domingo, 23 de dezembro de 2007

A graça da imperfeição


Antes de Cecília e Bernardo, sempre tivemos árvores de Natal razoáveis aqui em casa. Razoável quer dizer nem muito grande nem muito pequena, medianamente enfeitada, sem que a gente fizesse desse hábito um ritual caseiro do tipo missa do Galo. Era como se a gente fizesse, sim, em torno da obrigação silenciosa de ter e preparar a árvore de Natal, uma espécie de celebração mínima como aquelas que a igreja seridoense realizava nas manhãs de segunda-feira e a que se dava o nome de "missa do agricultor". Uma liturgia com a simpatia matinal do homem do campo, que também fazia muito sucesso na transmissão da Rádio Rural de Caicó, que levava seus cânticos e orações para todas as cidades e sítios da região. Mas essa já é outra história.

Retornemos à missa daqui de casa em torno da árvore de Natal. Este, como vocês sabem, é o segundo (apenas o segundo, vejam só) Natal de Cecília - e o primeiro em que já tem um discernimento maior do que representam essas luzes, essas festas e também esse compra-compra todo, que ninguém é de ferro. Também é o primeiro Natal de Bernardo, nosso gordinho cada dia mais simpático que não está nem aí para o fato de não entender nada - é apenas um bebê em transição para o estágio de criança que arregala os olhos maravilhado para tudo. Luzes de Natal, então, nem se fala.

Pois bem: chegou dezembro e fomos atrás da nossa última árvore de Natal. Antes dos meninos, já tivemos uma nem grande nem pequena, eu dizia, mas com certeza maior do que a atual - que foi comprada assim meio que para manter o hábito. Vocês hão de nos dar licença para superstições que não oferecem perigo nenhum a não ser a nós mesmos, não é? O fato é que, recuperada a caixa velha no armário de garagem, nos demos conta que a árvore atual é pequenininha, feinha, sem graça - e os efeites, vocês sabem, todo ano a gente guarda tudo com cuidado só pra descobrir no ano seguinte que oitenta por cento deles sumiram. ("Cadê aquela anjinho com cara de Charles Parker que no lugar de arpa tocava safoxone? E que fim levaram aqueles pacotinhos de presentes de mentirinha, que eram tantos e agora não há nenhum?")

Pensamos em comprar uma nova árvores, mais vistosa, pra agradar Cecília. Mas, assim como quem não quer nada, resolvemos mesmo assim ir montando a velha, digo, a atual. Pois não é que, além de sem graça, pequena e já um tanto quanto empenada pelo vai-e-vem da sala pra garagem a tal da árvore ainda estava incompleta? Ganha um Papai Noel inflável gigante (daqueles que matam Cecília de susto) quem advinhar qual a parte que faltava... Isso mesmo, o ganho do topo da árvore, aquele mais nobre, onde penduramos o enfeite mais consagrado, um super-anjo turbinado, um Papai Noel diferenciado (se é que isso ainda é possível) ou um laço de solteirona desiludida.

Você deve estar pensando que aí sim a gente decidiu mesmo comprar outra árvore, mais vistosa- ou ao menos completa, o que seria o mínimo. Pois errou: parece que justamente por incompleta a gente se apegou ainda mais à velha, digo, à atual árvore. Cecília nem ligou para a falta do galho nobre - pra falar a verdade, passou metade do tempo da montagem da árvore se enfeitando com uma corrente de bolinhas brilhosas que transformou em colar gigante. E nós, árvore pronta, digo, incompleta mas concluída, nos demos conta de uma coisa chamada "graça da imperfeição". É, meus amigos, nem tudo precisa ser cem por cento novo, turbinado, redimensionado, caro, última geração, de ponta ou com se chama esse tipo de coisa ultimamente. A velha, digo, atual árvore, cumpriu - vem cumprindo e assim vai continuar até o próximo dia seis - seu papel de avisar a Cecília e Bernardo que estamos num período diferente do ano, onde convém a gente prestar mais atenção a certos fatos da vida. Um tipo de atenção que nem sempre temos tempos ou disposição de alimentar.

E ademais, manter a velha, digo atual árvore, ajuda Cecília e Bernardo a perceberem, já desde pequeninhos, que o valor de uso das coisas por ser muito maior do que nos impõe a vã publicidade do nosso mundo veloz e ansioso. Pra nós, eu e Rejane, a árvore atual (já não preciso chamá-la de velha) ensina que o imperfeito também tem sua beleza, fazendo da vida de todo dia um somatório do que pode ser feito, com contabilidade final sempre positiva. Ainda que por um ponto, uma decimal, uma vírgula.

