sexta-feira, 28 de novembro de 2008

"Ninguém sabe nada"


Revi estes dias em casa, com o atraso que a boa avaliação exige, o "Fahrenheit 11 de Setembro" do gordo Michael Moore. Continuei não apreciando as partes do filme em que o documentarista não resiste e constrói um discurso sobre as imagens daquele cachorro morto - como é mesmo o nome dele, acho que Bush. É verdade que na época do filme o cãozinho ainda não era visto como tão maléfico assim - ao menos não tanto quanto agora há pouco, nos estertores da campanha presidencial obamiana - mas ainda assim o palavreado de Moore passa do ponto e estraga, várias vezes, o que poderia ser um registro mudo da impotência, da empáfia e da ignorância calculada do ex-presidente norte-americano.

Mas o gordo não se agüenta e, não contente em exibir a cara atônita - humanamente atônita, por baixo do caráter fortemente panfletário do filme - de George W. ao receber a infomação sobre o segundo ataque às torres gêmeas, satura a cena com uma elocubração em off em torno do que estaria passando pela cabeça do então presidente sob aquela cara de tapado. Fica, como se diz, "over". Como Cristovam Buarque elegantemente tirando sarro de Joaquim Roriz no debate eleitoral da Globo enquanto o segundo tropeçava na pronúncia correta da palavra "catástrofe". Deu no que deu.

Lá, nos zéua, também - vocês não esqueçam. "Fahrenheit 11 de Setembro" foi exibido às vésperas da eleição que reelegeu Bush, apesar de tudo. Aqui e lá, não adiantou a crítica subir no tamanco. Passou do ponto, paga o prejuízo. Pior para todos, disso ninguém duvida. E já que caímos nessa conexão entre o caráter panfletário do filme (em vários momentos quase uma peça de campanha, o que não é uma qualidade), a soberba da intelectualidade e os embates eleitorais, vamos a um aspecto que, dessa vez, vendo o filme em casa, ganhou minha atenção.

Refiro-mo àquela mãe de família ultrapatriótica que se orgulha de mandar um filho para o Iraque ali pelo meio do filme para, já próximo ao final, reaparecer no extremo oposto, chorando a morte daquele mesmo filho e solidarizando-se com os mesmos manifestantes que a repugnavam alguns fotogramas atrás. À primeira vista, essa mulher parece aquele tipo de "personagem" que cai nas graças dos documentaristas mais apressados - aquela figura que diz tudo o que o cineasta que ouvir e fazer ouvir, que comprova com palavras as teses pré-existentes na premissa do filme, que encena, dramatiza, didatiza cada expressão e cada sentença.
Personagens assim - e quem viu o último documentário de João Moreira Salles já sabe o que eu vou dizer - são tão bons, mas tão bons, que podem botar tudo a perder. Porque discursam com tal evidência, dispõem-se para a câmara com tal desenvoltura, desfilam pelos filme com tal segurança que no final soam falsos, como se cada verdade que quisessem demonstrar parecesse perfeitinha demais, encenada além da conta.

Ao assistir ao filme pela primeira vez no cinema, foi exatamente o que senti em relação a essa mãe americana que muda de posição no doc de Michael Moore. Agora, apreciando o filme novamente, reparei especialmente numa fala da senhora, justo quando ela tenta amarrar tudo, ao discutir com uma pessoa anônima durante uma viagem à capital, Washington. Ela se revolta pelo fato de a interlocutora não entender a necessidade do protesto contra a guerra no Iraque - como ela mesma pensava lá atrás. E sai-se com esta: - Ninguém sabe de nada. Todo mundo pensa que sabe, mas ninguém sabe de nada.

