segunda-feira, 31 de março de 2008

O dilema de Roberta

Para quem gosta de levantar a faixa de protesto no primeiro impulso ou meter o dedo acusador na cara da humanidade sem pensar duas vezes, recomendo a leitura do texto abaixo, um pequeno e eficientíssimo extrato de contemporaneidade casual. Veio do "Trabalho de Parto", o blogue esperto de Roberta, cujo link se encontra ali na lista abaixo/ao lado. Mas vejam que primor de situação - e de concisão - num texto que resume nossas dúvidas de hoje em dia:

Dilemas morais do subemprego

O carinha na rua distribui folhetos porque está desempregado. Recebe por papelzinho entregue, tem um cara olhando ele fazer o seu trabalho todo o tempo, então não dá para jogar tudo no bueiro.Eu ando pela rua e passo pelo rapaz. Ele me estira a mão com uma oferta que eu não quero aproveitar. Eu penso: "pego o papel, para o rapaz poder receber os seus trocados, ou passo direto e preservo a natureza, nesses tempos de aquecimento global?".

A segunda morte de Dith Pran

O anúncio da morte de Dith Pran, aquele cambojano com quem tanto simpatizamos ao assistir ao filme "Os Gritos do Silêncio", me levou a uma reflexão-relâmpago. Ocorreu-me o quanto éramos, num passado ainda recente, disputados no grande cabo de força ideológico que marcou a tal da guerra fria. Eu sei que o bicho pegava mesmo era em Washington e em Moscow, pra ficar só em dois exemplos dos grandes. Mas os reflexos - e não duvide do poder dos reflexos, sobretudo aqueles que, ao ir tão longe, chegam refratados - atingiam Parelhas ou o campus da UFRN, como deviam iluminar (ou escurecer, dependendo da perspectiva) Irará e Pindamonhangaba. Estou falando de coisas já antigas, século passado, pré, mas muito pré-internet e web: eram os tempos em que suas predileções ideológicas (um degrau acima das partidárias) podiam ser disputadas por um filme, de um lado, e por um professor universitário, de outro.

Foi assim com "The Killing Fields", o título original de "Os Gritos do Silêncio" (num caso raro em que o título nacional supera e muito o original). Lembro que esse foi um dos filmes a que assisti no antigo cinema Nordeste, em Natal, em 1985 ou 86 e de cuja exibição saí, naturalmente, tocado pela história do fotógrafo e assistente do correspondente do New York Times que a produção enfoca e destaca. Não é difícil que tenha acontecido o mesmo com você que me lê agora. E lembro também de, à noite, no Setor V do campus da UFRN, o saudoso professor Rogério Cadengue - um dos meus preferidos, ao lado de Augusto Carlos Viveiros, sendo que os dois situados em extremos ideológicos opostos - detonar o filme, alertando-nos para o objetivo manipulador da produção de criar uma imagem antipática dos países comunistas e da esquerda em geral.


Da perspectiva de hoje parece um troço esquisito, mas os tempos eram assim. Sim, o filme é meio melodramático, de estrutura fácil, espetaculoso, às vezes meloso mesmo, mas gosto dele até hoje, mesmo assim. Comprei até uma cópia em DVD a que assisto de vez em quando. E, sim, Rogério tinha razão em dizer do caráter propagandístico, algo que o filme em si também continha. Mas os dois - filme e professor - também estavam errados ao resumir tudo a essa disputa ideológica. A experiência humana recontada com este ou aquele estilo é muito mais forte. O fato é que a primeira morte de Dith Pran me comoveu, ideologias à parte - ou ideologias somadas e computadas, é muito mais justo reconhecer. E agora ele se foi pra valer, como Rogério também nos deixou uns anos atrás. É a mesma experiência humana que se reelabora, aqui ou onde quer que seja, com suas criaturas em busca de um mundo melhor.
(Na foto, publicada no site da FSP, o Dith Pran de verdade)

Sangrou

Ana Luíza, Nossa Mana da ex-TV Cabugi, acaba de me informar: o Gargalheiras, barragem de Acari para quem não leu as postagens anteriores, está sangrando desde hoje cedo. (Antes de começar a blogar agora de manhã eu havia dado um giro pelos blogues que monitoram o Garga e não havia visto a informação, por isso não bati o martelo). É o fim da contagem regressiva e o início da chegada dos admiradores do Seridó, de Acari e desse belo lago que flutua seu líquido entre serras.