Feliz Natal perfeito ou imperfeito pra vocês também.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

As horas do sertanejo

1h - primeiro canto do galo
2h - segundo cantar do galo
3h - madrugada
4h - madrugadinha (ou amiudar do galo)
5h - quebrar da barra
6h- sol fora
7h - uma braça de sol
8h - sol alto
9h - hora do almoço
10h - almoço tarde
11h - perto do meio dia
12h - pino ou pingo do meio dia
13h - pender do sol
14h - viração da tarde
15h - tarde cedo
16h - tardinha
17h - roda do sol para se pôr
18h - pôr do sol ou ao sol se pôr
19h - aos cafus
20h - boca da noite
21h - tarde da noite
22h - hora de visagem ou noite velha
23h - perto da meia noite, frio ou frião da noite
0h - meia noite
No sertão antigo, o que faltava em tecnologia sobrava em poesia. Ao menos no que se refere à bela nomenclatura das horas. A lista acima está em Câmara Cascudo (Tradições populares da pecuário nordestina), mas a encontrei transcrita nas notas de "Velhos costumes do meu sertão", o livro do seridoense Juvenal Lamartine que o Sebo Vermelho reeditou em agosto de 2006. Aos interessados, está à venda na livraria do Midway (Natal).

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Nas sombras de Casablanca

Todo mundo já escreveu alguma coisa sobre esse filme. Dele já se falou bem, mal, bem mal. Ele já provocou tanto deslumbramento quanto um certo enjôo, já foi acuasado de ser só uma peça de propaganda, já passou nas sessões cult da madrugada na tevê aberta de antigamente, já foi colorizado (foi?), já banalizou uma música tão bonita, mas também fez jus a ela e por aí vai a cantilena eterna que mantém tinindo as imagens de "Casablanca". Um dia eu também cometi umas palavras sobre ele, que reencontrei dia desses e boto aqui à disposição da paciência de vocês.

Fumaça, ironias e simulacros

Praticamente tudo já foi dito sobre Casablanca. Fenômeno cult, este filme já foi estudado, devassado, desconstruído, analisado à exaustão. E visto e revisto muitas vezes – e em cada vez se descobre um detalhe novo, uma remissão nos diálogos ou nas imagens a outras imagens e outros diálogos. Aquelas analogias visuais e dramáticas que um bom roteiro – e um bom filme – põem para dialogar. Sem falar na acidez irônica dos diálogos propriamente ditos, com aquele primor pernóstico tão freqüente no cinema noir. A edição de Casablanca em DVD oferece mais uma chance para o espectador investigar essas conversações internas do filme. E algumas novas (inesgotáveis) constatações aparecem.

Casablanca tangencia uma rica discussão sobre jogos de aparência. Nada é o que aparenta naquela cidade-território-livre-em-plena-vigência-do-nazismo. Rick não é aquele bloco de gelo seco que aparenta enquanto desfila pelo esfumaçado café que administra. Logo se revela um sentimental de fazer corar qualquer amante latino. O capitão que zela (!) pela ordem na cidade vê tudo, entende tudo mas flutua pelo filme inteiro falando meias-verdades. A cena em que ele manda fechar o café dizendo-se chocado com a jogatina ilegal é um primor (no mesmo momento, ele recebe sua parte no butim da jogatina que malandramente condena). O líder da resistência, Lazlo, faz vista grossa para o caso de amor de sua mulher com Rick, num jogo que põe no mesmo tabuleiro as relações amorosas e as negociações políticas.

Na boa literatura, o fundamental nunca é dito. Expressa-se por outros canais. Um gesto, uma palavra fora de lugar, um deslize. Casablanca, neste sentido, é quase literatura (não chega a ser porque mais cedo ou mais tarde o encontro de Ilsa com Rick põe os pingos nos is, degelando o clima geral). Um pouco mais, um passo além, e o filme ficaria no terreno puro (supostamente neutro, como a cidade de Casablanca) do simulacro.

E como complemento (nem na milésima vez em que o filme é visto a fruição se detém em um ou dois detalhes) há a composição das imagens, num pictória inacreditável, que o espectador custa a crer se deva a equipamentos eletrônicos como câmeras e luzes. Cada plano é um painel deslumbrante e revelador. Mesmo nos closes (e principalmente quando o close é do rosto de Ingrid Bergman, concebido para ser enquadrado por uma câmera). Cada rolo de fumaça cumpre sua função. Só pra destacar algumas dessas imagens, lembre-se daquela em que se vê Sam tocando o piano em planos gerais do Rick Café. Os melhores fotógrafos dos grandes músicos de jazz não fariam melhor.

Não há palavras para descrever a beleza e o poder expressivo dessa acuidade visual de Casablanca. E olhe que quase tudo já foi sobre este filme.

Dose dupla

Em atenção ao restrito mas muito valioso grupo de leitores que este blogue formou ao longo deste primeiro ano, e levando em conta reclamações mui justas que tenho recebido, como a de Jesus e a de Ana Nossa Mana, e ainda considerando que o problema que move esse comunicado poderá ser definitivamente solucionado em breve, informo:

1) Estou ciente das dificuldades de vocês para conseguir enviar comentários ao blogue. Jesus reclamou, Nossa Mana também, eu mesmo um dia, informado do fato, tentei colocar um comentário como se não fosse cadastrado no blogger e não consegui;

2) Não me agrada nenhum tipo de exclusão: assim sendo, agrada-me sobremaneira a hospedaria antiga do blogue, que disponibilizada para o leitor o espaço para o comentário sem maiores exigências;

3) Mas também não quero desperdiçar a bela template que Marcya Reis fez com tanta atenção;

Então, juntando esses outros considerandos, informo finalmente que:

Parágrafo Único: a partir de agora, vou postar textos e fotos tanto aqui quando no blogue antigo, o sopaodotiao.zip.net. De maneira que se alguém não conseguir mandar comentário aqui, conseguirá mandar por lá. E eu estarei sempre consultando o retorno de vocês nos dois.

