quarta-feira, 30 de setembro de 2009

No ar rarefeito, com Valéria


O Sopão ouviu o novo CD de Valéria Oliveira, "No ar", que será lançado com show no dia 16 de outubro, na Casa da Ribeira, em Natal


Quem acompanha a trajetória de Valéria Oliveira e se surpreendeu com a virada pop do CD “Leve só as pedras” só precisa ouvir as três primeiras faixas deste novo disco, “No ar”, para perceber instintivamente que se trata de um aprofundamento, de uma continuidade ou de uma “obra em progresso” como está tão em evidência dizer atualmente, em relação ao disco anterior. Depois de ouvir o gingado romântico e levemente soul de “Dança e Música” e de deslizar por “Te Direi um Dia”, o ouvinte deságua em “Escuro” e, bingo, a luz sonora se acende: isso aqui é Valéria avançando mais dez passos no rumo da rarefação musical, da estilização que nos poupa de adereços e camadas desnecessárias e vai ainda mais direto ao ponto de um negócio chamado “música”, expondo a ossatura lírica das canções ao frio caloroso de sua voz, seu jeito de pronunciar um repertório em andamento.

“No Ar” consolida a caminhada da cantora que virou compositora e, não satisfeita, abriu, junto com parceiros como Luiz Gadelha, Simona Talma, Khrystal, Romildo Soares e outros uma frente que procura ir além da composição e da interpretação. A proposta é formatar, sob o sol potiguar e inevitavelmente com a influência distante dos tempos de bossa nova nas noites nipônicas, uma música particular, afinada com a sonoridade descarnada e no entanto vibrante que no panorama brasileiro atual cobre arcos que vão da banda Cê de Caetano aos já desfeitos Los Hermanos. Acrescente-se um certo timbre bem particular desenvolvido desde os anos 80 em uma esquina continental chamada Natal mais aqueles ecos do sambão setentista que volta soar Brasil afora pelas largas frestas dos arcos de suas Lapas e é só botar para tocar.

É uma música de pequenas formações – em cada uma das faixas de “No ar”, note, há no máximo seis músicos – , em construções econômicas que valorizam cada intervenção, fazendo os fraseados instrumentais dialogar com a intérprete que sabe bem com quem está falando, dada à condição de violonista tarimbada e reconhecida, que permite tal empatia. Como diz um trecho da letra de “Em Seus Braços”: “Nada é excesso, silêncio é voz”. Como se Valéria e sua turma tivessem pego as “pedras” do disco anterior, o “Leve só as pedras”, por si só uma imagem antecipatória da idéia de trabalhar musicalmente apenas o essencial, e jogado todas elas num triturador ainda mais potente e seletivo, do tipo que só deixa vazar essências de palavras, acordes e fraseados.

Em discurso, ritmo e repertório, o resultado é um novo mix de baladas de acento deliciosamente pop, sambas serrilhados como unhas bem aparadas de mulatas vaidosas, e até uma sessão final mais relaxada que chega a glosar de boleros com uma abordagem entre irônica, brincalhona e bem-humorada – mas sempre com um pé no minimalismo possível. Na primeira categoria se encontram as duas faixas iniciais, com um gostinho decantado do velho Cassiano e outros monumentos do soul music brazuca dos anos 70, além da saborosa e contagiante “Em boa hora”, com letra de Valéria e da lavra sonora denunciatória do sempre envolvente Sueldo Soares. Se os tempos fossem outros e este disco estourasse nas rádios, “Em boa hora” muito certamente seria o seu hit – é o momento do CD em que a busca do novo mais se permite ficar próxima às convenções que confortam os ouvidos, mas nem por isso é menos “no ar” do que o restante. No espectro das baladas, aqui e ali surge uma levada ou uma intervenção que, também em sintonia com a boa musicalidade atual, recicla subprodutos da Jovem Guarda, cuja matéria vem sendo também redescoberta com a parcimônia que só os novíssimos músicos parecem saber praticar.

