sábado, 28 de fevereiro de 2009

Ritmos sonoros e achados verbais

Uma coisa é suportar a soberba de quem faz pose de intelectual de bom gosto sem saber bem onde o galo está cantando. Outra, bem diferente, é baixar a cabeça para a escrita blasé mas irresistível de quem elege os melhores e detona o que não lhe apetece com a destreza de saber analisar com prudência, estilo e elegância, e a competência de deixar claras as bases desse julgamento. E tudo isso com um pouco de charme verbal, que não é talento concedido pela providência a qualquer mortal. De quem eu estou falando, já descobriu? Do Ruy Castro que todo mundo descobriu mesmo foi lendo a "biografia" da bossa nova, o soberbo "Chega de saudade" - e que continuou nos tratando muito bem com seus livros seguintes, como o "Anjo pornográfico" que espanou a poeira de moralismo que impedia os brasileiros de admirar Nelson Rodrigues de peito aberto.

Pois bem: nessas férias, terminei de ler a coletânea que Heloísa Seixas, a patroa do escriba, organizou com os textos publicados por Ruy Castro na imprensa sobre o tema "música, maestro". Antes, ela já havia feito o mesmo com texto de Castro sobre cinema, em livro que foi um dos primeiros temas de postagem neste cansado e alquebrado "Sopão" (podem conferir, lá no endereço antigo, http://www.sopaodotiao.zip.net/). Não sei se pelo fato de ainda estar quentinho na cuca, mas o fato é que "Tempestade de ritmos" - é esse o nome do livro , se é que alguém aí ainda não sabe - me parece ainda melhor, mais instigante, mais divertido e mais informativo do que "Um filme é para sempre" - a coletânea anterior.

A seguir, virá uma postagem só com trechos do novo livro - "novo" para o "Sopão", entenda-se, que faz questão de publicar tudo com o maior atraso para não deixar cair a peteca da perenidade das coisas boas. Por hora, isso aqui é para dizer do primor de frasista que Ruy Castro vem se tornando, um arte verbal que ele pratica e distribui meio que aleatoriamente dentro dos textos desses livros que ele escreve ou que a mulher dele organiza e publica. O manancial de tiradas é tamanho, as comparações tão vivas, as metáforas são vívidas, que quando notei já estava parando para anotar. E compartilho com vocês algumas dessas pérolas aos porcos que nos joga o jornalista Ruy Castro enquanto escreve sobre Miles Davis, Rosemary Clooney, Cole Porter, Peggy Lee e tantos outros:

"Um asmático numa mina de carvão"

"Cantores de peruca"
"Jazzófilos de coração de pedra - como eu"

"Um indício de que a música estava voltando a servir para aperfeiçoar as pessoas, não para degradá-las"

"Três modestas obras-primas que tornam muito melhor a vida de quem as conhece e as ouve com frequência"

"Não se faz mais do que um Cole Porter em cada século"

"A voz trabalhada por décadas de uísque e cigarros"

"Era uma música com ponto de exclamação"

"Quando um artista chegava a essa marca, o eixo da Terra sofria uma ligeira alteração"

Veja o filme, leia o livro



"Técnica e organizacionalmente, a posição de Eichmann não era muito elevada; seu posto acabou sendo tão importante só porque a questão judaica adquiria, por razões puramente ideológicas, uma importância maior a cada dia, semana e mês da guerra, até haver adquirido proporções fantásticas nos anos de derrota - de 1943 em diante. Quiando isso aconteceu, o seu departamento ainda era o único que lidava exclusivamente com "o oponente, o judaísmo", mas de fato ele havia perdido o monopólio, porqque então todos os departamentos e aparelhos, Estado e Partido, exército e SS, estavam ocupados 'resolvendo' o problema."

"Nesse ponto, talvez fosse razoável alegrar-se pelo fato de não se tratar aqui de um julgamento comum, onde declarações sem base em procedimentos criminais têm de ser descartadas fora como irrelevantes ou inadequadas. Pois as coisas, evidentemente, não eram tão simples quanto os autores da lei tinham imaginado e, mesmo sendo de pouca relevância legal, era de grande interesse político saber quanto tempo leva uma pessoa mediana para superar sua repugnância inata pelo crime, e o que exatamente acontece com essa pessoa quando chega a esse ponto. O caso de Adolf Eichmann fornecia a essa pergunta uma resposta que não podia ser mais clara e mais precisa."


"As razões particulares que falam pela possibilidade de repetição dos crimes cometidos pelos nazistas são ainda mais plausíveis. A assustadora coincidência da explosão populacional moderna com a descoberta de aparelhos técnicos que, graça à automação, tornarão 'supérfluos' vastos setores da população, até mesmo em termos de trabalho, e que, graças à energia nuclear, possibilitam lidar com essa dupla ameaça com o uso de instrumentos ao lado dos quais as intalações de gás de Hitler pareciam brinquedos de uma criança maldosas - tudo isso deve bastar para nos fazer tremer."

São trechos de "Eichmann em Jerusalém", de Hannah Arendt (editora Companhia das Letras), o livro que vem à cabeça inevitavelmente enquanto se assiste ao filme "O leitor", em cartaz nos cinemas.

Nas telas, a banalidade do mal



Segundo a canção, "está provado que só é possível filosofar em alemão". Lembrei do verso de Caetano Veloso a propósito do filme "O leitor", mais um exemplar cinematográfico a demonstrar os danos que podem ser causados quando ocorre um acidente bem no cruzamento cruel entre a História com H maiúsculo e a vida privada com v e p em caixa baixa. Como bem se sabe, "O leitor" conta a história do adolescente que tem um caso com uma mulher mais velha que, ele vai descobrir mais tarde na pior das circunstâncias, foi uma cruel guarda de campos de concentração durante o nazismo. Lembrou da tese da "banalidade do mal", da filósofa - alemã, que foi viver nos EUA - Hannah Arendt? Eu também. Lembrou de outro filme alemão ainda recente, "Adeus, Lênin". Comigo também aconteceu o mesmo.

Vamos ao essencial: "O leitor" é um filme pausadamente narrado em três atos bem definidos. No primeiro, temos o encontro do garoto de olhar quase angelical com a mulher que tudo vê com olhos quase cerrados, de tão duros (é o sempre eficiente olhar da atriz Kate Winslet, que todo mundo lembra por causa da heroína romântica do "Titanic", o que é uma injustiça colossal, porque em tudo o mais que fez é sempre soberba). No segundo ato, dá-se a revelação da verdadeira identidade dessa mulher e aquela tal História com H maiúsculo passa a protagonizar o filme, jogando sobre tudo suas sombras incômodas, tirando de baixo dos tapetes alemães a poeira da culpa coletiva que a grande guerra escondeu e só mais tarde, com a descoberta do holocausto e os julgamentos de Nuremberg, contaminaram o ar com suspeitas difusas sobre responsabilidades individuais e coletivas. Neste estágio, parece que o filme vai sucumbir à discussão social, política e antropológica, relegando o drama que lhe deu origem - a relação sempre deslocada entre o garoto ingênuo e a mulher mais velha e lacônica - para algum lugar onde a vida pessoal não tem importância alguma diante do drama coletivo. Mas é um engano, porque a certa altura vem o terceiro ato, quando se encerra o julgamento da acusada e o filme aproveita para retormar - com força inesperada para o espectador que se desviou junto com a trama de sua matriz original - o encontro singular entre o "garoto" (agora, homem feito e às voltas com os dilemas da Justiça e uma vida amorosa abalada pelo seu relacionamento primeiro) e a "mulher" (agora, um idosa prestes a deixar a prisão).