É um bom resumo, um momento enfim verdadeiro daquela mulher, uma frase que sai ao fim de um processo desenrolado em frente às câmeras, tal os reality shows tão em moda. Mas contém uma autenticidade no seu diagnóstico gritado de uma pessoa que se flagra como vítima de uma manipulação. É, disparado, o melhor momento do filme. E redime os discursos de Moore, asssim como o colaboracionismo inicial de sua personagem. Ninguém sabe nada. Todo mundo pensa que sabe, mas não sabe. Inclua aí os bobalhões americanos médios que apoiaram a invasão do Iraque, os brasileiros que defenderam o golpe militar em 64 e em 68, os eleitores de Micarla de Souza em Natal, só pra ficar em três exemplos de uma longa e infindável lista.

Carta aberta para Adriano e Flávia

Uma das melhores coisas do mundo é quando grandes amigos que, por força das circunstâncias ou da distância mesmo, você não pode ver todo dia ou ao menos uma vez por semana lhe manda um e-mail, uma carta ou dispara um telefonema dizendo que está para chegar. Fiquei sabendo ontem que Adriano e Flávia estão de malas prontas para uma curta mas intensa temporada brasiliense de cinco dias. E vão ficar lá em casa, aquela velha porém nova casa domingueira, cujas janelas, sempre que são abertas toda manhã, parecem implorar com sua voz de rangido metálico: - E os amigos, cadê os amigos? Traga todos para cá, ou ao menos um de cada vez de vez em quando!

Então, como se fora uma maquinação metálica das nossas janelas conspiratórias, chega a notícia da iminente chegada do casal de Sousa, por sinal - e isto é sobremaneira importante, como diriam as portas de vidro que se abrem em par e também são dadas a uma conversa - o mesmíssimo que me abrigou quando um vento bateu na minha cabeça e eu decidi encarar uma tentativa de morar em Brasilia que, todo mundo sabe, enfim, muito me rendeu. Apois: essa postagem de frases saramagueanas (no sentido de tamanho, claro; não no estritamente qualitativo) é para servir como mensagem de boas vindas aos amigos, dizer da cidade para onde eles carinhosamenet me trouxeram, da capital onde eles próprios por tanto tempo viveram e, quem sabe, para onde ainda podem voltar, nunca se sabe.

Adriano, Flávia, aquela pontinha da Asa Norte continua linda! Agora, então, com as chuvas, as plantas estão estourando de verdes, as crianças prateadas de vivacidade, o comércio burburando de movimentado, a tesourinha tonteando de asfalto e tráfico, os mendigos desempenhando com a elegância que só eles podem ter aquele papel que a natureza lhes reservou. Aquela estrada de prata, ladeira de vagalumes ascendentes que é a continuação do Eixão rumo a Sobradinho fica, a cada noite, mais reluzente. E, apesar da chuva, nunca mais um raio fulminante caiu no pedaço, energizando ao limite da morte uma patética, de tão anônima, vida humana.

O cachorro quente, essa tradição das entrequadras, segue firme por lá. Só não sei se é o mesmo dos tempos em aqui cheguei, escapando do frio de maio na casa de vocês. Se for o mesmo, está mais velho - o que não é nada mal neste mundo veloz que de nós tomou conta a partir de algum momento do ano de 1998. Tem um ponto na comercial que não toma jeito - nada emplaca. A última tentativa foi uma sorveteria, mas a qualidade do gelado não estava à altura da atmosfera daquele cantinho de mundo que se chama 215/216 Norte. A locadora de vídeo, sim, está firme - embora tenha mudado de nome, de dono, de leiauti, de funcionários. Nesse processo, perdeu um pouco de alma - mas quem não perdeu de 98 pra cá? Deixa ela.

Deixa nós. Só o fato de transitar nem que seja rapidinho pelo rasgão de asfalto que divide os dois lados da comercial da 216 já é suficiente para trazer de volta às narinas um pouco daquele cheiro de humanidade que foi se perdendo. E depois tem o Parque Olhos d'Água que transpira muito mais no verão chuvoso daqui, a velha e boa Musical Center que nos socorre do futuro com um punhado de vinis saudosistas, e as bancas de jornais, com seus donos cheios de conversas que nenhuma força de mercado será capaz de tragar.