A expressão “No ar” é bem reflexiva do conceito abstrato que permeia a caudalosidade musical do disco. Valéria, seus compositores e seus instrumentistas estão sempre falando sobre coisas não ditas, feitos não realizados, impressões dispersas que só podem ser capturadas com as teias de uma música desprendida de arroubos e letras mergulhadas em líquido poético de natureza menos viscosa quanto mais for possível. A não ser quando se trata de agarrar um gênero, sacolejá-lo até o ponto do enjôo e depois parar tudo, numa estática que gera bolhas de ironias inesperadas. É o que ocorre em duas das últimas faixas, “Madrugadas Frias” e o auto-enunciado antibolero “Sofrer faz parte do meu vocabulário” (uma música com um título desses só pode ser mesmo uma homenagem disfarçada de repreensão). O ouvinte pode relaxar e se divertir à vontade, que nesta reta final o experimento de Valéria e companhia permite que a cantora “solte a voz” (como se diz vulgarmente) e brinque com esquemas estabelecidos.


Na seqüência de sambas, uma praia sempre cara à Valéria que foi ouvinte de Clara Nunes e que casa com a atual leva de cantoras que lavam as escadarias da música popular brasileira, uma nota à parte para “Injúria”. É o tipo da composição que segue uma tradição do que já parece um subgênero dentro do vasto mundo da mais brasileira das músicas. É o samba desabafo, do amante despeitado que joga tudo na cara do parceiro, no que geralmente resulta em um desafogo até engraçado de tão passional – um espírito de crônica literária encarnado no cavalo da música popular. Não por outro motivo, e não apenas pela semelhança do título, a faixa lembra o “Injuriado” de Chico Buarque e até mesmo, embora em ritmo diverso, a “Tábua de Salvação”, criação valeriana do anterior “Leve só as Pedras”. E com a guitarra de Jubileu Filho se insinuando na divisão tipo balança-as-cadeiras, a faixa mostra que Valéria está bem atenta aos transambas daquela mesma banda Cê e de seu velho timoneiro rejuvenecido.

Nada disso é possível sem a virtuose dos instrumentistas que entram e saem nos momentos certos, comentam e interagem com a voz-violão de Valéria com o apuro que essas pérolas pedem, sejam pedras lapidadas ou rarefações absolutas. Vide, só pra ficar num exemplo, as evoluções entre o clarinete de Jotapê e o baixo de Tetsuo Sakurai (músico convidado) em “Razões”. Com tudo isso, “No ar” pode não ter o impacto de chegada que teve “Leve só as pedras”, mas em compensação tem a profundidade dos melhores estudos, aquele propósito especulativo que leva a uma música de ainda maior durabilidade. Enquanto o anterior era um disco de descoberta, este é um exercício de releitura, para muitas e muitas audições perseverantes, exploratórias e mais e mais incisivas. Respire fundo e aprecie como quem escala um penhasco belo e arriscado, por isso mesmo fascinante.

Contículus de Brasília

Quem vê a imagem do Congresso Nacional todo niemaier e imponente no Jornal Nacional ou estampando mais uma página de reportagens escandalosas da Veja nem imagina, mas por baixo daquelas duas torres em forma de agá e sob aqueles pratos que dão suavidade ao conjunto está um dos principais problemas urbanos deste Brasil de todo canto. Estou falando da disputa por uma vaga para estacionar o carro. Especialmente às terças, quartas e quintas-feiras, qualquer espaço físico disponível para estacionamento - quero dizer, qualquer mimímetro de meio-fio - fica tomado por um mar de carros. Uma visão do alto, como que tomada por um satélite que passasse bem acima do Palácio do Congresso Nacional, daria um susto no brasileiro que só vê rapidamente, nos telejornais da noite, esse que é um dos conjuntos de prédios mais conhecidos do país: seriam duas torres, dois pratos e um mar de carros enfileirados como um contorno metálico delineando as vias.

