terça-feira, 30 de março de 2010

Rejane, os impostos e o JN



Como o principal telejornal do país trata o tema da "justiça fiscal"? Com um mestrado na difícil matéria tributária, Rejane pesquisou e ofereceu respostas

Há certas coisas nesta vida que exigem coragem. Mamar em onça, mudar de cidade, trocar de profissão são apenas pequenos exemplos. Fazer mestrado exige coragem, disposição, flexibilidade e sobretudo uma espécie muito particular daquilo que comumente se chama de foco. Pois Rejane encarou tudo isso e um pouco mais. Pouco mais é pura maneira de dizer, porque o monstro que ela decidiu enfrentar e com o qual se viu finalmente à frente alguns dias atrás era muito mais temerário do que onça de mamilos à mostra, cidade desconhecida e profissão nova. Rejane resolveu fazer mestrado e isso já não é pouco. Pois Rejane resolveu fazer mestrado sobre matéria tributária - e eu duvido que, ao ler isso, você não tenha sentido um arrepio de resulsa teórica. Pois Rejane, não contente, resolveu fazer mestrado sobre matéria tributária analisando nada menos do que o telejornal mais visto e mais visado da televisão brasileira.

Pois ela fez, defendeu sua tese dias atrás, ganhou o título de mestre e eu vi tudo, de longe, tremendo de ansiedade, com aqueles monstros todos à minha frente - a matéria tributária, a tese, a antítese, os dilemas teóricos que ora levam para um lado ora para outro, o olhar atento da banca, o desempenho diante dos doutores e aquele momento meio angustiante e meio esquisito em que a mestranda deixa a sala, ao encerrar sua exposição de vinte (eu falei vinte!) minutos, para que os professores analisem seu trabalho e seu desempenho, a portas fechadas, só para depois dizer que, sim, a candidata foi aprovada. Dizem que é praxe, que dificilmente o orientador deixa que seu aluno ou aluna seja posto à frente da banca e, depois daqueles míseros vinte (reforço: vinte!) minutos de exposição de sua tese, seja, digamos, reprovado - essa palavrinha que tem muito mais a ver com o segundo grau, o terrível segundo grau de química e física, do que com o caráter maior da vida acadêmica em nível de pós-graduação. Não importa: todo o processo, especialmente aquele do dia da defesa da tese, foi para mim uma tortura a que me submeti, por companheirismo, com o máximo de civilidade disfarçada. Porque a minha vontade era ter um troço ali na sala praticamente vazia onde Rejane defendeu sua tese em vinte (sim, eu disse vinte!) minutos terminais.

Mas chega de falar de minha reação à prova de fogo de Rejane. O que queria dizer mesmo era da coragem dela - em oposição ao medo meu - de enfrentar um tema tão difícil, o da justiça fiscal. Que significa, antes que você caia na onda do mesmo Jornal Nacional que serviu de matéria de estudos para Rejane, a efetiva redistribuição da carga tributária conforme o nível de renda e consumo de cada camada da sociedade. Rejane analisou como o JN noticia este tema, o da justiça fiscal, e descobriu, pra começar, que para eles justiça fiscal significa outra coisa, bem diferente: menos imposto de maneira geral, porque, vocês sabem, para o JN, a Folha, o Estadão, o Globo e congêneres, imposto significa intromissão do governo na economia e só - e tudo o que mexe com o mercado é coisa do demo, primo próximo da censura e outras bestas sempre mantidas no bolso para a eventualidade de precisar serem brandidas (como em ano de eleição presidencial, por exemplo).

Mas a tese de Rejane é bem menos atentatória ao PIG do que minhas pobres postagens deste "Sopão": ela concluiu, com o distanciamento acadêmico que este tipo de pesquisa pede, que os temas tributários só entram no Jornal Nacional quando representam uma demanda bem imediata, do tipo "temporada de declaração do imposto de renda" ou "debate sobre a presença do Estado na economia". Sempre assim, ligado a algo bem factual; jamais como um assunto que pode mudar, estruturalmente, a situação da sociedade brasileira, nunca como um assunto importante a priori, do tipo que rende, por exemplo, séries de reportagens destinadas a ampliar o interesse da população por determinado tema. A conclusão de Rejane tampouco é pessimista: ela anota que é papel da sociedade, por meio de suas entidades representativa, forçar noticiosos como o JN a mudar seu enfoque do tema "tributo" - que, em outras palavras, há abertura para isso desde que a iniciativa venha de fora, já que o "mundo dos jornalistas", sobretudo o jornalista contratado da Rede Globo, é mesmo essa esfera limitada pelos interesses da empresa e muito dificilmente um repórter ou um editor vai furar esse círculo informal.

Então foi isso: Rejane furou um outro certo informal, aquele formado pela idéia de que teses de mestrado na área de comunicação têm sempre que versar sobre temas mais amenos e não podem ingressar por terrenos mais técnicos e áridos como é o da tributação. Foi aprovada, claro, mas de tudo naquele dia da defesa da tese, guardei algo em especial, dito por um dos dois professores que fez parte de sua banca - e justamente aquele que não vem da área de comunicação, mas da economia. Disse ele que a tese tinha o grande mérito de externar e explicitar esse fato real e silensioso, que é o de o tema da "justiça fiscal" praticamente não fazer parte do vocabulário do principal telejornal do país. Um silêncio sintomático, desde quando se sabe que se analisa a qualidade e as intenções de um órgão de comunicação muito mais pelo que ele não diz do que por aquilo que ele afirma.

Bibliotecárias de antanho (parte 2)


Se promessa é dívida, segue agora a segunda parte da série de histórias das bibliotecárias de nossas (a esta altura, já tão distantes) infâncias.

Estamos, um grupo de garotos curiosos, fuçando as estantes da biblioteca municipal, naquele silêncio que só os anos 70 podiam oferecer em tais lugares. Passamos as lombadas da coleção de Érico Veríssimo e nos aproximamos perigosamente da parte onde ficam os livros de Jorge Amado, berrantes capas vermelhas, gabriélicos apelos de mãos esticadas para leitores potenciais.

Aproxima-se uma bibliotecária de cabelos primorosamente arrumados - um corte moderno para a época, curto, penteado meio jogado para trás -, brincos enormes, unhas rubras compridas e afiadas como facas de cozinha, sorriso sério de dentes serrilhados e um puxão de ironia no canto direito da boca que brilha feito neon de tanto batom. É ela chegar perto, com o toc toc toc dos saltos quebrando o clima monástico e já pressentimos - lá vem bomba.

Ela levanta a voz e indaga, quase que já respondendo, e praticamente já repreendendo também, pra encerrar a conversa:

- E vocês vão ler "ruuumances"?

Peço desculpas pela grosseria da grafia da palavra "romance", mas não há outro jeito de mostrar como foi que a bibliotecária pronunciou este vocábulo da língua portuguesa, recobrindo-o com uma camada de obscenidade proibida e ao mesmo tempo convidativa que o faria perdurar por vários anos nas nossas mentes como algo bem interessante.

Pois é, corriam os anos 70 no Seridó brasileiro e havíamos acabado de cometer o supremo pecado de pensar em ler "ruumances".

Pelo menos ela não notou que a gente estava a um passo da estante onde acenava, diabólico, "O Amante de Lady Charteley" - que, aliás, apesar da bibliotecária, deve ter sido um dos livros lidos do acervo municipal.