P.S.: Carlão, agora só falta você chegar com Sônia. Eu e Rejane vamos aguardar.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

"Shane" e o ponto de vista de cada um


A leitura de um filme de um ponto de visto algo psicanalítico não é novidade de maneira alguma. De tão comum, é quase um chavão – um formato de resenha, uma forma de fruição da sétima arte. Um exemplo – e dos mais batidos – é "Shane – Os brutos também amam", o mais lacônico dos westens clássicos que, para muita gente, é, da primeira à última cena, a filmagem da fantasia de um menino. A coação dos criadores de gado que tentam expulsar os agricultores teimosos, as casas incendiadas, as brigas no bar que antecedem os tiros e o aparecimento do pistoleiro defensor da justiça e cheio de mistérios, tudo isso seria a projeção da fantasia daquele menino, little Joe.

No final de semana, revi "Shane" duas vezes – uma delas, numa divertida sessão com os comentários do filho e do auxiliar do diretor do filme – e outras duas produções que me fizeram elocubrar um pouco sobre essa história de histórias projetadas pelo inconsciente de seus próprios personagens. Os outros dois filmes, além de "Shane": "Depois de horas", aquela fantasia pop-surreal cheia de deliciosos maneirismos feita por Martin Scorsese", e ""Vestida para matar", a esta sim uma ultrapsicanalítica jornada filmada por Brian de Palma nas gavetas da mente dividida de um psicopata de boa família.

Vistos na ordem em que foram dispostos neste texto, os filmes meio que se puseram a conversar uns com os outros na minha cabeça. Trocaram umas idéias, emprestaram fotogramas uns aos outros, mediram possibilidades e ambições e, desse bate papo instalada no cérebro ansioso do espectador que vos fala, saíram as constatações que seguem, não à guisa de análise, mas a título de diversão mesmo, que a consistência das idéias pode se desfazer com a mesma rapidez com que as platéias atuais esquecem o último filme que viram no cinema.

Então: se "Shane" é, como tantos dizem, a projeção das fantasias de little Joe para tornar seu pai mais corajoso, sua mãe mais feminina, sua realidade menos sufocante e ele mesmo o herói possível dentro dessas circunstâncias todas, arrisco dizer que toda aquela jornada madrugada adentro de "Depois de horas" não passa de um delírio de desejo vivido pelo personagem central, um jornalista semi-yuppie dos anos 80 entediado com a previsibilidade de tudo à sua volta – dos móveis da casa de iluminação clean à redação tipo linha de montagem com estilo onde ele inicia e termina o filme.

O personagem interpretado por Griffin Dunne nunca diz isso textualmente, mas precisa, implora, baba por algumas horas que sejam num ambiente diferente do seu – um mundo sem regras, pleno de riscos mas também de prazeres inesperados. E este mundo, para um cara certinho como ele, só pode ser o underground chique e surreal dos artistas pós-punk do bairro boêmio. O filme inteiro capricha no tratamento visual que exibe placas simples – "bar" – , ruas caprichosamente salpicadas de poças e de luar, ambientes desenhados em cores básicas. Tudo como se fosse uma estridente história em quadrinhos para adultos, num momento em que Scorsese muito se aproxima de um cineasta até então inédito, Quentin Tarantino. E essa aquarela noturna que também muito lembra a atmosfera das telas de Edward Hooper, o esteta do realismo e da solidão americana, o que contribui ainda mais para dar ao filme uma saborosa artificialidade – um clima bretchiano que, ao fim e ao cabo, reforça exatamente aquilo que ele poderia, no todo, ser. O quê? A fantasia que seu personagem principal tanto busca. Tudo aquilo é uma criação de Paul Hackett (Dunne). Eu estou convencido disso. E se você quer se divertir, sugiro que resolva discordar de mim e, para tanto, alugue o DVD e deleite-se com "Depois de horas". A comprovação da tese eu não garanto – a diversão, sim.

