quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Lá se vai Brogodó



Ligue a tevê e veja os atores se despedindo entre si e dos seus personagens – para não dizer do próprio público – enquanto vai sumindo do ar o artesanato industrial da melhor teledramaturgia dos últimos anos

Cordel Encantado, a novela, parece transferir para o campo da ficção aquela máxima da biologia segundo a qual na natureza nada se cria e tudo se transforma. Desde a sua surpreendente aparição nos finais de tardes e inícios de noites da televisão, esta dramaturgia que vem comprovando o quanto o popular pode ser sofisticado sem soar esnobe. Operação que realiza valendo-se de um punhado de arquétipos dos mais batidos que vão dos ícones da cultura ibero-brasileira fundidos na estética do cordel até os símbolos dos contos de fadas mais manjados.

Na enciclopédia de entretenimento com uma boa mão de pintura cultural que tem sido essa novela, começamos com a figura recorrente e mundializada dos reinados distantes em fusão com a não menos ancestral, mas brasileiríssima, iconografia dramática do cangaço nordestino. Do casamento absolutamente lúdico do reinado imaginário das Seráfias com o bando do capitão Herculano nasceu o tecido inicial dessa história, movido pela busca de uma princesa prometida – e dada como perdida. Nada mais gasto, e no entanto, nada mais instigante segundo a maneira como a novela manuseou esses temas e por meio deles se deixou ser conduzida.

No entrecho, tivemos diversas outras citações de situações clássicas das formas narrativas mais cultivadas pelo bicho homem: a Doralice-Diadorim que intrigou o filho do cangaceiro; o homem da máscara de ferro na figura de Petrus; o homem de mil disfarces que se revelou Belarmino; a jornalista que reedita e recompõe a saga do cinegrafista que gravou imagens do bando de Lampião; a reencarnação de Antonio Conselheiro na pele do profeta de Miguelzim-Nachetergaele; o Seu Quequé da literatura brasileira mais uma vez às voltas com três casamentos; a Maria Cesária da culinária mágica similar à do filme Como Água para Chocolate; inúmeras outras pequenas alusões espalhadas ao longo dos capítulos até o beijo de Cinderela que despertou a heroína Açucena – e ainda faltam uns dias para o desfecho da história, o que abre espaço para novas recriações.



O Cordel é um daqueles casos de novela de televisão que dão uma nova qualificação ao gênero tão desprezado – muitas e muitas vezes não sem razão. É como foi Roque Santeiro em meados dos anos 80: aquele caso feliz em que tudo parece funcionar ao ponto da perfeição, atores justinhos nos seus papeis, ganchos nos cascos, fios narrativos principais e acessórios muito bem sintonizados, desempenhos, cenografia, abordagem, trilha sonora, direção de arte desenvolvidas com esmero. Este último foi um quesito à parte: se por um acidente imaginário digno do que tem sido essa novela sumissem de um determinado capítulo todos os personagens, intrigas, diálogos e sons e restassem apenas os fundos das cenas – interiores e exteriores, adereços visuais como os muitos que compõem aquele acampamento dos cangaceiros, pra ficar num exemplo só de tantos – mesmo assim a novela já se bastaria por um dia que fosse de tão bonita, simplesmente assim, bela como uma renda nordestina feita no capricho que ela exatamente é. Nunca uma direção de arte de um programa de televisão foi tão feliz – e o sinal em alta definição tem um apuro especial em lamber, visualmente lamber como dizem que faz a câmera de cinema, cada detalhe dessa direção.

Foi tão divertido, interessante e contemplativamente válido assistir ao Cordel Encantado que ficamos todos, seus admiradores, vivendo da vã ilusão de que esse seria um daqueles casos de programa de televisão que jamais acabaria. Ou então de que, de tão boa que tem sido, nada mais poderíamos esperar de sua reta final, essa que se dá na semana que transcorre agora. Qual nada: os derradeiros capítulos do Cordel, muito antes do último, têm surgido na tela como uma antecipação do mais aguardado – no sentido de esperado e não de desejado, por ser o final. Os nós da dramaturgia vão sendo desatados e temos o privilégio, em casa, de assistir a um fenômeno raro até na teledramaturgia de alta qualidade feita pelo império global: os atores se despedindo dos seus colegas em cena. Sim, numa metalinguagem que nada tem de teoricamente soberba e hermética, mas tudo tem da mais genuína emoção que uma obra de arte – Cordel, perdoem-me os apocalípticos, é uma obra de arte como dificilmente o homem, ou um coletivo de homens, é capaz de fazer – é capaz de transmitir. Nos emocionamos juntos com intérpretes e personagens que, ao se despedir em cenas da ficção, claramente também o estão fazendo no plano dos bastidores.



