sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Teste seu grau de pureza eleitoral


Testes em jornais e revistas costumam ser pouco mais do que picaretagens inócuas, embora muitas vezes soem divertidos. Não é o caso deste aqui que, diversão à parte, pretende ser muito sério. É uma série de perguntas e respostas que surge da necessidade, cada vez mais premente, de o cidadão se enquadrar no vale tudo que virou o espectro político partidário nestas eleições. Nunca antes na história deste estado bacuraus pareçam tão araras e bicudos soaram tão terceira via, seja lá o que isso quer dizer.

Enfim, atendendo a pedidos de muita gente que está mais perdida que voto de papel em tempos de urna eletrônica, segue o teste. Pense bem antes de marcar um "x" em cada questão e descubra se você é bicudo, foi bacurau ou será arara. Veja finalmente se você se identifica com a direita envergonhada ou com a esquerda confusa. Saiba de uma vez por todas se você, mesmo não tendo admitido ainda nem pra você mesmo, é dilmista de última hora, lulista por interesse econômico inconfessável (porque, apesar da popularidade do cara, ainda pega muito mal ser lulista em certos ambientes), serrista do tipo que chora ao lembrar do pai verdureiro ou agripinista do tipo perco o discurso mas não abaixo a cabeça. Às questões:

O candidato(a) a deputado em campanha para se reeleger está em passeata no seu bairro. Para diante da sua casa, estende a mão e lhe pede o voto. Você...
A – Engole em seco, esquece o discurso político-moral dos últimos anos na tevê e cumprimenta o candidato(a) pelo belo trabalho em defesa da ética pública realizado por ele(a) nos últimos quatro anos, seja lá o que ele(a) tenha feito (ou não);
B – Bota o candidato pra correr debaixo de desaforos que aprendeu no Jornal Nacional do tipo ficha-suja etc etc;
C – Cobra algum pra não falar mal dele no blogue que pilota no quartinho dos fundos;
D – Apresenta o valor monetário do seu voto – ou do seu “apoio” – e abre espaço para negociação;
E – Nenhuma das anteriores;
F – Todas as anteriores.

O adversário daquela candidata a presidente da República a acusa, por meio de outras pessoas – e também em jornais e revistas, pra dar um tchan na denúncia – de ter sido “terrorista” na época dos governos ditatoriais. Você...
A – Assina embaixo, começa imediatamente um discurso sobre os horrores de Cuba e, ato contínuo, corre pra olhar debaixo da cama pra ver se tem algum comunista vivendo lá clandestinamente, há umas duas décadas, sem que ninguém da família tenha se dado conta;
B – Analisa, assim bem por alto, a biografia do autor da acusação, pergunta-se onde ele estava no mesmo período, indaga-se sobre qual o real interesse de quem faz do medo – não se sabe medo do quê – um fator de decisão ou indecisão eleitoral;
C – Lembra da injustiça póstuma que aquela acusação representa diante de tantos brasileiros que morreram nos porões dos governos ditatoriais e que, desaparecidos, não podem dizer uma palavra sequer em defesa da candidata em questão, quanto menos deles mesmos. E considera que, antes de tudo, isso é uma covardia;
D – Preocupa-se com o assunto por breves e exatos dois minutos, justo o tempo que tem entre engolir o cafezinho matinal, sair de casa correndo e pegar o ônibus para aquele emprego recém-conquistado;
E – Nenhuma das anteriores;
F – Todas as anteriores.

No palanque armado no seu bairro, a noite é de festa. Comício grande, como nos velhos tempos. Antigos adversários abraçadinhos como novos namorados. Diante deste espetáculo de conciliação desinteressada, você...

A – Toma um goró que é pra ter certeza de que está sóbrio e não sendo vítima de um surto de ilusionismo político que provoca vertigens e miragens;
B – Pensa no quanto é bonita a união de todas as correntes e o quanto isso pode contribuir para o fim do aquecimento do planeta;
C – Encomenda à costureira uma bandeira feita de retalhos dos diversos candidatos, partidos e correntes, de maneira que haja pano suficiente para que você esteja coberto em qualquer situação – ainda que, no final, o lábaro tremulante pareça tão indefinido quanto uma página de classificados no jornal;
D – Encomenda a um matemático amigo seu um jeito de conciliar, no mesmo voto, a preferência por linhas políticas diversas e em alguns casos até opostas, embora o discurso dos candidatos diga o contrário. E não esquece de pedir a um programador também amigo uma proteção qualquer para que a urna eletrônica não dê pau diante de um voto politicamente tão absurdo.
E – Nenhuma das anteriores
F – Todas as anteriores