Além das pausas visuais marcantes, de um certo silêncio sempre oportuno e revelador, das interpretações genuínas, do clima das várias épocas que vai impregnando cada cena, contribui para a qualidade do filme essa muito clara estrutura em três atos que mostra, ao fim e ao cabo, como sofre o ser humano que é atropelado pelo trem da História da maneira menos literal que a expressão sugere. O casal protagonista de "O leitor" é pisoteado, com atraso, pelo drama que marcou uma geração inteira - mas não o é no contexto emoldurado em que a guerra e o holocausto se deram, e sim na arena não demarcada da vida mais comezinha do período de paz. Por isso mesmo, a dor é ainda maior. Ao contrário do que é efetivamente mostrado em outro filme similar - "A escolha de Sofia", de 1982, com Meryl Streep - ninguém morre asfixiado num banheiro inundado por gases letais, nenhum personagem aparece esquelético com sinistros uniformes listrados. Mas o dano que se dá por dentro do carrasco e de sua vítima - carrasco e vítimas em circunstâncias deslocadas, mas ainda assim o carrasco e sua vítima que são a mulher e o garoto - é tão visível e concreto quanto o Portal de Brandemburgo.

Dito isso, resta lembrar que o filme, em sua parte mais política mas nem por isso menos pessoal, confirma soberbamente aquela tese de Hannah Arendt, a que a filósofa chegou enquanto acompanhava o julgamento de Adolf Eichmann, um nazista de quinta escalão que vivia clandestinamente em Buenos Aires e, capturado por um comando israelense, foi submetido a um dos julgamentos espetaculares que se seguiram à tragédia da II Guerra. No livro "Eichmann em Jerusalém", que reúne os textos da vasta reportagem escrita por Hannah Arendt enquanto se dava o julgamento, a filósofa mostra o quanto de banal, comum, ordinário e quantos mais adjetivos sinônimos houver havia na conduta do acusado - e reclamava, com os brados que uma linguagem escrita de estilo elegante consegue emitir, sobre o erro cometido naquela abordagem que, contrariamente à sua análise, pretendia fazer do réu um vilão de castelo medieval. Para Hannah Arendt, isso só dificultava o entendimento verdadeiro do que levou uma nação como a Alemanha a perpertrar tudo o que se fez contra os judeus, ciganos e outros segmentos humanos durante o nazismo. Isso só impedia que se enxergasse algo muito mais grave - que o crime dos nazistas, de primeiro, segundo ou último escalão, era uma conduta que comprometia a raça humana inteira, pelo simples fato de que parte dela fora capaz de praticá-lo. Era preciso ter coragem de abrir os olhos para esse fantasma - e não apenas simplificar tudo superlativizando o burocrático Eichmann como encarnação do mal.

O mal, sugeria a filósofa, é mais banal do que parece à primeira vista - é isso o que está no livro, de leitura quase barroca graças ao manancial verbal que a autora usa para demonstrar sua idéia sobre a maldade e como ela opera em caráter extraordinário, como se deu no caso do holocausto. Quando você vê, no filme "O leitor", Kate Winslet dizendo ao juiz porque não poderia abrir as portas de um igreja em chamas para salvar a vida de prisioneiras judias presas lá dentro entende perfeitamente o que Hannah Arendt quis dizer no livro "Eichmant em Jerusalém".

Quanto a "Adeus, Lênin", o parentesco é de conteúdo, embora os gêneros praticados sejam inversos. Neste filme, em que uma mulher acorda de um coma de anos e não pode ficar sabendo que o muro de Berlim caiu há tempos, o registro é cômico. Mas é a mesma História com H maiúsculo interferindo na vidinha de todo dia com v minúsculo. Apenas o que seria cômico em um filme torna-se trágico em outro.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

A grande cidade

Equador, Junco, Soledade, Juazeirinho. Não são apenas nomes de cidades do sertão da Paraíba, são um hino cantado a plenos pulmões pela boca seca da memória. De Parelhas a Campina Grande, as notas dessa canção em branco e preto vão sendo levadas no ar, como instrumentos que tocassem à janela de velhos ônibus, margeando incríveis cercas serranas feitas de pedras pretas, bem empinhadinhas, arte sertaneja exposta em museu vivo de beira de estrada. Estou refazendo, muitos anos depois, o percurso que primeiro me despertou a ansiedade de saltar bem alto da calçada que minha rua não tinha e ir cair lá longe, no coração da metrópole ao alcance da passagem da Jardinense.

O nome do lugar era Campina Grande. E lá havia uma rodoviária repleta de placas, lojas, bancas, ambulantes, sirenes, anúncios, doces, barulhos, carros e asfaltos - lá havia a vida que a minha rua, pobre, doce e quieta, me negava. Lá havia um imenso supermercado na boca de um açude gigantesco, o Híper e o Açude Velho, marcos visuais de uma idéia de grandeza. Havia tias adotivas que compreendiam essa ansiedade - Terezinha e Maria da Luz -, como havia a diversão garantida na companhia de primos igualmente regidos pelos laços não sanguíneos das afinidades mais espontâneas- as irmãs Jeane e Roseane, mais Afonso e Augusto, este primo de verdade e interiorano como eu. Havia a luz fosca mas já então deliciosa da televisão sem cores da Tupi, como havia uma radiola de onde brotavam interessantes musicalidades bastando para tanto que se colocasse um disco de Roberto Carlos ou da Orquestra Som Bateau. "Você meu amigo de fé, meu irmão camarada." Existia, e a esta altura já deve estar claro - se não estiver, a ineficiência da crônica inviabiliza o poema, mas paciência - um pacote de lugares, pessoas, imagens, sons e manifestações que conformavam o retrato da grande cidade brasileira dos anos setenta, com seu esplendor infantil e sua inocência continental.

Refazer o percurso que me levava a esse paraíso emoldurado foi, sim, colocar em risco o patrimônio da memória. Mas, felizmente, findo o caminho, não só a boa memória foi preservada como saiu meio que remasterizada em nova edição que salienta as cores, a intensidade, o vigor de momentos vitais para o menino que fizeram mais forte e verdadeiro o homem. Nem o cinema Capitólio detonado foi capaz de estragar o processo. E ainda deu pra rever, de dentro do carro mesmo - que todas as cidades cresceram muito e agora já não é tão fácil parar em qualquer ponto só pra apreciar a paisagem - o Açude Velho. A Vila do Sesc, meu Deus, como estará? A Praça da Bandeira, onde eu me abastecia de números difíceis da revista de Tex, também ficou para outra vez. Numa estada do tipo para pro almoço e seguir pra João Pessoa não deu para ir até lá. Mas o oitão vermelho do Híper ainda me sorriu como um velho amigo enquanto o carro girava na esquina do tempo.