Volto para corrigir a tempo: o "Acari do Meu Amor" já informava da sangria, é que está nos comentários e não no texto principal. Quem estiver curioso pela primeira foto, fique de olho no blogue de Jesus que ele promete para breve uma bela imagem.

No "pobrema"


Sábado à noite voltei a estar numa sala de teatro, numa das raríssimas vezes em que assisto a um espetáculo. Nas férias, em Natal, quase consegui ver "O Casamento", peça do repertório dos Clows que ainda não conheço, mas optei por antecipar a viagem ao interior e terminei sem ir à Casa da Ribeira. Aqui em Brasília, já desisti até de entender por que, quase não vejo espetáculos teatrais (que têm uma regularidade muito maior do que em Natal, embora eu sempre desconfie que a cena potiguar tem muito mais qualidade). Enfim, Rejane ganhou convites e fomos assistir um desses espetáculos bem convencionais - você diria, comercial, mas acho que essa palavra restringe demais, as coisas são mais complexas se você tiver olho para enxergar. Fomos assistir ao monólogo "Cada um com seus pobrema", que o ator Marcelo Médici sustenta brilhantemente durante mais de uma hora, sozinho e deus em cena. São vários personagens compondo um mosaico de esquetes que costuram temas atuais, personagens da cultura pop, ocorrências do planeta Brasil. Com destaque para "Tia Penha", uma anti-Xuxa com um bom extrato do politicamente incorreto, para o divertidíssimo "depoimento" de um esnobe mico-leão dourado (tão bom que encerra o espetáculo) e, encaixado inteligentemente "antes" de o show começar, a "faxineira do teatro" que varre o palco antes de o "ator inseguro" entrar. O ator inseguro é a espinha dorsal que dá harmonia ao espetáculo todo - um tipo ansioso que não consegue se sentir à vontade num palco de teatro lotado (como, aliás, estava a sala Vila-Lobos do Teatro Nacional) e se vira contando histórias de sua vida, os micos que pagou, as dificuldades da profissão.

É um gênero de teatro e se você recolher seus pruridos e relaxar, pode se divertir um bocado. Não é, naturalmente, um Shapekespeare (e o monólogo se vale dessa constatação, pois essa era a ambição do suposto ator inseguro em cena) nem um texto de Nahum Alves de Souza. Também não se alinha a um - para "descer" um pouco no patamar - Miguel Falabela & Maria Adelaide Amaral, autores do "comercial" que aqui e ali até "transcende" - esse difícil objetivo da grande arte. "Cada um com seus pobrema" está mais para Tom Cavalcanti e até para o nosso saudoso Espanta Jesus, a quem nunca vi no palco, mas muito vi na TV Potengi, fazendo a hilária "Bastinha Procês" (naturalmente com uma produção mais pobre, mas de propósito idêntico). E, enquanto dava risadas com Marcelo Médici (é aquele ator que fazia um açougueiro gago - e também inseguro - na novela Belíssima) eu pensava um pouco sobre esse gênero de teatro. Será que ele também não merece o lugarzinho dele? Bárbara Heliodora chamaria isso de "retrocesso teatral", mas aqui embaixo, onde todos se misturam e cada um merece a diversão particular que lhe apraz e - também - faz pensar, entendo o apelo e o agrado proporcionado por atrações como "Cada um com seus pobrema". Também fiquei matutando sobre a sala lotada - algo que não deveria, mas me surpreendeu (eu também subestimo coisas evidentes para quem sabe manter o olho bem aberto). Mas é isso: um ator exposto na tela global + uma aparição dele, encenando um dos esquetes, no programa de Jô Soares (que eu abomino, mas compreendo que tenha grande audiência) + (e aí é que vem o fundamental, o inovador nessa história) o YouTube, onde, nem me dei ao trabalho de checar, tenho certeza de que estão trechos do espetáculo (como estão os da Teça Insana, outro filiado ao gênero de sucesso acachapante).
P.S: Na mosca. Passeio no YouTube e tá assim de esquete do "Cada um". Segue o link para ver a "Tia Penha": http://www.youtube.com/watch?v=jzQ-FNY7mOo

