terça-feira, 27 de abril de 2010

Ciro refletido em Serra

Pronto, o estorvo está fora. Agora, oficialmente, de martelo batido e feridas abertas. É mais um capítulo na biografia de nervos expostos de Ciro Gomes, que depois de quatro anos de silêncio bem comportado, como que para contrariar a imagem que dele se construiu em campanhas passadas, volta a se materizalizar politicamente na figura de um rompante. Estaca zero, aqui estou.

Ciro, excluído, e ainda que declarando acatar a decisão final, é sempre um rebento, como aquele da canção de Gilberto Gil. Uma big bang permanente que, se ficou contida durante oito anos, quando mais quieta esteve mas tende a saracotear agora, nestes seis meses de campanha feroz que teremos pela frente. Admiro Ciro e a qualidade de sua sinceridade desastrosa que contraria o bom comportamento midiático de seus pares. Mas a circunstância em que ele se envolveu ao longo do processo da escolha do candidato do governo Lula retira as peças dessa admiração do lugar.

O erro de Ciro, o estopim de sua revolta, foi a crença que ele próprio construiu numa predestinação que nunca existe por si só - que precisa ser pacientemente trabalhada, como fez Lula ao longo de tantas derrotas. Para Ciro, a candidatura soava como dádiva. E quanto ela não veio, quando sua viabilidade não foi construída, como disse Eduardo Dutra, Ciro, emburrado, ficou diante do espelho como uma imagem invertida de Serra: aquele que não admite que lhe seja negado o direito de concorrer.

Aquele que se considera tão preparado, mas tão preparado, para o cargo máximo do país, que considera também um insulto este mesmo país não lhe entregar, de mãos postas e coração remido, a faixa presidencial.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Leia na Hamaca


Pra tropeçar na grande arte

Assistindo à cena, pensei na capacidade de suspensão que a arte - no caso, o desempenho de um ator, com o auxílio da luz de um iluminador e a condução de um diretor - proporciona. Por um momento que dura dez ou quinze minutos, o espectador se distancia dele mesmo, coloca-se aquém e além da realidade comezinha da vida, instala-se em algum lugar da mente e da alma de onde pode, extasiado, refletir sobre o que é, onde está e por que. Vendo Osmar Prado representar o morto e a morte, lembrei de uma antiga peça em monólogo feita por uma atriz portuguesa no tão amado TAM, o Teatro Alberto Maranhão, em Natal, em ano distante. Lá, no fundo da sala teatral envolvida toda em sombras, havia o vestígio de um barco que fazia da superfície do palco a linha d'água surreal de algum rio. E no corpo dessa canoa cenográfica, iluminada apenas por uma vela de afogado, estava a presença da atriz, bela e imensa em sua expressão a se projetar até a derradeira fila, com a força que a representação confere ao pobre ser humano. Titina estava com a gente e disse, anos depois, que aquela cena e aquela peça a fizeram se decidir por perseguir a profissão de ser atriz.


Clique aqui para ler o texto completo.

domingo, 25 de abril de 2010

A vida segundo Bernardo

O pensador...



...o gozador...




...e o líder



"Vem e segue-me"

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Nós e o vulcão


Desde que o vulcão islandês começou a cuspir sua fumaça tóxica nos céus europeus eu lembro, o tempo todo, de José Saramago. Porque a história toda, que ocupa telejornais e produz um tipo, digamos, superior, de caos aéreo - bem diferente da bagunça brazuca, há de notar o leitor mais viajado - lembra demais os enredos do escritor português. Samamago é um mestre em criar situações imaginárias que colocam em xeque a realidade do mundo. Nas mãos dele, uma hecatombe não é um pretexto para o leitor burilar seu medo, mas uma chance para o seu apreciador refletir sobre coisas que parecem à prova de qualquer especulação, de tão estabelecidas que são. Em suma, o caso do vulcão islandês, com aeroportos paralisados e hotéis superlotados, é quase uma reedição da catástrofe que se verifica num livro como "A Jangada de Pedra", em que Saramago faz com que Espanha e Portugal, num cisma dos Pirineus, separe-se fisicamente do resto da Europa - a Europa superior - e passe a vagar no Atlântico, sem rumo e sem explicações.