Para refletir (Entreblogues)


"A preocupação de Lula com o hipotético estudante que, daqui a trinta anos, se debruçará sobre mentiras quando folhear o noticiário dos grandes jornais, não só tem fundamento como deveria preocupar os historiadores. Afinal, qual será o valor dos nossos periódicos como fontes primárias de consulta? Em princípio, nenhum. Salvo se a pesquisa for sobre o discurso noticioso e os interesses mais retrógados."


Palavras do sociólogo Gilson Caroni Filho, nas páginas da agência Carta Maior. Leia o texto completo clicando aqui.

sexta-feira, 26 de março de 2010

E os royalties da mangaba?


Se a moda pega, e não é demais lembrar que os cariocas são referência em lançar moda, em breve as capitais brasileiras, pelo menos aquelas mais “pra frente”, serão sacudidas pelas mais incríveis passeatas. Como nos velhos tempos, hein? Só que agora, no lugar de causas cafonas como “reforma agrária já” ou “fora não sei quem”, vamos marchar defendendo o que um dia foi indefensável: nossos interesses mais particulares em primeiro lugar.

Pena que essa confusão toda provocada pela revisão na distribuição dos royalties do petróleo não tenha estourado em dezembro. Se tivesse sido assim, a moda das passeatas a esta altura já estaria consolidada, e o último verão teria sido muito mais divertido. O verão das passeatas. Com o Brasil inteiro copiando – e, a esta altura, o Rio já achando meio fora de moda. Mas, assim como a tal distribuição dos royalties, nem tudo é perfeito.

O fato é que, de norte a sul do país, não foram poucas as capitais que se coçaram de inveja quando viram o povo nas ruas do Rio batendo panelas em favor do dinheirinho que o precioso líquido viscoso deixa na terra do Pão de Açúcar. No Rio Grande do Sul, alguém há de ter suspirado: “Era isso que a gente tinha que fazer em favor do nosso churrasco. Cobrar royalties, e caros”. Numa mesa de bar no Ceará, duvido que não se tenha ouvido um comentário do tipo: “Taí, a gente devia ocupar a praia de Iracema com uma manifestação em favor dos royalties pelas risadas que nossos humoristas proporcionam ao país. Só Renato Aragão, Tom Cavalcanti e Chico Anísio já dariam uma fortuna.” E os royalties do carnaval pernambucano, pela animação certa em fevereiro? E os rendimento dos ribeirinhos da Amazônia, que preservam a floresta com a vida simples que levam?

É, para onde quer que se olhe no mapa do país há algo que merece, tanto quanto o petróleo do Rio, um belo pagamento de royalties. Basta checar os argumentos que foram usados pelos fluminenses em favor deles mesmos para conferir. Alguns argumentos, pelo menos, porque muitos não merecem nem comentários. Um deputado chegou a dizer no plenário da Câmara que o Rio é a fusão do Brasil, o lugar onde todo o país se encontra. Por um momento eu pensei que ele estivesse falando de Brasília – e, por tabela, reivindicando royalties sobre a burocracia federal. Mas, não – era sério: o cara acha que, por ter a Rede Globo e o Projac, o Rio é a síntese do Brasil. Belo critério. Se for assim, também podemos dizer que a Rede Globo é que devia pagar royalties ao Brasil todo, pelo fato de usar de uma concessão pública para vender um estilo de vida que praticamente é próprio de apenas um dos municípios brasileiros. Sem falar dos abusos cometidos especialmente de quatro em quatro anos sem que ninguém possa fazer nada (quem fizer certamente vai ser taxado de adepto da censura, mas isso é outra história).

Enfim, o argumento central é: o estado ou município produtor de petróleo precisa receber mais em royalties do que o resto do país porque, afinal, ele precisa suprir essa indústria de exploração e refino de uma infra-estrutura que custa dinheiro público para construir. Anrã. Pois se o argumento é este, vamos resolver essa história analisando uma outra indústria, esta local, só pra gente ver como nós mesmos, potiguares, estamos sendo injustiçados com base nesse mesmíssimo princípio. Aliás, um parênteses: e nós não somos também produtores de petróleo, ou Mossoró deixou de existir? Só ouço falar de Rio e, quanto muito, do Espírito Santo. Parece que também neste ponto o critério do pagamento está mais para o fato de ser sede da Rede Globo do que para o de ser dono de subsolo de onde se extrai o ouro negro.

Bom, segundo o princípio do reembolso pelos gastos com infra-estrutura, a verdade é que o Rio Grande do Norte aqui em cima bem merece uma parte da grana. De que estou falando? Ora, dos royalties do turismo, pra ficar num primeiro exemplo. Paulistas, cariocas, italianos, portugueses e tantos outros chegam em bandos às nossas praias, ocupam nossos hotéis, gastam seu rico dinheirinho nos nossos shoppings, alguns até resolvem aqui facilmente suas carências sexuais, e o Brasil não paga nada à gente por isso? Ora, o turismo também tem um preço, também tem seu “custo Brasil”.

É preciso manter a cidade limpa, as praias despoluídas, os acessos aos pontos turísticos em boas condições. E tudo isso sai do nosso bolso. Quer ver mais? Os melões que a região oeste produz para exportação também precisam ter seu contraponto em rendimentos distribuídos ao estado e aos municípios. Sim, senhor, os royalties dos melões, os royalties da macaxeira, os royalties da mangaba. Todo mundo gosta dos melões potiguares e de carne de sol com macaxeira, certo? Todo mundo tem uma queda por aquele sabor pegajoso do suco de mangaba, mas ninguém se pergunta quanto custa ao solo de Macaíba produzir tamanho néctar; é ou não justo recompensar a cidade pagando royalties por isso? Por esse critério, Macaíba é a nossa Macaé e assunto encerrado.

Então, moçada, é isso: bora sair às ruas em passeatas dominicais, de Redinha a Ponta Negra, cobrando os royalties que o país esqueceu de nos pagar. Os royalties do ventinho que abana os turistas, os royalties do sal de Areia Branca, se brincar até os royalties do sol, que aqui é mais freqüente e mais intenso do que em grande parte do país. E, se motivos outros não houver, não tem problema. Nem por isso a gente vai bancar o bocó fora de moda: saiamos às ruas em passeatas que cobram os royalties da estupidez, aquela matéria em que tantas vezes, vamos admitir, também somos pródigos.

Embora nesse critério a gente não seja nem melhor nem pior do que grande parte dos demais estados brasileiros – o que só dificulta e realimenta o eterno conflito federativo e tributário.

*Publicado no Novo Jornal (Natal - RN)

quarta-feira, 24 de março de 2010

Notas sobre as bibliotecárias de antanho


O mundo mudou tanto nos últimos anos que vez em quando a gente se pega lembrando de coisas que nem têm tanta idade assim para serem chamadas de "antigas", mas definitivamente ganharam uma camada de mofo simbólico que restaurador nenhum consegue remover. Não que sejam, necessariamente, coisas ruins, com artrites defasadas e outras marcas borolentas de um tempo morto e enterrado.

Por exemplo: as bibliotecárias. Em tempos de youtube, facebook e congêneres, é de se perguntar - e as bibliotecárias, como é que ficam? Ainda existem? Decerto que sim, como diria, assim nesta linguagem pré-datada, uma delas. Mas certamente não com a mesma feição, aquele estilo entre maternal e autoritário de antigamente.