Entre as vagas mais disputadas, estão aquelas que ficam no meio-fio da chamada "rampa", que é aquele declive mais próximo a uma das mais utilizadas entradas do Congresso. O número de carros que cabe lá é bem menor, daí o espaço ser mais disputado. E quem consegue um cantinho na rampa, seja porque um outro cidadão motorizado acabou de sair deixando uma vaga livre, seja porque tem vaga privativa, ainda leva outra vantagem (olha o Gersão aí se infiltrando no texto): só precisar dar poucos passos para chegar à entrada do Congresso, pela Chapelaria, que é aquele acesso mais utilizado de que falei há pouco (quem conhece os corredores da Câmara e do Senado sabe que são quilômetros de túneis, escadas, verdadeiras catacumbas disfarçadas de subsolos inteligentes que tiram o sangue das pernas das mais lindas repórteres que os telejornais já empregaram).

Explicadas as circunstâncias e o cenário, vamos ao contículo propriamente dito: uma colega da TV Câmara, por ocupar atualmente um cargo de chefia, ganhou uma daquelas invejadas vagas privativas - onde? - no espaço nobre que é a rampa do Congresso. Mas o que pode parecer privilégio, ela reclama, vem se tornando é um aborrecimento quase diário. É que sempre tem alguém ocupando a vaga, enquanto espera coisa melhor nos demais espaços (in)disponíveis. Um dia desses, deu-se o caso, que representa um ataque de cidadania como jamais se viu.

A colega chegou para estacionar e havia um taxista folgado na vaga. Ele, educadamente - se vocês querem um parâmetro de pessoa educada, pense nessa minha colega que atualmente é também nossa chefe - solicitou:

-O senhor poderia sair? É que esta vaga é privativa, tenho aqui a comprovação (e mostrou o documento que atesta a reserva do lugar).

-O quê? - reagiu o taxista, dando uma de desentendido.

-A vaga é privativa, é minha, e preciso dela.

-Privativa? Só se for privativa do povo brasileiro!

Por aí








Fazenda Velha, restaurante rural no Distrito Federal

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

R.D e o mapa da violência no interior


No Jardim de Infância Jesus Menino e no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, R.D. era um colega boa-praça, do tipo que mesmo de calças curtas tem a característica de nem chamar atenção demais nem passar totalmente despercebido. O nome composto, que preservo para não expor a figura, talvez fosse o que mais o distinguia. Não era aluno brilhante, o que também não é de estranhar, afinal, do jardim ao primário ninguém é mesmo, naquela algaravia infantil feliz e indistinta da idade. E se tudo isso se passa numa cidade pequena, está composto o panorama sobre o qual se projetará um quadro imprevisível como convém àquela qualidade de futuro dramaticamente mais significativa.

Passou o jardim, acabou o primário, veio o ginásio com seu novo elenco de rostos e nomes, velhos colegas que somem e novos que aparecem não se sabe de onde, mesmo numa cidade de 14 mil habitantes. Mas é assim mesmo, em Florânia, Carnaúba, Parelhas, Pirenópolis, Formosa ou Assis. R.D. sumiu na poeira do tempo que apaga os rastros das primeiras convivências socio-escolares. Um dia desses, voltei a ter notícias do antigo colega: disseram que ele "estava bem de vida" - o que, em linguagem apropriada ao local, tanto pode querer dizer que é uma pessoa de razoável sucesso na vida quando indicar que se trata de alguém com mais dinheiro no bolso do que explica sua vida profissional. Ele teria assumido uma profissão típica de quem "vive bem" lá no velho Seridó de guerra e paz. Omito a profissão, porque a pista poderia ser mais evidente do que o texto pretende. O fato é que isso signifca que, visivelmente, para a população da cidade - hoje bem mais numerosa, mas ainda assim pequena - o nosso bravo R.D. vive além das posses que tem.

A explicação para esse desajustes é o tema dessa postagem: a expansão da violência que, segundo um estudo apresentado na Câmara dos Deputados no final da semana passada, tem crescido mais no interior do país do que nas grandes cidades. A fonte da informação é o Instituto Sangari, que apresentou à CPI da Violência Urbana o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros. O dado, digamos, tradicional, que ganha destaque é o aumento do índice de homicídios entre os jovens de 15 a 24 anos, que dobrou de 1980 até hoje, enquanto se manteve nas demais faixas etárias. Mas o ingresso da criminalidade pelo interior do país é o dado a mais - que, a rigor, não chega a ser novidade para os habitantes do Seridó potiguar ou sertão pernambucano. O instituto de pesquisas antenado e humano que cada um deles tem naturalmente na cachola dispensa levantamentos sociológicos e há tempos vem disparando seus alertas.