E isso tem se dado em grosso, se a gente lembrar que num mesmo e único capítulo – um desses da reta final – vimos o menino Eronildes dar adeus à casa do padre que o criou, numa cena que juntou um ator maduro e uma criança precoce em um abraço de atuação que nem todo teatro terá sido capaz de realizar – sem prejuízo para o teatro, lógico, mas sem desprezar os poderes da novela. Essa cena, no entanto, seria superada logo a seguir, com a despedida do cangaceiro-ator Belarmino do seu capitão Herculano, em mais um momento que transcendeu a pura ficção. Ali estavam dois atores tarimbados deixando para trás o trabalho de interação dramática que realizaram juntos durante meses – sintomaticamente, dois estreantes em novela de tevê, Domingos Montagner e João Miguel, que tiveram a felicidade de se apresentar neste formado dentro da moldura encantada desse eletrônico e artesanal Cordel.

Mamute, o filme



Gael García Bernal é um jovem que ganhou dinheiro e se estabeleceu na vida ao construir uma espécie de rede social de jogos. Michele Williams, com quem é casado e tem uma filha, é a médica plantonista que faz cirurgias de última hora no hospital onde vão parar as vítimas do mundo cão do qual ela se protege quando descansa, embora insone, no belo apartamento onde vive com a família e a babá filipina. Um dia, Gael precisa viajar ao sudeste asiático apenas para assinar um contrato. Este é o impulso dramático inicial de um desses filmes que costumam passar completamente em branco na grade de programação dos canais pagos. Ao assisti-lo, intrigado, até o final, termino me perguntando: não será este o tipo de filme que a indústria do cinema, embora realize, uma vez finalizado tende a perceber o alcance de sua ambição e o despeja num nicho onde não despertará maiores curiosidades?

O desprezo com que o filme é embalado, no caso do mercado brasileiro, começa pelo título nacional: Corações em Conflito (direção de Lukas Moodysson). Nada menos sugestivo e mais gasto – nada menos correspondente ao que vemos ao longo de sua exibição. O título original, além de marcante, é muito mais fiel na metáfora que contém: Mammoth. Tivesse diso apenas traduzido pura e simplesmente pra Mamute, o filme já começaria a escapar da pausterização geral da programação; além de remeter ao contexto em que o valor comercial dos restos desse animal pré-histórico é citado. Desconfio ainda que é o tipo do filme que nem chegou aos cinemas – posso ter passado batido e não reparado, admito – de tão desencontrado está do que esperam as atuais platéias, e onde resta muito pouco espaço entre um Lanterna Verde e um Capitão América.

O fato é que este Mamuth, em exibição do canal Telecine Pipoca (!), faz a partir daquele plot simples descrito no primeiro parágrafo da postagem um estudo sobre as ansiedades do mundo atual como raramente se vê. Lembra muito uma direção do mexicano Alejandro González Iñarritu, embora soe menos agressivo visualmente. Mas, descontado o caráter menos desagradável das imagens, não o despreze porque, de fato, não é menos incisivo. Talvez desça mais fácil – e só.

O panorama resultante é mais ou menos este: o jovem empresário, transladado de lugar e de realidade, passa a enxergar as inutilidades que o seu mundo original está a espalhar pelo mundo restante, por mais diverso que seja se estamos falando do contraste entre a vida escalonada de uma grande cidade americana e a escaldante calma dos litorais asiáticos. A esposa entra em crise ao perceber, simultaneamente, que não pode garantir a vida de uma criança agredida pelos próprios pais tanto quanto não consegue manter uma comunicação com a própria filha que, por sua vez, só tem olhos para a babá filipina que, para ter renda capaz de garantir o futuro dos filhos vive longe deles sem chances de retorno.