É uma espécie de literatura-catástrofe de outra categoria, um gênero em que só Saramago consegue nadar de braçadas, com seus períodos extensos, suas frases superpostas, seu discurso de língua solta e sonoridade silenciosamente marcante. No "Ensaio sobre a Cegueira", que não li e ao qual me refiro apenas a partir do que vimos na adaptação cinematográfica de Fernando Meirelles, temos o mesmo ponto de partida, idêntica chave de produção de uma ficção que examina o mundo a partir de alguma alteração inesperada na translação das coisas. E novamente é como o vulcão islandês e suas nuvens venenosas: todos começam a ficar cegos, invertendo a ordem de poder no geral e no particular, reposicionando sentimentos, qualidades e defeitos em outra ordem, nova, piorada e ainda por cima marcada pelo caos.

Ainda algumas notas sobre o vulcão que nos apavora e nos distrai quando aparece, e aparece muito, na tevê: chego para trabalhar e paro diante da Globonews que mostra reportagem com o piloto do avião que conseguiu salvar os duzentos e tantos passageiros de um vôo entre Londres e a Nova Zelândia, quanto as quatro turbinas falharam a partir do momento em que a aeronave entrou, sem que a tripulação percebesse, numa das nuvens tóxicas produzidas pelo monstro islandês. Segundo a reportagem, a pane durou 15 minutos. Durante esta eternidade, o piloto - um velhinho de cabelos brancos, bem diferente do jovem intrépido de quem hoje em dia se espera quase tudo - conseguiu acalmar os passageiros e ainda tomar uma decisão que contrariava os manuais e os treinamentos com simulações de acidentes pelos quais havia passado. Assisti a pedaços da reportagem, curioso, de pé mesmo, em meio ao barulho da redação, mas pelo que entendi o piloto decidiu tentar religar as quatro turbinas de uma vez só, assim que o avião conseguiu sair da nuvem vulcânica. Ele deixa muito claro que isso contrariava totalmente as regras em vigor. E diz mais: que muitos dos outros procedimentos de emergência conhecidos como eficientes falharam, enquanto alguns previstos como inválidos se revelaram perfeitamente em funcionamento.

O que a história do piloto e do vôo Londres-Nova Zelândia diz pra gente é que numa típica situação de crise, 1) de onde você espera que venham contribuições para resolver ou ao menos diminuir o problema é bem possível que não venha nada; 2) de onde você menos espera que apareça uma luz, lá está ela, surpreendentemente piscando para seus olhos; 3) seguir o manual é tão importante quanto seguir o bom senso - e há momentos em que este bom senso não tem nada a ver com a lógica com a qual lidamos na normalidade. Aliás, o piloto também deixou esse último quesito bem claro: segundo ele, para salvar o vôo, foi preciso ter clareza e desprendimento para notar que era preciso abrir mão da lógica, e lançar mão de outras medidas. No caso, apostar na religação das quatro turbinas ao mesmo tempo - claro, depois de sair da nuvem e de tomar outras medidas para manter o avião no ar enquanto a fumaça tóxica ainda envolvia a aeronave.

Estamos, aqui em casa, Rejane, eu, minha mãe (que mora com a gente) e os meninos, no meio de um vôo metafórico desses em que não se sabe muito bem em qual aeroporto vamos pousar. Uma outra espécie de nuvem tóxica de fumaça se abateu sobre a nossa casa, forçando a gente a repensar nossa maneira de viver. Quando vimos, já havíamos rasgado o manual, feito o piloto daquele vôo. Há uma semana, vivemos sem empregada e sem babá, nos revezando nas tarefas de cuidar da casa, dar total atenção às crianças e abreviar gastos que, tão logo foram chamados às favas, revelaram-se surpérfluos. No geral, o que estamos fazendo é simplicar ao máximo nossa vida. Estamos trabalhando mais, com menos tempo ocioso do que antes. Mas também estamos mais ativos em cada atividade do dia-a-dia. Tem sido muito bom, embora ainda estejamos no início - e seja cedo para considerações mais definitivas.

E quando a gente passa diante do telejornal e ouve distraído as notícias sobre o vulcão islandês, por pior que seja o fato e a situação que essa catástrofe natural gerou, chega a dar vontade de rir - pela ironia da comparação. Ainda bem que, para cada brasileiro apreensivo com o pagamento das diárias além da conta nos hotéis europeus, aparece uma figura como este piloto de avião que, verdadeiramente diante da fera, enfrentou o monstro com as armas que tinha - a inteligência, o bom senso e a clarividência de rasgar o manual - sem choramingar por sair, durante infindáveis 15 minutos, da zona de conforto da vida.

