sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Inté, cabra!



O SOPÃO recebeu de Tetê Bezerra o link para esta bela coleção de fotos de Lula no exercício da Presidência da República. Clique aqui para ver tudo.

2010 na poeira da estrada


*Para ler ao som disso aqui.


2010, como já deve saber quem lê este blogue há tempos, não foi um bom ano para nós outros. E se o último dia do ano amanhece mais uma vez branco de nublado em Brasília, com uma chuva de chicotadas finas e frias açoitando o habitante da cidade, tanto melhor. Pois que ao menos é coerente com os 364 dias que o antecederam. Não fosse assim, sob essa chuva de impropérios naturais em forma de neblina rancorosa, e eu celebraria a estação terminal desta temporada fazendo arder uma fogueira mítica em frente ao prédio. E nela jogaria, como nos suicídios simbólicos do livro "A Dança Imóvel" (Manuel Scorza), todas as pequenas desgraças com que fomos brindados de fevereiro pra cá, que 2010, pra ser justo, durou só um mês e pouco - janeiro e o seguinte, só até o carnaval, que passamos aqui na companha agradável de Carlos Magno, Rosa, Pedro e Luís.

Desde então, abateu-se sobre nós uma pequena maldição de Jó - e ele que me desculpe de usar seu exemplo terminal para lamento comparativamente tão corriqueiro. Mas cada um sabe onde lhe dói a provação pagã ou divina, profissional ou familiar, banal ou transcendente. A nós, doeu um bocado. E se foi suportável isso se deve apenas ao fato de que não tivemos tempo de chorar o leite - era preciso providenciar novas garragas antes que o líquido derramado azedasse o restante do chão da cozinha. Nisso, gastou-se energia que poderia ter sido combustível para novas levas de lamentações. Chegamos ao final com a sensação de quem engrossou um pouco mais o couro da espécie, o travo bucal que habita o olhar duro das pessoas testadas nar armadilhas das convivências, a desconfiança providencial de quem abraçou sem reservas outra gente a quem apressadamente considerou amiga. Não é bom dizer isso, mas também não convém falsear o sentido - 2010 termina com uma multidão de pés atrás. Não por desconfiança inata ou estratégia de autoproteção repensada, mas simples reação aos fatos.

Mas agora que acabou o ano - ao menos, o ano; o que embora não garanta nada, não deixa de ser uma superstição esperançosa - é hora de despejar isso tudo naquela mítica e imaginária fogueira a desafiar as chicotadas do chuvisco brasiliense. Se a você o ano também foi farto em reviravoltas e reparações, faça o mesmo, meu caro ou minha cara. Sinta a satisfação derradeira de ver derreter em gotas de plástico poluente diluído cada porção de desdém, soberba e carreirismo com que você topou nesta jornada enfim encerrada, ao menos segundo as leis do calendário. Observe a matéria fútil se desdobrando sob a labareda, aspire a fumaça que resulta de sua combustão nefasta e depois cuspa em cima das cinzas para deixar tudo para trás. Depois, diga alô para 2011 como quem encontra um velho conhecido que um dia lhe sorriu sem esperar nada nem prometer coisa alguma. E vá.

*Uma dica é embarcar no carro sonoro de B.B. King e Eric Clapton (vide link na abertura da postagem), a bordo de guitarras que urram blues tão raivosos quanto catárticos, e ao mesmo tempo - ou por isso mesmo - sentimentais. Afinal, uma viagem de encerramento digna de um ano que não pouca gente fica feliz em deixar sumir ao longe na poeira asfáltica da estrada.

Colagem de absurdos


Fernando Bonassi é um dos nomes festejados entre certos segmentos da nova ficção brasileira, tanto literária quanto audio-visual. É autor ou co-autor de roteiros de filmes como "Cabra Cega" e seriados como "Carandiru". Escreveu o texto base de uma das encenações teatrais mais comentadas do Brasil recente, o Apocalipse 1.11 - aquele de célebre montagem pelo Teatro de Vertigem. Mas o que me interessava nele era mais a literatura propriamente dita, queria conhecer a narrativa de Bonassi. Pra ser honesto, tenho de dizer que queria conhecer melhor a prosa dos novos autores brasileiros - essa gente cultuada que ora estrela ora rejeita eventos como a Flip e seus derivados. Esse pessoal de letras urbanas que parece ignorar o leitor de maneira manifesta tanto quanto deve desejar sua admiração de forma sublimada.

Resumindo: conservador como o diabo e sempre muito desconfiado desses cultos de caderno B e revista Bravo, queria ler na fonte os tais novos escritores brasileiros que quase arrancam os cabelos toda vez que Chico Buarque, esse demônio no index da revista Veja, ganha um prêmio. Marçal Aquino já li - pouco, mas gostei (o conto que ele começou a escrever e deu origem ao filme "O Invasor", sendo concluído somente depois de pronta a fita). Marcelino Freire, idem - onde encontrei uma estética própria, rica e plasmada da algavaria das ruas do Brasil real sem que isso represente uma opção literária intransponível para o leitor que busca imersão numa história. Falta ler o pedantismo de um Marcelo Mirisola, entre outros. Mas foi em Fernando Bonassi que esbarrei, da maneira menos nobre possível - e é bom que os escritores, sobretudo os novos, tenham consciência de que é muito mais assim, no acidental sem charme e sem caráter, que seu leitor o encontra por aí.

Quero dizer que achei este "O menino que se trancou na geladeira" numa daquelas estantes promovionais de livraria de shopping. Dez paus. Nove e noventa e nove. Abri e como sempre li o primeiro parágrafo, que é o ponto chave que me leva ou não a seguir adiante (a maioria das pessoas, é curioso, lê primeiro o fim, como se dele pudesse deduzir a qualidade do que lhe antecede). Do primeiro parágrafo, passei à primeira página, à segunda e, quando vi, estava aí pela página 10. Bom sinal. Ou uma armadilha. Ou um meio termo, que foi o que se confirmou quando enfim levei o livrinho pra casa e o encarei com olhos de leitor acabrunhado em selva de prosa pretensiosa e moderna.

Fernando Bonassi é bem pretensioso, como muitos dessa nova geração. Ele compõe um livro de narrativa que não é propriamente surreal, embora assim pareça à primeira vista, mas situada acima ou paralela à realidade.O livro é um painel de colagens de imagens que se pretendem mais absurdas do que o panorama do planeta Brasil que o inspira e o sustenta. É atraente e tentador na sua primeira metade, ao construir um retrato torto de um país pouco reto, composto por uma classe imprensada entre ricos e miseráveis - que ele chama de Imprensados do Meio - onde tudo deriva de um sindicalismo de estirpe kafkiana e em que se fala e se pensa em um para-idioma cujos neologismos traduzem muito bem o estado geral - e deplorável - das coisas. Analfabetismo, por exemplo, é "analfobetismo". Psicanalistas são "psicanagistas".