A diferença entre este teste e os demais que fazem a festa dos leitores de revistas de entretenimento é o fato de que aqui não adianta virar o jornal de cabeça pra baixo. Porque, pra começar, não temos as respostas prontas: você, eleitor maior de idade, é que vai ter de quebrar a cabeça para avaliar o quanto a veemência de suas próprias respostas desvenda – ou por outra, esconde – o grau de amadorismo ou amadurecimento política da sua pessoa. A julgar pelos resultados eleitorais mais recentes na capital e no estado, anda bem crítico este indicador. Mas sossegue: sempre há um jeito de ajustá-lo a cada quatro anos e, assim, invalidar o serviço mal feito na eleição anterior. O teste pode ajudá-lo. Basta você considerar menos a brincadeira que ele parece ser e mais a seriedade que ele oculta sob cada uma das questões.

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Roque Santeiro, o retorno


O ano era 1985, Sarney reinava sobre um cenário de greves, não havia perspectiva alguma no horizonte dos brasileiros e o jeito era, toda noite, ligar a tevê pra se divertir diante de Roque Santeiro – a novela. Pois não é que bem mais de duas décadas depois as organizações Globo – aquelas que a gente, vamos admitir, ama e odeia às vezes até ao mesmo tempo, e com bons motivos para as duas atitudes – nos dá de presente a volta das aventuras e desventuras do país de Asa Branca?

Assistir à caixa com 16 DVDs que compactam mas não tiram a graça da novela de Dias Gomes e Aguinaldo Silva é como realizar uma experiência política com você mesmo, diante da nova tevê de tela fininha, bem diferente daquelas em que viu a versão original. Porque enquanto a narrativa, reedição necessária à parte, permanece a mesma na tevê, o país em volta – que a novela, seus autores e realizadores souberam traduzir como ninguém – mudou da água pro vinho, pra ficar na singeleza do ditado popular. E o contraste, provocado pelo efeito do tempo, é o que dá sentido àquela experiência.

Em resumo: assistir a Roque Santeiro em DVD, além de bastante divertido e absolutamente nostálgico, é uma experiência de educação democrática e, já que ninguém é de ferro, de alívio mesmo para um país inteiro – ou ao menos a parte dele que já se entendia por gente nos idos de 85 e continua aqui, na lida, neste finalzinho de era Lula. Porque não há como o espectador não estabelecer seus paralelos entre as topadas econômicas e políticas do Brasil errático de 1985 e os caminhos que o país experimenta hoje, com um mínimo de desenvolvimento e distribuição de renda sem malabarismos arriscados.

É de dar felicidade social a contemplação desta nova versão da novela e o contraste que ela estabelece entre o Brasil de seu tempo e o atual. Sim, eu sei que este sentimento, felicidade, costuma ser somente associado a uma pessoa ou no máximo a uma família, ainda assim excluindo aquele tio chato que estraga os almoços dominicais, mas para construir e viabilizar um país é preciso socializar mais a idéia de felicidade, ora.

Se você não lembra bem da novela – acho difícil, caso tenha mais de 30 anos – só preciso relembrar que a Asa Branca onde se passava a história, com seu coronel empedernido, sua viúva aperuada e seu mito religioso completamente falso, entre outras figuras tão emblemáticas de certa brasilidade era uma representação em escala menor do país. Na época, muito se especulou sobre quais os motivos de a novela ter feito tanto sucesso, parado o país diante da tela, essas coisas.

Revendo o programa em DVD, você é impactado por uma enorme quantidade de respostas possíveis para essa pergunta: o apelo da dramaturgia pura, baseada na peça “O berço do herói”, de Dias Gomes, que coloca em questão um mito falso que pode desmascarar uma cidade inteira, em conexões que passam de personagem pra personagem, como uma usina em ebulição de suspense, possibilidades e viradas; ou a performance do elenco como jamais se viu em tamanha sintonia, capaz de se expressar tantos nos gritos e bordões mais grotescos (porém, divertidos) quando nos olhares mais sutis; ou no fato, absolutamente captado pelo público de então, de tudo aquilo ser uma imitação da bagunça que era um Brasil a tropeçar, aos trancos e barrancos, na luta para reencontrar um mínimo de cidadania institucionalizada depois de anos de ditadura militar; ou ainda o humor brasileiro puro e simples, que avacalhava cada pessoa e cada situação, dando à novela inteira um tom de farsa que divertia tanto quando fazia pensar; ou tudo isso junto.