Cinzas (Entreblogues)

Coincidentemente - ou não haverá mais coincidências neste mundo de conexões inesperadas? - três dos blogues que mais me proporcionam o prazer da leitura tratam do mesmo tema. E vejam vocês que não é um tema qualquer - o que só faz sobressair ainda mais a aura incolor das coincidências mais impressionantes. Pois bem: de volta pra casa, dei um giro pelas postagens de Samarone, Gustavo e Sobreira. Agora veja a amplitude poética de tais coincidências:

1. SAMARONE (do "Estuário") narra, em três tocantes e sensíveis textos seriados, a despedida de sua Tia Flocely, com quem morava no Cabo, lá onde o Recife se amalgama com as urbanidades das almas das comunidades vizinhas. Há um trecho em especial que comove o leitor, entre tantos outros. Diz assim: "Ficou triste, cabisbaixo, sorumbático. Bam Bam, na sexta-feira de Carnaval, era o mais triste dos cães. Durante toda a manhã, chegaram amigos e alguns parentes. Aos 82 anos, chegava ao fim a vida de uma grande mulher."

2.GUSTAVO (do "Razão Poesia") conta histórias deliciosas sobre o frei Waldemar, com quem excursionou em criança pelos sertões da Paraíba, celebrando missas nas capelas dos mais distantes pés de serra de que se pode ter notícia. Frei Waldemar faleceu há pouco e esse é o motivo que disparou o texto, onde encontramos uma inesperada quase anedota que termina com a seguinte sentença, dita pelo dito frei: "A senhora come tanta óstia que já deve está cagando anjo!"

3.SOBREIRA (do "Luzes da Cidade") lembra o dia em que recebeu um telefonema da própria infância. Foi numa noite em que ligou para ele um certo Quinca, vivente do mesmo Ceará remoto onde brotou nosso amigo Francisco. O texto é uma republicação, feita a propósito, veja só, do falecimento de Quinca, aos 64 anos. Trecho: "Do outro lado da linha veio a risada jubilosa, por eu, afinal, ter identificado o dono daquela voz, e, acoplada a ela, a diversão, como se aqueles dois homens, já na casa dos 60, estivesessem participando de uma brincadeira de quando eram meninos."


Sei que não parece, à primeira vista, leitura que se recomende para uma quarta-feira de cinzas. Mas os três textos são muito mais do que relatos de mortes de pessoas queridas. São documentos fraternos que engrandecem quem os escreve, as pessoas de quem eles tratam, quem os lê - que engrandecem, por um instante, você quer mesmo saber?, a raça humana toda. Pegue os links à esquerda, leia você mesmo e saia do feriado de carnaval um pouco melhor que você era antes.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Caderno de férias (Olinda, quero cantar)














Daqui de onde escrevo, ouço o alarido que restou depois da passagem das Virgens e do Tá Maluco, blocos que neste domingo subiram e desceram as ladeiras de Olindas, que é o lugar onde a nossa barca de pneus veio parar depois de singrar os sertões de Campina Grande, velejar no mar aberto de João Pessoa e cruzar as arrebentações semipraieiras de Goiana, Abreu e Lima, Paulista, nas raias da PE-115, estrada mítica para a minha memória de retinas fatigadas. Mas tente não ficar enjoado com o balanço das citações de lugares variados, que no devido tempo eu volto ao assunto e refaço as viagens particulares que cada um deles merece em postagens-marujas do tipo minhas férias. Por ora, o objetivo desta folha de anotações no Caderno de Férias é dizer que a gente está tomando um ventinho de praia-mangue na Pousada São Francisco, aqui nas franjas marinhas de Olinda, bem na rua onde troças tropeçam umas nas outras quando o carnaval chegar.

E o carnaval, minha gente, parece até que já chegou. Alguns anos atrás, estivemos aqui com Cecília de seis meses no colo, em igual período de semana pré-carnavalesca e o clima, embora já meio ansioso, era bem outro. Não havia, então, um mísero lança-perfume de animação diante do tonel de éter que parece já escorrer pelas pedras que recobrem as ladeiras de cá entorpecento o povo todo de animação foliã. Se o visitante for um paulistano meio desorientado com as coisas do Nordeste, é capaz de acreditar que já é, sim, carnaval - e se ele não percebeu antes é só porque comprou uma folhinha pirateada no camelô. Pernambuco já ferve e o domingo da véspera já tá com a maior cara de domingo de fato. Bernardo, devidamente equipado com sua sombrinha de frevo, já foi apresentado à folia - e gostou. Ontem à noite mesmo, num primeiro passeio exploratório, demos com um bando de moças bonitas batucando tambores, no que formam o interessante bloco percussivo "As conxitas". Foi ouvir o tremelique dos tambores e Bernardo começou logo a dançar nos braços de quem o carregasse. Mas quando chega bem perto do lugar de onde vem o som, ele para, arregala bem os olhos, destampa totalmente os ouvidos e assiste, estupefato e ultra-atencioso.

Cecília, que já é meio veterana de outros carnavais - digo, pré-carnavais - investe mais no lado lúcido da festa. O máximo, pra ela, é sair por aí fantasiada. Para este ano, já tem duas fantasias tipo lojas Americanas: uma de borboleta, com um belo par de asas cor-de-rosa e uma varinha de condão pra acompanhar; e outra de Sininho, verde que dói na vista. A primeira ela não tira desde ontem - continuar assim e a segunda só vai ser usada em Brasília, na segunda-feira de carnaval, na concentração do Galinho. O engraçado é ver o chamamento que sempre vem quando a gente está ocupado com qualquer coisa na pousada, antes de sair: "Onde é que a gente vai fazer carnaval?". Como se fosse uma grande foliã - não é; perto de um bloco, fica parada como uma estátua de marechal. Se pratica alguma espécie de frevo ou de dança, é lá na cabecinha dela, com a imaginação a mil, como a gente comprova bem depois, mas bem depois mesmo que o bloco passou.

Pois é: falta uma semana, mas a gente, como diria Cecília, já está fazendo carnaval nas manhãs, tardes e noites olindenses. Fora isso, rodamos por aí no Paço Alfândega e na Livraria Cultura - onde eu não encontrei o livro de Samarone Lima que tanto procuro ("Estuário") -, compramos o novo CD de Alceu Valença (que realiza uma profecia que eu fiz lá em 1994 e sobre a qual falo em postagem futura); vimos o Capibaribe ao luar; suportamos a frustração humana de um motorista de táxi estressado de Recife, sujamos praticamente todas as roupas que trouxemos de João Pessoa para cá; e nem deu tempo ainda de a gente sentir o ventinho do Marco Zero. Mas nem dá pra reclamar. A barca amanhã parte de volta para Natal cheia de badulaques imaginários que vão manter cheios nossos baús de lembranças durante pelo menos uns seis meses, que é o tempo que demora para o efeito dessa doce droga passar. Mas as férias não terminaram ainda, e se você continuar navegando com a gente vai encontrar mais umas histórias antes do carnaval chegar. Fique por perto, que a gente volta já.

O solar do Gargalheiras






Junte o vento do litoral com a paisagem do Seridó, providencie uma trilha sonora que lembre marolas chacoalhando sobre pequenas praias arenosas, estenda no firmamento um sol inclemente de sertão, decore os arredores com um colar de colinas que formam uma serra incrustada de rochedos salientes, tenha em mente um varadão de parapeito amarelo, deite na rede, relaxe e aproveite. Você está – digo, nós estamos, e você há de me perdoar por dizer isso dessa maneira – à beira da barragem Gargalheiras, na casa que José Virjânio, comerciante e empreendedor de Caicó e primo de Rejane, construiu tanto para o proveito da família quanto para alugar aos viajantes espertos e turistas das cidades vizinhas que, qual integrantes de um clube exclusivo, conhecem o valor de estar neste lugar felizmente nem um pouco badalado.