Parágrafo Intrometido só para contrariar: já falei com Marcia e, quando o ruge-ruge do fim de ano e do começo do ano novo passar e ela tiver tempo, realmente tiver tempo de sobra pra gastar com matéria da natureza deste Sopão, vai tentar fazer uma adaptação do leiáuti do novo Sopão para a página do antigo, abrigado no UOL. E aí, se tudo der certo, eu fecho a versão BLOGGER e mantenho só a original. Mas, fiquem tranquilos, que eu aviso antes.

Por hora, vocês ficam informados: tanto podem ler o
SOPAODOTIAO.BLOGSPOT.COM
quanto o
SOPAODOTIAO.ZIP.NET

Tá bom assim, pessoal?

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Sopão - 1 ano (meu presente)

Hoje chegou um comentário aqui no Sopão (na verdade, veio para o Sopão da "primeira temporada", abrigada no uol) que vale por um presente de Natal. Ou como um presente que o próprio Sopão recebe ainda à sombra de seu primeiro aniversário. Foi um comentário de Adriana Falcão que, não sei como, acabou sabendo de um texto antigo, escrito num jato de palavras pouco depois de eu acabar de assistir ao filme "A Máquina", feito com base no texto original dela por João Falcão, seu companheiro.

Segue o texto do comentário:

"Há muito tempo não leio o que sai sobre o filme A máquina, porque geralmente não fico feliz quando faço isso. Hoje descobri o seu texto e o dia mudou. Ficou em mim a impressão que você entende melhor o que quisemos passar para os outros até melhor do que nós mesmos. Parabéns e obrigada

Adriana Falcão"

Achei que vale a pena reprisar o texto sobre "A Máquina", que segue abaixo:

As máquinas de "A Máquina"

"A Máquina" é um liquidificador de estilos onde cozinheiros de imagens colocaram para triturar nacos generosos de tubérculos visuais do tipo "O Auto da Compadecida", "Lisbela e o Prisioneiro", "A Invenção do Brasil", "Hoje é dia de Maria", um pouco até de "Armação Ilimitada" e outras manufaturas da fábrica de Guel Arraes, dos armazéns de Luiz Fernando Carvalho e dos depósitos de outros fabricantes de um imaginário afim, como o brincante teatral Antônio Nóbrega ou a alma popular que empresaria o Bloco da Saudade no carnaval pernambucano.

"A Máquina" é o processo de liquefazer tudo isso num sumo cinematográfico que resuma todos esses sabores visuais sem a preocupação restrita de ser tv, cinema, teatro ou festa interiorana.

"A Máquina" é Paulo Autran dizendo o texto genealógico de Adriana Falcão, que vai às últimas conseqüências para contar como nasceu seu herói Antônio. Um conto que escava as mais invisíveis raízes das narrativas para lembrar que, só pelo fato de existir, um simples personagem resume em si todo o mistério e o absurdo da existência da humanidade inteira.

"A Máquina" é um ator capaz de brilhar tanto e com tal falta de esforço que consegue apagar tudo em volta – o cenário, os coadjuvantes, as luzes, as cortinas, a própria sala de exibição com suas paredes e nosotros, espectadores. Wagner Moura é essa máquina instantânea de carisma e transfiguração, que faz de uma ponta um continente. O ator que transforma, pela farsa mais bretchiana, um colunista televisivo no seu avesso.

"A Máquina" é o artifício de João e Adriana Falção, que invertem o fluxo da globalização ao levar os microfones e as canoplas do mundo até o vilarejo de Nordestina – e não o contrário.

"A Máquina" é a quintessência da nova farsa cinematográfica nordestina, o supra-sumo da pilhéria, a saturação de sons e cores que as experiências anteriores formalmente se recusavam a admitir. É a peneira elétrico-popular da feira em oposição ao filtro climatizado do shopping. É o carro de som de interior enfeitado com pinturas berrantes anunciando bugigangas no cinza discreto da metrópole. É a nova parábola do êxodo forçado na era das fronteiras invisíveis só para os computadores.