É mais que um caso de duplo desamparo materno (ou triplo, como se vê mais à frente no filme) – é um sintoma coletivo de tudo o que vai mal no mundo atual e da busca feita por multidões dispersas e desorientadas de encontrar um novo rumo diferente do padrão de vida humano meramente fabril e economicamente produtivo que, com esta ou aquela variação, vai tomando conta de todos os continentes. Claro que os fatos desencadeados no filme vão empurrando essas angústias para as resoluções possíveis, de maneira que a babá, por exemplo, é forçada a repensar o que seria aquele futuro idealizado que deseja garantir aos filhos – aquele progresso tipo um ponto zero que só agora começamos, na ficção e na realidade, a relativizar.

E se o post está tropegamente soando filosófico demais e metafísico de muletas, é apenas porque o filme em questão assim pede. Um filme, como se vê, pouco recomendável à parcela – grande parcela, infelizmente – do público que confunde a bonança material dos dias que correm com qualquer tipo de realização. Um filme inconveniente, talvez mais do que aquele outro em que o americano derrotado na eleição presidencial tenta chamar atenção para o meio ambiente. Aqui, a ecologia humana já é o bastante para nos tirar o sono, caso a gente insista em viver como quem trabalha, come e dorme de olhos fechados.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Os discos mais aguardados do verão pernambucano



A agência SOPÃO de notícias inteligentes, bem humoradas, instigantes, realistas e divertidas separou para os leitores deste blogue o petardo abaixo, direto do Diário de Pernambuco. Segue:

Os próximos meses, até o fim deste ano, vão ser intensos para a música pernambucana. Pelo menos três dezenas de álbuns devem chegar às lojas até lá. Entre os artistas que vão apresentar seus novos trabalhos estão Nação Zumbi, Mundo Livre S/A, Otto, Siba, Junio Barreto e Mombojó. A quantidade de discos só não é ainda maior por conta do atraso na divulgação do resultado do Funcultura, o principal edital de estímulo à produção artística pernambucana, que deve sair até outubro. A Orchestra Santa Massa, por exemplo, foi um dos grupos que adiou para 2012 a produção de seu novo disco. Confira a seguir alguns dos álbuns que prometem ser a trilha sonora do verão pernambucano:


Mundo Livre S/A

As lendas da tribo Toshi Babaa é o nome do novo trabalho da banda Mundo Livre S/A, que deve chegar às lojas até novembro. A produção é assinada por Dudu Marotti, Pupillo (baterista da Nação Zumbi) e Léo D (novo tecladista da banda).

Otto
Enquanto ainda divulgava Certa noite acordei de sonhos intranquilos, Otto já falava do seu projeto The Moon 1111. E, desde então, já tinha data de lançamento: 11 de novembro de 2011. Parte do álbum está sendo gravada no Nascedouro de Peixinhos. Dengue, Fernando Catatau e Toca Ogam participam do disco.

Vitor Araújo
Com o título de Angústia, o jovem pianista Vitor Araujo lança em novembro seu novo trabalho solo. O concerto para piano, escrito e composto pelo pernambucano, já está sendo apresentado em São Paulo, integrando música, poesia, cinema e teatro.


Johnny Hooker

O nome do disco que Johnny Hooker coloca nas lojas e na íntegra na internet no dia 5 de outubro é Roquestar.


Junio Barreto

O novo trabalho de Junio Barreto chega às lojas na primeira semana de outubro, mas já está disponível no site www.juniobarreto.com. O videoclipe do single Setembro - que também dá nome ao disco - foi dirigido por Pedro Severien e Rodrigo Campos e pose ser visto aqui.


Lula Queiroga

Ainda não tem data certa para Todo dia é o fim do mundo, novo trabalho de Lula Queiroga, chegar às lojas. Mas o trabalho já está em fase de masterização e o lançamento deve acontecer entre outubro e novembro. A capa do disco já foi divulgada.