No conjunto, o resultado lembra o Chico Buarque (olha ele aí) autor de letras como a de "Não sonmho mais" - aquela outra colagem estético-escatológica feita para traduzir em música o clima de um filme apropriadamente chamado "República dos Assassinos". O clima é o mesmo. Mas há também, para o leitor potiguar, um diálogo inusitado pela geografia humana - e que, por fim, denuncia a debilidade deste Bonassi quando se ultrapassa a metade do livro. É com o nosso Alex Nascimento de "Quarta-feira de um país de cinzas", um clássico potiguar da década de 80, vigoroso, sarcástico e bem-humoradíssimo retrato do Brasil de então - e, acredite, imensamente superior a este Bonasse de festejos atuais. Fosse Alex Nascimento um escritor do Sul Maravilha - essa entidade que, internet sertanizada à parte - ainda resiste (e como) e estaria derretendo ouro nas páginas das publicações culturais da platinada editora Abril. Como não é, deixa pra lá...

O pecado de Bonassi (pelo menos neste livro) é algo que Alex, com sua inteligência e seu bom gosto, não comete, nem por uma certa soberba que poderia muito bem provincianamente cultivar: o desprezo pelo leitor. Nâo há como a criatura mais imersa nas imagens construídas neste "O menino que se trancou na geladeira" não se encontrar em determinado momento perdida na esquina de suas colagens mais arbitrárias. Porque até o nonsense mais foribundo precisa de algum nexo, caso contrário perde a força. O sentido é outro - mas precisa estar lá e ser minimamente coerente. Alex fazia isso em "Quarta-feira" com o dedão do pé esquerdo coçando o cotovelo direito. Bonassi, como diria um leitor caicoense sem vergonha de suas origens, fica se amostrando. Marcelino Freire tem muito o que ensinar a ele - e não é à toa que, bairrismos à parte, seja nordestino por derradeiro.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Os livros que este blogue leu em 2010

PALOMAR - Ítalo Calvino
O MENINO QUE SE TRANCOU NA GELADEIRA - Fernando Bonassi
A VIDA QUE NINGUÉM VÊ - Eliane Brum
JORNALISMO LITERÁRIO - Gustavo de Castro
COMO SE FAZ UMA TESE - Umberto Eco
A PEDRA DO REINO - Ariano Suassuna
ROTEIRO DE CINEMA E TELEVISÃO - A arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma estória - Flávio de Campos
RICARDO III - W. Shakespeare
MANUAL DO ROTEIRO - Syd Field (releitura)
CARRIE, A ESTRANHA - Stephen King
TELEVISÃO NA ERA DIGITAL - Newton Cannito
UMA BREVE HISTÓRIA DO MUNDO - Geoffrey Blainey
MINHAS DUAS ESTRELAS - Pery Ribeiro e Ana Duarte
ALTA FIDELIDADE - Nick Hornby
A VINGANÇA DE SMILEY - John Le Carre
CHICO BUARQUE - HISTÓRIAS DE CANÇÕES - Wagner Homem
O MUNDO É BÁRBARO - Luis Fernando Veríssimo
CALABAR, O ELOGIO DA TRAIÇÃO - Chico Buarque e Ruy Guerra
OLGA - Fernando Moraes
MINHA FAMA DE MAU - Erasmo Carlos
GUIA DA CIDADE DO NATAL - Manoel Onofre Jr.
CINEMA BRASILEIRO, PROPOSTAS PARA UMA HISTÓRIA - Jean-Claude Bernardet

Grito da África


Uma articulação diplomática na área cultura está anunciando um esforço de fazer projetar no Brasil uma amostra maior do cinema feito hoje nos países africanos. "Um Homem que Grita" é o filme que abre este esforço, de acordo com o material de divulgação distribuído no cinema do Liberty Mall, onde a fita está sendo exibida em Brasília. É uma daquela ficções de caráter tão próximo da realidade e tão despido de qualquer espécie de adorno cinematográfico que se aproxima do documentário. E não de quaquer documentário, que este gênero está repleto de abordagens que misturam informação com entretenimento, mas do documentário mais seco, distanciado, frio. "Um Homem que Grita" (produção conjunta da França, Bélgica e República do Chade) gravita em torno de uma dupla de pai e filho no Chade, às voltas com dois impasse. Um é a difícil realidade de um país, como tantos outros do continente, ameçados tanto por governos corruptos quanto por movimentos armados violentos. O outro são os efeitos da globalização econômica que, com suas políticas de custos mínimos e resultados financeiros maximizados, ainda que à custa de sacrifícios humanos evidentes, também estende seus tentáculos a lugares tão miseráveis quando o exibido pelo filme.

"Um Homem que Grita" é um filme difícil à medida em que se estende. Torna-se mais e mais lento, contemplativo diante do sofrimento mudo, embora intenso, de seus personagens. Pai e filho gravitam em torno da mais que simbólica piscina do hotel em que trabalham, numa aparentemente estável rotina em meio a um país sujeito a algum tipo de conflagração. Um dia, no rigor global de ajustes econômicos, demissões são anunciadas. O pai não perde o emprego, mas fica sem o posto de chefe do serviço de manutenção da piscina, "cargo" que passa a ser ocupado pelo filho. Deprimido na nova função de agente de portaria, este pai perde também a própria identidade, transformando-se em metáfora do que ocorreu a toda a África, onde guerras, massacres e misérias se devem muito à reorganização territorial e política feita pelas antigas metrópoles européias quando do fim da coloniação mais que forçada, segundo critérios que ignoraram a geopolítica ancestral das comunidades locais.

Essa metáfora sustenta a verdade pungente do filme - e de sua tradução das mazelas do continente - mas não consegue tirar de sua projeção o peso de uma abordagem despida de qualquer chance de redenção. "O Homem que Grita" se deixa inocular pelo veneno de seu diagnóstico e deixa um sabor de água turva na boca do espectador, que poderá buscar algum tipo de refúgio diantes da crueldade plácida de suas imagens. Uma espécie estranha de postura cool que só se quebra - e mal - no dispensável e apelativo letreiro final, onde se convoca a platéia a descruzar os braços porque a vida não é, diz-se lá, um filme ao qual se assiste passivamente. A força do filme é até excessiva na descrição do panorama africano e, sendo assim, dispensa essa derradeira moral da história.

Mas é preciso dizer também que, para o brasileiro, "Um Homem que Grita" representa a África mais sombria, o que não falicita em nada a empatia com uma tradicional plateia brasileira. É como se um país africano quisesse apresentar por lá uma mostra do desconhecido cinema brasileiro e escolhese, por exemplo, um filme do cineasta Cláudio Assis, como "Baixio das Bestas" pra ficar num título bem didático. Um filme que enxerga o mundo da zona da mata pernambucana pelo viéis de que a região tem de mais lamentável - como a exploração sexual infantil ou o alcoolismo dos caboclos de lança dos maracatus rurais, comumente vistos como uma expressão de riqueza cultural e não de miséria social. Seria uma exibição realista de uma face brasileira, mas ainda assim limitada, parcial, incompleta. Vamos esperar pelos outros filmes africanos que chegarão até nós.