Tenho cá comigo três histórias inesquecíveis envolvendo bibliotecárias. Não por terem mudado minha vida ou me aberto os olhos para realidades novas, coisa assim. Pelo contrário, são causos ridículos, pequenos, até singelos, se é o caso de usar uma outra palavra que condiz com o antigo mundo desta profissional de antanho. Mas são marcantes, na sua simplicidade quase poética - na sua inocência de uma era que definitivamente se foi - as tais três histórias.

Vamos a elas.

História número 1) Sou uma criança, não entendo nada. Mas descobri a biblioteca municipal da minha pequena cidade e vivo lá, lendo uns livros e pegando outros emprestados. Coisas de leitor recém-apresentado a este mundo de ficção, livros de letras grandes, figuras maiores ainda, textos curtos e emoções de fôlego longo.

Seleciono, ansioso, um livro. Só um. História curta, ilustrações vastas, como têm sido os últimos que tenho folheado, dado à pouca idade do leitor em progressão. Vou ao balcão da bibliotecária, ela anota tudo na ficha, data de devolução (o dia seguinte), eu assino onde devo, sentindo a importância da minha tenra pessoa.

Ok. Trâmites bibliotecários importados, sigo com o livro debaixo do braço para o armazém onde meu pai, feirante ou mangaieiro (você escolhe o termo, dá no mesmo), estocava as frutas e verduras que venderia no fim de semana. O armazém era grandão, meio escuro, uma caverna perfeita pra gente entrar num livro que prometia aquela aventura infantil de grandes possibilidades.

Leio, leio, no ritmo da boa ansiedade e, é claro, rapidinho chego ao final da história. E não é que bateu aquela vontade de ler outro livro na sequência? Aquela fome de leitura, de informação e fantasia, tudo misturado.

Ok. Pulo da ruma de sacos de cocos onde estava imerso em minha leitura e pego o rumo da biblioteca, que não fica muito longe. Paro diante da bibliotecária disposto a devolver o livro que acabei de ler, antes mesmo do prazo estipulado, mal vendo a hora de seguir para a estante das obras infantis e escolher outro para ler naquele dia mesmo.

"Não", corta a bibliotecária. "Não o quê?", penso eu, ainda novato na matéria de pegar livros emprestados.

"Não pode devolver hoje não, só amanhã."

"Mas eu já acabei de ler e queria devolver pra poder pegar outro."

"Imagine! Não pode. Olhe aqui a data de devolução."

Olho, com os olhos grandes de menino faminto por mais um livro.

"Tá aqui. A data de devolução é amanhã. Você não pode devolver hoje não."

"E não posso pegar outro hoje mesmo?"

"Claro que não. Primeiro tem que devolver esse aí."

"Então tá certo. Quero devolver, tome o livro."

"Não posso receber hoje. Só amanhã, que é a data da devolução".

Ah, bom. Quantos anos eu tinha? Sete, oito? Quantos anos tinha a bibliotecária cujo nome e cujo rosto esqueci? Vinte, trinta? Por aí.

Hoje, contando a história que parece ter se passado alguns anos antes de Cristo, posso dizer que não guardo nenhuma espécie de raiva da bibliotecária. Lembro que fiquei desapontado, mas como era apenas um menino, devo ter arranjado outra coisa pra me divertir, seguro de que o dia seguinte chegaria logo e lá estaria eu de volta, enfim devolvendo livro lido e tendo a chance de pegar outro. Ou outros.

Hoje, o sentimento que tenho para com aquela antiga bibliotecária - que já então deveria ser o que a gente pode chamar de uma pessoa antiquada - é até de uma certa ternura. Porque ela, coitada, na sua ignorância ritual, na sua obediência burocrática à prova do olhar de uma criança ansiosa, talvez tenha contribuído pra fazer de mim um leitor mais insistente e teimoso.

Do tipo que não se deteve diante de um primeiro e inesquecível "não" - e se manteve próximo aos livros, apesar do cerco equivocado das bibliotecárias de um tempo que não se fabrica mais. O que, por ironia, acaba me deixando até com uma estranha espécie de saudades delas.

*As histórias número 2 e 3 ficam para as próximas postagens, pra não abusar da extensão dos relatos.

*A ilustração é a capa da edição de "Robinson Crusoé" pela editora Brasiliense, um clássico infanto juvenil que peguei emprestado na mesma biblioteca e que jamais consegui ler na íntegra. Uns poucos parágrafos iniciais eram algo tão instigante que eu precisava parar para absorver e, nisso, nesse ler e parar, acabou ficando para trás.

Um velho Spielberg na Hamaca


Não há dúvida: Spielberg é sempre encantador e nunca deixa de prender a atenção. Ver qualquer um de seus filmes é como regredir à idade em que a gente ainda estava descobrindo o mundo - desde o formato de uma boa até a primeira excursão escolar. Na sala escura, o espectador também projeta sensações que pareciam liquidadas. Quando tudo parece esgotado, visto, revisto, banalizado, lá está ele nos abrindo de novo os olhos e um certo espírito contemplativo que parecia morto e enterrado.

Leia o texto completo aqui.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Do carnaval que passou











Uma chuvarada de imagens para abrir a semana do "Sopão": todas do carnaval passado, quando Carlos Magno, Rosa Lúcia, Pedro e Luís estiveram com a gente aqui em casa, no bloco Galinho de Brasília, nos buracos do Congresso Nacional, em Pirenópolis (aquela foto em que estão todos à mesa do restaurante) e diversas outras paragens. Ainda estou devendo as histórias, mas elas virão. A maior parte das fotos é de Pedro Andrade, aquele talento fotográfico ainda não descoberto que divide uma rede com Cecília num dos retratos.

sábado, 20 de março de 2010

O governador foi preso. Viva o governador!


A esta altura, escrevendo com uns dias de antecedência, não posso afirmar que o governador afastado do Distrito Federal, José Roberto Arruda, ainda esteja preso. Pode ser que sim, pode ser que não. Mas nada desmancha a evidência de que ele efetivamente foi preso. Se não o mantiveram na tal sala de dez metros quadrados são outros quinhentos, porque a imagem simbólica da prisão a esta altura é leite derramado. Um fato histórico, disseram muitos. Uma lição para os que estão soltos, provocaram outros. Uma fato lamentável, teria dito o presidente Lula, numa frase que, se dependesse do interesse de muitos outros, teria tido mais repercussão do que a própria prisão de Arruda.

Mas nada disso interessa. A prisão e o afastamento do governador são aqui apenas um pretexto banal, um tropeço distraído da História, para um problema maior – e permanente, do tipo que pode acontecer a qualquer momento, em Brasília, João Pessoa, Sorocaba ou Natal (estejam alertas). É aquele tipo de problema que todo mundo evita sequer comentar, aquele assunto que provoca tosse na mesa do almoço e instala silêncios constrangedores nas reuniões de família. Sim, amigos, por trás do fato histórico da prisão de Arruda está algo intolerável, o pior dos mundos, o fantasma absoluto que ninguém, seja potiguar, baiano, paulista ou brasiliense – ou uma mistura de todas essas coisas, o que é muito comum por aqui, no Distrito Federal – deseja sequer imaginar.