Porque a zona de conforto, de tempos em tempos, acaba. Para todos e cada um. E, pensando bem, não é tão ruim que seja assim.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Brasília, os 50 anos e o imponderável


O aniversário de 50 anos que Brasília comemora hoje, depois de mais de um ano de expectativa, preparativos e anúncios nos jornais, nas revistas e na tevê, é assim: como a festinha de um garoto rico e mimado, todo moderninho, em que pouco antes da hora dos parabéns alguém avisa, aos gritos, que o salão está pegando fogo. A imagem pode parecer forte e antipática, mas foi mais ou menos isso o que aconteceu. Há bem mais de um ano, a cidade se encheu de anúncios e avisos, lembrando sobre a proximidade do cinquentenário da inauguração. No Eixo Monumental, uma das principais vias do Plano Piloto, uma espécie de totem eletrônico marcava a contagem regressiva: faltam 120 dias para os 50 anos de Brasília, faltam 149 dias, faltam 148...Deu no que deu.

Bem antes de o grande dia chegar, estourou o escândalo da operação policial Caixa de Pandora. Foi como se tivessem aberto um grande presente de grego, em que estavam guardadas certas maldades feitas enquanto todo mundo só prestava atenção nos preparativos para a festa. Imagens dessas maldades voaram para todos os telejornais. E a comemoração propriamente dita, que acontece finalmente nesta quarta-feira, encolheu de tamanho e de ambição. O que se viu foi a presença, antes mesmo da hora marcada para cantar o parabéns, de um convidado indesejado. Esse penetra chamado "o imponderável".

Ele é assim mesmo. É de sua natureza chegar quando menos se espera, batendo à porta de qualquer um de nós com a malinha na mão e um sorriso cínico no rosto. Ao seu infeliz hóspede, não resta nada além de deixá-lo entrar e lhe servir ao menos um café, pra ver se ele pega leve nas mudanças que traz. Na vida de todo mundo, o senhor Imponderável costuma aparecer na forma da morte de um parente querido, na perda de um emprego que parecia seguro, na transferência compulsória que pistolão algum conseguiria evitar. Enfim, nesses fatos inexoráveis que estão vagando por aí e podem cair na sua, na minha, na nossa cabeça a qualquer momento.

Na vida política, por si só bem mais sujeita a puxadas de tapetes e outros imprevistos, o senhor Imponderável se sente ainda mais em casa para praticar das suas. E se agora ele caprichou em Brasília, ao estragar até o limite do improvável as condições políticas do Distrito Federal e a situação pessoal do ex-governador José Roberto Arruda, é preciso reconhecer que tem uma vasta experiência na matéria, inclusive no Rio Grande do Norte, que também tem a honra de receber sua visita de quando em vez.

Ou você esqueceu daquela manhã do distante ano de 1992, quando Natal fora dormir com Henrique Alves praticamente eleito prefeito e acordou com o engenheiro sanitarista Aldo Tinoco dono do cargo por uma vantagem de menos de mil votos? Aquilo era nada mais nada menos do que o Imponderável dizendo com um sorriso de orelha a orelha que acabou de chegar.

Para os potiguares mais jovens, o senhor Imponderável apareceu, como convém aos novos tempos, na forma de uma operação policial: aquela que escancarou para a cidade o envolvimento suspeito de um grupo de vereadores com interesses inconfessáveis sobre os planos de expansão da capital do estado. Sim, porque só o imponderável explica que um escândalo como aquele tenha vindo à tona e sido discutido durante meses nas manchetes dos jornais, gerando um debate inédito sobre a importância de se respeitar o planejamento urbano numa cidade em expansão galopante.

Por aí já se conclui que, ao menos na política, o senhor Imponderável não é necessariamente um canalha a se evitar. Ao contrário, quando ele chega - e repare que ele sempre deixa pra chegar na última hora, quando ninguém espera - aumentam as chances de que o cidadão tome conhecimento de algo ilegal ou imoral que vinha sendo mantido convenientemente nas sombras. Foi o que aconteceu em Brasília. Daí porque aquela imagem inicial do incêndio na festa de um menino rico e mimado ganha outro sentido. Um sentido estimulante e desejável. Isso mesmo: ainda que com um métodos, digamos, incendiários, o senhor Imponderável dá visibilidade e transparência a práticas que, de outra maneira, permaneceriam ocultos sob a hipocrisia dos belos discursos éticos.