O raciocínio é o mesmo no caso de "Vestida para matar", embora a complexidade estilosa e proposital de Brian de Palma – e o próprio tema manifesto do filme – pareça tornar as coisas um pouco mais difíceis. Só que, por baixo daquelas camadas de psicologia barata que De Palma usa para emular o seu, o dele, o nosso ídolo Alfred H., sobra apenas um outro exemplo de personagem vertendo em imagens e sons os seus desejos. E se você pensou que esse personagem que projeta suas expectativas é o psicanalista que – vou ter de cotar o segredo do filme, paciência – vai se revelar um assassino travestido de mulher, errou. Feio. Passou longe.

Pra mim, no caso de "Vestida para matar", aquela trama toda de dupla personalidade, misturado ao caso de uma mulher sexualmente insatisfeita, não passa de uma projeção do filho desta. Duvida? Então reveja o filme e repare na maneira como o garoto, um típico nerd do cinemão americano (cujo intérprete, mais nerd ainda, estrelaria mais tarde "Christine", clássico pop-sujão feito a partir do romance pulp de Stephen King), deixa bem claro o tempo todo que seu pai morreu no Vietnã e que foi criado pelo padrasto. Por que esta fala é significativa dentro dessa tese mirabolante sobre personagens que projetam? Porque expressa o inconformismo do adolescente, sintoma primeiro de sua obsessão e gatilho do mecanismo psicológico que o faz detonar toda a história de sangue, navalhadas, travestis e bossalidades policiais.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Valhei-me, Toinho Alves!


Sexta-feira à noite eu fui mais uma vez tragado pela agenda cultural de Rejane. Mas dessa vez temo que o resultado não tenha sido muito estimulante, como foi quando ela me arrastou com os meninos para assistir ao show do grupo "Cabelo de Moça" no edifício sede da Caixa Econômica. É verdade que o programa dessa sexta-feira até que prometia: era o chamado "encontro dos pontos de cultura", que movimentou a Esplanada dos Ministérios durante o final de semana.


Para aquela noite estavam programados dois shows em palcos alternados. Um do Quinteto Violado e outro daquele senhor cearense, seu Raimundo Fagner, conhece? O Quinteto faz meio que parte da nossa história na travessia Natal-Brasília: pouco antes de mudar para cá, assistimos no velho TAM a uma baita e inesquecível apresentação da banda pernambucana, e vimos o mesmíssimo show pouco depois, já morando aqui, na Sala Villa Lobos do Teatro Nacional. Foi como se os caras do Quinteto tivessem acompanhado a gente no caminhão de mudança. E ajudou a nos adaptar, a sair um pouco da umidade salina de Natal para a secura àquela altura meio gelada de Brasília.


Quando ao cearense, caiu a ficha de que seria a primeira vez em que veria um show dele, apesar de me inscrever no vasto, nem um pouco homogêneo, uma vezes calmo, outras vezes passional grupo de ouvintes que o aprecia. Fagner, enfim. Os cearenses vão à loucura. Bora ver.


Tudo corria bem enquanto rolavam as cinco ou seis primeiras músicas do Quinteto. Uma nota antes de prosseguir: que falta faz a presença marcante, sertanaje, negra e verdadeiramente popular de Toinho Alves no palco do Quinteto. Assisti praticamente a todo o show lembrando dos aboios que o velho músico, falecido há pouco tempo, jogava no meio da seara sonora do Quinteto, fazendo da música do grupo algo ainda mais autêntico, tocante e rico.


Mas disse praticamente porque, a certa altura do show nem Toinho me livraria da arapuca que Rejane armou pra mim. Eis que, a tantas horas do show, um forró tocando fogo no pequeno mas animado público, um dos integrantes do Quinteto sugere que todo mundo avacalhe logo o negócio e transforme a platéia numa grande quadrilha junina. Rejane olhou pra mim, eu senti o impacto da olhada, entendi tudo e não disse nada. Mas fiz cara de "agora não vai dar". Ela apelou para a verbalização: "vamos". Eu: "Hoje vai dar não". Resisti, tentei correr, usei a tática de olhar pro lado como se não fosse comigo mas teve jeito não.