"A Máquina" é o filme de João Falcão, baseado no livro de Adriana Falcão, que deu origem também a elogiada e bem sucedida peça teatral, e que, tendo sido esnobado pelos cinemas, pode ser visto agora em DVD.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Entreblogues - É assim que eles vêem a gente


Um "Entreblogues" de leitura obrigatória para quem divide com o Sopão a indignação com o abuso em que se transformou a opinião na imprensa brasileira: é a análise atenta que nosso amigo Carlos Magno Araújo, do Diário de Natal, fez de artigo publicado na Folha de S. Paulo. O assunto do artigo é a eleição do potiguar Garibaldi Alves para a presidência do Senado e, por extensão, do Congresso Nacional. Carlos Magno jogou a rede e arrastou um cardume de preconceito em forma de palavras. Na mosca. A leitura é um pouco extensa mas vale cada palavra, cada vírgula. Vejam, vejam (primeiro a análise de Carlos Magno e depois o artigo publicado na Folha):

Garibaldi e o preconceito

Tenho a maior boa vontade em entender que é papel da imprensa investigar a vida de quem está prestes a assumir cargos públicos importantes,como acontece agora com Garibaldi Filho, alçado à presidência do Congresso ao final de um processo longo e tumultuado que transformou em esgoto a casa que alguns de seus colegas chamaram um dia, quase candidamente, de Céu. Resguardando a privacidade a que qualquer um tem direito, e zelada a ética, considero que é papel da imprensa fazer, sim, essa fiscalização, e não somente balançar a cabeça, com aquela complacência cúmplice que em muitos casos e em muitos lugares costuma marcar a cobertura política. Ou seja, respeitando a regra, vale tudo, até dançar homem com homem e mulher com mulher. Esse pouco caso com o noticiário mais profundo e detalhado, digamos assim, já nos trouxe surpresas demais – Renan foi só a mais recente delas. Em resumo: levantar a biografia daqueles que cumprirão papel importante, sim. Espezinhar, abusar, aproveitar uma situação para tentar extravasar preconceitos incontidos, não. Não defendo Garibaldi. Acho até que sua trajetória política precisa ser exposta. Afinal, ele estará ali presidindo o Congresso e, queiram ou não aqueles que não votaram nele no estado, estará representando este RN de meu deus. Mas não dá para ler o artigo da página 2 da Folha de São Paulo de hoje, de Fernando de Barros e Silva, sem notar um ranço perverso de preconceito. E daí que Garibaldi parece uma figura extraída dos programas de Chico Anísio ou se assemelha ao célebre Odorico Paraguassu, da Sucupira de Dias Gomes? Se tentou colar a imagem de Garibaldi a desses personagens que fizeram/fazem parte da ficção nacional e até se incorporaram ao anedotário e ao subconsciente político, Barros e Silva poderia ter sido menos hostil. O argumento sugerido por ele, o de que o Garibaldi que esteve à frente da CPI do Fim do Mundo é bem diferente desse agora, aliado do governo, dá até pano prá manga, mas a imagem que o articulista usou pareceu criada para exalar o futum do preconceito. O noticiário da Folha, pelo menos ontem, pareceu repetir o ranço do colunista.


E agora o artigo a que Carlos Magno se refere:


Prafrentemente, pratrasmente

(Fernando de Barros e Silva)


Sai Renan Calheiros, entra Garibaldi Alves. É o PMDB em campo, com a bola cheia, cadenciando o jogo maroto do "governo popular". Finalmente abatido em seu vôo (embora absolvido pelos pares), o neopredador das Alagoas cede espaço ao coronel potiguar, representante do velho patrimonialismo a que Lula tem rendido tantas homenagens e dado tantas condições de doce sobrevida. Quando a gente não pode fazer nada, avacalha. O célebre bordão do "Bandido da Luz Vermelha", anti-herói consagrado pelo filme de Rogério Sganzerla, tem trânsito fácil no Brasil. Por que não estendê-lo à crônica política? A mim, por exemplo, que não posso fazer nada, Garibaldi Alves sugere algum personagem cômico -qualquer um- de Chico Anysio. Escolha qual você, leitor, que também não pode fazer nada. Ou estaremos diante de um novo Odorico Paraguassu, o prefeito da eterna Sucupira de Dias Gomes, alçado ao topo do Congresso Nacional? "Prafrentemente", apenas suspeitamos no que isso vai dar, mas "pratrasmente" o currículo de Garibaldi não edifica a vida republicana. É irônico, mas esclarecedor, que nosso artista estivesse há apenas dois anos à frente da chamada CPI do Fim do Mundo, aquela que se alimentava dos restos das outras e resultou numa espécie de sopão dos detritos do governo Lula, mas também do Senado. A troca de lado e o exercício de papéis antagônicos num intervalo tão curto servem como estudo de caso sobre o caráter político do PMDB. Mas também o deste governo "popular". Geddel, o arauto da democracia, que o diga. E por falar na velha senhora, Rodrigo Maia, o jovem presidente do DEM, nos desafiava ontem em artigo na página 3 da Folha: "Democratas, sim, e daí?". Adorei o -"e daí?". Só mesmo o bom PFL faria pastiche da retórica da rebeldia e da afirmação adolescente da identidade ao defender o lugar-comum da democracia. Ficou com cara de tiozão.


Como dizia o poeta, os senhores tirem as suas conclusões. E o link para o blogue de Carlos Magno, abrigado no portal do Diário de Natal, há tempos já faz parte dos "outros pratos" do Sopão, ali ao lado. Pra ler mais, é só clicar.