Voltemos a R.D.: o que corre é que, paralelamente ao seu trabalho convencional, ele exerce um outro tipo de atividade - por sinal, sabe-se que uma coisa favorece a outra, e mais não digo. R.D., meu antigo colega de jardim e primário, seria, a esta altura o leitor já percebeu, um traficante de drogas em atuação no interior de um pequeno estado nordestino. Suspeita-se gravemente de que seja, razão pela qual aqui não vai escrito seu nome nem sua profissão. Saber disso não faz com que eu desgoste de R.D. Tento até entender os caminhos que o levaram a essa vereda criminosa e clandestina oculta sobre sua vida normal na cidade. Lembro dele e aparece sempre o colega boa-praça - a imagem mais recente, já no ginásio - que, curiosamente, casa perfeitamente bem com o tipo meu-nome-não-é-jonhy que o ator Selton Melo fixou no cinema. Pensando bem, R.D., com aquela manha e maleabilidade exposta já no jardim de infância, tinha tudo para se tornar o que dizem que é. E o caráter detetivesco das cidades do interior também contribui para iluminar a suspeita: ao contrário das grandes maracutais, neste ambiente ninguém precisa ser procurador do Ministério Público para notar quando uma pequena e anormal fortuna está se formando aparentemente ao largo das normas legais. Dá na vista e dá o que falar - o que talvez facilite bastante o trabalho da polícia especializada no combate ao tráfico interiorizado nessa e em outras regiões do país. Pior para o meu ex-colega boa-praça.

Descontada a simpatia que a lembrança mantém intacta, o ponto a lamentar é mais embaixo: é o fato de R.D., colega de algaravia infantil, ter se tornado, motivos e motivações à parte, parte da engrenagem que abre novas rotas para o mercado das drogas no interior do Brasil, com o rastilho de pólvora inevitável que tal expansão prenuncia. Triste ligação entre a impessoalidade do Mapa da Violência apresentado aqui na Câmara (onde trabalho, daí a proximidade com a informação) e o afeto encerrado nas lembranças do povo da região onde nasci. É claro que tudo isso pode ser pouco mais que falatório - e que R.D. esteja limpo de qualquer suspeição, tomara que seja - mas ainda assim, as incursões da violência Brasil adentro são notórias e se, quiçá, passaram ao largo do meu colega boa-praça, não fizeram o mesmo com tantos outros que encontrou pelo caminho.

Pergunte para outro amigo meu, a quem posso dar nome e sobrenome, o jornalista Plácido Fernandes, que encontrei já depois de adulto. Nascido no coração do que antigamente a gente chamada de "Polígono da Maconha", Plácido já viu muitos colegas de primário abarcados pelas dobras dos novos mapas da violência que o Brasil comporta - e, lamentavelmente, expande.
A foto que ilustra a postagem está no site da ABI (http://www.abi.org.br/) e mostra a fachada crivada de balas de uma casa na região do Polígono da Maconha, em Pernambuco, onde traficantes desviam água de um projeto da Chesf para irrigar suas plantações. A casa era de um homem de 82 anos que protestou contra o tráfico local e acabou assassinado, segundo as informações do site.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Eu flipo, tu flipas


Ok, macaqueamos a Feira Literária de Paraty com uma versão pirata na praia de Pipa. Leio as notícias sobre o evento - fervendo de inveja, claro, por não poder estar lá (em Pipa, não exatamente na Feira) lembrando de umas vaquejadas que faziam sucesso no interior do estado na passagem dos anos 80 para a década de 90. Como diria o compositor baiano, pode ser que ainda o façam - apenas eu é que não tomo conhecimento. O fato é que naquele tempo acompanhei uma vaquejada em Currais Novos para fazer um programa de televisão e quanto mais via as pessoas com cinturões de caubói e botas de beto carrero, mais me parecia deslocada aquela tentativa de recriação no semi-árido potiguar empobrecido (estávamos em 91, 92, por aí) do universo já então riquíssimo do agrogenócio paulista do tipo ribeirão preto.