É botar o disquinho do DVD pra tocar e se divertir com o que fomos. Não ter medo de admitir que há um Sinhozinho Malta brega e deslumbrado, ou uma Viúva Porcina oportunista e espalhafatosa dentro de cada um de nós, assim como um Roque Santeiro não menos esperto e egoísta, embora todos e cada um desejando algo que, em dado momento, é expressado em palavras por outra personagem, a Matilde de Yoná Magalhães:

- No fundo, o que todo mundo quer é que Asa Branca cresça.

Se você pensa que eu inventei essa frase para conseguir estabelecer melhor aqui uma conexão entre o Brasil de Asa Branca e o país da era Lula, tá engano. A frase está lá, no disco 3, límpida, clara e profética como o finado Dias Gomes e o ressentido Aguinaldo Silva jamais imaginaram que poderia se realizar, em futuro distante, mas nem tanto.

Roque Santeiro, o personagem, podia ser um falso mito, mas Roque Santeiro, a novela, vista hoje, revela-se um farol indicando o que desejava o povo brasileiro já naquela época, ou desde sempre. Talvez a gente só não estivesse pronto ainda pra ver e realizar.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Jornalistas X marqueteiros


Com o início da propaganda eleitoral na televisão e no rádio, começa uma segunda batalha, à sombra do embate principal que é a disputa entre os principais candidatos aos cargos de presidente, governador, senador e deputado. São as escaramuças verbais entre jornalistas e marqueteiros, uma briga que já se inicia com desvantagem para os segundos, cujo nome, por si só depreciativo, diz muito sobre os primeiros, se a gente lembrar, a tempo, que foram eles que batizaram os adversários assim. Jornalistas de um lado, com uma suposta respeitabilidade, uma presumível credibilidade e um não menos imaginário talento para revelar o que se passa na cabeça da sociedade. Marqueteiros de outro, com esse nome com cara de apelido maldoso, essa aura de manipulador maquiavélico da opinião pública e aqueles invejados arroubos de poder, em muitos casos bem menores do que eles próprios fazem questão de transparecer.

Jornalistas têm por hábito – e por um certo imperativo blasé da profissão – tratar o estrategistas de comunicação dos candidatos como subprodutos do mercado eleitoral. Os marqueteiros seriam demônios que, assim como seus programas eleitorais gratuitos, ocupam o espaço da programação de canais que poderiam estar faturando com suas atrações normais. Não ocorre aos jornalistas que o pior programa eleitoral gratuito, o mais tosco ou mais mentiroso, pode ser sim uma janela para a democratização de um meio – televisão e rádio – que deveria estar à disposição de todos os candidatos, de todos os segmentos da sociedade, e não apenas dos interesses empresariais (e também políticos, por conseqüência) dos donos das emissoras que, por sinal, empregam aqueles mesmos jornalistas que se julgam superiores aos marqueteiros.

Para os jornalistas, além de ocupar com atrações indignas os horários nobres da televisão, o marqueteiro procura mostrar o candidato com uma imagem que não corresponde à realidade. Por esse pressuposto, deduz-se que o jornalista, este sim, expõe o candidato em toda sua transparente verdade. Joga luz sobre suas contradições, persegue sua biografia política e pessoal, desmente suas promessas inexeqüíveis, questiona suas ligações políticas. Isso acontece, sim – mas os jornais e revistas estão cheios de exemplos de jornalista fazendo tudo isso quando se trata de apenas um candidato específico. Basta o leitor se interrogar sobre o porquê de não haver a mesma lupa microscópica apontada para todos eles e o partidarismo do dito veículo de comunicação fica exposto em praça pública. E se é assim, o jornalista não tem, de fato, legitimidade para contestar a credibilidade do marqueteiro a quem tenta desmascarar.