Aliás, se tem uma coisa que o senhor Imponderável detesta, a ponto de lhe dar coceiras, é a hipocrisia. Só existe um defeito que incomoda mais ao senhor Imponderável que a hipocrisia - é a soberba. E jamais houve um político brasileiro tão inoculado pela soberba quanto José Roberto Arruda, o que explica, em grande parte e para além da Operação Caixa de Pandora, a encrenca em que ele se afundou, levando junto deputados distritais e a credibilidade da instituição governamental no DF.

Mas, como a maioria das pessoas não tem um exercício político direto, não disputa cargos e só define o voto mesmo depois da Copa do Mundo, o indicado neste momento em que Brasília comemora como pode seus 50 anos é se prevenir, em casa mesmo, contra a visita do senhor Imponderável. Na nossa modéstia, a gente recomenda um kit básico. Não saia de casa sem ele, sob risco de o Imponderável lhe pegar na rua, bem desprevenido.

É pouca coisa e cabe num saquinho desses de supermercado: um potinho de bom senso, um vidrinho de sangue frio, uma garrafinha de sobriedade e um tubinho de boa sorte, que sempre pode ajudar na hora do sufoco. O mais importante, contudo, não se leva na bolsa, mas se guarda no espírito. É a consciência alerta para o fato de que o senhor Imponderável existe - e a noção consequente de que, diante dele, toda soberba, por maior que seja, não é nada.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Num velho filme, um termômetro do tempo


Nada como o tempo para dar um novo sentido às coisas mais banais. Digo isso porque de vez em quanto gosto de ver ou rever um velho e ordinário filme, daqueles dignos não mais do que de uma sessão da tarde de antigamente, por pura nostalgia, curiosidade ou falta de paciência com artigos mais pretensiosos. Pois bem: esta semana botei no DVD player um desses produtos perdidos no esquecimento, que achei por acaso na prateleira da locadora da 104 Sul: o filme "Dr. Hollywood", com aquele subtítulo ainda pior: "uma receita de amor".

Não sei porque, sempre achei que esse subtítulo fosse "uma receita de sucesso". Estou enganado, mas só em parte, porque o filme também trata da expectativa pela ascenção puramente material. E, se fosse hoje, no cinema mais vulgar de entretenimento atual, você diria que essa tal "receita de sucesso" seria pisar no pescoço dos que estão abaixo sem um pingo de sentimento de culpa, puxar o saco de quem tem mais poder do que você tanto quanto desprezar quem vem abaixo, fazer amizades em função de interesses futuros, legitimar o pragmatismo mesmo nos momentos em que ele parece menos apropriado e por aí afora. Só que estamos falando de um filme ordinário feito na década de 80. E filmes velhos servem para, além de alimentar a nostalgia de quem tem mais de 40, mostrar como o mundo mudou.

"Dr. Hollywood", na sua insignificância cinematográfica, é, visto hoje, um belo termômetro de como o mundo mudou desde os tempos em que ele foi feito. Michael J. Fox, um astro daquela década, é um médico interessado em dar o pulo do gato, trocando o pronto-socorro sem glamour onde trabalha pela disputa de uma vaga cobiçada numa super e hiper clínica de cirurgia plástica de Los Angeles, daquelas onde salas envidraçadas e mesas de tampo transparente não dão espaço para qualquer tipo de humanidade. Acontece que, a caminho de LA, o médico tem que passar por uma cidadezinha minúscula onde sofre um acidente de carro e é obrigado a trabalhar prestando serviços no pobre consultório médico local durante uns dias.

Se o ponto de partida, que é o interesse do médico em ficar rico e sofisticado em LA, bate com os tempos atuais, o miolo, que mostra a temporada dele na cidadezinha, contraria cada uma das normas sociais, econômicas, morais e de bom gosto que vigoram atualmente. Parece uma bobagem dizer que, nestes poucos dias, o médico carreirista descobre o companheirismo, o valor da amizade, a importância que cada um de nós tem neste mundo se a gente fizer direitinho a nossa parte. Mas é exatamente isso o que acontece. Se você acha que tudo isso soa meio piegas, parabéns: você está perfeitamente afinado com os tempos atuais. Eu já me sinto um pouco deslocado, ligeiramente velho - e quanto mais essa sensação aumenta, mais desconfio de que me torno uma pessoa melhor.