Então: a Flip de Pipa, a tal Flipa, em que pese tornar ainda mais divertido, colorido e badalado o final de semana nessa bela praia que me dá tanta saudade, é meio como as vaquejadas que tentavam reproduzir em currais novos o clima das festas de peão boiadeiro de ribeirão e adjacências. Soa falso, macaqueado, imitação barata, como a tevê record imitando os deles e delas da tevê globo, como um dvd pirata que, por mais que reproduza direitinho o que tem no original, vem sempre numa capa borrada pelo descuido da cópia. Isso não quer dizer que eu não veja dvds piratas nem que me recuse a assistir à tevê record ou que queira distância de eventos periféricos que tentam imitar matrizes consagradas. Vejo, assisto e se pudesse, daria um pulo em Pipa feliz da vida durante a Flipa. Diversão é diversão, agora, que parece uma imitação grosseira e colonizada, está bem claro.

Já que, sem poder ir, tudo o que posso fazer é falar mal, deixe pelo menos eu sacudir o manto do despeito desfiando algumas pequenas e insignificantes memórias relacionadas ao mundo da leitura que têm Pipa como cenário. Lembro de, numa das primeiras visitas que fiz à praia, numa época em que era mais fácil achar um tubarão agonizando na areia do que um italiano na vizinhança, ter visto uma garota, vendedora de uma barraquinha dessas de cigarros e balas, imersa na leitura de um livro ali na rua principal. A memória falha me diz que era um desses livros que são lidos aos montes, um best alguma coisa, talvez um Jorge Amado, talvez um colegial Joaquim Maria de Macêdo. Mas como lia a garota, como submergia sob a capa do livro aberto enquanto o vento lhe agitava os cabelos. Singela visão, da Pipa de outros tempos, menos elétricos.

Em Pipa, afoguei-me na leitura de um livro menor de Mario Vargas Lhosa - menor até no número de páginas, já uma novela. Era "Quem Matou Palomino Molero?", que tenho até hoje, um thriller literário latino-fantástico sem muito sal perto de uma "Guerra do Fim do Mundo". Mas ainda assim foi uma diversão que ficou na lembrança, uma tarde-noite inteira nos colchões ainda rústicos da pousada Praiana, quartão-família que dava para a visão de um marzão-continente. E depois, numas férias de Brasília, no mesmo batlocal, a releitura de "Terras do Sem Fim", pequeno clássico de Jorge Amado que faz a gente respirar o ar da Costa do Cacau enquanto percorre letras. Literatura é isso, pois não?

Pipa, quem conhece sabe, é um ótimo lugar pra ler, mesmo com as transformações dos últimos anos. Tem a brise, a sombra, o cheiro de mar, até uma certa música imprecisa no ar que combina com as imersões mágicas da leitura. Já como sede de um evento que reúne um bando de gente para falar sobre literatura em salas fechadas (os debates da Flipa são em salas fechadas ou ao ar livre mesmo, tipo em barracas improvisadas na beira da praia do Amor...? assumidamente mal informado, posso estar dizendo besteira, mas, todavia e entretanto), sei não. Imagino que no meio de uma polêmica de seiscentos anos, envolvendo James Joyce e Paulo Coelho, deve dar uma vontade danada de largar tudo e resolver os dilemas num banho de mar...

Se era pra fazer uma versão potiguar da Flip internacional de Paraty, porque não contrariar o que seria uma mera imitação em ao menos um quesito? Por exemplo, levando a feira para um lugar bem longe da beira-mar. Hein? Acari, por exemplo. Belo cenário para uma feira literária. Numa região, além do mais, coalhada de poetas, escritores, blogueiros, gente que se escancha na palavra para não afundar no tédio eventual. E com aquela bela igreja do Rosário, de contornos amarelos, dando uma cor especial ao evento. Hein? Na próxima, pensem nisso - Acari, Florânia (belo nome de cidade para sediar uma feira literária), Tenente Laurentino (lá no alto da serra), Serra Negra, sugestões não faltam.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