Este fantasma é a ausência de poder, aquela coisa que até no nome soa mal – a "vacância do cargo". O cidadão aceita tudo, perdoa qualquer deslize, admite qualquer falcatrua, curva-se a qualquer ditadura. O que ele não concebe, de maneira nenhuma, é não ter a quem recorrer (ou de quem reclamar, dependendo apenas da perspectiva pela qual se coloque o problema). Cheguei a essa conclusão após ouvir o comentário de uma colega de trabalho, no momento em que começou a crescer a hipótese de uma intervenção federal em Brasília. A colega reagiu: "Não quero saber se o governador vai ser Paulo Octávio (informação para quem chegou de Marte: àquela altura, antes da renúncia, o vice ainda era o governador em exercício), se vai ser o presidente da Câmara Distrital, se vai ter nova eleição, se vai ter interventor! O que eu quero saber", enfatizou a colega de repartição, "é se vão terminar os viadutos de Águas Claras".

Neste ponto, peço paciência, mas é preciso acrescentar umas informações de natureza local: Águas Claras é uma das cidades do Distrito Federal, entre o Plano Piloto e Taguatinga. Um paliteiro urbano que surgiu nos últimos anos (porque lá a altura máxima para os prédios é bem maior do que os seis andares permitidos no Plano) sem muito planejamento urbano. Sobretudo, sem vias de trânsito capazes de escoar o fluxo de carros que congestionam o acesso às asas Sul e Norte. E o tal viaduto, cuja construção por si só já vem causando um transtorno tremendo, era a esperança de resolver o problema. Para efeito de comparação, Águas Claras é alguma coisa como Nova Parnamirim, se todas aquelas casas e condomínios horizontais do bairro colado a Natal fossem convertidos em prédios de vinte andares. Sentiu?

Então, retomando: para a colega, que evidentemente eu estou usando aqui como uma espécie de "avatar" de grande parte da população do Distrito Federal, o problema não é nem a corrupção atribuída a Arruda, tampouco a prisão do governador afastado e muito menos a definição sobre quem vai sucedê-lo no governo, encerrando ou pelo menos diminuindo esse cipoal de dúvidas ético-institucionais. Para a colega e "avatar" do cidadão brasiliense médio – por sinal, o mesmo que elegeu Arruda e estava pronto para reelegê-lo em outubro – o que interessa é haver qualquer governo que seja, capaz de concluir os viadutos de Águas Claras.

É de dar o que pensar – e foi assim, pensando o que não devia, que me ocorreu essa evidência, útil não só para Brasília mas também para Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Boa Vista ou Natal (nunca se sabe): o que o cidadão médio não suporta, no fundo no fundo, é a ausência de governo. Deve ter alguma coisa a ver com ausência de pai, real ou simbólico, alguma leitura psicanalítica que se mete na política sem ser chamada. Também pode ser alguma coisa mais mítica, ligada à ancestralidade do ser humano, aquele tipo de sentimento que, se você puxar bem a linha do novelo, vai bater lá na Europa da formação dos Estados nacionais, do fim da idade média – essas coisas sofisticadas que dão um sentido à barbárie e salvam a gente da selvageria completa.

Não por outro motivo, a prisão do governador Arruda me lembrou aquela secular sentença que demarcava a passagem da coroa nas mais célebres monarquias que o mundo conheceu: "O rei está morto. Viva o rei!". Dizem os especialistas que tal frase se fez necessária no curso da História mais remota, em tempos de fossos, torres e grilhões, para acabar com algo muito temido pelo povo de então: o intervalo entre a vigência de um reinado e outro. Morto um rei, bastava dizer a frase para proclamar, antes mesmo daquele ritual complexo que é a coração, que um novo rei já estava imediatamente no trono – mesmo que naquele momento o novo monarca fosse um garotão tropeçando nas copas de vinho largadas na última festa nos corredores do castelo.

Interregno, acho que era assim que chamavam. Os súditos tinham pavor do interregno, aquele vácuo entre o reinado de um João I e um Joãozinho II. Pensando bem, no meio dessa confusão política em que afunda o Distrito Federal, alguém podia lembrar disso, criar coragem e fazer a proposta no almoço de domingo: que tal reinstalar a monarquia em Brasília, assim a título de teste para o resto do país? Com isso, não teríamos interregno, os viadutos estariam salvos e ainda ia pegar muito bem no high society internacional.

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

Sopão por aí





De cima para baixo, 1) prédio histórico no centro de João Pessoa; 2) uma casa de sítio na estrada entre o Seridó potiguar e Campina Grande; 3) canoa no Gargalheiras, em Acari (RN).

quinta-feira, 18 de março de 2010

Livro certo, hora errada


Que existem livros que a gente lê com a idade errada, todo mundo sabe. O problema é que a gente sempre imagina que o livro lido na idade errada é aquele para o qual o leitor não tem ainda experiência e amadurecimento para entender. Como ler o "Ulisses" de James Joyce com 18 anos ou encarar o "Grande Sertão: Veredas" de João Guimarães aos 15. Não que eu tenha lido Ulisses - ainda estou naquela de achar que é um livro tão desafiador que pode muito bem esperar pela aposentadoria; a minha, claro, não a dele, o livro. De Guimarães acho que posso dizer que sempre foi um prazer revelador justamente pelo fato de ter sido degustado no momento certo - nem muito cedo, quando poderia parecer um prato frio e de gosto esquisito, nem muito tarde, quanto daria aquela tremenda sensação de "como é que eu não descobri isso antes?".

Não é nem de um - o Joyce desconhecido e o Guimarães aproveitado - nem de outro que queria falar. Queria explicar, sem gastar muitos parágrafos, porque não bateu muito bem comigo um dos livros mais badalados do mundo pós-literário dos últimos anos. Pois é, senhores de mais de 32 dentes, só agora eu li "Alta Fidelidade", o romance pop de Nick Hornby. Peguei o livro num impulso, na biblioteca da Universidade de Brasília e empolguei-me com os primeiros capítulos, apenas para, mais tarde, perceber que é o tipo de relato que, digamos assim, "faria minha cabeça" se eu tivesse 20 e poucos anos - pra quem não fez as contas ou avaliou mal o meu rosto quando me viu de passagem, estou precisamente no ponto 4.4 da escalada ritcher da vida. Resultado: o momento daquele livro, pra mim, passou. É pena, porque se tivesse 19 anos eu tenho certeza de que iria colocá-lo no mesmo patamar pop-sagrado onde coloquei - eu e muita gente - o "Feliz Ano Velho" de Marcelo Rubens Paiva.

Pois é isso mesmo: ler agora este "Alta Fidelidade", que é um monólogo até divertido sobre um Peter Pan londrino e moderno da geração que veio depois da minha, é como reler "Feliz Ano Velho" sem perceber. É bom? É. Tem, ah... "conteúdo"? Tem, sim, senhor. O cenário das confissões de Rob Fleming, o personagem que depois do filme ficou mesmo com a cara do ator John Cusack, é um mundo de música, rock, blues, jaquetas envelhecidas e garotas, garotas, garotas, num conjunto que estabelece aquela sintonia bem próxima ao que fez parte do mundo de todo mundo quando jovem mancebo, pra usar a expressão de um amigo com quem dividi belos momentos dos anos oitenta. Mas isso é enfeite, adorno escrito, e o fundamental é que o narrador é tão imaturo, coitado, que a certa altura parece com um amigo que a gente, sem querer e sem ser injusto, acabou deixando para trás. Não porque não gostasse dele, não por maldade, muito menos por desprezo ou horror - mas porque o tempo passa para todos e não havia mais como não deixar de ignorar isso.