E além do mais, "Dr. Hollywood", sempre imerso na sua insignificância artística, tem ótimos personagens excêntricos, que são os moradores da tal cidadezinha. Como o velho médico que, bêbado, recita toda a obra do poeta Walt Whitman. Ou o trio de velhinhas que assedia Michael J. Fox assim que ele chega à cidade, com uma malícia ingênua como não se vê muito no cinema atual. Ou ainda a garota que sonha em se mudar para a cidade grande, personagem deliciosamente caricato com que a então desconhecida Bridget Fonda rouba bem mais de uma cena. Até Woody Harrelson aparece sem sua habitual cara de psicótico, numa outra caricatura de caipira que permeia e dá graça ao filme.

Mas o que eu quero mesmo com essa história de filmes velhos, pieguismo deslocado, nostalgia prática e personagens como não se veem mais é apenas dizer que este "Dr. Hollywood", visto hoje, deixa de ser aquela produção ordinária de anos atrás para se transformar numa peça de museu que só denuncia, involuntariamente, os enganos do novo temop em que vivemos. Porque um filme desses dificilmente, mas muito dificilmente mesmo, seria feito hoje em dia. Não teria apelo, clima, atmosfera - em resumo, não seria nada vendável. E, se fosse, mais dificilmente ainda faria o sucesso que teve naqueles tempos.

"Dr. Hollywood" é um filme típico de locadora de VHS que eu nunca quis ver naqueles mesmos tempos. Porque naquela época eu só queria de Scorsese pra cima - e o "Dr. Hollywood' era bestalhão demais. Talvez fosse mesmo, naquele contexto pré-globalização, antes dos computadores, do youtube, de coisas como este blogue que você lê agora. Mas o mesmo tempo que se encarregou de raspar da minha pessoa uma certa camada de esnobismo juvenil também fez o seu trabalho sobre "Dr. Hollywood" e, muito certamente, de similares do mesmo momento histórico.

Isso mesmo: o assunto aqui é esse negócio chamado elegantemente de "momento histórico", que a gente não consegue, por mais que tente, enxergar enquanto está em andamento. Mas, duas ou três décadas depois a gente olha pra trás e lá está ele, límpido como uma alvorada no Seridó. É o tempo, o velho tempo de guerra, dando novo sentido às coisas, mesmo que seja um filme comum de uma era esquecida.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

O motor da tragédia


Até a semana passada, era apenas consensual a idéia de que o lixo, quando mal administrado, é uma ameaça para o homem. Depois dos desmoronamentos no Morro do Bumba, em Niterói, estado do Rio, o que era uma suspeita de natureza acadêmica virou constatação trágica: o lixo mata. A ecologia, assim como se dizia da máfia, não perdoa. Melhor não mexer com ela.

No final de semana, a estimativa ainda era de centenas de mortos sobre os escombros de uma triste combinação de chuvas, terrenos frágeis, solo usurpado, rocha fissurada, gás metano e, é importante não esquecer, um pouquinho de especulação imobiliária, já que ninguém em sã consciência vai morar num penhasco se houver terreno e casa a preço humanamente decente em outra parte da cidade.

O motor dessa tragédia, o mais recente capítulo deste compêndio de desgraças que vem sendo o ano de 2010, é múltiplo como convém aos fenômenos ditos modernos. Uma coleção de motivos combinados que mais parece o parecer final de uma investigação daqueles acidentes aéreos que deixam o país perplexo. Porque nunca é só uma falha humana, por mais que os investigadores precisem ser objetivos e focar sua análise num ponto suficientemente grave que acalme nosso clamor com um mínimo de racionalidade.

A morte estimada de mais de cem pessoas em Niterói já provocou toda espécie de análise. Só não ocorreu a ninguém ainda a idéia, que obviamente seria considerada estapafúrdia, esquerdista, estatizante e inspirada pelo MST, de criar um instituto destinado exclusivamente a estudar os motores de nossas tragédias.

Uma espécie de IBGE das desgraças nacionais, onde sociólogos defasados, com óculos de aros grossos e expressões circunspectas, queimariam as pestanas analisando os desastres passados para prevenir os futuros. A estatal das desgraças se manteria em funcionamento até o dia em que apenas o imponderável – esse último recurso contra o ateísmo – pudesse causar novas tragédias.