Então, melhor do que tentar tingir com cores menos límpidas a imagem de quem trata da imagem dos outros é o jornalista descer do altar onde há tempos não fica bem na pose de santo e admitir que pode aprender com o marqueteiro bossal e deslumbrado a quem tanto despreza. Como? Pra começar, admitindo que o bom marqueteiro – assim como há jornalistas bons, maus e mais ou menos, também há marqueteiros assim classificáveis – tem, se não o talento, ao menos o esforço de tentar entender o que se passa na cabeça da média das pessoas. E esse entendimento não é importante apenas para projetar nos discursos do candidato a realização desses anseios, mas também para compreender a percepção que a população tem do momento político, do presidente, do prefeito, das instituições, da economia e, já que estamos aqui, da própria imprensa.

Com esses dados na mão, o jornalista poderia descobrir que a própria análise que ele faz do país e da sociedade num dado momento pode estar em rota de colisão com o que seus pares da vida real, do dia-a-dia comum, estão percebendo. Um dos dois – jornalistas de um lado, população em geral de outro – pode estar errado, lógico. O detalhe é que o mundinho do jornalista, embora se trate de categoria que louva o cosmopolitismo, costuma ser bem mais fechado do que aparenta. Se avaliar que está certo, estando errado, o jornalista corre ainda o risco de ser esquecido, tornar-se peça obsoleta na engrenagem analítica que processa informações procedentes e descarta as inócuas. Se essas afirmações lhe fazem lembrar o jornalismo brasileiro atual pode não ser por mera coincidência.

E o marqueteiro, gênio do mal que se vende ao dinheiro do candidato? Pra começar, ele precisa, depende, alimenta-se da capacidade de saber ler o que a sociedade pensa, sem predisposição de tender para um lado ou para outro. Simpatias à parte, quando ele se “vende” ao candidato, tem de estar ciente do que percebe, transversalmente, o eleitorado, tanto faz se levará ao palanque um discurso oposicionista ou situacionista. Mas, ao contrário do outro, ele não faz isso por trás de uma cortina de falsa e conveniente correção política. Depois, tem, obrigatoriamente, a humildade de descer ao nível do povão – e se não o fizer, provavelmente vai se arrebentar junto com o candidato.

A soberba do marqueteiro, que também existe, deve ser só da boca pra fora, na vitrine da entrevista na tevê. O verdadeiro marqueteiro só se vende, como imagem de sucesso – incluindo o costumeiro deslumbramento de suspensórios e a habitual breguice de fã de briga de galo – na medida em que está em público. Em privado, precisa ser manso e curvar-se ante o que o brasileiro em geral aprecia ou rejeita. Precisa até comungar um pouco disso. A sofisticação definitivamente não combina com esse ofício e talvez por isso o melhor marqueteiro do país pareça tão brega ao olhar do jornalista.

Nelson Rodrigues dizia: “Jovens, envelheçam”. Aos senhores de marketing político de extração mais refinada, poderia-se dizer, no mesmo tom: “Marqueteiros, popularizem-se”. Já àquela outra categoria que costuma se proteger por trás dos aquários de redação o recado poderia ser outro: “Jornalistas, peçam perdão”. Enquanto é tempo.

* Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Não atire pedras na santa


Diante da visão acachapante da estátua de Santa Rita às margens da estrada, em Santa Cruz, o primeiro impulso, depois do espanto, é de jogar pedras. Denunciar em brados tão colossais quanto o próprio monumento o absurdo que é aquela obra megalômana. Levantar a voz para reclamar do gasto exagerado de dinheiro em favor de algo que não representa benefício imediato para o povo. Pular do assento do carro em movimento e erguer o braço num arroubo de indignação só de imaginar a possibilidade de superfaturamento e outras mumunhas que monumentos daquela estatura quase sempre permitem. Mas nem sempre é bom dar ouvidos ao primeiro impulso.

Diante da estátua gigante de Santa Rita lá em Santa Cruz, aquele monumento tão grande que quase dá pra ver da entrada de Tangará e da saída de Currais Novos, é melhor praticar um certo tipo de humildade intelectual. Não precisa se ajoelhar aos pés da santa, até porque ela é tão grande que mesmo de pé a gente fica parecendo formiguinha muçulmana tombada na direção de Meca. É só uma questão de pensar melhor antes de se curvar ao senso comum, que muitas vezes está certo mas em tantas outras é apenas uma abreviação precipitada de raciocínios ligeiramente mais complexos.