A cidade em chamas

Brasília está em polvorosa. Mas à maneira dela, claro. Isso significa dizer que a cidade está naquele clima de faxina doméstica às vésperas de uma festa familiar, do almoço que reúne os vários braços do clã, de primos distantes que chegam de avião aos tios do interior que trazem compotas para a sobremesa. É uma movimentação de limpeza de última hora, de ajustes finais, operários dependurados em prédios, cinegrafistas pendulando em arquibancadas improvisadas, grama sendo aparada, helicóperos batrulhentos em sobrevoos rasantes, militares e policiais ensaiando posturas e deslocamentos. Mas tudo, como dizia, à maneira local - ou seja, num clima de prévia da festa bem pouco animado. Com aquele indefectível espírito de cidade de servidor público que cumpre as normas, respeita horários, abraça padrões, sucumbe a protocolos. Brasília está em polvorosa, mas lenta como sempre nos finais de ano. Tudo por causa da posse de Dilma, como todas as posses ameaçadas pela chuvarada que nesta época do ano torna Brasília uma cidade ainda mais brasiliense, no seu silêncio de repartição e na sua arquitetura de comtemplação.

Talvez Brasília não tenha sido feita mesmo para se viver, mas para se olhar. Enquanto a gente tenta distrair uma comum e esperada depressão de fim de ano que caracteriza a cidade - todos os que podem vão embora, tiram ferias, viajam para seus torrões ou seus litorais - vendo os preparativos para a posse, fica e se impõe essa impressão de dias nublados. A feição de uma cidade que, de um urbanismo e arquitetura tão festejadas, parece que se basta em si, de maneira que se porvutura tem seus habitantes é apenas a pretexto de alguma figuração antropológica. Seríamos, seus moradores, qual avatares de uma realidade ilusória a serviço da moderna arquitura. Seríamos brinquedos vivos nas mãos do deus Niemmeyer, este homem imortal posto que é traço. E Brasília, esta cidade que só se justificaria de segunda a sexta, entre março e junho, agosto e novembro. Uma urbe sufocada por um calendário - ou por outra, por ele justificada. Sem espaço para datas vermelhas na folhinha.

Contra a corrente dos dias chuvosos e do céu branco, e sobre o cenário de clones da presidente testando esquemas para as solenidades da posse, somos salvos por uma outra expectativa, menos solene e mais sonhadora - a megasena milionária da passagem do ano. Enquanto na Câmara dos Deputados os plantonista tentam justificar sua presença dentro da gaiola de ângulos que o arquiteto criou, bolões e mais bolões de apostas circulam pelos corredores, gabinetes e demais desvãos. Há o bolão da Câmara, o bolão do Senado, o bolão da Rádio Câmara, o bolão tipo quarteto que sai a oitenta pratas - e a teimosia solitária, mas bem mais coerente com a Brasília de fim de ano, daqueles que se recusam à força coletiva da aposta conjunta e se lançam sozinhos rumo à lotérica mais próxima. Os azarados profissionais da paisagem, incapazes de acreditar na sorte das pessoas e do lugar. O habitante dos dias úteis, integrado ao céu nem sempre azulado e à arquitetura bem pouco funcional da cidade em polvorosa sob o céu aberto, embora nublado.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Um santo para os ateus


Se existem diversas gradações no ateísmo, José Saramago professou a mais mística dentre elas. Porque o ateísmo de Saramago, de tão redundantemente afirmado, de maneira a parecer quase uma segunda pele sobre a crosta de células de sua sábia e idosa pessoa, acabava parecendo uma estranha – mas bela – forma de fé invertida. É como dizer que Saramago, o autor foribundamente humano de livros misticamente ateus como "A Jangada de Pedra" fosse, na verdade, o mais crente dos mortais – e tanto mais o fosse quanto mais distante de deus se posicionasse. Quisera esse mesmo deus que todos os seus professados fiéis de carteirinha, batina ou apenas da boca pra fora tivessem um centésimo da crença atéia que lhe teve, de maneira inversa mas não menos verdadeira, o teimoso Saramago. Se assim fosse, o reino dos céus estaria coalhado de boas almas – o que, da perspectiva aqui da Terra, nem sempre parece corresponder à realidade divina.

Essas abstrações sobre fé atéia e ateísmo místico me ocorrem enquanto assisto, embasbacado de satisfação e pleno de reflexões, ao belíssimo – e imperdível, para quem tiver a chance de apreciar – filme JOSÉ E PILAR, documentário que mostra, para além da rotina (aliás, inexistente) do escritor português, sua relação com a mulher e companheira inseparável Pilar, sua moradia na ilha de Lanzarote, locação tão inóspita quanto poética em sua aparente rusticidade geológica e atmosférica (de tanta pedra e tamanha ausência de verde, lembra mais um poema de João Cabral de Melo Neto do que um sítio a se ter por moradia), suas viagens, compromissos, homenagens, pequenas mágoas (como a que tempo por seu Portugual, como a ratificar uma antiga tradição que opõe grandes autores aos seus torrões natais, Drummond que o diga), manias, debilidades, forças e fraquezas. É o que se poderia chamar de documentário sentimental, como um diário filmado onde José e Pilar parecem uma versão mais literária, mas nem por isso menos pop, de Lennon e Yoko antes do assassinato. Transborda do filme certo ascetismo no dia a dia do casal – onde a pungente energia dela é o complemento perfeito para a quase sacra rarefação dele – que casa mais com a santidade de certos personagens cristãos do que com determinada mundanidade de algumas celebridades da seara literária.

Isso, junto com o cenário onde o casal se movimenta, com seus ventos e suas pedras, mas a corte que lhe fazem estudantes, leitores e especialistas, vai conferindo à dupla José-Pilar essa aura humanamente santa, de quem mais acredita do que duvida do transcendental - embora afirme e sustente conscientemente o contrário. Por sinal, como pode uma mente capaz de investigar tanto a fragilidade quanto a grandeza humana com a destreza que faz Saramago em seus livros ser ao mesmo tempo incapaz de enxergar qualquer possibilidade de transcendência após a morte – pra gente ficar num questionamento menor, bem anterior à existência ou não de um entidade chamada deus? Quando mais se avança no filme – que chega às raias da mortalidade do escritor – mais a indagação se impõe. Apenas para que Saramago siga negando qualquer possibilidade de fé acima da reles humanidade de cada um de nós, enquanto o espectador fica mais e mais cismado com a negação, com a dúvida e com a ironia de essas duas coisas se encontrarem e se esbarrarem na esquina de uma pessoa como ele – e de tudo isso aparecer tão limpidamente quanto neste filme.