Ah, você tem 45 anos com uma cuca de 25? Então vá em frente, irmão. "Alta Fidelidade" vai iluminar seus caminhos, ao menos antes de você resolver agir e caminhar à luz de certa lanterna do futuro.

Saudades do "clube das leitoras acarienses"


Assim que foi criado, já lá se vão uns três anos, esse blogue passou a contar, quase que de imediato, com um grupo inesperado - inesperado pra mim, que nunca espero muito de nada - de leitores. Leitoras, pra ser mais preciso. Leitoras acarienses, para ser mais preciso ainda. E já que a precisão se faz tão presente nesta história, eu deveria citar os nomes dessas leitoras, listá-las, perfilá-las, agradecer a cada uma delas e por aí afora.

Pois, como se dizia antigamente, "aí é que está o busílis". Minhas leitoras acarienses eram todas anônimas, embora eu soubesse muito bem que elas existiam, que liam o blogue, que comentavam no dia seguinte quanto se encontravam e tal. Por isso mesmo, passei a chamá-las de "o clube das leitoras anônimas acarienses".

Se por acaso ou qualquer outro motivo eu duvidasse de que "o clube das leitoras anônimas" existia e continuava lendo este pobre "Sopão", não precisava me preocupar muito. Porque, mais cedo ou mais tarde, elas davam um jeito de me mandar um recado - sempre cifrado, claro, como convém a um grupo conhecido como "clube das leitoras anônimas acarienses".

Brincadeira à parte, de uma delas sei o nome - Rosália - e por ela tenho um carinho especial. Porque Rosália era o rosto visível daquele grupo envolto pela névoa dos bons mistérios: era a única a postar comentários aqui no blogue. Tivemos até um pequeno entrevero ocasionado por um mal entendido que, ao contrário do que você pode concluir, fez foi nos deixar mais próximos.

Em Acari, de férias, nas programações movimentadas da festa de agosto, minha cunhada, Sandra, vez em quando encontrava as leitoras anônimas do grupo no meio do agito noturno e me apontava: - Aquela ali é fulana, ela é uma das leitoras do seu blogue. Eu ficava com uma sensação esquisita, uma mistura de incredulidade e orgulho contido. É que a gente sempre acha que ninguém lê algo tão gratuito como é esse bloguezinho fugaz. Também batia uma certa empatia tímida que me impedia de ir lá, falar com elas, agradecer, saber o que achavam das postagens e tal.

Ou talvez fosse só um desejo de manter tudo como está: aquele distanciamento entre escrevinhador e leitor que garante o mistério da comunicação. Se eu fosse lá, falasse com elas, mantivesse um contato de outra espécie que não aquele estabelecido pela palavra escrita, talvez metesse os pés pelas mãos, fizesse algum comentário desapropriado, minha voz soasse meio engasgada - enfim, essas coisas que acontecem quando a gente fica nervoso. E aí, pronto, lá se vai a empatia que estava lá, quieta no blogue, sem precisão de mexerem nela.

Um dia, estava com Rejane - e com Cecília no colo - esperando um ônibus na parada da Ulisses Caldas, em Natal, quando se aproxima uma mulher muito simpática e sorridente e cumprimenta a gente, e puxa conversa, e anima aquele momento de espera. Olho pra Rejane meio que pedindo ajuda, porque não conseguia indentificar a feliz e inesperada interlocutora. Pois eu nem preciso perguntar nada, que a figura diz logo que conhece a gente do blogue - e que nos reconheceu por causa de Cecília (na época, havia uma foto pequena de Cecília comigo na template do "Sopão" que eu, acidentalmente, apaguei e nunca mais recoloquei). Nada mais "clube das leitoras anônimas acarienses" do que esse encontro na rua. Tenho certeza até hoje que aquela pessoa faz parte do clube, ainda que seja como simpatizante.

Antes de chegar ao ponto que justifica essa postagem - e esse tremendo recado para o "clube das leitoras anônimas acarienses" - preciso dizer que elas não moram, necessariamente, em Acari. Elas "são" de Acari, carregam esta condição onde quer que estejam, e isso, se você conhece alguém que nasceu ali, naquela bela cidade do interior potiguar, sabe que fará toda a diferença. Eu soube, por exemplo, que o "clube" costumava caminhar naquele calçadão da estrada de Ponta Negra, em Natal, e que justo este momento da caminhada matinal era a hora em que elas comentavam o que saíra nas últimas postagem do "Sopão".

Bom, agora o recado, sem firulas: ando sentindo falta do "clube das leitoras anônimas acarienses". Nunca mais ouvi um comentário sobre elas, nunca mais uma notícia sobre como reagiram a determinado texto, nunca mais um sinal como a moça da parada de ônibus da Ulisses Caldas, nunca mais, nunca mais. E como faz falta, viu?

Alô, Rosália, você ainda está aí? Por caridade, reative o clube, renove as carteirinhas, organize novas reuniões informais como aquelas das caminhadas na estrada de Ponta Negra e eu prometo que nas próximas postagens vou dar um jeito de pegar de novo o caminho das crônicas seridoenses, do mundo que vive à sombra do maçiço da Rajada, do vapor algaboreiro do lugar de onde viemos, vocês e eu.

Capaz até de eu fazer uma promessa pagã, na esperança vã de ter vocês de volta: prometo, na medida do possível, passar o Natal deste ano em Acari, como o fiz na época da criação do blogue, numa jornada interiorana que me rendeu um punhado de boas recordações, vastos centímetros de textos no blogue ainda recém-criado e o prazer de ser lido por todas vocês.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Acorda, Samarone!

Jogo rápido pra gente não perder a conexão: e Cuba, hein? E Lula, hein? E Samarone, rapaz? Pois é, nos últimos dias, nos altos e baixos de quem está por cima e quem foi lá pra baixo, a gangorra virou contra Lula e a favor de Samarone Lima, o autor do "Viagem ao Crepúsculo", que comentei aqui já lá se vão uns tantos metros de postagens página abaixo.

Ou bem me engano, ou acontece o seguinte: o novo estrelado das mazelas cubanas nas páginas dos jornais pátrios, esse acesso de humanidade que acomete as grandes famílias dos jornalões brasileiros como se fosse a incômoda coceira da decência, teve efeitos previsíveis por um lado e inesperados por outro. O previsível, embora a gente não possa falar de algo mensurável neste caso, é o último tropeço de Lula, essa boca falante que parece nada ter feito por este mesmíssimo país - atenção que me refiro ao Brasil e não a Cuba. Lula, está comprovado pelos comentários mais recentes sobre Cuba (e não sobre o Brasil, ao menos isso), é aquilo mesmo que a gente pensava: ótimo quando faz alguma coisa, péssimo quanto fala. Ás vezes, é verdade, embaralha, e ele comente algum acerto verbal, ainda que usando termos escatológico-populares, como aquela história de "tirar o povo da merda". Mas deve ser a exceção que confirma a merda, digo, a regra.

No fim das contas, tirada a prova dos nove, deve ser "menas" ruim o fato de que o que ele faz - sua política, sua visão de governo, sua intervenção como presidente da República - ter mais efeito prático do que o seu verbo, digo, a sua língua. Menos mal. Porque, em passado bem próximo, já tivemos exatamente o oposto no mesmíssimo cargo eletivo - aquele tipo bem falante, de concordância acima de qualquer deslize, cuja "práxis" (é assim que se diz, povo?), infelizmente, não esteve à altura do rigoroso e elegante estilo verbal.