O fato é que, se Nova Iorque tem sua Estátua da Liberdade e o Rio de Janeiro seu Cristo Redentor, por que a pobre da Santa Cruz – que, aliás, nem é mais tão pobre assim – não pode ter sua Santa Rita transatlântica? Seria porque fica no sertão, por pertencer à categoria menos votada das cidades do interior ou pelo fato de que estátuas gigantes combinam mais com mar e arranha-céu em volta do que com cardeiros e pontos de moto-táxi? Pois arrisco dizer que, justamente por não ter o charme de uma Wall Street ou o apelo de uma Enseada de Botafogo é que Santa Cruz merece, mais do que NY e Rio, um monumento como sua Santa Rita gigante. Por que se os cariocas não tivessem o Redentor, teriam “ene” outros monumentos, naturais e artificiais, para chamar de seus e fazer deles um espelho simbólico de seu próprio estilo de ser e viver como aglomerado urbano. Nova Iorque, idem: Central Park, a Ponte do Brooklyn, Woden Allen e por aí afora.

Esta não era bem a situação de Santa Cruz antes da inauguração da estátua de Santa Rita. Havia o casario, a igreja, praças, lanchonetes e aquele vasto sertão às margens da BR em condições de se confundir com várias outras cidades do interior nordestino. Com Santa Rita olhando a tudo e todos do alto daquele monte a perspectiva muda. Santa Cruz ganha uma cara, um emblema, uma marca – religiosidade à parte. Mais do que implicações na área da política (que o prefeito construtor, obviamente, explora), do que qualquer religiosidade manipulada (que a igreja, também, não iria deixar de aproveitar), o que conta com a Santa Rita gigante de Santa Cruz é a sensação de identidade que ela traz para um não menos vasto contingente populacional.

O cidadão que contempla a santa na colina distante se engrandece como se fora ele próprio o monumento municipal – e não é ruim que seja assim, se a estima própria minimamente equilibrada é também o primeiro passo para tirar da passividade a pessoa mais desprovida de horizontes. Se NY tem direito a se mirar na Estátua da Liberdade e se medir por ela, todo santo dia, e se o mesmo pode ser dito do Cristo que abraça a difícil vida carioca em sua totalidade, então que motivos justificam o fato de o morador de Santa Cruz não desejar o mesmo? Aqui se trata de um impulso humano que remete ao tempo das pirâmides. Se, de uns tempos pra cá, tornou-se politicamente incorreto o poder público gastar dinheiro construindo o que Chico Buarque, em outro contexto, chamou de “estranhas catedrais”, é outra história. E se o ponto de vista jornalístico imediato corrobora apressadamente este mesmo julgamento, pior pra ele que não compreende a forma como a população – presumivelmente, seu público – observa e movimenta-se no mundo em sua volta.

A verdade é que os grandes monumentos da vida urbana, sejam religiosos como esta Santa Rita ou utilitários como a Ponte Newton Navarro, tem ainda o poder de se reinventar aos olhos do habitante. Há aqueles que, mal concluídos, perdem a graça e não conseguem qualquer empatia com o cidadão, como aconteceu com o Papódromo de Natal. Outros nascem sob tempestades de indignação justa mas, pacientes, aguardam o tempo passar para serem vistos, aos poucos e crescentemente, com olhos de simpatia. É o caso da Ponte JK, em Brasília. Não há uma gota de água do lago Paranoá, por sobre o qual corre a bela ponte, que não desconfie da forma como foi empregado o dinheiro na sua construção. Nem por isso a ponte deixa de ser admirada hoje pelos que moram na capital do país, tornando-se um emblema tão forte quanto o muito apredejado, mas também imensamente querido, palácio do Congresso Nacional. Que, aliás, com ou sem escândalos políticos nos jornais, vive cheio de turistas.

* Publidado no Novo Jornal (Natal-RN)

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Dr. Smith venceu o debate


Nem Serra, Dilma ou Marina. Quem “venceu” o debate presidencial da Band, o primeiro desta campanha eleitoral, foi Plínio Sampaio, do PSOL, com sua inesperada performance de Dr. Smith cínico, irônico, atrevido e como tal muito divertido, absolutamente televisivo, que exibiu na noite de ontem. Enquanto Dilma traía seu mais do que esperado nervosismo de quem não tem mesmo experiência neste tipo de embate, Serra tentava visivelmente controlar seus rompantes de soberba supostamente esclarecida e Marina apresentava uma atuação muito aquém do que muita gente espera dela, Plínio “Dr. Smith” Sampaio deitava e rolava nos poucos minutos a que tinha direito, tirando a sisudez do debate com piadas de CQC e provocações do tipo Pânico na TV. Ninguém entrou em pânico com isso, claro, o que também contribuiu para um debate bem, digamos, elevado, mas foi impossível, em se tratando do que é sobretudo um programa de televisão – é bom não esquecer isso – não se deixar impressionar pela presença quase surreal daquele que seria apenas um figurante no palco da sucessão presidencial em curso.