* Clique aqui para assistir ao trailler do filme.

* Mais sobre isso aqui.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Conclusões e princípios


Depois da primeira conclusão, a do jardim de infância, vem um mistério novinho em folha: como será o tal do ensino fundamental - ou, dito de maneira mais apropriada à mente de quem se vê às voltas com essas indagações, como será o primeiro ano... E assim é como se um ser desconhecido desse o primeiro empurrão na roda das etapas, este moto quase contínuo que um dia nos traga e não se sabe bem quando é que vai nos devolver novamente ao lugar onde estávamos, aquele mesmo que, tanto quanto nós, nunca mais estará lá. Porque depois da formatura do jardim vem o mistério do primeiro ano; depois da conclusão do ensino fundamental, instala-se a dúvida sobre como será o tal do segundo grau; e findo o segundo grau, abre-se a cortina das interrgações - aquela bem maior, ambiciosa, aí sim um rito de passagem digno do nome - sobre uma incógnita chamada universidade. Que, por sua vetusta pessoa, também um dia se conclui, bem tarde para uns, com mais celeridade para outros. E nem por isso encerra o giro daquela tal roda, pois que ainda há o mistério da pós, o enigma do doutorado, o signo encapado do PHD. E ainda que se chegue ao final de tudo isso, resta - aguardando sorridente, com dentes de ironia à mostra, no final da solenidade - um bem pouco intensivo curso muito do astuto chamado vida, prova final e cotidiana do desempenho que o aluno obtém com ou sem diplomas no bolso, tendo pago estética ou apenas matemática, cálculo ou introdução à filosofia - ou somente o básico dos primários estudos sociais. Ou aquilo que em tenra idade levava o singelo nome de linguagem. Então, é praticar, errar, tentar de novo e aprender para além do caderno escolar, como nossa Cecília há de fazer uma vez que acaba de ser cuspida, no bom sentido, para dentro dessa roda paciente e quase infinita que conjuga estudo, curiosidade, vida e emoção segundo a medida própria de cada um.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Teses, antíteses, ficções e realidades


Metodologia é um esse palavrão sonoro e chato, mas pode muito bem ser objeto de um livro inteligente e divertido. Para além de compor um manual prático destinado a acadêmicos preguiçosos que precisam tecer teorias em forma de projetos científicos de conclusão de cursos superiores – como acontece na Itália, mas não exatamente aqui, onde isso se dá em nível de pós-graduação – o ensaísta, romancista, especialista em semiologia e outros istas em proporção de dízima periódica Umberto Eco preparou essa divertida aventura disfarçada de livro didático que é COMO SE FAZ UMA TESE.

A editora Perspectiva não pensou duas vezes e tascou o título umbertiano na sua coleção “Estudos”, classificação tanto fiel quanto irônica quando nas mãos de um pensador contemporâneo que sabe como poucos misturar conselhos acadêmicos do tipo entrelinhamento recomendado para a redação final com pitadas intelectuais mundanas daquela espécie que vai logo desmanchando as ilusões do mais diletante dos estudantes. Como se dá na “dica” a seguir, salpicada na página 18 da edição brasileira: “fazer uma tese significa ir além das fórmulas popularizadas pelos manuais escolares, do tipo ‘Foscolo é clássico e Leopardi é romântico’, ou ‘Platão é idealista e Aristóteles é realista’, ou ainda ‘Pascal defende o coração e Descartes a razão’”.

É esse o tipo de pedagogia superior que Umberto Eco pratica ao longo de seu ensaio didático: uma orientação prévia para quem deseja se embrenhar na selva da elaboração de uma tese acadêmica cheia de provocações ao aluno que buscava apenas um receituário pronto, distante, objetivo. Nada como a subjetividade para temperar essa aula útil inclusive para quem não tem o menor interesse em fazer estudos acadêmicos –pelo menos não da forma tradicional – e sente coceira só de passar por perto de um daqueles entrocamentos urbanos engarrafadíssimos que dão acesso a um campus universitário metropolitano. O livro de Umberto Eco é, antes, uma aventura intelectual que nos mostra o quanto uma mera tese pode favorecer o projeto pessoal de alguém que ambiciona abraçar, sistematizar, organizar, cotejar e relacionar em itens, propostas, conclusões a sua visão de determinado problema deste mundão – o que, por mais particular que seja o assunto enfocado, e Eco lembra a necessidade de se fechar o foco desse problema com a maior exatidão possível, será sempre o espelho de uma situação maior quanto melhor realizado for o referido trabalho.

Em resumo, o que o senhor Umberto Eco nos diz, com a autoridade de quem teve paciência de organizar milhares de idéias, elementos, pistas, evidências, fatos e não fatos e devolvê-los ao leitor impaciente em forma de romances impecáveis como “O Pêndulo de Focaut” é que fazer uma tese pode ser um exercício para toda a vida – além de ser algo bem divertido se você encarar o desafio com as reais perspectivas que ele oferece.

Jornalismo novinho

Inteligente, divertido, extremamente bem escrito e – numa palavra que resume todos os adjetivos anteriores – absolutamente instigante são as 88 páginas, incluindo bibliografia citada e sugerida, de JORNALISMO LITERÁRIO – UMA INTRODUÇÃO, da lavra do nosso amigo Gustavo de Castro. Trata-se aqui de um pequeno, mas estimulante ensaio tão didático quanto o COMO SE FAZ UMA TESE de Eco – e igualmente destinado a estudantes, no caso específico, de Comunicação/Jornalismo. Era uma apostilha que Gustavo reeditou em livro e foi feita segundo o autor justamente para atender à demanda de estudantes sedentos por saber mais – e de forma sistematizada, digamos, compilativa num mesmo lugar – sobre o Novo Jornalismo, aquele de Gay Talese, Truman Capote e (meu preferido entre eles) Tom Wolfe. Para estudantes, vírgula - que não seria nem um pouco dispensável na biblioteca de noventa por cento dos jornalistas em ação no doce mercado atual.

Acontece que Gustavo poderia ter dado uma de professor em condições de superioridade sobre alunos ansiosos e só. Mas, não. Assim como Eco, a estrada acabou mas ele continuou caminhando numa trilha por ele mesmo inventada. Produziu, mais do que um outro desses manuais práticos para estudantes desajeitados, um belo ensaio sobre os (em muitos casos, difíceis e quase inexistentes) limites entre jornalismo e literatura. Embora eu não veja o jornalismo como uma forma de arte – uma idéia que Gustavo abraça com quem se atraca com um xique-xique, sangrando mas sem sentir dor – concordo com ele pelo menos na aproximação. E essa feliz discordância – pois é bom possível que muita gente fique na dúvida, e é no mínimo saudável que seja assim, pois denota ao menos interesse por uma forma diferenciada de relatar jornalisticamente a realidade – dá uma nova sustentação ao livro, faz com que voe muito mais alto do que sugere ou permite uma abordagem didaticamente tradicional.