Bom, falta falar do imprevisível. Pois o improvável é o livro de Samarone, uma pequena edição de uma editora regional de ótimas pérolas discretas, de repente ter se tornado uma publicação vital, procuradíssima, indispensável. Não sei mesmo como ainda não foi descoberta pelos resenhistas probos da "Veja" e similares. Samarone e seu "Viagem ao Crepúsculo", antes quase marginais do mercado editorial, bombaram, entraram para o índex ao contrário da grande mídia brasileira, chegando até mesmo ao palco da Globo News, aquele de reputação ilibadíssima, onde paira sobre nossas ignorantes cabeças um William Wack iluminado pelos deuses do Jardim Botânico. Aproveita, Samarone, só não deixe que eles se aproveitem de você. Embora, aparentemente, isso já esteja acontecendo.

Reafirmo o que disse metros de postagens abaixo sobre o livro: é vivo, sincero e, o que é mais importante, desarmado. Mas sua grande vantagem, que é justamente o fato de narrar o que acontece no dia-a-dia da ilha da maneira mais honesta possível, sem recorrer ao contexto histórico que - embora válido - poderia turvar sua abordagem tão direta da realidade cubana, está sendo usada pela mídia convencional, pelos jornalistas padronizados que estão por aí, como um instrumento que anula o depoimento contido no próprio livro. E, é pena, parece que o autor está deixando isso acontecer.

Acorda, Samarone: a Cuba de Fidel quase sempre esteve lá, mas nem sempre Lula esteve aí. E a conexão, em ano eleitoral, muda a perspectiva com que seu belo livro é abordado, destacado, agitado e vendido à multidão. Eu ia dizer multidão ignorante, mas isso, pelo menos isso, está mudando. Com a ajuda de pessoas como você mesmo. E não com o auxílio desses últimos que andam brandindo seu livro sem revelar os verdadeiros motivos.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Onde o povo (não) está


A primeira reação é de espanto e indignação. Mas, pense bem: a notícia de que as secretarias municipais de Saúde e Educação estão em vias de se instalar num hotel de luxo na Ladeira do Sol pode ser a melhor que tivemos em termos de gestão pública no Rio Grande do Norte nos últimos tempos. Pra começar, se há duas coisas que são naturalmente transitórias, essas coisas são 1) o poder; e 2) a estada num hotel. Portanto, pra início de conversa, a proposta, quer dizer, o negócio, é coerente. E coerência política é o mínimo que se exige de um gestor público, concorda?

A ideia de transferir secretarias públicas para hotéis de luxo só se complica quando a gente lembra que esse negócio de turismo, bandeiras, cinco estrelas e outros agregados podem desvirtuar a inocente proposta inicial. Assim: e se a secretaria de Turismo resolver se instalar num resort, será que a coerência aparente não pode se transformar em conforto inoperante? E se a Secretaria de Meio Ambiente achar por bem atender ao público num spa alternativo, daqueles onde não se entra antes de deixar um gordo cheque na portaria? Ou se a Secretaria de Planejamento, achando-se mais importante do que as outras, decidir que só despacha se for a bordo de um navio de cruzeiro?

Não é demais lembrar que grandes e insolúveis problemas começam com pequenas e boas intenções. E a transferência de duas secretarias municipais para um hotel pode, além de deixar o funcionalismo meio contemplativo na hora do expediente, disparar uma acirrada competição entre os escalões mais elevados. Assim: e se um assessor de maior quilate resolver disputar com um secretário de maior destaque político a primazia de instalar seu gabinete na Ilha de Caras? E se a medida do prestígio de quem vive em torno do governante passar a ser o número de estrelas do prédio onde ele estiver, digamos, lotado? Se for assim, é bem capaz que ao prefeito ou ao governador não reste alternativa a não ser administrar a cidade ou o estado à distância, quem sabe do alto de um hotel em Dubai - pra não haver o menor risco de algum concorrente lhe fazer sombra política.

O fato é que, independente da qualidade do parque aquático da secretaria em questão, e de acessórios como bar, serviço de quarto e cardápio do restaurante, a transferência de secretarias municipais para as instalações do que foi um hotel traem, nem que seja involuntariamente, aquilo que se costuma chamar de transformação do público em privado, ou privatização do que é público. Ninguém precisa cometer aquela indiscrição mal educada de apontar o dedo - para o hotel ou para a secretaria, ou para ambos, já que virtualmente funcionarão no mesmo lugar. Mas a mensagem estará lá, basta saber ler.

Melhor seria se, no lugar de hotéis de luxo, as secretarias municipais ou estaduais fizessem a experiência inédita de se instalar em lugares bem mais coerentes com suas atribuições. Assim: a Secretaria de Saúde se instalaria no pronto-socorro mais movimentado da cidade ou do estado. O secretário teria direito a uma mesa privativa, claro, mas ali mesmo, no lugar onde chegam os feridos por acidentes, as vítimas das epidemias, as crianças sem chances de atendimento em hospitais melhores. Ninguém precisaria contar ao titular da pasta os problemas da área pelo simples motivo de que ele, pessoalmente, veria tudo. A administração do corpo médico também seria feita praticamente sem intermediários. E a prestação de contas do secretário ao povo, idem - tudo no ato, na sala de emergência, como requer a saúde pública.

Pelo mesmo princípio, a Secretaria de Educação poderia se instalar no pátio do recreio da escola mais pobre do lugar. A Secretaria de Segurança poderia funcionar na Delegacia de Plantão mais movimentada. A Secretaria de Justiça poderia muito bem se abrigar no presídio mais superlotado, que é justamente o que mais precisa de sua atenção. O secretário de Meio Ambiente poderia trabalhar de bermuda e camiseta atolado num mangue bem viscoso e preservado - e se o pessoal da área reclamasse do desconforto, bastaria lembrar que os ambientalistas são justamente as pessoas mais preocupadas com a coerência.

Faltou o prefeito e o governador. Onde instalar a maior autoridade da cidade ou do estado? Na sua casa, meu caro. Sim, a sua mesmo, não disfarce nem olhe para o lado. Então os governantes não se apresentam sempre como defensores do povo, representantes de todos ou qualquer outra generalidade como essa? Então: nada mais justo - e coerente - do que instalar o, digamos, "palácio do governo", na casa das pessoas. Em sistema de rodízio, claro, que é pra não cansar nem o hóspede nem o anfitrião - e evitar qualquer subproduto do tipo corrupção camarada ou nepotismo informal.

Imagine: o prefeito ou o governador discutindo planos com os secretários no seu quintal, ou despachando com seus vizinhos na janela da sala... Ou então anunciando decisões enquanto toma o cafezinho que a patroa preparou, ou ainda voltando atrás nas idéias absurdas que anunciou, com os pés confortavelmente apoiados no braço da sua poltrona preferida? Isso sim é que seria uma verdadeira democracia (porque ele, dependendo do bairro onde você mora, estaria onde o povo está), um autêntica consciência da transitoriedade do poder (porque na semana seguinte ele estaria na casa daquele seu vizinho invejoso) e um exemplo de coerência a toda prova (porque até o prefeito e o governador têm direito a um pouco de privacidade de vez em quando).

