sábado, 23 de janeiro de 2010

Freio de Arrumação


Do jeito que as coisas vão, se neste momento você pelo menos sentir o chão firme sob os seus pés, dê graças aos céus. Desde 1988 e o reveillon do Bateau Mouche, pra não ir muito longe, que início de ano virou sinônimo de votos de boas novas misturados a uma certa expectativa sobre qual será a primeira catástrofe dos doze meses seguintes. E não vale botar a culpa toda na natureza, que muitos desses desastres de verão tiveram a digital humana acenando impaciente para o legista distraído. Ou você já esqueceu do prédio de Sergio Naya, aquele que desabou no meio de um carnaval?

Mas 2010, definitivamente, representou uma superação, se é que se pode dizer assim. Ainda estavam frescas na minha memória as lembranças das levas de turistas e banhistas a deixar ainda mais ensolaradas as manhãs e tardes da praia de Ponta Negra na penúltima semana de 2009 quando pela televisão e pelos jornais começaram a chegar os relatos das enchentes, desabamentos e de gente morrendo soterrada em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Mal tive tempo de respirar aliviado pelo fato de termos em Natal um refúgio certo contra essas intempéries que mais parecem feitas sob encomenda para os canais de notícia e os portais da internet.

Qual o quê. Foi só o tempo de ligar a tevê e descobrir que a terra estava tremendo de Poço Branco a Pirangi, da Ribeira à Cidade da Esperança, igualzinho ao que acontecia nas noites mais quentes da segunda metade dos anos 80. Atenção que isso não é uma brincadeira de 4.5 graus na escala da ironia: quem tem idade suficiente lembra bem que naquele tempo a terra sempre tremia depois de uma tarde-noite de temperatura sensivelmente mais elevada até mesmo para os padrões potiguares. Enfim: depois de suportar um noticiário todo marcado pela presença de Sarney em 2009, começamos 2010 com as esquadrias a balançar e os sismólogos da UFRN de volta ao estrelado. Seria feliz ano novo ou infeliz retrospectiva daquela década nem tão esquecida assim?

Se o jeito é apelar para a nostalgia e twitar as memórias do primeiro terremoto, que seja. Cada um reage como pode, e o bom humor não deixa de ser uma forma de lidar com o fenômeno e o medo dele decorrente. Ate mesmo quando, poucos dias depois, o tremor de João Câmara a Natal se revela só um trailler para a catástrofe em escala hollywoodiana que foi esse terremoto no previamente arruinado Haiti. É a tal história: se nada podemos fazer para prevenir e muito pouco somos capazes de realizar para remediar, então que o terremoto nos sirva ao menos para a gente rir um pouco mais da gente mesmo. Afinal de contas, no frigir dos ovos, digo, no balanço da terra, tudo isso só reforça a nossa gigantesca insignificância.

É neste momento que o terremoto "local", agora já devidamente ofuscado pelo drama de CNN que virou o pobre do Haiti, apresenta seu lado bom, se é possível dizer isso. Já que você não é nada diante dele, use o terremoto como símbolo para uma série de coisas. E quando os talheres saírem pulando da mesa para o chão você terá ao menos um fiapo de racionalização para não se perder no contexto. Não existe agora a neurolinguística do trabalho, do sucesso e do enriquecimento certo? Pois então: coloque na mesa, antes que tudo venha abaixo, a neurolinguística do terremoto, aquela que ensina a lidar com a absoluta falta de defesa do ser humano diante dos mistérios da natureza.

O segredo pode ser encarar o terremoto como um grande freio de arrumação que a natureza acha por bem nos dar. E se você tiver tempo de pensar bem antes de buscar um refúgio vai ver que há uma razão para isso. Não valem as explicações de curto prazo, como asfaltamento de dunas, poluição do lençol freático, planos de construção de emissário submarino naquela mesma Ponta Negra ensolada. Acontece que tudo isso, por pior que seja, é muito pequeno diante da natureza maior, aquela que providencia os terremotos. Valem mais fatores menos evidentes, coisas que estão no ar, sinais de esgotamento da atividade humana que só um sismógrafo bem mais cismado consegue captar.

O terremoto pode ser um baita freio de arrumação não só no crescimento desordenado mas na desordem em crescimento. Um alerta para que os homens e mulheres do lugar atingido tratem de recolocar tudo no seu lugar. Quem sabe o Haiti, tão errático mesmo com ajuda estrangeira (e logo a brasileira), não se ajeita depois desse susto? E no nosso caso: quem sabe as coisas não ficam um pouco menos bagunçadas? Por exemplo: um freio de arrumação na política poderia deixar as coisas menos confusas, nestes tempos em que não se sabe mais quem é Alves e quem é Maia. Na cultura, nada melhor do que uma sacudida geral, que mostre o quanto as autoridades estão gastando em shows o que poderiam investir na formação teatral que ilustra, no incentivo à leitura que esclarece, no projeto constante que forma público atento e criterioso. E na área da segurança, quem em sã consciência não está esperando por um terremoto que reduza as estatísticas de mortes violentas praticadas sem que a falha de João Câmara se mova um milímetro sequer?

Ninguém quer ver prédios caindo, não está nos planos de pessoa alguma assistir à morte em massa de gente espremida entre lajes, muito menos virar manchete de desgraça internacional. Mas nem por isso dá pra dizer, como também está na moda entre certos segmentos, que Natal é o melhor dos mundos e a gente não precisa fazer nada além de manter o bico calado. Como aliás disse certo general-presidente sobre o Brasil em tempos de péssima memória. Por isso mesmo, quem garante que o "nosso" tremor de terra da semana passada não tenha vindo justo para negar essa falsa placidez? Como um pitaco da natureza a dizer que, em primeiro lugar, "yes, nós have terremoto". E, pra variar, temos também problemas urbanos, políticos, culturais e de segurança, só pra ficar em quatro áreas sujeitas a sérios abalos, tão críticos quanto os de qualquer outra cidade, estado ou país.

*Publicado no Novo Jornal

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