O sono dos injustiçados


Manuel Zelaya é mais ou menos como seria Hugo Chavez amanhã, caso este não tivesse conseguido conter o golpe que quase o derruba do poder alguns anos atrás. É mais que isso - é a imagem refletida e refratada dos líderes à esquerda que tanto quanto respondem a uma necessidade social e econômica de Latino América, também o fazem de uma maneira algo antiquada. Manuel Zelaya, quero dizer, é um espelho onde se miram - e obtêm impressões diferentes - os países todos da América do Sul, na tentativa plenamente justificada de enxergar um futuro desligado dos grilhões que tradicionalmente se agarram aos nossos pés. Líderes como Zelaya, Chavez e Lula podem não ser perfeitos - como ademais perfeitos não poderiam ser nenhum dos senhores à direita que em nosotros tanto mandaram até um dia desses - mas são a maneira possível como esse mesmo futuro se desenhou em cada recanto dessas terras descobertas por europeus e colonizadas por Espanha e Portugal.

A imagem de Zelaya dormitando sob um chapelão na embaixada brasileira, que está em todos os jornais e todos os portais de ontem para hoje, sugere um Zorro em repouso entre uma batalha e outra. Zelaya, nas feições tortas como essa forma de poder e representação popular chega ao topo tão tardiamente, lembra assim uma espécie de Ratinho que tenha trocado os porretes na tevê por uma causa de popularidade mais genuína, depois de ter lido, apressada e impaciente, umas apostilhas sobre colonialismo, imperialismo e noções de marxismo do tipo abra em qualquer página e reflita sobre o que está escrito. De outra maneira, Manuel Zelaya somos nós, eternos pisoteados que ainda conseguimos tirar uma soneca deitados em um berço esplêndido qualquer que nos emprestam os tradicionais donos do poder enquanto lá fora gira enlouquecido o olho do furacão. Manuel Zelaya é mais um protótipo do justiceiro confuso, ainda que sobejamente justificado. Um personagem de "Terra em Transe", glauberianamente fixado na mitologia cinematográfica e dela decalcada por realidades quem teimam em conservar o pior do passado. Por isso e por tantos outros motivos, aquele sono, daquela foto, se não é o sono dos justos, pode-se dizer, é o sono algo sonambulizado de todos os injustiçados.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Por aí







Caldas Novas, Goiás

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Leia na HAMACA

"O objetivo deste post era recomendar, às avessas, o livro com a biografia superficial de Tarso de Castro. Bem que eu tentei não ler, e bem que tentei não recomendar. Isso não é coisa que se faça. É o sujeito começar a ler e passar a sentir uma estranha coceira de quem quer voltar no tempo - levando em consideração, claro, que a gente sempre guarda na caixa da memória a parte boa de qualquer tempo. Mas, dada às danações desnecessárias que temos visto no tempo atual, toda necessidade de retorno é compreensível e estimulável."

Leia a postagem completa em www.hamaca.zip.net

Pequenos perfis de cidadãs comuns (3)

3.Lina

A contadora contra a parede, a servidora duplamente difamada, a funcionária derrubada do alto da carreira. E ainda assim, estóica, impávida sem colosso, lacônica em sua verdade, serena na batalha, flutuando elegante no mar encrespado da disputa política. Os olhos comprimidos por dentro daqueles óculos brancos, a expressão do dever cumprido, a parede branca da sala do Senado por trás, a disputa política ricocheteando invisível às costas da ex-secretária. "Essa secretária". "Esse presidente". Seria tudo uma pena, não fosse a evidência de verdades outras, consagradas a cada dia no noticiário do país. Porque ela cometeu o pecado imperdoável de inverter prioridades e, como outras, pagou por isso. Como Erundina na Prefeitura de São Paulo. A receita deixou de ser o bolinho frugal do contribuinte sem sal e teve a ousadia de convocar à cozinha os grandes chefs dos restaurantes dez estrelas. E veio a Petrobras e veio Fernando Sarney, sobremesas fortes. E veio a dialética - sim, ela mesma, que ainda pulsa por baixo dos muros derrubados - fazendo com que o mito vivo, aquele que indicou Dilma e agora se vê às voltas com o fantasma de Marina, contrariasse os próprios elementos que o geraram. A agenda é só um objeto - um fetiche daquela mesma disputa política. A mãe de Mução contra a mãe do PAC. Antes disso tudo, existe a funcionária pública - esse instrumento que se ataca ou se defende dependendo das conveniências. Existe a expressão sem fígado necessária no momento da tensão mais midiática. A republicanda por excelência, pois que teve a coragem de submeter grandes e pequenos ao mesmo leonino tratamento. E ainda por cima, é conterrânea - mas este é o último aspecto na lista dos fatores que garantem a simpatia instantânea. Não dizem por aí do "orgulho de ser nordestino"? Nordestina, potiguar, republicana e servidora pública, pode acrescentar.