Os arquivista do IBGE do motor das tragédias teriam um baita trabalho pela frente. Aqui mesmo, no RN, há um vasto material para sustentar as análises. A tragédia de Igapó, na manhã de 23 de novembro de 1982, quando um carro derrubou um cabo de alta tensão no bairro da zona norte, matando 23 pessoas – muitas delas gente que se aproximava para socorrer as vítimas, quando a rede elétrica foi inesperadamente religada. Motor da tragédia: negligência para com o poder da eletricidade.

Aquele ônibus desenfreado que esmagou uma procissão inteira na entrada de Currais Novos. Motor da tragédia: uma combinação de falha mecânica, decorrente de descaso humano, com um certo excesso de confiança, de natureza até arrogante, que o exercício da fé religiosa implica. Claro que uma procissão num lugar que funciona, na prática, como uma rodovia, também não era uma boa idéia, mas aí a gente já está perdendo a objetividade e instituto sério tem que praticar a exatidão.

Pelo Brasil afora, a estatal das informações das tragédias teria anos de trabalho apenas para carregar seus arquivos mais básicos. Desabamento do edifício Palace II, no mesmo estado do Rio, em fevereiro de 98. Motor da tragédia: desonestidade assassina, pra dizer o mínimo. Pavilhão da Gameleira, Belo Horizonte, fevereiro de 1971, 69 operários mortos, muitos deles os mesmos que haviam alertado para os ruídos que denunciavam a fragilidade da construção. Motor da tragédia: pressa governamental, traduzido em data de inauguração.

Dessa mesma natureza é o motor da tragédia que marcou a fundação de Brasília, o chamado “massacre da Pacheco Fernandes”, um episódio sempre envolto em suspeitas, desmentidos e olhares de lado. Um assunto que definitivamente não pega bem na mesa do almoço e menos ainda neste ano do aniversário de 50 anos da capital, a serem comemorados no próximo dia 21. Uma revolta no refeitório da construtora, que teria servido carne estragada aos candangos, teria resultado numa repressão policial de natureza tão brutal que caminhões de corpos teriam sido removidos do local e enterrados em lugar até hoje ignorado. A história foi recuperada e contada pelo cineasta paraibano-brasiliense Vladirmir de Carvalho, no documentário “Conterrêneo Velho de Guerra”. Motor da tragédia? Neste caso, talvez nem faça sentido perguntar. É um caso que daria muito trabalho aos responsáveis pela catalogação do IBGE das tragédias.

De qualquer maneira, para agilizar as atividades e desburocratizar um pouco os trabalhos, o IBGE das desgraças bem que poderia iniciar seus arquivos somente com os eventos ocorridos a partir deste 2010. Ainda estamos em abril, mas o Brasil e o mundo já têm material suficiente para ocupar os cientistas pelas próximas décadas. Porque este 2010, desde que Angra dos Reis começou a ser desmanchar em pasta de lama, areia e mar com aquela pousada parecendo uma casinha de papelão diante da fúria da natureza, parece estar sendo uma amostra do fim do mundo como nenhum Antônio Conselheiro jamais previu. É uma sucessão de calamidades, como a Prefeitura de Natal na gestão atual: a gente mal tem tempo de ser recuperar de uma péssima idéia apresentada pelo poder público, e vem outra, pior ainda.

Como se Deus, o imponderável, o absoluto ou como quer que você o chame, tivesse resolvido fazer uma sinistra experiência. Compactar num mesmo ano tudo de ruim que pode acontecer envolvendo a natureza, o homem e o poder público. Haiti, Chile, Angra. Terremotos, enchentes, desabamentos. A morte coletiva. Um teste, um ano do tipo Jó, pra ver até onde essa criatura mesquinha que somos nós pode suportar. O motor de todas as tragédias talvez seja algo maior do que a prefeitura, o lixão, o índice pluviométrico e a especulação de que pouco ou nada se fala. O motor final de todas as tragédias talvez seja a nossa própria existência como espécie habitante do planeta.

*Publicado no Novo Jornal (Natal - RN)

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Lições de vida no planeta Terra


"Existem várias maneiras de fracassar na vida, inclusive se dando muito bem."

Isto é Edu Lobo, em entrevista à extinta revista "Palavra", edição de agosto de 2000.