Cidade verde





quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Natal em Acari




Dezembro não é só festa. Até o país descansar nos feriados de Natal e Ano Novo, roda incessante e acelerada a esteira rolante de um cotidiano mal engatilhado. Trabalhos atrasados, carreiristas compulsivos tangendo manadas de subordinados, trânsito à beira do juízo final, ritual de compras que tanto faz lembrar pessoas queridas quanto embebeda espíritos tontos de ansiedade. Por tudo isso, nada mais justo do que deixar arrebentar essas ondas numa maré de qualidade mais mansa, nos bem-vindos, esperados e merecidos feriados finais. Não jogo no time dos que levam a bola em ritmo de "o país não pode parar". País que não pode parar é terra sem freios - e há uns desses, os chamados "freios de arrumação" que se têm mostrado bem úteis em anos recentes. Pois, então, meu amigo, dê um chute na culpa mercantil e prepare-se para parar. Você merece. E nessa hora, no pequeno vácuo que o universo vai lhe dar de presente, a dádiva maior será o resgate da tranqüilidade que o humano matraquear obsessivo perdeu para a verdadeira vida. Quer uma dica? Volto a repetir, sem medo de cometer o pecado da redundância: Acari, com sua festa mínima, suas luzes sóbrias, seu antifestejo caseiro à luz telúrica de paralelepípedos de papel celofane.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Sopão - 1 ano (Entreblogues)

Sei quase nada sobre Samarone Lima. Concretamente, que é amigo de um amigo (Gustavo de Castro), que vive (e como vive) em Recife (ou seria no município vizinho do Cabo?), que, como eu, estudou na Católica (onde cursei o primeiro ano de Jornalismo), que tem o hábito interessante de fazer longas viagens a pé. Por sugestão de Rejane, cheguei, via blogue de Gustavo, ao blogue de Samarone, escolhido para a sessão "Entreblogues" comemorativa do primeiro aniversário do Sopão. Continuo sabendo pouco sobre o Samarone concreto, mas a cada leitura do blogue (chamado de "Estuário") sou informado um pouco mais sobre o lado abstrato desse escrevinhador irmão, andarilho das palavras. Agora, ele também freqüenta os "outros pratos" do Sopão, para o gáudio de todos nós. Portanto, quando vierem aqui, andem também por lá que não vão se arrepender. Eis o texto que nos serve de exemplo:

"Resulta que em mim, há uma necessidade que vem das entranhas, essa de escrever. Me agonia a distância de um caderno, uma caneta, um lugar quieto para escrever, que é meu jeito de falar com o mundo. Porque em mim, escrever é ser. Sou o que a minha expressão permite. É tão orgânico, que me faz submisso. Não escrever é como um desamor, uma solidão. É o lugar do maior abandono.Às vezes, ao dia só resta atravessá-lo. Toma-se decisões, o telefone agiliza processos, a sobrevivência vai nascendo de atos que levam a alguma coisa, talvez precária. O labirinto da existência. Quando entardece, este excesso de vida prática exige novos rumores. Uma biblioteca, um café silencioso, um lugar de armistício. É possível colher alguns louros em meio às prateleiras, repleta de autores amados.Mas falta a escrita. O momento silencioso de elaborar as perdas, ganhos, fracassos, gentilezas. Aquietar a alma e deixar a mão seguir, tateando alguma cegueira nova, desconhecida.Procuro então uma biblioteca. O silêncio das bibliotecas me lembra catedrais fechadas, igrejas sem padres. Anoitece quando esbarro na biblioteca da Universidade Católica, onde estive tantas horas de minha vida. Sou barrado, porque no período das provas, só alunos e professores podem entrar. Não esboço reação. Sou um ex de quase tudo na vida: ex-aluno, ex-chepeiro, ex-professor, ex-repórter, ex-tantos.Chego a um café no pátio, onde o vento é bom. Não há tanto silêncio, mas a mesa vazia me acolhe bem. Por deleite espiritual, uso uma caneta bico-de-pena, comprada após um longo dia de trabalho. Um prêmio para meu dia, por não ter esmorecido ante aos seus rumores.Aqui, sentado, escuto as buzinas impacientes no trânsito. Talvez os motoristas não tenham descoberto que buzina não abre espaços nos engarrafamentos. Melhor vender o carro e comprar uma ambulância. Seria lindo o Recife, num desses dias de sol, com mil ambulâncias loucas, cortando sinais e causando alarde. Há, de fato, gente que vive como se a sirene estivesse ligada, a caminho de algum hospital que sequer existe. Talvez sejam as doenças da alma.Vou por aqui, anotar outras besteiras. Mas só este tempo destinado ao rascunho dessas minhas notas esparsas, que não constarão em nenhum jornal de amanhã, me acalmam o suficiente para ver o silêncio com outros olhos. Me aquieto, me acomodo, realinho algum cômodo interno. Minha paz está em minhas mãos.Sempre soube que viveria do que escrevo. Não sabia que sobreviveria do que vejo e penso, já sem os males do pudor, do excessivo cuidado com o mundo. Só me arrumo quando coloco as palavras para a vida, soltando-as em desabalada carreira.Minha ordem é outra. Minha salvação tem outras veredas. Minha bênção é esta escravidão das letras. As palavras me abençoam, me lavam. É tão pouco o que preciso, que às vezes tenho a vertigem de ser livre.Aos meus queridos leitores, estendo as mãos. Estou de volta ao nosso diálogo."