Dizendo assim até parece que eu me decidi por votar no candidato do PSOL depois de assistir ao debate de ontem. Nada mais equivocado. Acontece que o debate é, como disse há pouco, sobretudo um programa de televisão. Um programa que tem o poder – exagerado, como já se viu tantas vezes – de decidir ou afetar fortemente o resultado de uma eleição vital como é a de presidente da República. Não deveria ser assim, já que a apresentação pura e simples daquilo que a gente chama de “propostas”, mas também, em contexto menos valorizado, pode ser chamado de “promessas”, não resume nem antecipa o que pode ser a gestão do eventual eleito. O tal “programa do candidato”, termo agora entendido como um conjunto de propostas para o país, é apenas um dos indicativos. É preciso cruzá-lo com outras variáveis, como a atuação pretérita do candidato, seus aliados de ontem e de hoje, seu nível de, digamos, “honestidade intelectual”, sua visão de política, governo e mundo – algo que, de uma maneira ou de outra, o eleitor atento acaba sabendo filtrar entre as mil entrevistas que lê ou assiste do candidato em questão. Há ainda o aspecto “situação-oposição”, ou “continuidade-mudança” que os tucanos e aliados tanto tentam jogar pra baixo do tapete desde que o nome de Dilma começou a crescer. E que Lula tenta varrer de volta para o centro da sala com a mesma energia dos adversários.

Tudo isso atravessa os quatro ou cinco blocos dos debates presidenciais na televisão e, tanto quanto ocupa espaço na tela, deveria remeter a fatos que estão fora dela. Mas há um agravante especial, que é a exigência de um desempenho televisivo que dirá, apena pela competência e brilho da performance, que aquele candidato com melhor atuação será também o melhor presidente da República entre os postulantes apresentados. Nada mais falso, também. Vide Collor versus Lula e o fatídico debate de 89 que, mesmo sem a posterior edição criminosa feita pela Rede Globo na época, mostrava um Collor naturalmente muito mais à vontade diante das câmeras do que o Lula de então. Collor venceu o debate, ganhou a eleição e o resto todo mundo sabe. Então é preciso lembrar que a performance do candidato – e Dilma está sendo muito cobrada neste sentido, e a internet está aí para amplificar os deslizes de cada um dos participantes, ajudando a entortar ainda mais esta visão errada do que deve ser a campanha eleitoral – é um dado isolado, que afere apenas sua destreza verbal e visual. Por esse critério, não precisa nem de eleição: a gente indica logo William Bonner ou Fátima Bernardes para a presidência e estamos conversados.

Não estou dizendo tudo isso para justificar minha preferência, aqui bastante divulgada e conhecida, por Dilma, a quem defendo por representar a continuidade de um projeto de Brasil que prioriza os brasileiros mais pobres, acredita no crescimento do país com distribuição de renda e tem uma forte sintonia com as necessidades reais de grande parte da população. Acontece que outros debates virão, e virá principalmente “o” debate, aquele que é esperado como o acontecimento tão ou mais importante do que a última pesquisa e a eleição em si, que é o debate da Rede Globo. E, neste sim, se cobrará, como uma sentença de morte, o desempenho mais superior a cada um dos candidatos, especialmente Dilma e Serra, que estão à frente dos demais e em torno dos quais se dá o debate maior sobre os rumos do país. Pois é um engano: o contato que cada candidato, seja Dilma, Serra, Marina ou Plínio, tem com o conjunto da população nas caminhadas, visitas, comícios, todas os atos de campanha que não estão submetidos à intermediação da mídia, podem ser tão ou mais valiosos do que um debate que para o país diante da tevê. Porque é ali, na rua, na praça, no meio da comunidade, que o candidato realmente checa as condições de vida em que está o povo, a realidade infraestrutural do país, o desenho verdadeiro do Brasil com que terá de lidar. E o candidato que não tiver esta noção aprimorada na cabeça tende a tomar decisões erradas ou inúteis. Daí, por exemplo, a importância que teve para Lula aquelas “caravanas de cidadania” que ele realizou, por sinal, em campanhas eleitorais nas quais acabou derrotado por Fernando Henrique. Acredito que, além da biografia, grande parte da sensibilidade social do Lula de 2002 para cá vem daí, do seu conhecimento mais recente sobre como vive e o que quer, em termos de justiça e ascensão social, o brasileiro em geral. E de como é mais importante dar respostas a esse desejo com os instrumentos exeqüíveis do que se prender a injunções de caráter acadêmico sobre como mudar radicalmente a estrutura de poder no país. Chama isso de “pragmatismo” quem não precisa de seus efeitos para sair do lugar.