Não é a Pousada do Gargalheiras, de que certamente os leitores do Seridó e de Natal já tomaram conhecimento – alguns quem sabe até já se hospedaram por lá. A locação desta postagem do Sopão, que está sendo escrito in loco (embora só possa ser postado depois, porque o G3 da Claro é um dos habitantes do planeta que desconhece esse lugar), é uma casa rústica, mas ampla, arejada como poucos lugares no mundo, com três quartos equipados com banheiros, todos os aparelhos e utensílios domésticos para a sobrevivência de uma família descolada – e uma paisagem carregada com o perfume da região.

O melhor mesmo é a varanda, que eu prefiro chamar neste caso de alpendre – porque a sonoridade poética dessa última palavra tem mais a ver com a qualidade sertaneja do lugar e do horizonte que ele apresenta aos olhos em 180 graus de montanhas, muita água, uma infinidade de rochedos, uma casinha aqui e outra acolá. Do alpendre se tem uma visão cinematográfica do Gargalheiras, mas não se trata de uma tela que projeta uma imagem distante. Não: é uma visão “de cinema” como diria o popular, mas ao mesmo tempo é uma paisagem que está a poucos passos de quem a observa. Um panorama que seu pé pode pisar, com uma atmosfera real para o seu nariz respirar e um lago onde você pode se banhar.

E aqui eu peço licença às senhoras cianobactérias que habitam indevidamente, pela ação irresponsável da falta de providências dos homens da terra, as águas da barragem. Peço licença para dizer que não deu pra resistir e tomei banho nas prainhas da barragem como se ali sinal das substâncias nefastas não houvesse. Fiz uma espécie de suspensão da realidade, assim como um leitor que embarca numa história tão irreal quanto fantástica e sorve o prazer da narrativa indiferente às mentiras nelas contidas. No caso aqui, não se trata de mentiras – mas de verdades incômodas embora autênticas. Mas, diante da água – cuja aparência, devido às cheias do ano passado, está muito mais para atrativa do que para repelente – o visitante lembra que, no chuveiro onde vai tomar banho mais tarde a água será a mesma da barragem e cai no lago, deixando boiar por agradável período a consciência do risco. E, naturalmente, não é possível negar às crianças um prazer infantil a que os adultos não resistem. Para o interiorano, banho de açude é um patrimônio natural que a gente transmite o quanto antes aos filhos.

Ao lado da casa, há goiabeiras cheias de frutos maduros e um simpático pé de siriguela em condições idênticas. Cecília, que é uma menina muito medrosa e comedida, aprendeu em dois tempos a subir no pé de siriguela, a que já apelidou de “minha árvore”. De vez em quanto, você está aqui em cima na moleza ventilada do alpendre e a providência lhe presenteia com a visão de um canoeiro remando lentamente açude acima. Ou então é uma garça branca que passa voando em câmera lenta. Outra hora, ciscando a terrinha à beira da água, eu e Cecília encontramos uma tartaruga pequenina, menor que a palma da mão de um adulto, navegando entre os gravetos e o lodo na margem da praia. Foram horas acompanhando a evolução da tartaruga, porque Cecília agora pegou uma mania: quando está em um lugar – qualquer lugar que signifique estar de férias – não quer mais sair. Foi assim em Ponta Negra, foi assim no pátio do Centro de Turismo, foi assim num passeio que fizemos ao mirante de onde se vê todo o Acari. De maneira que foi preciso resolver tudo à base da boa e velha ficção – sim, ela mesma, que história para crianças também se cria conforme a exigência do momento. De maneira que a tartaruga estava com muito sono, precisava dormir e foi procurar o quarto dela numa área mais cheia de gravetos, sem querer ser incomoda por olhares de humanos curiosos. Cecília, que é muito tolerante, compreendeu e voltou pro alpendre comigo.

À noite, temos as redes entre os mil armadores do alpendre, uma leitura boa, a ventilação correspondente ao alto de uma duna de Natal e, dependendo do dia escolhido, aquela lua, como diz Cecília, “direita”. É que, na classificação astronômica da nossa especialista de três anos de idade, existem duas luas – a quebrada e a direita; quer dizer, aquela meia-lua de quarto crescente e aquele luão cheio das noites do sertão. E com a lua cheia funcionando como refletor natural, a água da barragem é tingida pelo brilho prateado do reflexo que parece inscrever a rota para algum paraíso perdido sobre o balanço das águas. Para dormir, a gente recomenda abrir bem os ouvidos para não perder o chuá-chuá das marolas de água doce.

É assim a vida no Solar do Gargalheiras, que você também pode alugar para um final de semana, embora o melhor mesmo seja a tranqüilidade abandonada do segunda a sexta, porque há um bar por perto (infelizmente, hoje em dia, sempre há um bar por perto) que estraga tudo tocando umas músicas bem pouco bucólicas. Para alugar o solar é preciso que você se disponha a ter algum trabalho para descobrir como entrar em contato com José Virjânio. Porque este é o tipo de serviço turístico que não está nas folhas, na publicidade fácil, mas no boca a boca de quem conhece o pedaço. Não se trata de exclusividades finas do tipo “conheço um lugarzinho especial que me faz melhor do que o resto da humanidade”, mas de um sítio realmente remoto e felizmente ainda não integrado ao roteiro oficial do mapa turístico do estado. Pior para o mapa turístico do estado.

Digo felizmente porque se é para estragar esse lugar tão bonito que dispensa badalação já bastam as tais cianobactérias que o inverno do ano passado diluiu mas não matou. Passar um dia e duas noites neste lugar tão perto (geograficamente) e ao mesmo tempo tão distante (idealmente) só deixa a gente convencido da importância do esforço cidadão que fez o acariense Jesus de Miúdo em alertar para o estado de contaminação da barragem. Por isso mesmo sabemos que vamos sair daqui com o corpo sujo de cianobactérias, mas a alma imensamente mais limpa graças à ação de outras substâncias, coisas misteriosas contidas nos reflexos aguados do luar, dessas que microscópio algum consegue ver por serem tão grandes quanto a amplitude do sertão que mora dentro da gente, onde quer que a gente vá.

O Solar do Gargalheiras é esse farol a vigiar a barragem, suas criaturas férteis ou nefastas, seu vento litoral redirecionado, nossa irresponsabilidade humana crônica de deixar que tal panorama seja poluído. Descubra o contato com José Virjânio, acerte o aluguel, venha ver e junte-se a Jesus na campanha pela preservação do lugar. E agora, senhores leitores e senhoras cianobactérias, dêem-me licença que eu vou apreciar a lua nascendo por detrás da serra.

P.S.: Eu não devia, mas vou facilitar a vida de quem ficou num pé e noutro pra passar uns dias nas “casas de Zé Virjânio” (que é como elas são conhecidas em Acari). Fale com o próprio no telefone 9962-1223.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

A calçada de Sandra


Caminhões pesadíssimos passam pela rua da Matriz e a calçada de Sandra nem se abala. Segue, lavada nas manhãs, quente à tarde ou aprazível à noite, sendo aquele quadrilátero seguro e perfeito para se instalar a cadeira, que pode ser daquelas de plástico à venda no supermercado ou daquelas de fios à maneira interiorana, e observar o vai-e-vem da vida. A calçada de Sandra é mirante que, mesmo estando ao nível do chão, permite visualizar figuras e cenas elevadas em sua pobre simplicidade. Mas além de mirante e de pátria de cadeiras de plástico, também é faixa de passagem, caminho de pedras para quem vai à igreja ou vem da escola, segue à rodoviária ou retorna da casa de um conhecido. A calçada de Sandra é, como tantos lugares rebocados pela cal da poesia no interior do Brasil, um relicário vivo e aberto, de cores muito próprias, onde você pode se deixar ficar enquanto a vida, essa passageira, acena do meio-fio.