Tibério Azul

Produzido pelo Sunga Trio (Chiquinho, da Mombojó, Homero Basílio e China), Bandarra é a estreia solo de Tibério Azul, vocalista da banda Seu Chico. O disco sai pela Joinha Records e a festa de lançamento será em 6 de outubro, no Espaço Muda. O primeiro clipe já está na internet, com direção de Gabriel Mascaro.


Nação Zumbi

O próximo lançamento da banda pernambucana é cercado de mistérios. As participações ainda não foram divulgadas, nem o nome do álbum. De certeza mesmo, é que ele deve chegar nas lojas até novembro.


Volver

Desde que a banda pernambucana Volver se mudou para São Paulo, seus fãs - muitos e bastante apaixonados - esperam pelo sucessor de Acima da chuva. A próxima estação chega até o fim do ano e já tem single (Mangue beatle) no site..


Mombojó

Está sendo gravado no estúdio da Trama - que transmite as sessões ao vivo, pelo site TramaVirtual.com (aqui)-, o primeiro álbum gravado todo ao vivo - sem ser instrumento por instrumento - pela banda Mombojó. O lançamento celebra os dez anos do grupo. Deve sair em dezembro.

China
Moto contínuo já está disponível para download desde o dia 31 de agosto, pelo site da TramaVirtual (aqui), mas o CD chega às lojas em meados de outubro, com lançamento no festival No ar: Coquetel Molotov. Produzido pelo próprio China, traz participações de Tiê, Pitty, Lenine. Também vai sair em vinil, em edição limitada.

Cassio Sette
O medo da dor, primeiro disco de Cassio Sette, tem produção de Areia, baixista da Mundo Livre S/A. Conta com dez faixas, sendo uma delas composta pelo próprio
Cassio (O destino). Chega às lojas nesta semana.

Eddie
Veraneio é o nome do novo álbum da banda Eddie, que deve ser lançado até o final de outubro. São nove faixas, e pelo menos duas já são tocadas nos shows da banda: Nossa cor, parceria com Lirinha, e Parque de diversões, com Fabio Trummer com Erasto Vasconcelos.

Karina Buhr
É no próximo mês que chega às lojas o novo trabalho da cantora Karina Buhr. Na semana passada, foi lançado o videoclipe do primeiro single, Cara palavra, dirigido por Jorge Bispo, e gravado em uma passagem da cantora pelo Marrocos.


Siba

O músico pernambucano Siba Veloso já está fazendo shows em São Paulo do seu novo projeto, batizado de Avante!, mas o disco só sai no próximo mês. O álbum traz uma sonoridade mais elétrica e urbana, em formato de quarteto, com a colaboração de Fernando Catatau, do Cidadão Instigado.

Por Carolina Santos, do Diario de Pernambuco.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Pina, por Wenders

Vale a pena parar tudo o que se estiver fazendo para apreciar o trailler de "Pina", o filme em 3D que Wim Wenders rodou sobre a dança da coreógrafa Pina Bausch. Mesmo em duas dimensões, a amostra que está disponível no YuoTube já dá uma idéia do que será este espetáculo no novo formato que o cinema vem adotando:


Dez teses sobre Natal



O SOPÃO também republica aqui, como fez com a Lurdinha de Caetano no post anterior, o instigante texto de Alyson Freire sobre o complexo de provincianismo que alimenta os intelectos natalenses, ao mesmo tempo em que o absolve de qualquer porção de mediocridade. Raramente alguém conseguiu analisar Natal com o desprendimento com que este texto o faz: e é no soltar as pedras das mãos carregadas de razão que o autor consegue abrir os olhos para a cidade real, defeitos incluídos, claro. Frases como "Natal vive da insatisfação de ser Natal" são tão lapidares que deveriam estar inscritas no portal que Wilma mandou fazer na entrada da cidade e outras gestões trataram de demolir - dois movimentos que, embora antagônicos, acabam tendo o mesmo signifiado, mas isso já é outra história. Ao texto:

Por Alyson Freire
NA CARTA POTIGUAR

Não há melhor maneira de descrever Natal do que segundo as coisas que seus próprios habitantes não param de repetir sobre sua cidade. Assim como em outros lugares, também em Natal, cristalizaram-se e generalizaram-se algumas atitudes emocionais poderosas. Os natalenses reprovam, com convicção, traços e hábitos que seriam inerentes a este pequeno pedaço de terra espremido na esquina do atlântico; o provincianismo arraigado, a mesquinhez camuflada de extravagância de suas classes abastadas, o gosto cultivado pelas classes médias locais por tudo o que é capaz de aparentar e enganar, o comodismo e a insensibilidade de seu povo, entre outros traços mais. O que distingue Natal de todas as outras capitais consiste na afinidade e na naturalidade com que seus habitantes convivem com a insatisfação de estarem onde estão; isto é, a intimidade com as poderosas associações negativas sobre as quais construíram e fundaram a autoimagem de sua cidade e população.

*

Natal é uma cidade melancólica, e não a cidade do prazer, como um dia quiseram nos fazer acreditar. Só conhece a melancolia de Natal que cresceu em seu regaço. Seus futuros tão prometidos por publicitários, empresários e políticos, como ramos secos, nunca se realizam. Cidade da falta. Natal é apontada por seus próprios filhos como desprovida de cultura e identidade próprias. Cidade da ausência, de filhos ilegítimos e órfãos de verdadeira cultura, assim a concebem seus próprios moradores. O existir para os natalenses é sempre uma questão de ausência; é da falta que irrompe todo sentido sobre o seu ser: a falta de cultura, a falta de identidade, a falta de alternativas, a falta de um senso urbano metropolitano, de civilidade e cosmopolitismo verdadeiros. Os outros – pernambucanos, paraibanos e cearenses – lhes são como espelhos negativos nos quais os natalenses vêem menos o que não são e mais o que lhes falta. O espelho, impiedoso, não lhes devolve com claridade os traços e contornos que seriam seus. Sua identidade é como uma imagem refletida num espelho desfocado. A inautenticidade é o que reluz mais radiante no olhar dos natalenses.

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Nenhuma outra cidade é tão ferozmente ressentida consigo mesma quanto Natal. Esta só existe através da fala de seus habitantes, em suas queixas e frustrações. Por isso, Natal é mais a cidade que se descreve, do que a cidade que se vê; ela é, antes de qualquer coisa, o seu discurso, ou pelo menos, vive do seu próprio discurso ressentido. Natal vive da insatisfação de ser Natal. Ela é uma cidade que tem medo de se realizar, e, por isso mesmo, deseja ser menor do que realmente é, mais provinciana e menos moderna do que realmente é. Suas muralhas são os seus próprios medos. Seus obstáculos são os seus autoenganos acerca de si mesma.

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Por aqui, moderno e província coexistem, se interpenetram, lutam e se repelem conflituosamente e sem síntese. Estranho paradoxo esse, mas que diz algo de fundamental com respeito à autoimagem dessa cidade. É sua ambigüidade, a violência do contraste observada no jogo entre o frívolo e o ressentimento, a alternância dos contrários, a tensão espiritual entre a extravagância e a excitação alienada de seus cidadãos-blasés com o permanente estado de mal-estar e deslocamento com o qual convivem diariamente parte de seus cidadãos descontentes, que conferem, por assim dizer, a dinâmica da qual nasce o “espírito” da capital do Rio Grande do Norte.

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De sorte que Natal é simultaneamente a Natal das cadeiras e fofocas nas calçadas e do apreço por padres, médicos e advogados de renome, e a Natal das passarelas e travessias por onde os passantes inquietos escoam apertados e encolhidos e os olhares se cruzam sem quase nunca se fixar. É a cidade que se diz hospitaleira, calma e pacata, mas é também a cidade do automóvel, regida, como qualquer outra metrópole, em sua orquestra diária pelos sinais de trânsito, muito embora seu tamanho real afirme sua vocação pra bicicletas. É o provincinismo compartilhado de Natal que impede que se veja o quanto há de moderno nessa cidade, sacudida e revirada de fio à pavio desde os empreendimentos mobiliários aos fluxos transnacionais de modas, corpos, perversões e desejos; uma cidade globalizada pelos sites pornográficos e pela prostituição. Nosso provincinismo é essa atitude emocional habitual de envergonhar-se e encolher a si mesmo para negar nossa modernidade.