Sopão - 1 ano

Giro fotográfico com alguns dos muitos amigos do Sopão, pra comemorar os primeiros 12 meses:





De cima pra baixo: Titina (em visita a Brasília); Sandra (idem, com Bernardo e Cecília); Renato (brincando com Cecília no parquim); Gustavo, eu, Marleide, Klecius e Plácido (no almoço poti-pernambucano que fizemos aqui em casa); e os compadres Marleide e Plácido (e Barney) no fim da festa do primeiro aniversário da afilhada Cecília. CLIQUE NAS FOTOS PARA VÊ-LAS AMPLIADAS.

Sopão - 1 ano

Agora sim, 12 meses depois, a letra completa - tão curta e tão gigante - da música citada na primeira postagem:

Urubu, Gabiru, Cachorro E Gente
(da banda olindo-pernambucana "Eddie")



É uma pena que seja dentro de uma lata de lixo que se encontre

Urubu, gabiru, cachorro e gente, estraçalha o lixo com os dentes

O lixo chega, o sorriso invade a cara do povo

O lixo chega, tem comida de novo na mesa do povo

Sopão - 1 ano

Há um ano, este blogue entrava no ar, com a seguinte postagem:

Tá na mesa, povo!

Alô, desnutridos em geral, famintos em particular, esfarrapados por opção. Provem do sopão e vitaminem-se com pílulas de contemplação rotineira, do tipo que não vende jornal nem faz o sujeito pular diante da televisão. Bem-vindo à substância da observação mais pastosa, o suco do nosso alface mais perplexo, o pão daquele anticlímax tão transcendente quanto banal. Neste caldeirão nem um pouco fervente vocês encontrarão restos de feira com prazo de validade vencido. Mas tudo perfeitamente consumível por estômagos menos ansiosos - e necessariamente seletivos, como aqueles dos moradores da canção "Gabiru, urubu, cachorro, gente", da rapaziada da banda Eddie. E chega, que já estou a adiantar a matéria - deliciosa de quase podre - que comporá o nosso banquete, digo, sopão. Bom apetite (mas, só por precaução, separe aí anti-ácido estético-intestinal).

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Lembrando Drummond (4)

Vamos ver se consigo escrever alguma coisa sobre ele sem recorrer à revistinha de intelectuais que está aqui do meu lado. Meu amigo CDA, se é que posso chamá-lo assim, bateu à minha porta pela primeira vez quando eu tinha apenas 12 anos. Para tanto, usou um livro didático. Pra vocês verem que não se deve desprezar os livros didáticos. Natural: era um tempo em que os livros a que eu tinha acesso eram quase sempre esses. Os outros eram os da biblioteca municipal de Parelhas, minha Alexandria setentista, que tanta literatura me forneceu, tanto quanto podia oferecer. Mas, salvo engano, Drummond lá não havia. Ou o aluno que eu era é que não se dava conta.

Havia, na biblioteca, Jorge Amado, esse iniciador infalível. Havia a dupla Machado-Alencar, esses focos de enganos que a gente lia sem a experiência necessária (ao menos no caso do primeiro). Havia uns clássicos impróprios que bibliotecárias pudicas e refratárias à leitura tratavam de manter longe de nossas mãos de meninos curiosos ("Vocês lêem rumances?", perguntava uma delas, disso nunca esqueci). Desde o início, é fato, Drummond chegou a mim, portanto, sem a solenidade da biblioteca. Chegou com a espontaneidade do livro didático de Português da sexta série, num daqueles textos regulares que abriam capítulos. Um daqueles textos que fatalmente iriam servir para o aluno indolente praticar concordância e regência, sintaxe e morfologia.

Meu amigo CDA chegou disfarçado: apresentou-se por meio de João Brandão, personagem de crônica, cujo trecho era apropriado pelo autor do livro didático. Tanto tempo depois, não lembro bem o que João Brandão fazia, que aventura desfiava, que aspecto de sua aparição serviu para que eu aprendesse um pouco mais de ortografia ou análise sintática. Só lembro que simpatizei com o personagem e guardei dele uma impressão de companheirismo - assim como a gente se lembra de um vizinho antigo.

Cresci, outros livros didáticos vieram, entrei para a universidade, encontrei novos amigos e, entre eles, apareceu-me, pela segunda vez, Drummond. E desta vez, quem o trouxe para perto foi um outro amigo, Jano Sérvio, colega do curso de Comunicação na UFRN, que cultuava as novas edições do poeta - por exemplo, o livro "Corpo", novinho em folha então. Foi quando decorei, de tanto ler, aquele poema das coisas findas - as tais que, muito mais que lindas, ficarão.

O poeta voltou e, como as coisas lindas, ficou. Quando encontrei Rejane, meu amigo CDA reapresentou-se uma terceira vez, como um padrinho informal da nossa união. Rejane era outra das pessoas ao meu redor que cultuava Drummond. Vez em quando eu comprava um livro do poeta que ela não tinha, na minha estratégia de manter-me indispensável à minha companheira. Assim, vieram livros de crônicas, o "Amar se aprende amando" que aproveitei para reler, e o derradeiro, o póstumo "Farwell".