Rejane me arrastou para uma quadrilha junina no pé do palco do show do Quinteto. Pensando bem, devo agraceder à providência pelos músicos do Quinteto não terem chamado a quadrilha para subir ao palco de uma vez. Aí não sei o que teria acontecido. Só sei que fui jogado de um lado pro outro, obrigado a pular animadinho quando estava ainda cheio de trabalho na cabeça, mais parado do que estátua de leão em entrada de mansão mal-assombrada. E tinha que dar risada, me mostrar contente e animado como todos os demais. Era um constrangimento a minha cara destoando do resto da quadrilha. Mas Rejane estava irredutível.


O pior, o pior mesmo foi no final, quando o mesmíssimo músico do Quinteto - valhei-me, Toinho Alves! - resolveu, não contente com a quadrilha, sugerir que todo mundo continuasse de mãos dadas e formasse o que ele chamou de "onda gigante humana". Assim: todos de mãos dadas formando uma espécie de círculo humano em caracol. E aí, a um sinal dele, todo mundo tinha que se jogar para o centro do caracol, esbarrando no que quer que fosse. Quase que me afogo nessa onda: me vi empurrado abruptamente para o centro do furacão, digo, caracol, e, imediatamente em seguida, arrastado de volta como se estivesse mesmo em um mal revolto de gente levemente alterada pelo álcool e outros aditivos de noite de sexta-feira.


Falar a verdade: eu até aprecio uma ciranda pernambucana, daquelas de Dona Lia, onde a gente entra, dá aos mãos, e dança meio malemolente, num ritmozinho devagar, bom, parece que tá numa rede de varanda, aquele passo para trás que não tem risco de errar. Aí, sim. Mas quadrilha como a do Quinteto, nessa não caio mais.


Esqueci de dizer que era tanta gente na quadrilha que montaram até aquele "túnel" de casais onde a gente se agacha para passar por baixo: pois o túnel era tão grande que desconfiei que quando saísse dele estaria lá pras bandas do aeroporto, tendo entrado nele no gramado da Esplanada. Mas isso foi pouco: quando enfim saí do túnel e me surpreendi de ainda estar entre os prédios dos ministérios, tive que fazer com Rejane aquele telhadinho de mãos dadas e braços elevados para outros integrantes da quadrilha passarem. Pense no aperreio: se demorei tanto para atravessar, imagine o tempo que vou ter de permanecer com os braços levantados aqui...


Como já havia passado pelo pior, resolvi, encerrado o show do Quinteto, esperar para ver Fagner pela primeira vez num palco assim pertinho. E então relaxei da quadrilha apreciando o show, que me mostrou um Raimundão muito bem disposto em fim de carreira. Com aquela cara de estátua da ilha de Páscoa, Fagner me pareceu, fisicamente, um boneco meio desengonçado. Mas como aquele senhor se revitaliza quando empunha violão e, contando apenas com uma dupla de músicos equipados com sintetizador, sanfona e uma pungente guitarra, é capaz de produzir um show eletrizante. É isso, não se surpreendam: achei o show deste Fagner pós-tudo um troço meio rock and roll, meio o "Cê ao vivo" de Caetano. Som alto, pegada adolescente e cabelos brancos. O que é que eu posso esperar mais?


E Fagner ainda cantou uma das músicas de mau gosto de que eu gosto mais: "Retrovisor". Conhece? "Vejo a manhã de sol entrando em casa..."