Há parágrafos e parágrafos que fazem o leitor-estudante ou profissional soltar os pés do chão no afã de pisar as nuvens desse gênero jornalístico que não se contenta com o quê, quanto, quem e por que danado zezinhos fez tal coisa a mariazinha. Na sua especulação sobre saber literário em oposição – ou em conjunção – ao saber jornalístico, Gustavo redige considerações como esta (um momento em que francamente se coloca a favor do primeiro, como a justificar sua utilização pelo segundo): “Talvez seja por isso que a literatura ainda é o realismo possível mais indicado, sem contraindicações, ainda que incautos, ignorantes e soberbos a considerem uma abstração. A única razão de ser da literatura consiste em dizer aquilo que só a literatura pode dizer, trata-se de esclarecer narrativamente o mundo da vida, aventurando-se no reino das possibilidades humanas. O mundo real se ilumina de forma peculiar quando sobre ele se projeta o saber literário.”

Cruel sem ser cínico

Gustavo está falando do saber literário, mas numa fronteira bem próxima do saber jornalístico muito especial de pessoas como a repórter Eliane Brum, uma gaúcha introspectiva que se encontrou na redação do jornal Zero Hora e de lá saiu para montar sua barraca de frases sensíveis e coloquialmente geniais na revista Época. Mas não foi nem em um nem em outro que li suas sentenças informais que, à guisa de funcionarem como pena, resultam em estudos – jornalísticos, o que não é algo fácil de conseguir – sobre a alma humana mais invisível na multidão da metrópole formiguenta. Estou falando do livro A VIDA QUE NINGUÉM VÊ, coletânea da coluna de mesmo nome que Brum escreveu para a Zero Hora e acabou editada e livro pela Arquipélago Editorial. Dificilmente poderia haver um livro mais indicado para se ler depois de sorver o estudo de Gustavo de Castro sobre o jornalismo literário – que ele chama, como que invertendo a expressão, esqueci de dizer, de “literatura da complexidade”.

Porque poucos no Brasil colocaram em prática essa forma mundana de literatura da complexidade como faz Eliane Brum nos textos reunidos neste A VIDA QUE NINGUÉM VÊ, titulo da coluna que, obviamente, é uma referência quase explícita a outro momento ímpar – e literariamente rico, e jornalisticamente milionário – da imprensa brasileira, o mais que conhecido “A vida como ela é” de Nelson Rodrigues. Eliane Brum recolhe perfis pelas ruas, revalorizando ao extremo do bom gosto, da sensibilidade, da paciência e da humildade que não mais viceja entre a classe jornalística aquilo que há tempos o também repórter Ricardo Kotscho procurava fazer, no que os colegas maldosos – e desde então já bem vaidosos – chamavam de “matéria de pipoqueiro”. Qual nada: Eliane poderia oferecer a esses mesmos insensíveis da pauta uma pletora de alcunhas irmãs, como “matéria de morador de rua”, “reportagem de carregador de mala”, “notinha de professora que salvou trombadinha” e daí por diante.

Inverta-se a contenção do apelido redutor e se terá um pista do que é este A VIDA QUE NINGUÉM VÊ. Nele, está, com a graça da prosa de Eliane Brum (muitas vezes cruel, mas nunca cínica), o registro ampliado da dor de cada um, como o desempregado que enterra a filha num dia e a mulher praticamente no outro, o velhinho dos comerciais de Natal que traz na biografia oculta pela face preferida das agências de publicidade uma nefasta história de perdas, a garota que recorre à seleção de adjetivos e diminutivos para compor sua gramática particular de pedinte no sinal de trânsito – “Tio lindo, tia linda do coração... um trocadinho para essa pobre garotinha...” . Ou ainda as deformações físicas que contribuem à sua maneira pra dar um mínimo de dignidade contrastante a uma certa Eva, “mulher que cometeu um crime que a humanidade não perdoa. Recusou-se a ser vítima”. Sobre ela, narra Brum: “Em troca da moeda, devolveria ao doador o alívio não apenas da caridade, mas o outro, secreto: a garantia de que a deformidade, assim como a loucura, está sempre no outro.” E diz mais: “Como ousava Eva, justo Eva, ser imperfeita em um mundo onde se paga para que todos sejam igualmente perfeitos? Como ousava Eva ser diferente em um mundo onde a igualdade das idéias é a única garantia de segurança? Como ousava Eva vencer pelo espírito no mundo da aparência?”

Assim como a dor que ninguém vê, também é matéria de jornalismo para esta Eliane Brum a alegria incontida de gente sem o menor motivo para guardar nos olhos o brilho de uma energia sem preço, como a mãe de família analfabeta e de vida errante que descobre, tarde mas a tempo, a magia da leitura. Ou o carregador de malas do aeroporto que está sempre a um passo das asas dos aviões sem a menor possibilidade objetiva de um dia tirar os pés do chão junto com elas – a bordo de uma delas. Um típico personagem da era pré-Lula – como, por sinal, grande parte de todos os outros que Eliane encontrou por aí na invisibilidade do mundo brasileiro dos anos 80 e 90 – que, afinal, acabou voando bem antes do advento deste outro tempo, graças a uma cortesia do pessoal da TAM que acabara de ler a crônica-reportagem sobre o referido cidadão.

Nesta semana de muitas compras de presentes de Natal, há sempre alguém metido em dilemas sobre o que dar para outro alguém de quem se gosta muito. A VIDA QUE NINGÚEM VÊ desmancha qualquer dilema, na qualidade de presente que, mais do que o fetiche do objeto livro que enfeita estantes e vai bem ao sentido tátil das mãos em meio à ceia familiar, contém em seu interior – e da forma menos piegas possível, pode ficar tranqüilo – a natureza daquilo que pais, mães, irmãos, tios, sobrinhos, primos e avós costumam chamar, na falta de designação mais conveniente, de “espírito natalino”. De verdade, sem mistificações – que o que mais Eliane Brum odeia, segundo palavras dela mesma num posfácio explicativo, é o mito. Prefere a pessoa real, acha muito mais rica. Coisas do jornalismo literário – e eu fico imaginando o que seria um livro dessa jornalista, sem as habituais pedras nas mãos ou a igualmente prejudicial aprovação prévia, sobre esse mito que se despede que é Lula. Esse Papai Noel governamental que venceu a própria invisibilidade para instalar novos impasses na ceia permanente com ou sem comida da família brasileira.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Já para a Rede


A rede social pulou da internet para o cinema, com o filme do mesmo nome. Na tela grande, essa rede foi tesionada em ponto máximo. O resultado da eletricidade desse puxão é um filme trêmulo de agilidade, apiléptico da primeira à última cena, uma narrativa visual que se revira várias vezes sobre si mesma para mostrar os desdobramentos que uma idéia criativa pode ter quando se torna refém das normas inerciais do mundo corporativo. Em resumo, A REDE SOCIAL é, sozinho, um filmaço - e, inscrito no panorama do cinema e da cultura pop-tecnológica atual, um marco do nosso tempo.