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A cidade de Câmara Cascudo, deste que se definia como um “provinciano incurável”, também conheceu Mario de Andrade e Jorge Fernandes, esse último o nosso poeta modernista. Cidade das contradições e contra-sensos, das dubiedades e incongruências, de “vaqueiros motorizados” e “dandis jecas”.

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Esta é também a cidade dos modismos. Nela nada dura o suficiente, e quase tudo é irritantemente passageiro e efêmero. Tudo se consome num prazo de dois verões. Ninguém cultua tanto o novo como o natalense; os novos bares e boates, os novos restaurantes, casas-de-show e teatros em shopping’s centers. Tal é, em geral, que cada novidade é veementemente celebrada, agitada, propalado às raias da comoção pública, pois significa mais uma ocasião para a ostentação e para o esporte predileto dos natalenses, a exibição, pois não se sabe ao certo o quanto essa mais nova novidade irá durar.

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Aqui a aparência tem que ter sempre razão. Nesta cidade quase todos são vigiados pelo colunismo social. Por toda parte se estar cercado por um sem número de colunistas sociais ordinários que, por cima dos ombros, espiam sorrateiros de quais roupas, marcas, amigos e objetos seus vigiados se cercam. Aqui, nutrimos um gosto pelo acusatório, uma predileção por gestos reativos e pelo ressentimento semi-esclarecido. O ressentimento é o elemento intelectual desta cidade. Não se enganem, Natal é a mais pequeno-burguesa das cidades brasileiras, pois seus conterrâneos não cessam de atribuir à culpa e o mal aos outros – políticos, imprensa, o povo etc. – sem perceber como absurdo sua própria autoexclusão do contexto que denunciam.

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Grande parte dos natalenses sente-se mal em sua própria casa, mas porque, de alguma maneira, se concebem como maiores, melhores e mais verdadeiros do que o restante da cidade. Os natalenses, em sua porção média, são estrangeiros em sua própria terra; dizem estar de passagem, de partida pra não sei onde – talvez para alguma cidade no Canadá. Porque Natal, em seu provincianismo e artificialidade, não os cabe, nem os merece e tão pouco os aquilata em sua singularidade e autenticidade.

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Nossa vocação política é fabricar cartões-postais artificiais. Esta é uma cidade que não sonha porque nunca desperta. Natal não é nada do que fez crer – e desejou crer – de si. E, assim, aprendeu a conhecer somente medos e dúvidas, frustrações e fracassos. Uma cidade impossível…

Lurdinha



O SOPÃO republica a coluna de Caetano Veloso da edição do último domingo do jornal O Globo, em que o músico, cantor e compositor constroi um sensível registro do momento em que sua história pessoa cruzou na mesma esquina com integrantes das guerrilhas que reagiam à ditadura brasileira nos anos 60. Prepare o coração para o último parágrafo de um relato que tem tudo a ver com o debate em torno da criação da Comissão da Verdade. Aqui, mais que verdade, temos sentimento e humanidade. Ao texto:

Paulinha Lavigne, que foi minha mulher e é minha empresária (portanto tem de me conhecer um bocado), riu muito ao me ler aqui contando que quase colaborei com a luta armada. Mesmo Dedé, que era minha mulher no tempo em que essas coisas se deram (e que é minha amiga queridíssima), poderá ter se surpreendido: não me lembro de ter dito a ela sobre o esboço de combinação que fiz com Lurdinha de dar apoio logístico à guerrilha. Ambas devem estranhar que um banana de pijama como eu, que, como disse o brilhante Lobão numa pocket-palestra, toca violão como quem está tomando um cafezinho (embora eu não tome cafezinho), pudesse estar ligado, ainda que remotamente, a atos de violenta bravura.

Lurdinha era minha colega de sala na faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. A turma era muito pequena. Os professores não despertavam entusiasmo. O interesse em ir à faculdade se centrava nos encontros com Wladimir Carvalho e Fernando Kraichete e nas conversas com Rose Foly no Diretório Acadêmico. Lurdinha, no entanto, com sua genuína vocação para a disciplina, assistia às aulas e executava as tarefas curriculares com pontualidade. Várias vezes ela foi me buscar em casa, fazendo arrancarem-me da cama às pressas, para que eu não perdesse uma prova. Ela era comunista e olhava com benevolência meu jeito boêmio.