Da qualidade cicatrizante do camadara Dost


Titina me escreve enquanto se recupera da cirurgia nas narinas e conta que está lendo "Crime e Castigo". Dostoievisquamente, não sei se ela merece uma porrada dessas a título de pós-operatório. Mas, se está gostando, como celebra, o romanção quase asmático há de ter sua dose de mezinha. Eu, se fosse comigo, perdia logo o fôlego - tão necessário a quem operou o nariz. Mas vou socializar aqui a resposta que enviei pra ela. Pode ser que sirva para mais alguém que se prepara para enfrentar a sala de cirurgia, nunca se sabe:


"Crime e Castigo" é soturno, pesado, sorumbático, profundo, meio demoníaco no retrato que constrói. Li meio a custo, admito. Achei meio hard atravessar aquele mar turvo de palavras duras. Estranhei também a atmosfera russa, que me pareceu assim como uma mistura da branca e incômoda umidade londrina com aquela sensação de fim de mundo que acomete quase todo mundo naquela horinha que antecede o cair da noite - e isso tudo são sensações meio "gráficas", pois que derivadas tão somente do poder sugestivo das palavras impressas. Londes nunca me viu nem eu a ela. Rússia, então, é quase com uma terceira dimensão com a qual eu posso ter no máximo contatos imediatos de quinto grau - quer dizer, o abraço da leitura.


Então: ainda assim, viajei pela mente daquele Raskolnikoviski - cuja grafia, estou certo, não passa nem perto do que escrevi aqui, mas vocês entenderam - com um certo pavor na ponta dos dedos que virava cada página. Foi travessia difícil e a comparação que me ocorre agora, talvez pelo uso dessa palavra mesmo, é com as danações de um Riobaldo, as maquinações para-humanas que nos legou o bruxo João Guimarães. Só que o sertão mineiro, com sua solaridade ainda que sombria, sua luminosidade que tanto clareia quanto cega, pareceu-me mais próxima, mais terra-a-terra, mas aqui. "Crime e Castigo" é mais pra muito longe - um sertão estrangeiro cheio de musgo, paredões e miseráveis congelando em outras eras, sem a secura poeirenta e o calor telúrico de nós outros.

Casa e quintal



A primeira semana ainda não havia se completado e fomos parados na rua, simpática rua sem saída como todas as daqui, por um casal de vizinhos. Eu e Rejane, voltando, a pé, do supermercado ou da banca de jornais no comércio local aqui perto. Eles, os vizinhos, de carro. Pararam no meio do caminho, cumprimentaram, desejaram boas vindas, garantiram que a rua é boa, tranqüila, acolhedora - e se colocaram à disposição para qualquer eventualidade.

Duvido que esse tipo de recepção se enquadre no imaginário que você tem de Brasília, seja um leitor daqui mesmo ou de Natal, que são os dois times que jogam juntos aqui no Sopão. Esse comportamento amistoso, meio "nordestino" não é bem o que se espera de Brasília, cidade vista como fria, distante, dominada por políticos oportunistas e funcionários públicos ensimesmados. Pois bem, e quando se trata do Lago Norte, bairro só de casas próximos à ponta norte do lago Paranoá, a frieza aparente fica ainda mais presente, simbólica, representativa do imaginário da cidade. Pois o que estamos constantando é exatamente o contrário. A vida real, essa danadinha, insiste em nos contrariar. E se esse texto aqui fosse uma "matéria de aquário" (vide postagem anterior), o coitado do repórter ia ter que se desdobrar para comprovar a tese da capital que não passa de uma maquete insensível.