Como até os recém-nascidos já sabem, o filme conta a gênese do Facebook, rede social que avança quem nem cavalo galopante sobre tabletes, celulares e demais congêneres informáticos desse nosso tempo urgente e ansioso. Só que isso é pouco para definir o filme, uma vez que ele, ao tomar o Facebook como ponto de partida, acaba por desenhar um painel completo sobre os novos formatos de negócios que vão surgindo na esteira do que um dia foram os desprezados nerds das high schools americanas. A REDE SOCIAL avança na psicologia desse tempo, focalizando desde o cinismo inevitável do jovem minimamente dotado de genialidade até a falsa vocação vitoriosa de quem nasce em berço privilegiado e acha que por isso o mundo tem de se curvar o tempo inteiro à sua pessoa. Está no filme o insight mínimo de simplicidade inspirada que costuma levar para a frente idéias prenhes de lucros que delimitam nossas novas rotinas de e-mails, amigos adicionados e ídolos a serem seguidos como se fôssemos um renovado tipo de detetive virtual debruçado sobre informação aberta e tudo e a todos. Tem Bill Gates e Steve Jobs na tela dessa REDE SOCIAL, como tem o mais recente alvo da atenção planetária, o responsável pela bisbilhotagem meio cidadã meio temerária que é o Wikileaks.

E tudo isso de uma maneira que você nem precisa ter perfil no Facebook para entender, acompanhar e se deliciar com as conexões traçadas em forma de imagens, diálogos e situações. Um quadro que se alimenta de todas as tensões possíveis - as mais humanas quanto se possa imaginar, algo bem diverso do que se poder esperar de um filme que, a princípio, trata de linguagens etéreas como devem ser a dos produtores de mercadorias destinadas ao uso via internet. Pois sobram tensões no filme, entre o garoto que criou a rede social em questão e seu amigo e parceiro dedicado a viabilizar o veio empresarial do negócio (com o que mantém o amigo gênio minimamente linkado à realidade à sua volta); entre o garoto e a garota por quem ele está interessado mas, incompetente no relacionamento tanto quanto genial nas idéias puras, desperdiça todas as chances como quem queima navios nem um pouco virtuais; entre o mesmo garoto e a dupla de gêmeos bem posicionados na vida que confudem a extração vitoriosa do clã familiar de onde provem com a possibilidade efetiva de sucesso autoral por parte deles mesmos.

E aqui há uma frase, dita pelo protagonista, que cimenta tudo - a genialidade contrariando o favorecimento, a espontaneidade dando uma rasteira nos planos de quem já nasceu com tudo a ser favor. É quando Mark Zuckerberg, o tal garoto criador do Facebook - e acusado de roubar idéia alheia e trapacear geral, o que é o gancho narrativo do filme todo - comenta o fato de os gêmeos não se conformarem com o fato de perderem a propriedade da idéia que julgam exclusiva: - O problema não é eles terem perdido o site, mas o fato de terem sido contrariados pela primeira vez na vida. Ou algo similar, que transcrição literal nem sempre garante a precisão da idéia.

Melhor que isso só mesmo a cena em que o diretor da universidade despacha a dupla de gêmeos remadores vitoriosos, donos do mundo e bem chatinhos com uma preleção bem pouco acadêmia - mas bem aguda na sua redundância - sobre a real natureza da competitividade no ambiente da instituição que a todos os personagens abriga. Os mais chegados às idéias de empreendedorismo vão se arrepiar, mas os menos competitivos também - e pelo mesmo motivo: por se tratar de um discurso sobre como se posicionar na vida em geral e não apenas numa rede social em particular.

Caia nesta rede o quanto antes, veja o filme no cinema, não fique esperando pelo lançamento em DVD - que se trata aqui de algo feito para ser visto e ouvido em sala escura, tela grande, impacto garantido e que não se perde no burburinho da sala de estar. A rede é pop, o papo é sério e o filme está muito mais do que à altura dessa onda toda. A ele, nos cinemas, já - com a urgência dessa postagem escrita às pressas, antes que um outro assunto tome o lugar das notas que eu não escrevi antes de digitar isso aqui à guisa de perfil que seja em rede social qualquer.

Clube de leitura


Rosália está de volta aos comentários do SOPÃO - e isso nunca é pouco. É a certeza de que leitores primordiais continuam frequentando o nobre boteco e, se não se fazem notar em postagens outras, respondem "presente" quando o assunto é por demais evocativo. É este bem o caso dos textos sobre a PEDRA DO REINO de Ariano Suassuna, aquele velhinho divertido em sua obtusidade teimosamente sertaneja que ganhou, aqui no SOPÃO, assim do nada, uma neta e um bisneto de extrações variadas. A neta é Rosália mesmo que conta, no comentário citado e que deve mais é ser lido no original ali embaixo, ter devorado a PEDRA num carnaval em Acari - pense numa boa ocasião para se enfrentar o romance-monolito de Suassuna! O bisneto é Pedro, que comparece no blogue pelas mãos de sua mãe, Ana Nossa Mana, portadora da feliz notícia de que o rapaz, embora urbano que só sinal de trânsito de três tempos, também traçou a mesma PEDRA filosofal do sertão de RN, Paraíba e Pernambuco. São dois apreciadores em pontas, senão opostas, bem distantes do universo do público leitor. Pedro é um pós-adolescente instalado naquela esquina da vida onde os ventinhos vespertinos ainda não decidiram para onde a vela de cada um vai, Rosália é pessoa-formada a partir do molde daquele mesmo sertão de onde Suassuna tirou o barro de seu Quaderna, entre tantas outras figuras. O fato de haver um link entre os dois - e de esta liga ser o livrão referencial de Ariano - só torna ainda mais célebre, além de divertida e instigante, a reputação do título e de seu autor. O SOPÃO queria só registrar isso - e comemorar a companhia dessa rapaziada toda.