Pela calçada de Sandra, passam velhos tostados pelo sol do Seridó – do vendedor de leite ao pedinte mais dissimulado. Passam crianças em algaravia quando o clarão do meio dia se instala com seu espelho ofuscante nos paralelepípedos da ladeira. Passa sandália rider, passa japonesa gasta. Passa na calçada de Sandra o passo arrastado da carpideira mais católica da cidade. Mas passa o rastro inquieto da bisbilhoteira mais ansiosa, como passa o leva-e-traz da notícia menos importante antes ou depois da pilhéria do transeunte aclimado. Pela calçada de Sandra passa o fim da procissão, melhor dizendo as marginais da procissão de agosto – aquela parte da multidão que não cabe no espaço entre os quebra-molas do asfalto. Aquele segmento de fiéis onde a oração aqui e ali cede espaço ao cumprimento no amigo há muito não visto, à reportagem da vida dos filhos que agora moram longe e por aí vai. Pela calçada de Sandra passa menino miserável e quase passam os pneus possantes da quatro por quatro do ex-prefeito. Pela calçada de Sandra passa gente que bebe água de Natal e passa gente que engole satisfeito um copo de cianobactérias antes de passar as costas da mão na boca ainda úmida. Pela calçada de Sandra passam os padres – os velhos e os novos, esses com suas becas de novela das seis de época e seus discursos contra os riscos dos desperdícios dos farelos de hóstias.

Em agosto, a calçada de Sandra vira camarote ao nível do chão, tapete tão nobre quanto invisível que recebe os sapatos da família e dos convidados. Toda noite, é da calçada de Sandra que se tem uma visão próxima o bastante para que a festa pareça animada e distante o suficiente para que o barulho não incomode tanto. Todo ano quase dá para ouvir a voz da dona da calçada vizinha, quando viva: “Não troco esse pedacinho de chão por nada.” Nem nós, pois em agosto ou no Natal – o lindo Natal sem luxos do lugar – aquela rota de calçadas na ladeira da rua da Matriz, em Acari, no Seridó potiguar, ganha um brilho à parte, reveste-se de uma luz que o faz mais valioso do que a própria casa a quem serve de anteparo, entrada e território de boas-vindas. O mundo é imenso, a faixa de Gaza é um inferno, Cuba seja e não seja aqui, mas nesses momentos a calçada de Sandra torna-se o lugar mais sagrado do mundo, o marco zero da nossa falível e encantada humanidade.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Estamos aqui



Caixa de frases


Com fragmentos (menos óbvios) do “Hamlet” de Zeffirelli, revisto em DVD:

“A frase mais insignificante deixaria horrorizada sua alma”

“Ceifado em plena floração dos meus pecados”

“A loucura dos grandes precisa ser vigiada”

“Há uma confissão em nossos olhares”

“Vergonha, onde está o teu rubor?”

“Existe algo da providência na queda de um pardal. Tudo é estar prevenido”

“O poderoso veneno subjuga totalmente meu espírito. O resto é silêncio”

Caderno de férias (Acari)

A rua da Matriz é um caldeirão quente e seco; Acari está pegando fogo. Mas como as crianças se divertem. Bernardo sobe e desce ladeira, Cecília reza na cartilha da tia e da prima. Não tem festa, mas nem por isso falta agitação. Segue a música de caminhões e ônibus subindo e descendo na artéria que corta o lugar, a caminho ou retornando de Natal, Caicó ou Campina. Breve jogaremos nosso barco nessa correnteza, no roteiro que escrevemos para os vinte dias de férias.

Roteiro que responde à dúvida de Nossa Mana. Sim, haverá tempo para os amigos, mas como sempre a temporada se divide em três etapas. Primeiro, o impacto da chegada, a ansiedade de ver tudo e nada, o abraço sentimental da família. Depois a profundidade do interior nas entradas e bandeiras do Seridó, âncora depositada no fundo das gargantas do Acari – e que é a presente estação da viagem. Por falar nela, está prevista uma noite inteira a ser minunciosamente passada em casa plantada à beira da barragem - o que promete render um Gargalheiras de postagens. Depois, o retorno a Natal para aí sim botar a cara fora da janela do Guaíra e rever a moçada. Daquele jeito de sempre, com um olho na conversa e outro na rede dos meninos em casa.

Se bem que, este ano, incluímos um apêndice no roteiro. Já que é quase carnaval, cismamos de dar uma escapulida até João Pessoa, aquela Brasília silenciosa à beira do mar, e Recife, para a semana pré-folia. Uma vez, Cecília com seis meses, fomos a Recife dias antes do carnaval e nossa garota virou, por uns belos vinte minutos de vida, a mascote de um bloco-pré nas ladeiras de Olinda. Considerando que Bernardo é uma criança com propensões bem maiores ao exercício da folia, quem sabe o fenômeno não se repete agora com ele? Na volta, a gente conta como é que foi.

Na bagagem, vai um tesouro encadernado. É o exemplar de “Prelúdio e fuga do real” editado pela Fundação José Augusto em 1988 e que eu finalmente adquiri – aquele livro que a gente lê emprestado dos amigos e sofre na hora de devolver, e depois quer comprar um exemplar pra ficar olhando só pra ele, mas a edição está quase no fim, fica difícil, então, encontrei esse Cascudo literato na galeria do Centro de Turismo e tratei de me garantir. Breve, volto ao assunto que por enquanto é um deleite de leitura poético-especulativa.

Também vou me distraindo com o sempre esnobe, mas sempre divertido e articulado Ruy Castro e seu “Tempestade de ritmos”, aquela seleta de textos em que o jornalista nos escraviza com seu texto e usa o manejo mais inteligente das palavras para nos fazer fãs daqueles de quem ele, sobretudo ele, é um admirador incondicional. Ainda bem que, esnobismos intelectuais à parte, ele tem bom gosto. Também volto ao assunto, haverá tempo.

Pra encerrar, duas perguntas: onde está o amigo residente em Natal que ainda não descolou seu próprio exemplar do CD da Rosa de Pedra? E o que faz, perdido entre esquinas visíveis e invisíveis, o amigo residente em Brasília que ainda não comprou, por módicos R$ 13,90, o “Kind of blues”, o mais festejado disco da história do jazz. Onde? Ora, na velha e boa Discodil, Conjunto Nacional, em frente à praça de alimentação. Só é preciso paciência para encontrar Miles Davis entre CDs de Mastruz com Leite e Mução. Mas a dica é certeira e o “Sopão”, admita, é uma mãe.

Pedra de rosas


Quando uma rabeca e uma guitarra se encontram num beco, o som que vaza das paredes carcomidas desta cidade velha tem a potência de rituais esquecidos e o vigor dos mais ansiosos músicos de bermudas. Porque a rabeca range por dentro, enfiando a faca na alvenaria das ruínas da gente, enquanto a guitarra como que peneira o pó de cal que jorra de tais infiltrações. E se você pensa que estou falando de museologia ou arquitetura colonial, enganou-se quadradamente. Isso aqui é puro Rosa de Pedra, a banda natalense formada predominantemente por meninas que reescrevem, em rangidos, batuques, raps e cantos popularmente impostados a pantanosa flor de mangue da padroeira pagã Zila Mamede.