Está sendo assim a nossa mudança de endereço que, como vocês vêem, vai provocando uma série de outras mudanças na maneira como a gente se relaciona com a cidade. E, pra começar, houve isso: um casal de vizinhos (bastante antigos aqui na rua) parando a gente para desejar boas vindas. Descobrimos, em segundo lugar, que existe todo um mercado de serviços exclusivos para quem mora em casa com quintal e tal, do tipo que conserta portões empenados. Posso afirmar da extrema validade desse mercado, pois que dele já fiz uso mais de uma vez. A mais notável, claro, foi quando eu, tal como tantos outros novatos na religião da moradia em casa, empenei o portão de ferro da garagem ao sair com o carro achando que o dito cujo já estava totalmente aberto. O moço que consertou o portão e o motor do portão me disse que acontecem uns dez casos por dia como esse. Mas já tá tudo trancado de novo, fiquem tranquilos, com ou sem trema. Fora essas equipes do tipo "seus problemas acabaram", ainda há as turbas de piscineiros - nos mais variados níveis, bem ou mal motorizados ou equipados com bicicletas repleta de canos e peneiras - que circulam na área oferecendo seus serviços. E, naturalmente, os infalíveis pedintes que a gente vai atendendo na medida do possível, sem prejuízo do nosso humor nem das necessidades básicas deles.

Bernardo e Cecília descobriram, de um dia para o outro, o mundo dos insetos, a algavaria noturna dos besouros (especialmente quando logo antes ou imediatamente depois daquela chuva), a bica da varanda que canta forte quando chove idem, a flexibilidade da mangueira e a terapia que é o ato mero de molhar as plantas, que são muitas. Descobriram também que planta dá no pé e, no caso específico de Cecília, que é preciso esperar que as bichinhas amadureçam para que se possa arrancá-las do galho. Os gatos, ao contrário da expectativa, têm se portado muitíssimo bem: embora passem o dia ciscando nas terras vastas do quintal, não se aproximam do cachorro do vizinho. À noite, já estão todos em casa na hora do fechamento das portas (resistiram um pouco nos primeiros dias, mas era deslumbramento felino mesmo). O único problema, especialmente com um deles que costuma dormitar sob os arvoredos do quintal, é quando cai aquela chuvarada-surpresa. Outro dia isso aconteceu e eu só vi um vulto amarronzado passar voando bem diante do meu nariz, para imediatamente se materializar em uma coisa borrachuda derrapando no piso da sala. Ainda bem que o piso, assim como o quintal, é vasto. E ainda bem que as portas de vidro não estavam fechadas - caso contrário, lá se ia uma das sete vidas de Bolinha, coitado.

Tudo isso já indica o quanto nosso espírito anda sossegando depois que mudamos. A rigor, parece que moramos numa chácara meio afastadinha do ruge-ruge urbano. E aí, quando vamos trabalhar ou fazer supermercado ou levar Cecília na escola, cruzamos a ponte e então é como se estivéssemos "voltando" à cidade - mas só de passagem, claro, que o que a gente gosta mesmo é de ficar aqui ao longe, neste silêncio de sítio. Falar nisso, às dez da noite parece que já é uma da manhã - e intuitivamente acabamos dormindo um pouco mais cedo. Mas também é fácil acordar mais cedo, porque o que tem de passarinho trepado nessas matas de quintais cantando não é brincadeira. Quer saber? Aqui tem até galo cantando ao primeiro raiar do sol. Incrível: a um pulo da ponte do Brageto, quase colados no fim da Asa Norte, com o Eixão de bocão aberto esperando para aspirar o carro da gente junto com o de um monte de gente mais e, mesmo assim, o galo canta todo dia cedinho. Passeando a pé na rua, para exercitar o esqueleto e fazer um reconhecimento mais vagaroso, descobri, mais perplexo ainda, de onde vinha o canto do galo. Rapaz, de uma casa bonita como ela só, moderna, cheia de vidraças e paredes retocadas. E o galo e as galinhas na grama, como se estivesse num chiqueirinho de uma taperinha de sítio lá na Timbaúba, em Parelhas.