P.S: Na ilustração do post, o traço potiguar de Newton Navarro.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

As cidades litetárias de C. Buaque


Não tem nada a ver com essa polêmica de proveta sobre o prêmio Jabuti, mas a verdade é que estou no time dos que preferem o Chico Buarque músico, compositor – e até cantor – ao escritor, embora não desconsidere a validade do fato de ele se experimentar em outros meios, como já fez com muito maior impacto, por exemplo, no teatro – vide a GOTA DÁGUA, em parceira com Paulo Pontes, e o CALABAR, com Ruy Guerra. Mas mesmo diante de gigantes como Chico Buarque, a gente tem o direito de ficar assim-assim. Que é como eu fico sempre que leio uma das ficções dele – o que fiz até agora apenas duas vezes, com ESTORVO e BENJAMIM – mas acho que o suficiente para captar a atmosfera de sua escrita. Digo isso não apenas para aproveitar a deixa da tal polêmica de proveta, mas porque no final de semana finalmente pude assistir à adaptação de BUDAPESTE e, encerrada a sessão caseira, fiquei com uma impressão bem próxima à de quando fechei as páginas dos dois livros já citados. Na minha cabeça de leitor e espectador, ocorre o seguinte: o Chico criador de personagens musicais tão ricos, sugestivos e impressionantes – vide a Geni do Zepelin, o funcionário e a dançarina que nunca se encontram, o Guri que traz presentes roubados para a mãe e o artista em crise da canção Roda Viva, entre tantos outros – não consegue criar similares de igual impacto em forma de literatura. O que, na música, ele consegue fazer com meia dúzia de versos de uma composição que no nível dele pode ser até banal, em livro se esgarça e se perde, pulverizando o impacto quanto mais é explorado em parágrafos e parágrafos de narrativa. Enfim, o que há de síntese certeira em letras como a do SUBURBANO CORAÇÃO, para ficar num exemplo só, vira dispersão naquelas personagens meio sonâmbulas de urbanidade perdida em BENJAMIM.

Claro que são meios diferentes – a canção e a ficção, a música e a literatura – mas também não há como o brasileiro, tendo passado a vida a ouvir Chico Buarque, tendo aprendido com ele o evangelho melódico e rítmico de boa parte do que se considera a tradição de uma das melhores músicas do mundo, não esperar desfrutar de um mínimo desse mesmo talento e prazer estético quando diante de um de seus livros.

Da leitura do ESTORVO, guardei impressões esfumaçadas de certa realidade intangível e sufocante – um mundo percebido em brumas de umidade angustiada. O livro inteiro me pareceu assim como o resultado de um jato de água como esses que aparelhos de irrigação modernos lançam no ar sobre plantações infinitas, com aquelas gotículas abstratas que, sim, fazem sentido quanto juntas, mas vá se deter em cada uma em particular e o resultado é bem vago. Escapa da sua atenção, foge ao raciocínio imediato, desliza feito sabão por maior que seja a qualidade da inquirição dos seus olhos. Ah, sim, ESTORVO, como ademais os outros livros de Chico, é o tipo da narrativa lírica que aborda muito mais o ponto de vista do personagem-narrador do que uma sucessão de fatos e eventos que resultam em alto mensurável em termos reflexivos. Mas mesmo levando em conta o condicionamento desse gênero – também muito comum no cinema e, até certo ponto, muito rentável quanto vertido em imagem, como ademais a adaptação de ESTORVO, superior à de BUDAPESTE confirma – deixa no paladar do leitor um sabor aguado de escrito incompleto. Pelo menos em mim deixou.

Da leitura de BENJAMIM, ficou a marca de algo feito absolutamente à base de personagens salpicados na tela de um mural urbano-psicológico ligeiro, sem pretensão de abarcar tudo mas muito apegado à coloração de seus tipos para soar verdadeiro. Digo melhor, de esboços de personagens que nunca aparecem por completo: é sempre uma gente composta com pedaços de personalidade, vestígios de vestimentas, fragmentos de perfis, como se o escritor fugisse da totalidade de suas criações – meio como se deixasse para o leitor completar, o que é comum e elogiável entre os críticos, meio como se ali estivessem, lutando para sobreviver na superfície oceânica do romance, as mesmas criaturas que tão pouco precisam fazer para passear sobre as águas das canções.

A diferença é que, nas letras, basta uma ou duas pinceladas, desde que marcantes o suficiente, para a criação se fazer notar e a canção se garantir, crescer e iluminar a audição do admirador de Chico. Vejamos a IRACEMA daquela música feita para um filme que, não ficando pronta a tempo, acabou incluída no CD AS CIDADES (Iracema voou, para a América / Usa roupa de lã e anda lépida... tem saído ao luar, com um mímico / ambiciona estudar canto lírico / vê um filme de quanto em vez / não domina o idioma inglês / lava chão na casa de chá). A soma dessas várias pistas sobre a mesma mulher, reunidas em cacos colados como os restos de uma porcelana que se espatifa no chão constitui uma criação inteira e intocável – autônoma em sua construção falsamente dispersa.

Isso se dá com perfeição e sucesso porque a cola que atravessa e dá consistência à criação dessa Iracema é a matéria compacta de uma letra de música, de tamanha concisão auditiva que torna-se perceptível ao mais remoto assobio.
Mas quanto o Chico Buarque tenta transferir tudo isso para a caudalosidade do romance, essa Iracema se dilui e se perde. E como, em BENJAMIM (que não tem Iracema nenhuma, isso aqui é só uma comparação grosseira), os personagens existem meio que acima do mundo real, sem uma narrativa para além deles que os situe minimamente – o que interessa no romance, como já disse, é o lirismo do ponto de vista deles e só – mais cedo ou mais tarde a leitura se distrai, o impacto se esvai e o interesse se degela, frio e morno. Em Chico Buarque, a música popular, pode-se dizer com base naqueles princípios de antigamente, é uma “arma quente”. Já a literatura...

No caso de BUDAPESTE, não cheguei a ler o romance – que, por algumas sequencias do filme, imagino ser bem superior à sua adaptação cinematográfica – mas encontrei na minha sessão caseira indícios daquelas mesmas sensações que cercaram a leitura de BENJAMIM e ESTORVO. A mesma dispersão narrativa, idêntico lirismo borrado abrigando qual capa de chuva inútil seus personagens molhados de sensações vagas, a mesma perplexidade frente à realidade e ao mundo interior das pessoas e das coisas que marcam a literatura de Chico Buarque, de uma maneira que faz seu romance soar sempre mais performático do que necessitam ser suas mais comezinhas canções. Mas há um agravante, o que também explica o fato de ter achado BUDAPESTE uma adaptação bem inferior à de ESTORVO, feita há alguns anos por Ruy Guerra (e digo isso ciente de que fica difícil julgar uma adaptação sem ter lido o livro original, usando apenas o quadro de referências anterior de dois livros e um filme).

Ocorre que o que BUDAPESTE poderia ter de melhor, que é o cruzamento de comparações entre a capital da Hungria e a cidade do Rio de Janeiro – o que, por si só, já confere uma paleta cinematográfica a priori para o filme – acaba por se tornar um fator prejudicial, e não favorável como parece a princípio. Porque se os planos de Budapeste, a cidade, dão um alento visual e tanto a BUDAPESTE, o filme, tampouco servem para lhe dar uma circunstância mais precisa, que faça o filme se distanciar da qualidade vaporosa da prosa de Chico. ESTORVO, ao não contar com esse tipo de recurso, resultou em um filme absolutamente abstrato, no mesmo grau de subjetividade do livro. E nisso, nessa coerência, construiu sua especificidade. Saiu um filme mais íntegro, vivo, com uma tensão, digamos, imensurável, presente do início ao fim.

