de loja de departamento e dono da mais brasileira das euforias. Enquanto os políticos chegavam em seus carros de janelas de vidro preto e Dilma não aparecia, esse cara animou todo o resto, deu voz ao pequeno grupo ali reunido, fez graça, divertiu e talvez mais do que ninguém expressou a importância da data de ontem.

Quando parou um carro de vidro preto e a janela se abriu revelando o passageiro Eduardo Campos, o galego de Floripa lançou o grito: - Viva Pernambuco! Quando Cid Gomes fez o mesmo antes de cruzar os portões do Alvorada, o galego petista-classe média-floripano arranjou um lugar no amontoado de repórteres e perguntou: - Tá feliz, governador? E era sempre assim, desde o momento em que apareceu no pedaço para verbalizar, no grito brasileiro que mistura cidadania com bom humor, o pensamento daquela gente toda reunida ali mas até então meio caladinha – com o silêncio dos gatos escaldados pela patrulha que não ousa se reconhecer assim. No momento em que chegou, o galego de Floripa já surgiu em grande estilo, na janela de um carro que parava, berrando para o céu: - Dilma, eu te amo!

Nisso, ele até levou uma pequena bronca, porque a declaração pública de amor eleitoral atrapalhou a audição do pronunciamento da presidente eleita, que o grupo reunido na porta do Alvorada via e ouvia aproveitando um pequeno monitor de televisão da TV Record ali à disposição. Só que o som era baixo como o quê – e quem queria ouvir melhor corria para ligar o rádio do carro, que fazia a fala de Dilma ecoar por aquelas paragens do Planalto Central em noite de festa. Pois o galego foi gritar justo neste momento.

Mas logo se enquadrou, desceu do carro, juntou-se ao grupo que assistia ao pronunciamento e, já no finalzinho, com sua bandeira em punho, como que para não perder o espírito entre gaiato e cidadão que deu destaque à sua presença naquele tempo e lugar, pilheriou, para a graça de todos:
- Ah, Dilma, vem que eu quero rolar com você neste laguinho!

*A propósito: como disse, o lugar estava cheio de repórteres setoristas e produtores de tevê, entre eles colegas que a gente conhece da comunidade dos jornalistas de Brasília. O detalhe é que nenhum deles reparou no papel exercido ali pelo galego de Floripa. Ninguém o entrevistou, ou quis saber quem ele é, as razões objetivas de tamanha euforia, o que o levou a comemorar daquela maneira. Não, estavam todos ali, repórteres, setoristas e produtores, para gravar “sonoras” (que é como entrevistas curtas são chamadas no jargão das redações de tevê) com políticos, cumprindo pautas pré-estabelecidas que não abrem espaço para o imprevisto, como a manifestação autêntica do tal galego. Houve um tempo em que o jornalismo não era assim, tempo em que o galego seria visto como um personagem digno de nota, reportagem, destaque. Agora, não: é todo mundo e cada um cumprindo sua parte na máquina fria da notícia pensada em redações fechadas, como quem coloca um parafuso a mais na engrenagem. Uma pena.

*Uma grande repórter sem diploma que conheço, Maria Isabel, minha sogra, informa diretamente dos bairros Pitimbu-Satélite, em Natal: às vésperas da votação, houve ali uma carreata atípica e, por isso mesmo, bem representativa do que está acontecendo no Brasil enquanto as redações se distraem com outros assuntos. Foi uma carreata de carroceiros em favor de Dilma. O tipo da notícia interessante, inusitada e significativa o bastante sobre o Brasil atual para NÃO aparecer com destaques nos jornais e noticiários da tevê.