Eu não disse, lá no começo, que a vida real insiste em contrariar as "matérias de aquário"? Pois então: o melhor da mudança talvez seja isso. Contraria e, até agora, pra melhor. Tomara que continue. Desculpas pelo sumiço e voltem sempre que pelo contrariar da vida real, o Sopão vai ter cada vez mais assunto besta pra gente passar o tempo enquanto os galos cantam.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

A visão do aquário (Entreblogues)


O Sopão continua em obras, interditado para postagens regulares. Isso acontece porque o Tião do Sopão ainda não terminou de se mudar do apartamento na 316 Norte para a casa na QI 2 do Lago Norte. A distância entre um e outro nem é tão grande, e de fato o grosso da mudança já foi feito. Mas ainda estamos aguardando que a NET compareça para religar os cabos dos computadores, tevê e o combo todo que permite essa lambança virtual entre amigos de Brasília, Natal, Seridó e arredores. Aguardem só mais um pouco. Enquanto isso, fiquem com mais um texto da inigualável sessão "Entreblogues", agora uma postagem do blogue do jornalista Luiz Carlos Azenha, que, como sempre nesses casos, logo logo estará integrado à lista de links ao lado. O texto de Azenha é especialmente recomendado para os leitores que ignoram o lado escuro das redações de telejornais e jornalões - essas folhas consagradas que, não se admirem, são capazes de, em procedimentos absolutamente rotineiros, deixar na poeira qualquer Jornal de Hoje em campanha. Segue o texto:

PAU DE MATAR MATÉRIA

O aquário é uma sala envidraçada onde ficam os peixes graúdos de uma redação de Jornalismo. A mão pesada do aquário vai ficar cada vez mais pesada.Hoje, em qualquer redação moderna da TV brasileira, um editor-chefe de um telejornal pode acompanhar à distância a produção do texto do repórter. Graças à informatização. Você escreve num terminal, salva o texto, e acessando de outro terminal o chefe já tem uma idéia do que você está escrevendo.Problema maior, em minha opinião, é a pauta pré-definida. Se o repórter desmentir a proposta de reportagem corre o sério risco de se queimar.

Essa tensão, entendam, existe em qualquer redação. É óbvio que se você junta três jornalistas discutindo um texto haverá discordâncias. De estilo, de conteúdo, de hierarquização das informações. Mas, no passado, o papel do repórter era preponderante.Não é mais.

Meu amigo Tonico Ferreira costuma brincar que, nas redações, existe um certo pau de matar matéria. Refere-se aos temas relevantes que passam batido pelos telejornais. É que, com raríssimas exceções, a pauta é definida de cima para baixo. Idéias pré-concebidas no aquário acabam sendo entregues a repórteres, que saem às ruas em busca dos fatos e imagens que justifiquem as hipóteses. Curiosamente, a indústria do entretenimento incentiva a personalização do Jornalismo. É comum ver fotos de repórteres e apresentadores na capa de Caras ou de revistas de fofocas.

O repórter é protagonista, muitas vezes mais importante do que a própria notícia. Por outro lado, o papel preponderante do aquário incentiva à "despersonalização" das reportagens. É a vitória da forma sobre o conteúdo. O repórter é mais importante para o marketing do produto do que para a produção de informação.

Os textos são previsíveis, os entrevistados também, o tom de voz, o sotaque - tudo é tão homogêneo que dificilmente você se surpreende com alguma reportagem no telejornal. A criatividade, muitas vezes, fica por conta dos repórteres cinematográficos e dos editores de imagens, aqueles que são encarregados de escolher o que você vê na TV.

Porém, isso está prestes a acabar, se o modelo aplicado hoje aos repórteres for mantido.As imagens gravadas em disco - não mais em fita - serão descarregadas diretamente num servidor. Assim, os repórteres poderão assistí-las diretamente nos terminais de computador. Esse novo sistema também permitirá que a turma do aquário veja as imagens brutas, não editadas, assim que chegarem à redação. O que permitirá o microgerenciamento também das imagens.

Há outro modelo de gestão possível. Se aos repórteres for dada maior responsabilidade pelo conteúdo das matérias, teremos maior diversidade, garantia de pluralidade, uma produção heterogênea e um telejornal mais humano, porque narrado com a convicção daqueles que, em carne e osso, estiveram em contato com a notícia. Esse modelo descentralizado, no entanto, dificulta o uso do Jornalismo para a pregação ideológica.