Em BUDAPESTE, não: há o veio da comparação entre Rio e a capital húngara, há as escaramuças da vida social do protagonista, há a crítica da civilização carreirista sob a moldura da paisagem carioca, há os tormentos internos do ghost writer que estranhamente sofre mas segue desempenhando tal profissão, há o mais do que gasto apelo à metalinguagem mais constrangedora – e há, inclusive, o que o filme tem de melhor, pra mim, que são as sequências em que o narrador explora sua relação com as palavras, especula sobre a natureza dos sons, discorre sobre os mistérios e fascínios do universo vocabular da língua portuguesa. Tudo isso com textos escritos sobre o papel da pele de belas mulheres. Mas, dessas várias vertentes, resulta um filme com muito sexo e pouca tensão, vastas possibilidades e escassas considerações. Não por acaso é um típico filme de produtor e fotógrafo – seu diretor é o consagrado pintor de telas em movimento Walter Carvalho, sua produtora a elogiada Rita Buzar – que tanto quanto lapida determinados trechos em particular negligencia o resultado geral do que é e do que poderia ser o filme.

Depois dessa visão de BUDAPESTE, até que aumentou minha curiosidade sobre o livro que deu origem ao filme como o próximo Chico Buarque a ser lido, mas caiu em conseqüência meu interesse pelo LEITE DERRAMADO que é seu livro seguinte e falso objeto da polêmica do Jabuti. O meu temor é de encontrar mais um pacote de angústias dispersas e criaturas que expressam um milhão de seres humanos numa balada como VALSINHA, mas parecem apenas manchas impressas – ou quando muito caricaturas urbanas – em livros como BENJAMIM. As cidades de Chico Buarque, fica claro nesses percursos entre músicas, livros e filmes adaptados, são metrópoles artísticas que fazem mais sentido à audição compactada do que à vastidão da literatura. Mas ninguém pode repreendê-lo por continuar tentando. Dito isso, posso dizer que no final das contas o melhor livro de Chico Buarque continua sendo o CHAPEUZINHO AMARELO que ajudou Cecília, bem mais criança do que é hoje, a não temer mais o lobo-lobo-lobo-bolo-bolo.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A alegoria da Pedra


O Rio de Janeiro tem as escolas de samba, o Norte do país tem o Festival de Parintins, o sertão central suas cavalhadas, mas é no Nordeste onde estão os grandes artífices da arte da alegoria. Não a alegoria eventual do Carnaval dentro ou fora do salão, mas aquela outra, a grande ilustração do painel de um tempo e lugar, especialmente se tal tempo e lugar forem bem menos exatos do que sugere o mero calendário – e mais simbólicos porquanto contenham em si os pontos cardeais bem menos precisos de uma determinada cultura.

A PEDRA DO REINO, o calhamaço civilizatório de Ariano Suassuna que acabei de ler estes dias, depois de vencer qual esquadra nostálgica os mares tormentosos de contos, causos e mitos que se debatem qual marolas narrativas em encrespada prosa sertaneja, estará certamente entre as cinco maiores dessas alegorias brasileiras que ora definem e circunscrevem, ora ampliam e projetam as pontas soltas de novelo composto por uma terra e sua gente.

A PEDRA DO REINO é assim, essa alegoria que tudo abarca em sua sede semi-árida de sombrear Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, essa minipátria de território delimitado e expressão sem fim de onde saíram o autor do livro, seu antiprotagonista quixotesco e o autor dessa avaliação apressada. Glauber Rocha, outro nordestino a primar pelo apego à alegoria, foi pródigo nas suas, construídas em celulóide para borrar em telas de cinema as imagens difusas de cangaceiros, beatos e oprimidos. Suassuna, na PEDRA, inscreve sua alegoria em palavras filtradas aos gêneros que antecedem a gênese de suas crias – o romance medieval, a releitura de Cervantes, a poesia de cordel, o repente fugidio, a prosa picaresca e o que mais o barbante dessa tradição enovelar.

O resultado é como um painel de Newton Navarro, um daqueles murais de Portinari adaptados ao pincel da palavra, à lavra da prosódia que regramatiza o falar e o escrever conforme o idioma paralelo do sertão seridoense, como João Guimarães já havia feito com as contrações lingüísticas e quase surreais do sertão central. A alegoria da PEDRA é assim como um grande estandarte de cores vívidas embora recoberto por uma mui coerente camada de poeira de Soledade e Juazeirinho, ali na Paraíba entre o seridó potiguar e o frio de Campina Grande, a pátria particular onde Suassuna foi buscar figuras tão representativas quanto o autonominado nobre de extração paralela à monarquia oficial brasileira que é este seu Dom Pedro Dinis Quaderna e o Zé povinho de língua atirada, criatividade de sobrevivente e reputação gatuna que é João Grilo.

Neste grande estandarte escarlate que é a PEDRA, linhas de palavras e sentenças compostas à guisa de um grande depoimento perante a autoridade judicial sempre comprometida são costuradas numa imensa narrativa nem um pouco linear. Ao longe já se divisa na flâmula seus bordados cheios de reentrâncias que permitem incrustar no pano os mil e um detalhes indispensáveis à melhor apreciação da visão geral do desenho. Um iconografia que brota do chão seco, faz-se impregnar no estandarte tremulante e finalmente se oferece ao autor-artesão para ser entalhada na madeira dessa xilogravura literária que também é o romance.

Entre o abrir e o fechar das setecentas e tantas páginas do livro, o leitor experimenta o braseiro da temperatura local aquecida pela presença de tipos que a terra não para de gerar e fundir, numa profusão de rude gaiatice que garante o orgulho mínimo a que um povo tem direito no dever de ofício que tem todo homem de se manter, mais do que vivo, notável. É assim que Quaderna, ludibriando pabulagens oriundas da direita, da esquerda, da metrópole e dos rincões, dos literatos e dos pragmáticos, dos fortes e dos débeis, impõe-se como figura central naquele estandarte romancesco que dá face, cor, emoção, ferocidade e sobretudo verdade à narrativa maior com que Ariano Suassuna revestiu aquele esquecido e vasto, embora geograficamente limitado, sertão nosso.

Estamos todos remotamente ilustrados nessa PEDRA, qual pintura rupestre em lajedo desprezado como os muitos que há pelo Seridó potiguar e paraibano – ou por outra é ela que brilha cavernosamente nas entranhas mal exploradas das furnas sertanejas que guardamos internamente, embora nem sempre estejamos lembrados disso.