Dito isso, a gente nem precisa perder tempo calculando o que se poderia fazer com o valor das diárias que as secretarias municipais de Educação e Saúde pagarão para funcionar no hotel da Ladeira do Sol. Seria muita mesquinharia, pra não dizer falta de sensibilidade com a necessidade de coerência por parte do poder público.

* Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

quarta-feira, 10 de março de 2010

Nada pra Cruzeta

Não lembro se Luis Fernando Veríssimo matou, por assim dizer, a Velhinha de Taubaté. Para os menores de 30 anos, explico que esse era o nome da personagem que melhor traduziu os últimos anos da ditadura militar à brasileira, com sua mania crônica de ser a última a acreditar nas boas intenções dos militares de plantão e seus tecnocratas graduados. O fato é que a Velhinha, se não foi tirada de circulação por seu criador, morreu de velhice mesmo, assim como o regime que justificava sua existência.

Mas a gente sabe muito bem que certas criações literárias ou jornalísticas não se contentam com o anonimato. Insistem em voltar, nem que seja como farsa. Pois tive a nítida impressão de que foi isso o que aconteceu três anos atrás em Cruzeta. Isso mesmo, a cidade de Cruzeta, ali no nosso querido Seridó, no interior do Rio Grande do Norte. Desconfio seriamente de que a Velhinha de Taubaté, teimosa como todo idoso que se preza, deu um jeito de reencarnar em Cruzeta. E fez isso de uma maneira inédita: no lugar de se incorporar no corpo de um recém-nascido para ter uma nova e longa vida pela frente, preferiu inundar a alma de várias pessoas, já crescidas, perfeitamente adaptadas ao calor local. A Velhinha teria trocado Taubaté, no interior paulista, por uma nova existência em forma de inconsciente coletivo lá no sertão potiguar.

Se você ainda não descobriu onde quero chegar é porque não leu a história mais curiosa que a cidade seridoense forneceu ao noticiário nacional nos últimos anos. Não venham dizer que estou delirando, porque tenho quase certeza de que li no jornal ou na revista a notícia de que numa praça da cidade foi encontrado um vasto e bem adubado canteiro de cannabis, a popular maconha que tanta confusão provoca ao ser citada no almoço familiar de domingo.

Nada demais, há de dizer o interlocutor imaginário, já que não são poucos os casos de gente que cultiva ilegalmente a erva maldita em casa para consumo próprio. Pode ser, mas eu duvido que em algum desses casos os responsáveis pela lavoura tenha sido um grupo de velhinhas que, até serem alertadas, consideravam que as plantinhas davam um excelente chá curativo, indicado para vários males.

Em Acari, cidade vizinha, há um ditado que só os moradores locais entendem: “Nada pra Cruzeta”. É uma referência a um comentário de antigamente, quando o ônibus da Jardinense que seguia para Caicó, sem passar por Cruzeta, deixava ali encomendas para a cidade vizinha. Até hoje, em Acari, dizer “nada pra Cruzeta” é comentar, com ironia, que alguém ficou sem algo que esperava, ou precisava, ou merecia. É engraçado, pernóstico e também divertido, mas não deixa de soar injusto para com Cruzeta.

Se é assim, a história do canteiro de maconha, embora cercada por uma sombra de ilegalidade, limpa a ficha da cidade ultrajada. Enquanto todo mundo estava na base do “nada pra Cruzeta”, ela mostrou que, com a elegância sutil das velhinhas, foi durante um bom tempo nossa Amsterdã desconhecida.

* Descobri, somente depois de escrever o texto, que a notícia é bem velha. Eu é que devo ter lido com o atraso – e a distração – de sempre. O fato é que até agora não consegui lembrar onde li essa incrível história. Mas num blogue na internet, achei a reportagem da TV Cabugi sobre o “causo”, feita por Carla Rodeiro, em 2007.

terça-feira, 9 de março de 2010

Um 38 no táxi


Um dia de semana, um motivo que não vem ao caso, mas o caso é que precisei chamar um táxi para ir de casa ao trabalho.

Moro perto do ponto, rapidinho surge o bólido e, implantado dentro dele, como se fora uma extensão do motor, do volante e até dos faróis, o motorista.

O motorista é maneira de dizer. Nâo era só isso. Estava mais para um taxi driver. Aquela figura de cinema ou, no mínimo, aquela aparência de comercial passado no México. Como se você chamasse um táxi e lhe aparecesse, ao volante, um personagem de filme de Alejandro González Iñárritu.

O sujeito era grandão, gordão, negro, de camisa quadriculada, chapelão, óculos formato ray ban e uma baita trança negra de fazer inveja às camponesas bolivianas. Mal cabia na cabine do carro, que se tornava ainda menor porque equipado com apetrechos para distrair os passageiros, como um aparelhinho portátil de TV-DVD.

Feita a descrição, pense numa alma doce e leve. Não sou de conversar no táxi, mas a curiosidade pelo aparelhinho de TV-DVD quebrou o gelo. Fiz umas perguntas, o taxi driver se empolgou, disse que era para agradar os clientes, prestar um serviço a mais, mas que quem gosta mesmo é um grupo de crianças que ele leva e traz da escola todo dia. Mostrou um estojo estufando de DVDs piratas, todo contente e orgulhoso.

Botou pra tocar uma coletânea de videoclips dos anos 80 igualzinha a uma que tenho em casa. Corrida divertida, pra mim e acho que para ele também.

Súbido, um carro passa dando uma "fechada" no taxi driver. É o pretexto para a conversa mudar de rumo. Nosso impressionante Willie Nelson from Paraíba aproveita para anotar a queixa, docemente como não se espera dele:

-É a terceira que eu levo hoje! Não é possível!

Eu, que sou uma vítima contumaz de manobras como essas no trânsito, reforço, concordo, reconforto-me de saber que um sujeito daqueles, com aquela cara de pistoleiro de aluguel de filme de Beto Brant também sofre desse mesmo problema, como se fora um reles frouxo que não impressiona ninguém como sou eu.

É quando ele me conta a história que vale a corrida. Uma história que deixa gente como eu, vítimas contumazes da agressividade do trânsito, com um gostinho de vingança na boca.

O taxi driver conta que, certo dia, justo quanto tinha por passageira uma senhora distinta e muito educaca, parou num retorno e, para sua surpresa, levou um verdadeiro esporro mal educado do motorista que parou ao lado dele. O outro cobriu o taxi driver de palavrões, chamou de cangueiro (ou barbeiro, estou adaptando o vocabulário para o meu dialeto), xingou, fdp, o diabo...

E o taxi driver, segundo o relato dele próprio, teve que aguentar tudo calado. Nem um pio. Por que não? Ora, ele estava com uma passageira, uma senhora distinta, não pegava bem e ainda seria muita grosseria para com ela responder à altura à agressão do motorista ao lado.

O taxi driver de tranças suportou calado, bufando por baixo do sorriso amarelo. O trânsito fluiu, a passageira distinta desceu no lugar combinado, a vida seguiu, o tráfego idem.

Pouco depois, em um sinal daqueles bem movimentados, o taxi driver, agora sem motorista, livre e desimpedido, pára e olha para o lado. Quem está lá? Quem? Quem?

Ele mesmo, o sujeito grosseiro que cobriu o taxi driver de impropérios há uns poucos minutos atrás, sem que o bad boy de trança pudesse reagir. Agora, ali no sinal, a situação mudara.