Devia ser terça-feira. E depois da praia, como vem se tornando quase rotina desde o início desta temporada, capotei no sono por boa parte da tarde deitado na rede quente pero ventilada do Guaíra. (um parênteses: não sei se o resto de Parnamirim e Natal inteira sabe mas para além das matas que delimitam os predinhos do Guaíra há um ventilador natural que quase nunca pára de rodar suas hélices invisíveis, de maneira que, depois da esquina da Deodoro com a João Pessoa, não há num raio de 300 quilômetros lugar algum mais ventilado. Fecha parênteses).

Acordei e, sonambulizado pelo suor das umidades que o mesmo ventilador envia às nossas células, vaguei pela sala quando vi o petardo que Titina passou e deixou pra gente em cima da mesa de madeira bruta pintada de branco. Era o CD da Rosa de Pedra, que logo eu colocaria para tocar e instantaneamente perceberia que se tratava definitivamente do disco destas férias, da música potiguar que vai marcar meu imaginário sonoro durante todo este ano, do punhado de sambas, canções, funks e outros ritmos potiguarizados que passarão a ocupar um cantinho amoroso no meu coração de consumidor abestalhado da música local.

A ritualística trepada da rabeca rouca com a guitarra furiosa vem logo na primeira faixa, embalada no sex shop sonoro formado por uma rubra e aveludada parede percussiva onde tudo bate e volta, tudo ressoa e se amplifica. Minhas caixinhas de som defasadas de 15 anos que eu deixei aqui no Guaíra para ter onde ouvir música nas férias mal dão conta de conter em seus auto falantes os orgasmos múltiplos dessa explosão. E você fica naquela: será que a Rosa segura essa onda pelas outras 14 faixas do CD – sim, porque é difícil esse negócio de caminhar no meio-fio do pop sem perder de vista os paralelepípedos das sonoridades telúricas, ou o contrário.

Pois relaxe, que a Rosa conseguiu: o disco é um aqui e ali que ora soa blues notívago tipo Bar do Buraco dos anos 80 – certamente uma influência da presença de Eduardo Taufic na produção – ora pratica sem vergonha de ser elegante e informativo o samba-funk que descadeira bundas mulatas morros afora. O ritmo, por sinal, é o título de uma das faixas. Ainda é possível encontrar hits perfeitos e acabados – e se eles não caem na boca do povo muito além do Beco da Lama é só porque as rádios (e não só as de Natal) foram todas vítimas da segmentação mais burra. Caso contrário, o refrão “bola no pé, bola na fé, bola de chiclete” já estaria martelando na sua cuca, meu irmão, como está na minha. Assim como toda a faixa “Ludo”, que começa com uma invocação tipo negão Melodia e termina com um outro refrão estilo levanta a poeira que se instala sem pagar aluguel nas papilas auditivas de quem as tiver: “Bota a roupa pra secar; bota cachaça na mesa; ludo não é dama não; mas desconecta tristeza”.

“Ludo” é produto da imaginação sonora de Ângela Castro e Tiquinha Rodrigues; “Bola de chiclete” é um insigh pop-socioantropológico de Ângela, sozinha. E eu não consigo deixar de ficar arrepiado enquanto escrevo isso. Acontece – e deixei pra dizer isso depois, de propósito – que Ângela e Tiquinha, essas duas rosas solares de contas e pedras, são também, e há anos, minhas vizinhas de férias. Lembra do ventilador oculto além das matas que delimitam o Guaíra, nas barbas verdes de Nova Parnamirim? Pois fique sabendo que o ventinho que ele produz também tira proveito das peles das meninas. É que elas também habitam os predinhos do Guaíra III, no mesmo bloco onde passamos pelo menos uma semana todo ano. É por isso que elas – em que pese Toni Gregório (guitarra, bandolim, violão e viola); Betão Tavares (baixo); Wagner Tsé (bateria e percussão); Concita Alves (percussão e vocal) e Jailton Torres (percussão) – para mim são a alma visível da Rosa de Pedra. Que os outros não fiquem sentidos, mas passar anos e anos de férias encontrando as meninas nas escadas ou em casa mesmo, ou vendo elas brincando com Cecília e Bernardo e, claro, sabendo que elas também fazem parte do circo sonoro que realimenta a música de Valéria Oliveira, é uma coisa. Outra, bem diferente e muito mais impactante é acordar de um sono pós-praia e pós-tudo e achar em cima da mesa o CD que a banda delas gravou e botar pra ouvir. Uma atitude tão favoravelmente demolidora que, daqui por diante, elas tampouco serão as mesmas diante dos meus olhos de vizinhos ocasional. Capaz de, ao passar por elas, eu me ajoelhar, fazer a mesura que se oferecia antigamente aos reis, afastar-me educadamente e lhes dar passagem, mudo de timidez e reverência. Salve, Ângela e Tiquinha.

Tiquinha que, em “A lavadeira”, enxerga devoções populares no ofício dos rios e riachos dos sertões e litorais ancestrais. “A crença é tanta que a lavagem é santa”, diz a levada. Ângela que pratica sínteses velozes e certeiras, como em “na rua do menino nu; com a bala na boca; debaixo de sete palmos; mais um com a bala na nuca”, em “Bola de chiclete”, que não fica só no refrão, não. Quando as duas se encontram, temos uma compositora de quatro braços, duas bocas, dois cérebros e quatro dutos auditivos que apagam seus excessos para fundir em raggae a arnaldoantuniana “Transe”. Tenho certeza de que essas meninas sempre ouviram o ex-titã, como escutam, preguiçosas sobre as almofadas, Nação Zumbi, Novos Baianos, Clara Nunes, Zé Ramalho e, naturalmente, o negão Melodia.

Pra terminar: tem ainda aquele tipo de cantiga que, espichadinha mais um pouco só e terminaria numa saga sonora do tipo “Faroeste Caboclo”, que é “Jerônimo” – o João de Santo Cristo que não foi pra Brasília, mas pro estrangeiro. “No pingo do meio dia; gritava os sertão no peito do homem”. Em “Sotaque”, um tapa com luva de xique-xique que faz vibrar secretamente o coração do nordestino: “tenho cara de operário mas não sirvo a você; eu não pareço com você” (e não tem jeito, eu me lembro daquele outro Arnaldo Antunes, “eu não sou da sua rua”, com a mesmíssima questão numa geografia completamente diversa).

Não sei onde o CD está à venda, mas tenho certeza de que quem lê este blogue é gente esperta que sabe onde achar o que procura. Só não vai conseguir um exemplar autografado por Ângela e Tiquinha como o que tenho aqui comigo – e que, de fato, foram elas que deixaram lá no meu mocó de férias, por meio de Titina, a minha ponte a quem mais uma vez agradeço por ter me posto em contato com esse mundo de rosas de pedras raras.
CORREÇÃO: como grande parte do que nos chega de novidades culturais de Natal chega praticamente sempre pelas mãos de Titina, cometi um engano; Rejane acabou de ler o post e me corrigiu, dizendo que foram as próprias Ângela e Tiquinha que lhe entregaram, em mãos, o CD da Rosa de Pedra. Obrigado, garotas.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Descalço no parque


Esta é a primeira postagem escrita no Sopão em "externa". Como num roteiro de filme: externa, dia, bosque urbano. Um blogueiro amador digita frases e palavras no computador instalado sobre os joelhos, à sombra de uma árvore cuja espécie desconhece (embora haja, no local, florestas e mais florestas de placas com os respectivos nomes das respectivas plantas), ouvindo o canto de pássaros igualmente anônimos mas talqualmente agradáveis, pisando descalço, como tem de ser, a doce areia dos tabuleiros-alfenins que são os solos dos litorais nordestinos.