No documentário "No Direction Home", de Martin Scorsese, Bob Dylan diz algo parecido ao comentar as vaias que recebeu ao promover uma inflexão na sua forma de fazer música. Cito, de memória:
"Você pode destruir alguém só com elogios"

Leia na Hamaca

É impressionante a soma de fatores, influências, sugestões, elementos aparentemente dispersos que se juntam numa única mente para fazer de um ser humano um artífice na sua atividade. Penso nisso enquanto assisto, pela segunda vez, ao documentário "No Direction Home", que Martin Scorsese realizou para explicar a música, a filosofia pop, a orgem folk, o perfil mutante e genial de mr. Robert Zimmerman, o Bob Dylan do mundo rock.

Continue lendo aqui.

domingo, 11 de abril de 2010

Bibliotecárias de antanho - 3


Nem só de bibliotecárias más e de unhas cortantes vivia a nossa tenra infância. Houve também, se bem que já na juventude, quando a gente volta à velha biblioteca municipal muito mais movidos pela curiodade do que pela descoberta, a presença de uma bibliotecária doce, maternal, sorridente e sempre pronta e lhe enviar um elogio e um agrado.

Aquela era assim: uma criatura já quase idosa em espírito, cujo corpo conhecera as manipulações mais severas da doença, mas ainda estava por lá, atrás do mesmíssimo birô de metal. Era do tipo que puxava conversa, interessava-se pela presença de quem estivesse entre as estantes. Mais que uma pessoa, quase um personagem, como se tivesse saltado das páginas de algum daqueles romances, quem sabe um Érico Veríssimo de boa cepa, para a vida real dos fichários, pastas e corretores de tinta branca.

Um sorriso terno congelado no rosto, óculos de aros de tartagura, bochechas infladas que faziam o visitantes se sentir em casa. Enquanto lembro dela, pergunto-me se ainda estará por lá. Não é difícil que esteja, com a mesma serenidade das tias solteironas, placidez de vida cuja maior emoção mensal é a novena de Maria, ou o último capítulo da novela sentimental. Aquele jeito de auxiliar das pesquisas, aquele ar de especialista em velhas enciclopédias, uma maneira barsa de estar no mundo, farejá-lo entre as frestas que os livros deixam quando catalogados nas prateleiras.

Um dia, eu jovem, já estudante de Comunicação, por um motivo qualquer preciso usar a máquina de escrever da biblioteca. "Claro", ela diz, com aquela gentileza que traz grudada à pele e à alma. Concentrado na tarefa, ataco o teclado com a mesma fúria de troca-letras que tenho desde os tempos em que me formei na escola de Dona Nina, ali mesmo em Parelhas, o melhor curso de datilograria do mundo, o melhor presente que meus pais me deram para a minha qualificação profissional futura. Estou lá, batucando concentrado nas teclinhas, quando ouço a frase que, sempre que repetia aos amigos, virou motivo de risos, virou bordão, como uma expressão que lembrasse a delicadeza de um tempo que já naquela época, mil novecentos e oitenta e pouco, estava ficando para trás. Ela disse assim:

-Acho lindo quem sabe datilografar!

domingo, 4 de abril de 2010

O Julgamento e seus afluentes


Parece que, na semana passada, todo mundo, embora tenha ido trabalhar normalmente, conversado com amigos e vizinhos como sempre, pago contas, feito compras e reclamado do trânsito como é de costume, também tirou o terno e a gravata do armário, pediu licença à família e sentou no banco dos jurados. Pois é, de uma maneira ou de outra, fomos todos integrantes do grande júri que monopolizou as atenções do país.

Não foi apenas um movimento em massa estimulado pelos jornais, tevês e congêneres. É que havia, no julgamento do casal Nardoni, um pouco do que se pode chamar de tribunal de nós mesmos – ainda que a gente custe a admitir à primeira provocação. E com uma vantagem a nosso favor: estávamos na cômoda condição de jurados informais. Nesta posição, somos bambas da Justiça, referência em ponderações, oráculos quanto se trata de pesar crime, culpa e castigo. Basta que nos abasteçam de indícios, verdades periciais, blocos de evidências e, já que somos humanos e não podemos negar, uma boa história que dê sentido a tudo isso – porque senão cada um daqueles itens não servirá para nada além de nos confundir.

O inegável é que, ao final do processo, cada um, esteja ou não no júri oficial, tem seu veredicto na ponta da língua: culpado ou inocente são apenas palavras formais, já que, no mais das vezes, a sentença que mora em cada cabeça tem um texto bem menos distanciado. É de “bem feito”, “teve o que merece” e “apodreça na cadeia” pra baixo.