Pequenos perfis de cidadãs comuns (2)

2.MARINA

Uma fibra entalhada na superfície da folha, o duto por onde a árvore aspira a água que a raiz capta no chão, o grão de areia na praia fluvial, essas coisas mínimas e só aparententemente desimportantes da natureza. Experimente retirá-las do panorama da vida e veja o resultado - que falta elas farão. Ela é assim, integral como um verso de Manoel de Barros, plena como o desabafo de um trabalhador que não aguenta mais, digna como um slogan pintado num muro que o tempo tratou de apagar. Mas não confunda, que sua fraqueza é sua força, sua loucura de portadora última das utopias impossíveis é a porção de lucidez que nos restou. Em dado momento, pareceu ser mais uma dissidente no banco de reservas ressentidos de um governo sujeito a intempéries naturais e fabricadas; mas, hoje, quando este mesmo governo abrevia - não sem a contribuição dos mesmos fabricantes de desgastes - sua importância histórica, surge como um relicário vivo de algo que não se deve quebrar, por preço algum - ainda menos alguns minutos de propaganda na tevê. Fora das circunstâncias imediatas de uma disputa eleitoral próxima, é preciso ver que ela é a suprema ameaça da continuação do mito vivo - aquele mesmo incômodo mito vivo que fez de Dilma sua prorrogação decretada. E se um mito vivo já incomodou bastante nos últimos sete anos, imagine o estrago que dois não fariam. Dois Silvas, dois presidentes com cara de pobre, um homem e depois uma mulher, o casal acidental que colocou na Presidência da República a cara brasileira. Mas não se aflija, que dificilmente ela chega lá. Embora a simples presença dela nessa disputa sirva para mostrar que há alguma coisa além do pragmatismo desesperado. A esperança dos perdedores, que conhecemos tão bem até 2002. E ela parece pronta: agora é assistir à mais vitoriosa das derrotas no campo aberto dos votos confusos.

Pequenos perfis de cidadãs comuns (1)

1.DILMA

Na primeira mirada, um Robocop de saia, um sargentão de batom, paraíba mulher macho pós-feminismo, quase um Tonhão da TV Pirata. Num olhar menos apressado, uma criatura humana debaixo de uma carapaça política reforçada com aço trabalhado em materiais de resistência máxima, substância fundida em tempos de chumbo. Uma pessoa focada, dois mísseis em forma de olhar, uma peruca circunstancial na cabeça e uma caneta estratégica na mão. A Mulher Maravilha que saiu da tevê, ganhou uma papada, arredondou a silhueta e trocou os saltos heróicos pelos efeitos especiais dos mais meticulosos planos. Uma estratégia em forma de pessoa, um objetivo a alcançar na linha do horizonte, a máquina de medir que garante realizar o sonho, a engranagem que se apresenta pronta a viabilizar a utopia possível, a gestora dotada de faro político e com biografia à esquerda do poder que ora pode ser inflexível numa sala e ora negociável em outra. A candidata-estátua que parece ter pele de pedra, mãos de operário e mente de estadista para suceder o mito - incômodo mito vivo - mas que se dissolve como manteiga diante dos sais corrosivos de uma substância perigosa chamada PMDB, essa criptonita.