E se Dr. Smith, afinal, “ganhou “ o debate da Band, isso significa que, no contexto daquilo que é, apesar de sua importância, um programa de televisão – e penso que é assim que o público geral encara os debates, dentro do seu hábito de buscar assuntos na televisão para as conversas do dia-a-dia, por mais vital que seja a oportunidade de um debate – então fica fácil chegar a algumas conclusões finais. Primeiro, que se Plínio Sampaio, com sua galhardia, teve a melhor performance, nada garante que na cadeira presidencial ele apresentaria igual desempenho. Segundo que tal performance se deve ao fato de que Plínio, o menos comprometido com arcos de aliança – que, afinal, no estágio brasileiro atual, são inegavelmente importantes por conjugar interesses gerais e não causas particulares – fundou sua boa atuação no mero fato, para além do humor, de dizer claramente o que pensa. Uma transparência provocativa eficiente num meio de comunicação direto como a tevê mas que dificilmente teria espaço no campo minado de uma presidência da República destinada a realizar projetos sem botar tudo a perder em meio aos conflitos sempre decorrentes. Por fim, que Serra, com sua evidente gana de poder, Marina, com sua apatia inesperada, e Dilma, com sua tensão compreensível, podem ter sido muito mais verdadeiros do que Plínio com suas flechadas certeiras mas um tanto quanto irresponsáveis, na medida em que se trata de candidato sem nada a perder.

Não vou votar no Dr. Smith, mas me diverti bastante com sua presença no debate. Espero que ele esteja nos próximos, sobretudo no “debatão” da Globo, pra quebrar o clima, arejar a discussão – e também pra dar umas duras nos outros três candidatos, claro, que isso faz parte do jogo e dá um tempero extra às conversas dos brasileiros nos dias seguintes. Vou votar em Dilma, mas não desgostei de todo da performance de Serra, que pelo menos – e compreensivelmente – deixou o lado mais selvagem do enfrentamento para a sua porção Índio da Costa e sua versão panfleto apócrifo tipo revista Veja. Foi respeitável e respeitoso. Agora, se houve um candidato derrotado, pra mim foi Marina Silva, numa atuação repleta de academicismos vazios, sem apresentar, ainda que na condição de “proposta” ou “promessa”, qualquer novidade que já não esteja sendo posta em prática. Marina foi um borrão apagado no debate – talvez até pela desenvoltura de seu parceiro minoritário que foi o Dr. Smith. E essa sim foi a surpresa da noite.

Sopão por aí





Da viagem Brasília-Natal, do alto para baixo: 1) arvoredo às margens do rio São Francisco em Belém de São Francisco (PE), 2) praça e igreja matriz na mesma cidade, 3) fachada de escola em Carnaúba dos Dantas (RN).

Leia na Hamaca

A economia de Serra Talhada, no sertão pernambucano, deve estar mesmo bombando, como se diz. Experimente ligar o rádio quando passar por lá e você verá que para cada dez comerciais se ouve uma mísera música: conseguimos, com esforço e persistência, ouvir Maria Bethania (ela mesma) cantar um velho e clássico sucesso entre a algaravia ensurdecedora de mil propagandas de farmácias, supermercados e similares na barulhenta FM Vila Bela, 94,3 no seu dial, caso tenha se interessado em checar um caso de sucesso comercial a confirmar a grandeza do novo PIB nordestino. Liga lá, fica na terra de Inocêncio Oliveira, o que pode não ser muito auspicioso mas confirma também que é possível crescer em meios às contradições. Sim, crescer na contradição, por mais que os acadêmicos e os mais puristas não gostem ou não admitam. Mas, como dizia aquele carnavalesco simpático, quem gosta de estagnação é intelectual. Pobre quer mesmo é sair dessa condição – e não se pode condenar ninguém por isso, pode?

Leia o texto completo ("Mais notas de viagem") clicando aqui.