Meu amigo CDA foi assim essa presença discreta e quase cotidiana, essa percepção poética que estava sempre por perto mas sem fazer barulho. Essa entidade que volta e meia desce da estante para dizer que a vida é feita de pequenas epifanias. Essa sensibilidade extemporânea que turva o mundo só para fazê-lo mais claro em seu impressionismo diário. Doce ou amargo, triste ou alegre, ocasionalmente animador ou momentaneamente deprê, é preciso saber levá-lo, com o instrumento da poesia que o velho livro didático um dia despertou.

Lembrando Drummond (3)


"O poeta não é o portador do fogo sagrado, mas o precavido possuidor de uma lanterna de bolso, que abre caminhos entre as trevas do dicionário."

Dele mesmo. Mas me lembrou nosso amigo Gustavo de Castro, do blogue Razão da Poesia, que, assim como o Sopão, também está prestes a completar um ano.

Lembrando Drummond (2)

O texto a seguir é da orelha de um dos livros de Drummond, que tinha a mania de escrever ele mesmo esses textos de apresentação - dizem os estudiosos, para evitar que outros o fizessem e exagerassem no culto à sua pessoa.

"Não sei se o poeta perdeu a força de irritar que o distinguia; sei que abre de novo o baú de lembranças, reage contra o excesso de bomba do nosso tempo, narra dramas amorosos e psicológicos do próximo, trata galantemente da cidade do Rio, ex-capital sempre capitalíssima, fala de pombos-correios, fazendas, mulandeiros, santas, rende preito a Portinari, a Chaplin, ao pintor colonial Ataíde e a Mário de Andrade, explora palavras como som e signo, em aproximações, contrastes, esfoliações, distorções e interpenetrações endiabradas. Os senhores julgarão por si."

A orelha é do livro Lição das coisas, editado em 1962.
Li isso aí e fiquei aqui com meus botões drummonianos catucando o pensamento: o que ele diria hoje, a que pessoas, cidades e memórias poderia se referir o poeta?

Lembrando Drummond (1)

Tenho lido dossiês em revistas velhas sobre Carlos Drummond de Andrade e me dado conta de que é dele um dos dois poemas que logrei decorar nesta vida*. E não totalmente, que a memória das exatidões, vocês sabem, não é o meu forte. Nem o nome do poema eu lembro. Poderia dar uma chafurdada no google e copiar aqui, mas vou ser fiel aos valores relativos e seletivos da minha pobre memória incompetente e reproduzir apenas o que ficou (juro que esse "o que ficou" não foi planejado):

"...mas as coisas findas / muito mais que lindas / essas ficarão"

*O segundo poema é uma unanimidade: você também sabe pelo menos um pedacinho dele. É o "Soneto de fidelidade", de Vinícius. "De tudo, ao meu amor serei atento / Antes..."

Segunda exibição





Matt Demon surgiu no cinema como um garoto prodígio em "O gênio indomável". Triplamente prodígio: uma vez pela contundência da interpretação; duas pelos dons próprios do personagem, um auxiliar de limpeza com um cérebro muito melhor do que o dos alunos da univerdade onde limpava o chão; e três pelo fato de também ter sido um dos roteiristas do filme.

Agora, Matt Damon está se especializando em personagens do tipo duas caras. É o mais bem sucedido falsário do cinema americano. Começou a esculpir essa segunda natureza em "O talentoso Ripley", filme em que, movido por uma inveja pra lá de obsessiva, assume a identidade de um amigo rico. Retocou a performance na série iniciada com "A identidade Bourne" - onde, além do mais, nem ele mesmo tinha idéia de quem, de fato, fosse. E, mais recentemente, lapidou essa trajetória sob a batuta de Martin Scorsese em "Os infiltrados", canal de expressão para um belo duelo de sutilezas possíveis no cinemão ianque com o parceiro Leonardo DiCaprio. E ainda poderia incluir na mesma lista "O bom pastor", onde o sempre dissimulado Damon volta a exercitar seu ofício preferido - despistar todo mundo.

Nos últimos tempos, são raros os filme a que tenho assistido mais de uma vez. Antigamente, tinha um prazer especial nesta segunda leitura - especialmente se fosse feita imediatamente em seguida à primeira, na era (já distante) das sessões contínuas pelo preço único. Pra o leitor ter uma idéia, cheguei a passar seis horas seguidas socado no cinema São Luiz, em Recife, assistindo, de queixo atropelado, a "Era uma vez na América", aquela enciclopédia visual e emocional do mestre Sergio Leone. Mas nem sempre é assim. Acontecia muito de, na segunda exibição, dar-se a morte fulminante daquela boa impressão inicial na primeira. Outras vezes, a releitura revelava camadas que a aflição narrativa da primeira exibição não deixava o espectador aqui perceber.

Depois que as sessões contínuas acabaram, ainda havia o prazer de rever em VHS (e depois, claro, no DVD) aquele filme que deixou a gente com água na boca, querendo mais, no cinema. Mas, de uns tempos para cá, razões familiares e rotinas profissionais incluídas na conta, nem uma coisa nem outra tem sido muito possível. Dou-me por satisfeito quando consigo assistir àquele filme que queria tanto ver na época em que foi lançado. O tempo é outro, talvez eu também não seja a mesma pessoa. Enfim, o velho papo do rio que você nunca atravessa duas vezes.