Wladimir também era comunista. Todos os meus amigos na faculdade — e fora dela — eram de esquerda. Nenhum iria ao Cine Roma assistir a um show de rock de Raulzito e os Panteras. Íamos ao clube de cinema, ao MAM, ao Teatro dos Novos, aos concertos da Reitoria, ouvíamos João Gilberto e Thelonious Monk. Rock era lixo e anátema. Carlos Nelson Coutinho era nosso contemporâneo na faculdade e já escrevia artigos sérios: era o lado teórico do movimento que crescia no período pós-Jânio e pré-ditadura . Quando surgia uma discussão sobre se Luís Carlos Maciel escrever um livro sobre Kafka e Beckett representava alienação, eu sempre me posicionava do lado dos malucos: embora só tivesse lido “A metamorfose” e os contos “Na colônia penal” e “O faquir” (estes, na revista “Senhor”) — e nada de Beckett — eu tendia a gostar dos artistas insubmissos a programas que deveriam servir a alguma “ditadura do proletariado”. Apesar da minha teimosia em não entrar em grupo nenhum, eu era tratado com simpatia. O Centro Popular de Cultura da UNE local me pediu que escrevesse um samba para um bloco de carnaval engajado. Fiz “Samba em paz” — que veio a ser gravado, anos depois, por Elis.

O que mais impressionava em Lurdinha era sua sobriedade. Ela não exibia retoricamente a força de suas convicções: seu despojamento pessoal, sua lealdade inabalável, sua decisão de não perder tempo com discussões decorativas é que mostravam a firmeza de sua orientação política.

Quando nos jogamos no tropicalismo, Lurdinha tinha se casado com o pintor Humberto Vellame e se mudado para São Paulo. Entre móveis de plástico transparente e manequins de fibra de vidro, tínhamos, Dedé e eu, em nossa sala, um quadro de Vellame. O casal nos visitava de vez em quando. O tropicalismo tinha uma fome estética de violência que se traduzia em imagens fortes nas letras, sons elétricos e distorcidos nas bases, aproximação com a vanguarda radical da música clássica, contraste gritante com a bossa nova. Isso correspondia a uma impaciência com a inatividade dos comunistas sob ordens de Moscou e a uma identificação com a nascente dissidência liderada por Marighella. Faz pouco Juca Ferreira me alertou para o fato de que não toda a esquerda era hostil ao tropicalismo: dentre a turma da Lubelu (Liberdade e Luta) havia quem gostasse do nosso estilo. Lurdinha — que nunca fez coro às reações antipáticas ao nosso trabalho por parte da esquerda — sentia a mesma impaciência que eu. Só que ela nunca fora nem boêmia nem retórica: seu sentimento tinha de se expressar em ação. Quando ela me pediu um eventual apoio logístico, acedi de imediato.

Em "Verdade Tropical" digo que se a nossa revolução de esquerda tivesse vencido talvez daí saísse apenas mais um gigante com câimbras. Mas Marighella foi morto numa rua de São Paulo antes que isso se tornasse ao menos provável. E pela mão de Sérgio Fleury, o truculento policial que, em entrevista à revista“Realidade”
nos anos 70, disse da “Baixinha” que estivera sob tortura: “Maria de Lourdes do Rego Mello: Está aí uma das moças mais corajosas que vi na minha vida. De uma lealdade e segurança impressionantes. Nunca se deixou trair nos interrogatórios, nunca arrancamos dela uma palavra que levasse ao ‘Velho’ (Joaquim Câmara Ferreira, o ‘Toledo’). Foi seguida durante 60 dias, filmada, fotografada, até que foi presa. Essa moça recusou ir para o Chile, na troca com um embaixador. Quando soube disso, eu a chamei até minha sala. Disse: ‘Olha aqui, Baixinha, você mentiu para mim o tempo todo. De tudo quanto disse, 99% era mentira. Mas gostei de sua atitude. Aceito as suas mentiras. Agora deixo você em paz.’”