Roteiro à parte, imagem à margem, estou na entrada do Parque das Dunas, ex-bosque dos namorados, em Natal, fazendo nada enquanto Cecília e Bernardo tomam conta de cada pedaço desse adocicado chão por onde passeia um generoso cheiro de frutas de quintal. Tirando um motor de alguma coisa que ignoro - e que, infelizmente, quebra um pouco o silêncio joanino do local - é um sítio e tanto para o cidadão se deixar ficar, qual machadiano leitor de romances de um Brasil bem pretérito. Como ademais devem saber todos os leitores do Sopão que residem em Natal - como ademais deveria saber toda a população da cidade. Mas será que sabe (por mais que procure, não acho a interrogação desse teclado). É quinta-feira, ainda é fevereiro, tá bom, as aulas começaram (começaram, interrogação), faltam 15 parcos minutos para dar uma da tarde e parece que só estamos nós aqui: eu, Rejane, os meninos e a babá, uma pernambucana do interior que já passou muito dos vinte anos e, vejam só, só agora viu o mar pela primeira vez (melhor para ela que tenha sido o mar de Natal, mais precisamente o belo mar noturno da Praia do Meio).

Voltando: quase ninguém passou por aqui e me pergunto se é sempre assim. Deve ser não: acho que Ana Luisa me falou algum dia que o parque ferve nos finais de tarde com os caminhantes urbanos. Densidades demográficas à parte, o que queria dizer mesmo é que, mesmo com o apelo fácil da praia, esse bosque aqui não deve ser esquecido, não. Perfeito posto de observação, acabado palco de meditações vagabundas, pleno espaço para leituras vãs ou definitivas, campo de treinamento para hamonizar crianças e naturezas, está tudo aqui. Há anos que não vinha - e sempre que vinha, antes, era como repórter agoniado, sem tranquilidade para olhar em volta. E mesmo sendo assim, lembro que era bem menos equipado, não tão bem cuidado, de sombras menos vastas e assentos quase inexistentes. Agora,não: há tanto lugar para sentar e tanto sítio aprazivel que o visitante fica até em dúvida, há tanta atmosfera de quintal que o habitante eventual sente até que algum dia já morou aqui, sem que o tenha feito; há tanto dengo de areia miúda chamegando no entre dedos dos pés que é capaz de o cidadão descalço pensar que é também ele um árvore já meio antiga.

Há, sim, também, muitos mosquitos que incomodam um pouco até o momento em que você se acostuma com as pisadas deles nas suas costas e nos seus braços e eles e eles se acostumam com o seu pegajoso suor nos mesmos locais. Mas não vai ser por isso que você vai deixar de vir. Se, ao contrário, está a fim de conforto, então, cidadão, vá pro shopping. A praia aqui - digo, o parque aqui - é outra.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Benjamin


Rodado a partir de um conto de Scott Fitzgerald, o filme “O Curioso Caso de Benjamin Button” abre com uma breve, sugestiva, poética e tocante narrativa que, sozinha, descartada de tudo o que vem a seguir, já valeria o ingresso. Um relojoeiro deprimido com a morte do filho na carnificina da I Guerra Mundial trabalha arduamente para produzir o relógio que será o orgulho de uma estação ferroviária. No momento da inauguração, povo e autoridades presentes, desce o pano e todos descobrem que a peça, embora marcante e bonita como se esperava, tem uma característica própria e incômoda. Trata-se de um relógio cujos ponteiros andam para trás.

O homem que o fabricou explica, com pesar: fez o relógio assim, contando o tempo inutilmente para trás, para que ele possa trazer de volta aos lares os garotos que a guerra arrancou de casa e matou. Em seguida, o relojoeiro pede desculpas caso alguém tenha se considerado agredido com a surpresa. Em matéria de cumprimento, desculpas e gentilezas, nós, na platéia, quase deixamos escapar um sincero “obrigado” pelo gesto e pelas palavras do relojoeiro. Na verdade, pelo poder da metáfora que ele nos entrega logo no início do filme e que, logo vamos descobrir, vai permanecer pairando sobre todos os acontecimentos na história que está por vir.

A história do relógio que anda para trás é o prólogo perfeito para preparar os olhos, os sentidos e o coração do espectador da fábula estampada na tela. Desde o momento em que surge pela primeira vez no filme, com o rosto de ancião virtualmente justaposto ao corpo de um idoso, Brad Pitt sugere a expressão de quem já viu tudo – sem que tenha, de fato, vivido praticamente nada. Ele é o próprio relógio de ponteiros que andam para trás.

O Benjamin Button de Brad Pitt está numa encruzilhada poética mas também um tanto quanto trágica que mistura inexperiência emocional com sobrecarga física: é um menino de cinco anos num corpo de um velho de 70. E, mais que a maquiagem ou o efeito especial, é o olhar, entre confuso (mas calmo, como o dos mais velhos) e curioso (sugestivamente vivo, com o dos bebês) de Brad Pitt que dá credibilidade à fábula e nos lança neste jogo de especulações sobre vida, morte, juventude, maturidade, descoberta, crescimento e velhice. Não necessariamente nesta ordem.

Há muitos momentos marcantes que corroboram essa visão do filme. Um dos mais exemplares é o encontro no tempo entre o personagem principal e a bailarina Cate Blanchett, de uma beleza tão intensa que parece ser ela o verdadeiro motor do rejuvenescimento de Pitt. Como já se sabe à exaustão neste momento, Benjamin Button nasce velho e vai ficando cada vez mais jovem ao longo do filme, até virar um bebê octogenário e senil. Cate, enquanto isso, como acontece com as pessoas ditas normais, segue o caminho oposto. Os dois são apaixonados desde criancinha – embora o conceito de criancinha nunca tenha se ajustado muito bem a Benjamin – e o próprio andamento da fábula já permite prever que o relacionamento dos dois, em idade adulta, vai se chocar com a diferença temporal que tanto os aproxima (pelo inusitado da situação) como os separa (pelos efeitos naturais da ação do tempo).

É como aquela outra fábula cinematográfica, “O feitiço de Áquila”, em que os amantes nunca podiam se encontrar, porque durante parte do dia um deles se tornava um pássaro. No caso de “Benjamin Button”, o fenômeno parece ser menos cruel, já que o encontro, de fato, acontece e por um bom período de tempo. Mas, exatamente por isso, a separação inevitável torna ainda mais pungente o drama de Pitt e Cate. O tempo não pára, até para quem vive de trás para frente, não importa – e aqui reside um dos pilares da especulação maior que o filme pretende construir. É preciso saber conviver com essa qualidade transitória das pessoas, dos lugares, das situações e do mundo. Benjamin Button, essa anomalia que nos comove por ter de, a certa altura, desaprender a andar e a falar, nos guia nas trevas desse aprendizado – e talvez por isso o filme venha com uma luz pesada, de meio tons míopes e indecisos.