Essa viagem toda é só para explicar do prazer que foi rever "Os infiltrados", com a já lustradíssima dupla performance de Matt Damon e a milionésima (mas sempre boa) danação de DiCaprio. E para demarcar: esse eu havia visto no cinema, na época do lançamento, embora já quase saindo de cartaz, e não havia gostado nem um pouco. Pareceu-me um item comum e preguiçoso na cinematografia de Scorsese - que afinal, depois de quase mendigar (sem precisar prestar-se a isso), levou pra casa seu Oscar semi-honorário.

Outro dia, outra postagem, eu disse aqui que o cinema vem se tornando pra mim algo muito mais ligado aos efeitos dos que aos conteúdos. Era disso que falava: com pouco tempo pra ver os filmes, e muito menos para rever - o que é uma pena - passei a prestar muito mais atenção ao que eles fazem comigo numa primeira - e quase sempre única - exibição. Alguns são infalíveis e surpreendentemente bons neste quesito: assim de passagem, lembro de um de outra época, "Pulp ficcion", tão menos impactante na segunda, terceira, quarta exibição.

Mas é possível incorrer em equívocos, porque o sujeito que sai de casa ou do trabalho para ir ao cinema nem sempre vai sozinho (leva problemas, trabalhos inconclusos, expectativas dispersas, muxoxos incoscientes e por aí vai). E, assim, às vezes, a primeira - e única - exibição causa uma impressão errada. Aconteceu isso comigo e os infiltrados de Scorsese. Tá certo que o filme tem muito menos maneirismos de câmera e montagem do que eu sempre espero de Scorsese. Parênteses: quanto mais maneirismo nos filmes dele, pra mim, melhor; vide aquele bloco de "Os bons companheiros" em que Ray Liotta, completamente cheirado, escapole da polícia, faz entregas, prepara uma refeição e ainda arruma tudo para uma fuga que eu nem sei mais se foi bem ou mal sucedida, isso tudo ao som dos Rolling Stones, sob a mão de anjo de Thelma Schoonmaker, a montadora de todas as sinfonias scorseseanas (e que também ganhou o Oscar por "Os infiltrados").

Senti falta disso em "Os infiltrados". Mas, ao rever o filme em casa, vi que essa ausência não é o defeito que enxerguei quando da exibição no cinema. Ao contrário, essa falta de moldura nervosa é até uma qualidade de "Os infiltrados", viu? E a vilania de Jack Nicholson é tão cruel, tão cruel que afasta a possibilidade de a gente ver ali uma nova caricatura desse outro ator que de tão bom também vive recorrendo à autoparódia.

Agora eu pretendo rever em casa o último James Bond, de que muito gostei quando vi num cinema do Praia Shopping, em Natal. Será que o filme vai conservar aquele sabor vespertino de férias que havia em torno de mim quando o vi pela primeira vez?

domingo, 2 de dezembro de 2007

Contículus brasiliensis

Lugar de ser feliz também pode ser supermercado
(Para Rosália Maria e colegas do Clube das Leitoras Discretas)

A cidade guarda a fama de capital do tédio, às vezes parece mesmo a pátria da rotina, mas quando a gente repara bem, há muito com o que distrair o olhar, a mente, o coração. Há dezenas de salas de cinema, palácios assinados por arquiteto de fama e uma história que, embora jovem, já produziu ótimos e consagrados músicos. Isso para ficar em apenas três exemplos.

Disso se deduz que, à sua maneira, essa é uma cidade espetacular. Mas os shows de música custam muito caro, a conta do restaurante normalmente vai além da conta e até o preço do ingresso do cinema agride o bolso do pobre estudante.

Num dia desses - um sábado? - a garota - estudante? - deixou-se surpreender por um divertimento mais barato - e aqui a palavra vale pelo sentido do custo e não pelo da suposta falta de qualidade. Ela estava no supermercado, onde havia feito compras frugais. O suficiente para uma sacolinha de plático só. Nem cheia estava.

Moça de compras moderadas e espírito vaporoso como convém a todas as moças. Blusa preta, colada ao corpo, cabelo curto de nuca exposta, saia dessas que parecem de artista de circo moderno ou teatro clássico: quatro cores, umas pontas descompassadas das outras, uma assimetria que convém a todas as pessoas.

Só a vi de costas e por isso não tenho como falar sobre o rosto. Mas achei melhor assim, pois assim pude imaginar boca, olhos e sobrancelhas macluhanianamente.

Estava de costas, eu dizia. De costas, com uma sacola branca quase vazia - e uma roupa que parecia um par de asas para o infinito que dura um claro instante.

Lá estava ela aproveitando o grande painel de vidro do supermercado para apreciar um espetáculo natural que a cidade oferece nesta época do ano.

Não era cinema, nem música, nem arquiteturas. Era isso tudo de uma outra maneira e era mais.

Ela olhava para a chuva - e eu olhava para ela.

Formosa, GO