Porque a tendência do ser humano, parece, é em 90 por cento dos casos, condenar. Ao menor sinal de deslize, estejamos falando de crimes ou coisas menos dolorosas, lá estará um de nós, representante da raça, de dedo apontado, pedra na mão, pronto para sentenciar: “culpado”. No caso em questão, do desumano crime de que são acusados os Nardoni, tratou-se de uma situação pior ainda. Um caso, digamos, mais sofisticado para a nossa escala de valores tão dependente de simplificações facilitadoras. No primeiro momento, logo após o crime, fomos aos poucos, e com enorme resistência, admitindo a possibilidade de que aquela criança tivesse sido morta pelo próprio pai, ao final de uma série de incidentes que teria contado com a participação violenta da madrasta.

Condenar madrasta é moleza – um lamentável padrão que a gente aprendeu nos contos de fadas. Agora, admitir que um pai tenha jogado a filha do sexto andar são outros quinhentos. O fato é que a polícia, a perícia e o promotor foram nos munindo de dados, formando uma história que narrativamente fazia sentido, de maneira que não houve outro jeito: engolimos a imensa perplexidade e aceitamos aquela versão que, construída a partir de indícios, podia até contrariar nossos instintos, mas ao menos dava ao episódio todo um encadeamento lógico que o tornava, se é que era possível dizer isso, minimamente crível.

O certo é que a dúvida, a danada da dúvida, voltou, na hora do julgamento, a perturbar o inconsciente coletivo do país. Todos os indícios periciais levavam à condenação do casal, mas, num crime sem testemunhas à mão, era preciso que esses elementos falassem francamente, sem ambigüidades – e nem sempre as peças do mundo judicial conseguem tal objetividade. Para complicar, não apareceu, no largo espaço entre o crime e o julgamento, qualquer outro indício à altura que confirmasse a versão do casal. Algo que, sendo sempre uma possibilidade, quanto menos se confirma mais insinua o risco de que ao crime cruel venha se sobrepor um erro judicial não menos doloroso.

Dito isso, pense no conforto da situação que você, amigo, viveu na semana passada: a de ser apenas um jurado informal. Talvez seja exagero dizer, mas ainda assim vale arriscar: de certa maneira, é possível que ser jurado do casal Nardoni tenha sido uma experiência tão difícil quanto ser um dos próprios réus do caso. Num dos lados do tribunal, a presunção de inocência personificada em dois rostos; num outro, a imensa carga da responsabilidade nas mãos de sete jurados. Não é por acaso que um julgamento desses parece funcionar como uma espécie de emblema vivo da espécie, pelo que contém de complexidade humana envolvida, embora ao fim e ao cabo tudo seja resolvido com base no elemento oposto – a simplicidade do argumento mais claro, mais verossímil, menos nebuloso. O ser humano, sabe-se, odeia, por instinto, a característica da nebulosidade.

Sentença proferida, caso encerrado, resta uma evidência maior do que júri, defesa e promotor. Fica a imagem do julgamento como o delta de um imenso rio, um Nilo de possibilidades que promotor e acusação tentam conter, cada um à sua maneira, pela força da palavra e do convencimento, a um curso de água principal, claro e cristalino como uma história crível, perto do qual todos os outros não passam de filetes sem futuro.

Às vezes vence o acusador, outras a defesa. Mas o fato é que os sedimentos que o rio traz de longe continuam lá, sujando de lama a sala da Justiça. Em casos como o do casal Nardoni, o julgamento e seus afluentes formam um estuário de incertezas que nos afoga enquanto a gente tem a impressão de estar apenas matando nossa sede de justiça. A conclusão é de que não chegamos nem perto de um método avançado de decidir sobre culpa e inocência em casos nebulosos como é este. Como se trata de uma falha congênita da espécie, quem sabe daqui a umas cem gerações?

O júri popular, como existe hoje, é o que dá pra fazer e, imperfeito que seja, temos de aceitar. Ao menos os grandes julgamentos nos ensinam algo sobre escala de valores. Como a dizer que, se o júri que mobiliza o país tem suas vulnerabilidades, imagine o caráter pequeno daqueles julgamentos que a gente faz a todo momento, escolhendo como réu um vizinho, um ex-amigo, uma celebridade, ou qualquer Madalena que esteja no ângulo de alcance das nossas pedras.

* Publicado no Novo Jornal (Natal - RN)