O taxi driver tirou o sorriso amarelo do rosto, vestiu sua máscara de irmão metralha - quer dizer, não precisou mexer um músculo facial - e olhou para o lado, chamando o motorista abusado na base do "é você, você mesmo, não olhe pro lado não".

E desatou, furioso:

-Na próxima vez que você se aproveitar de eu ter passageiro para me xingar e se amostrar pra cima de mim, seu fdp, você vai ver o que eu faço. Eu lhe mato, viu? Lhe mato! Aliás...

...e o taxi driver levantar o corpo, ali no sinal, todo mundo vendo tudo, o trânsito obrigatoriamente parado para assistir à discussão, o taxi driver levanta o corpo como quem vai...

...aliás, eu mato é...

O taxi driver levanta um lado do corpo como quem vai tirar alguma coisa do bolso ou do cinto.

....eu mato é agora, seu fdp!

O motorista abusado, agora um motorista apavorado, liga o carro, fura o sinal e sai em disparada, temendo o pior.

E o que fora sorriso amarelo, fúria represada e por fim ameaça pura e simples vira uma bela gargalhada.

O taxi driver de ray ban e tranças cai na risada vendo a reação do outro. É claro que, de mal, o índio urbano de pele negra e trança vasta só tem mesmo a performance, quando a situação exige.

Arma, revólver, 38, trezoitão, fora tudo obra da atuação do taxi driver conjugada com a imaginação medrosa e covardo do outro motorista, aquele que o xingou quando podia e fugiu dele quando as circunstâncias mudaram.

O taxi driver gargalhou, o sinal abriu e ele seguiu em frente, se sentindo vingado. Eu, só de ouvir a história, senti o mesmo.

Nunca o caminho de casa para o trabalho pareceu tão curto.

quinta-feira, 4 de março de 2010

A arte de recuar


Nunca antes na história desta cidade um prefeito voltou tanto atrás. E não se fala aqui de retrocesso político no sentido imediato da expressão. É voltar atrás mesmo, literalmente. Anunciar para logo em seguida suspender. Defender uma proposta para no momento seguinte dizer que não era bem assim. Decretar para, ato contínuo, vetar a própria determinação.

Esta, sim, parece ser a verdadeira beleza da política: a capacidade que uma população tem de, descontente com uma proposta anunciada pelo seu representante legal, dizer não – e, de tanto fazer barulho, ser até ouvida. Mas de nada adianta espernear se do outro lado não estiver alguém de tímpanos sensíveis. E não estou falando de questões meramente auditivas, mas de algo bem maior: daquilo que, na falta de expressão melhor, chamo de "a arte de recuar" – um dom dificílimo de se ter e de se praticar.

Quer ver? Pergunte a você mesmo quantas vezes recuou de uma idéia, uma frase, uma atitude nos últimos meses. É de contar nos dedos, e uma mão dá e sobra. Agora aplique isso à política e à administração de uma cidade como Natal. Sentiu o drama? Então cumprimente, nem que seja telepaticamente, a prefeita que a cidade – não esqueça – bem ou mal elegeu em turno único na última disputa municipal. Pois bem: eleita e instalada na cadeira, a prefeita anunciou que iria rever a licença para que fossem construídos os espigões de Ponta Negra. Parte da população chiou e a prefeita voltou atrás. A Prefeitura também sinalizou, por meio de uma secretaria municipal, que iria mandar cortar umas boas e frondosas árvores no canteiro em frente ao shopping Midway Mall. De novo, vieram os protestos, e a idéia foi arquivada na mesma gaveta de onde jamais deveria ter saído.

Até o horário da feira das Rocas entrou nesta ciranda de vou-não-vou. Não que horário de feira não mereça atenção da prefeitura, mas até ontem esse parecia ser o tipo do assunto imune a qualquer possibilidade de polêmica. Por aí se vê que, com a ainda nova gestão à frente do Palácio Felipe Camarão, nada é impossível, minha gente. Mas de novo a insatisfação se fez notar e outra vez a prefeitura voltou atrás. E a mudança do nome indígena daquela rua no Alecrim? Tá bem, foi idéia de vereador, mas convenhamos que no contexto político-cultural da Natal de hoje, prefeitura e vereadores são quase a mesma coisa. Mas, felizmente, moradores se juntaram e conseguiram fazer a idéia morrer em poucos dias. Tem também o cachê do padre Fábio que, questionado publicamente, fez não só a prefeitura mas o próprio sacerdote vir a público para dar explicações. Neste caso, só não ficou bem claro se o dinheiro afinal foi ou não foi pago. Mas é como se não tivesse sido, porque no final das contas o que restou no ar também foi mais um digníssimo recuo.

O fato é que, a continuar neste ritmo, a atual gestão chegará ao final dos quatro anos de mandato com um conjunto inédito de realizações não realizadas. Quer dizer, um festejado balanço negativo recheado de obras que, felizmente, não foram feitas. De programas que, graças à providência (e à mobilização dos moradores) não saíram do papel. De planos que, justiça seja feita, mal tiveram tempo de ser anunciados e já tiveram que voltar rapidinho ao gabinete de onde vieram, com o rabinho entre as pernas.

E a população tem mais é que ficar feliz, soltar rojões, celebrar a prefeita. Claro que seria uma situação estranha, essa de o povo sair às ruas para dizer, batendo no peito, "a prefeita não fez nada", "viva o cancelamento da obra tal", "temos que defender a falta de realizações". Porque o normal, claro, é o último ano de governo vir estampado em anúncios de jornais que relacionam "mil obras", "duas mil realizações", listas assim em números redondos para bater o martelo e chamar a atenção. No caso da Natal de hoje, não é nem bom pensar que tipo de realização poderia estar incluída nesta lista final. Mas, sossegue, tudo está no seu lugar, porque afinal de contas a prefeita, em muito boa hora, sabe recuar como ninguém.

Sorte teriam os moradores se outros antes dela também tivessem rezado por essa estranha cartilha da inoperância alimentada por recuos. Porque recuos tivessem ocorrido a tempo e não teríamos, por exemplo, aquele paredão de prédios em frente à praia de Areia Preta, que privatiza o vento que antes corria gratuito entre as vielas de Mãe Luíza. Se alguém tivesse recuado, o calçadão da João Pessoa talvez não tivesse virado esse monstrengo urbano em que se transformou, sem ser nem calçada propriamente dita nem espaço para os carros. Um recuo tático e quem sabe a Nova Parnamirim da avenida Maria Lacerda teria crescido com um mínimo de planejamento urbano que muito lhe faz falta.

Todos esses casos e muitos outros – cada um pode fazer sua própria lista – reforçam a importância do passo atrás, daquele go back providencial, do devagar com o andor segundo reza a crença popular. E ser faltarem argumentos mais nobres para defender a atitude de quem, como diz o outro, dá para trás, a gente sempre pode recorrer ao velho e bom compêndio de letras da nossa música popular.

Vai dizer que você nunca ouviu Jorge Benjor cantando, em "Alcohol": "Em vez de uma nova trombada / Uma marcha ré com dignidade / É melhor do que ficar com pesadelos / Tédio, calça arriada, queda de audiência / Filme queimado". Parece até que a música foi composta com o artista em Natal para um dos seus shows, mas é pura coincidência. Já a arte de recuar, não – é atributo que se lapida com a um diamante, porque exige a disciplina da contrariedade, o sacrifício da autonegação e a sabedoria do arrependimento que vem no momento certo. Não é para poucos – é um dom particular dos eleitos.

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)