Desde que fui preso e exilado, eu não tinha notícias de Lurdinha. Temia que ela não estivesse viva. Foi o blog “Obra em progresso”, da feitura do Zii e Zie, quem a trouxe de volta. Um dos comentaristas, Julio, tinha o sobrenome Vellame. Perguntei se ele era parente de Humberto. Ele respondeu: “Sou filho de Lurdinha, Caetano.” Assim, a internet de Hermano Vianna me reaproximou da Maria Quitéria da guerrilha urbana.

*A ilustração do post é um still do filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha. Mais que uma referênci visual à Lurdinha de Caetano, é apenas uma boa imagem para comentar sem palavras a necessidade da Comissão da Verdade.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Fala, Tiririca!


Como eu não prometi nada, o que fizer é lucro. Noves fora a idéia de que exercer um mandato parlamentar é "fazer" alguma coisa, mais uma vez o nobre deputado Tiririca construiu uma frase definidora da política representativa brasileira no que ela tem de mais essencial. Fosse dita por um Cristovam Buarque, um Pedro Simon, e descontado o caráter linguístico marcadamente popular da segunda parte da frase, estaria ela sendo brandida, como um estandarte da decência, por todos os novos profetas do Brasil anticorrupção que marcaram o sete de setembro seco e fervente de Brasília.

Pena que tenha sido pronunciada por Tiririca, o mais incapaz dos brasileiros para exercer o mesmo mandato parlamentar de onde ele tem retirado essas pérolas. Acusado de analfabetismo (o que é bem provável que seja mesmo, mas isso só recobre suas frases de uma camada a mais de brilhantismo), repudiado pelos bem-pensantes, identificado como palhaço-deputado ou vice-versa, pois vem justamente de Tiririca essas conclusões que, entre toneladas de palavras despejadas todo santo dia na tribuna do Plenário Ulisses Guimarães, destacam-se como um sol solitário no sistema nem um pouco solar da algaravia parlamentar de cada dia.

Aqui se trabalha muito, mas se resolve muito pouco, foi mais ou menos essa a frase anterior com que Tiririca começou a desvendar, com 500 anos de atraso, a lógica perversa da democracia representativa à brasileira. Agora ele se sai com uma nova sentença, igualmente reveladora como a anterior e, com isso, vai construindo um mandato que cumpre à risca aquela que seria a promessa implícita na sua provocação, digo propaganda, eleitoral: você saber o que faz um deputado federal? Vote em mim que eu lhe digo. Dito e feito.

O curioso é que Tiririca, tido como vulgar produto do que mais atrasado existe no público eleitoral brasileiro, dispara suas frases emblemáticas com a parcimônia dos budas, a sapiência em gotas de um Dalai Lama. Se a imagem que se tem dele, pelo menos a pré-eleitoral, é exatamente o oposto disso, tanto mais impactante se fazem as frases que vai soltando ao vento, de maneira esparsada como convém às setenças que, tão carregadas de significado, exigem tempo para que possam ser lidas em sua totalidade.

Tiririca, com suas três frases lapidares (Vote em mim se quer saber o que faz um deputado; Aqui se trabalha muito e produz pouco; Como não prometi nada o que fizer é lucro) vale por um curso de ciência política dado por quem menos se espera; elimina no altar das evidências o preconceito de que foi vítima ao ser acusado de analfabetismo por uma revista semanal que estampou sua cara na capa como sinônimo do nível de Congresso que acabáramos de eleger; obriga o país a dar a cara à tapa ao reconhecer que pode sim vir do menos equipado intelectualmente a análise mais sintética do sistema político. Curiosamente, e para reforçar, um sistema que o acolheu muito mais como expressão de desvio do que como exemplo de mérito.

Tiririca e suas frases é isso: como pingos de sabedoria empírica extraídas a fórceps do processo político por um homem comum que, de tão brasileiramente baço, não se intimida diante do sistema. E o traduz como se fora um iluminado a quem todos, cegos de preconceito e bom gosto, fecham os olhos para não ver.