“O curioso caso de Benjamin Button” é um vasto catálogo de especulações ligeiras, compacto o suficiente para caber numa sessão de cinema, mas rico e democrático o bastante para ser lido por gente de idade, formação, repertório e experiências variadas. Neste sentido, não se engane: é o grande filme de 2009, o “Forrest Gump” da vez, o “Rain Man” da hora. A diferença está no tratamento, o menos espetacular quanto parece ser possível neste tipo de cinema. O andamento é sempre lento, a fotografia escurecida, a postura do protagonista menos ativa do que de costume. Benjamin estuda a própria trajetória incomum espelhando-se em pessoas que encontra pela frente, gente espetacular sob a pele de seres cinzas, de tão comuns. Por isso ele não precisa, como o Tom Hanks de “Forrest Gump” , mostrar-se extraordinário dentro das próprias limitações. Marinheiro por profissão, ele navega – na vida e nas aventuras no mar, e isso basta.


Falei em “aventura” e essa bem pode ser a palavra chave para decodificar “O curioso caso de Benjamin Button”. Temos ali, cifrada como fábula, a apologia da vida humana como aventura pessoal e intransferível. Vide o epílogo do filme – sim, assim como conta com um prólogo inspirado, “O curioso caso de Benjamin Button” também veio equipado com um epílogo bem didático. É um apêndice quase publicitário de tão atraente, à guisa de explicação para os integrantes da geração cinema-no-shopping que porventura tenham se distraído com a pipoca e deixado escapar a essência do filme.

O que vem por aí


A edição de janeiro da revista Set traz um levantamento sobre os principais e mais esperados filmes que devem chegar aos cinemas neste 2009. Destaquei o que me interessou na lista pra chamar a atenção de vocês. Vem coisa boa por aí:

AGORA - épico histórico passado no Egito dominado pelos romanos, dirigido por Alejandro Amenábar ("Os outros"), com a sempre estonteante Rachel Weisz.

THE BOAT THAT ROCKET - Promete ser a volta do ex-casal Keneth Branagh e Emma Thompson às irônicas, pelo doces e divertidas comédias inglesas. Trata de uma rádio pirata instalada num barco ou algo similar. E sabe quem também vai estar a bordo: Philip Seymour Hoffman.

COCO AVANT CHANEL - Cinebiografia da estilista, com a sempre simpática Audrey Tautou.

PUBLIC ENEMIES - O novo Michael Mann, o homem de "O informante", "Colateral", "Fogo contra fogo" e "Miami Vice". Sou um apreciador da técnica do cidadão, mas estou até hoje esperando que produza algo tão bom quanto o primeiro item dessa lista.

THE HUMAN FACTOR - É o próximo Clint Eastowood e mostra o primeiro ano da gestão de Nelson Madela como presidente da África do Sul, logo depois de sair de longos anos na prisão. Morgan Freeman é o próprio.

INGLOURIOUS BASTERDS - É o novo Quentin Tarantino, que agora promete se revelar um fã especial dos filmes de guerra com uma missão a cumprir. CVamos ver.

Assim se passaram


"As incertezas no zeitgeist às portas da virada do milênio abriram espaço para um filme que trazia questões fundamentais sobre nosso lugar no mundo, sem nunca perder o senso do espetáculo. 'Star War', era a força de uma marca; 'Matrix', o poder de uma idéia. A platéia, ávida por um sopro de inventividade, lotou os cinemas. E, nos anos seguintes, as influências do filme se tornaram óbvias, como sua estética cyber-punk deixando os cinemas e ganhando o mundo (Aqueles óculos! Aquelas roupas!), além da marca indelével no tecido pop cultural do planeta."


É Roberto Sadovski, na última página da edição de janeiro da revista Set, saudando os 10 anos de "Matrix".

Oupras lalavras

Estejam avisados: estou pilotando, cangueiramente como convém, o notebook que Rejane comprou para dar conta dos textos do mestrado que está cursando. Somos qual o casal da música de Chico: quando ela fecha o livro, digo, o computador, eu abro o Sopão - o funcionário e a bailarina, o blogueiro e a mestranda. Isso tudo é para dizer que erros de digitação serão comuns, abundantes, diria até irritantes. Recomendo paciência, porque não estou familiarizado com esse techado achatado e, pra piorar, o tal notebook tem aquele defeito muito frequente na família - o de fazer o curso sumir num lugar e aparecer em outro, bagunçando a organização das palavras. Parece uma dança - há momentos, como agora mesmo, em que o bicho pensa que é um bailarino clássico e haja circular entre meios de palavras e finais de frases, como uma partícula subatômica que escapou do núcleo. Quando o carnaval passar, e a gente voltar para casa, quem sabe eu arranjo tempo e paciência para sair recolando cada letra certa no lugar errado, ou cada letra errada no lugar certo - mas, garanto que, nessa antirrevisão (é assim, agora, alguém sabe - e cadê o ponto de interrogação desse teclado) do português vai ser possível entender o sentido do que se quer dizer. Se não for, não terá sido por erros de digitação, mas por impropriedades verbais por trás das quais se esconde o errático redator. Tenho dito.

Caderno de férias (chegada)

Maria Laderda nos tem de volta. É verão, bom sinal, já é tempo de mais uma temporada de férias nos platôs superaquecidos de Nova Parnamirim-Natal. Na última vez em que viemos, era meio do ano, a luz da cidade havia mudado, os turistas estrangeiros tinham sumido, Ponta Negra à noite parecia um deserto escuro, o vento antes agradável convertera-sem em arrepio de frio, a cidade parecia outra. É verdade que, com o condão da contratemporada, havíamos ganhado de presente uma cidade menos angustiados pelos ganhos do turismo e pelas altas temperaturas. Não levei um mísero esporro em forma de buzina alucinada no estacionamento do Midway, como é rotina. Sinal de que todo mundo andava mais tranquilo. Mas em compensação, como chovia.

Agora, retornando outra vez no período normal, esse do mormação pré-fevereiro, dou-me conta de que, buriza no Midway incluída, nothing like the sun, como dizia o nome daquele antigo LP de Sting. Até chove, como nesse domingo, quando fomos à praia e quase não havia sol direto, mas a temperatura ambinte garante a livre fruição dos fluidos da estação. Falar no domingo, veja só a riqueza dessa programação baratinha. Se alguém me dissesse há um mês que dentro de pouco tempo eu teria um domingão com 1) praia pela manhã; 2) sono na rede a tarde inteira; e 3] cinema à noite ("O curioso caso de Benjamin Button", mas isso é assunto para postagem futura) eu ia pedir para o cidadão por favor parar de me agredir com falsas promessas. Mas graças ao atencioso, infalível e natalense serviço 0800 titios (titia Sandra e titio Novo) ganhei praticamente um dia de folga nas lides paternas e aproveitei.

De maneira que, daqui até 20 de fevereiro, seguem as emoções recauchutadas da diligente série "Caderno de férias", à guisa de seriedades mais militantes nas páginas deste cansado Sopão. Pra encerrar, um recado personalizado que no fim das vontas vale pra todo mundo: Carlos Magno, li sua coluna no "Poti" e me diverti com as referências ao Sopão. Mas, realmente, quando ouvi Maysa tomando conta do rock do Door, lembrei logo de você e de Carlão (de Souza), entre outros amigos com quem temos encontro não marcado mas predestinado nos dias que seguem.