Meu tucano preferido

Notas rápidas para abrir a semana e matar a fome de trabalho que o bocão da segunda-feira anuncia. Pra começar, uma saudação pouco usual neste blogue que aqui e ali torna-se tão partidário, parcial, tão "cachorro vermelho" quando sente dor nos calos. É assim: toda vez que a mídia inteira abre uma nova frente de batalha contra o governo Lula, eu abro minha gaveta de pulgas e retiro de lá a bandeira vermelha com a estrela do PT, me envolvo nela, cantorolo o "Lula-lá" e, devidamente aquecido, despejo aqui todo o desabafo virtual que a globalização tecnológica e seus efeitos involuntários permitem. Agora mesmo, mantenho-me altaneiro na defesa de Dona Dilma (ela que, fritura em andamento, muitas vezes me lembra aquela outra, Dona Vilma, mas isso é assunto para outra nota). O que isso tem a ver com a tal saudação pouco usual? É que essa saudação vai para o meu tucano preferido, o jornalista Antônio Melo, que virou homem de marketing e sob o comando de quem trabalhei em duas campanhas eleitorais (nenhuma para candidatos do PT; era apenas trabalho que eu também - sobretudo eu - preciso de dinheiro para viver, fazer patrimônio, defender o essencial e o supérfluo na dispensa de casa). Encontrei Melo no sábado, no aniversário de Clara, neta dele, filha de Fabiana, colega da TV Câmara. Melo, como sempre, na dele, matreiro, me disse que tentou deixar um comentário aqui no Sopão mas não conseguiu, perdeu tudo o que escreveu. Tente de novo, Melo, mas escreva como anônimo mesmo - e depois você assina no final do recado (a dica vale para quem mais que estiver tendo problemas comuns no blogger).



De qualquer maneira, já incentivei Melo a entrar aqui pra gente bater boca em torno do governo, do que dizem os jornais, do que revelam as eleições, das ciladas em que ele anda metendo nossa amiga jornalista Leônia Régia - nossa mais nova adida de marketing no Paraguai, a serviço da campanha presidencial do general Lino Oviedo (a eleição é dia 20, vamos ver o resultado e vamos ver, sobretudo, como Leônia voltará a pisar em terras poti-brasileiras). Melo está animado, porque este é ano de eleição municipal e as disputas já estão pegando fogo. Bom pra ele e para quem mais lida com campanhas eleitorais. Dois candidatos a prefeito de Sorocaba (SP) disputam a candidatura e a atenção dele - já o elegeram até como mediador amigo do "conflito", o que faz nosso amigo dar boas gargalhadas. Tirando as "quarteladas" - aquela mania que Melo tem de impor uma disciplina exagerada nos QGs das campanhas que coordena - é muito bom trabalhar com ele: sabe transmitir o que quer, pega rápido o que você está propondo, avalia quem trabalha com ele pela qualidade do serviço e não por outros quesitos, confia em você se você fizer por merecer. O defeito dele mesmo é ser tucano - mas a gente aguenta, olha pro lado, faz que não vê. Melo, bem vindo ao Sopão.



E só porque você passou por aqui, vou abrir um novo marcador: Amigos

sexta-feira, 28 de março de 2008

Videoreportagem

Ufa. Desde as 10h30 da manhã de hoje que eu trabalho na edição de uma matéria que inaugura, aqui pra gente da TV Câmara, a adesão ao gênero da chamada "videoreportagem" (não sei nem mesmo como se escreve, se assim junto ou separado). A videoreportagem é uma matéria de tevê feita quase totalmente à base do uso da câmera. Sem off (a narração do repórter que acompanha a reportagem convencional) nem passagem (aquele momento em que o repórter surge no vídeo durante a reportagem convencional para destacar algo mais importante ou passar de um aspecto a outro do assunto). A TV Cultura já usou o gênero, mas entregando a câmera a um repórter - ou aspirante a repórter. Há até um jornalista formado em Natal, cujo nome agora me escapa (ajude aí, Ana Luíza), que foi videorepórter na Cultura. Aqui, a Direção de Jornalismo foi além, entregando a responsabilidade pela produção da videoreportagem a quem mais merece - ou a quem mais garante a qualidade da maioria das reportagens que vemos na televisão: o próprio cinegrafista, tantas vezes esquecido pela vaidade, ademais natural, dos repórteres de vídeo. Aqui foi destacado o repórter cinematográfico Edson Cordeiro, sujeito brilhante com a câmera no ombro e a licença para trabalhar mais livremente nas mãos. Edson, ex-Band, acompanhou toda a reunião da CPMI dos Cartões Corporativos na última quarta-feira, aquela que, de tão tumultuada, acabou até sendo o momento mais "animado" do Congresso nesta semana que está acabando. Teve distribuição de sorvete de tapioca (um dos mais gulosos devorando o sorvete era o "nosso" Agripino Já-Já), teve briga entre tucano e ex-tucano, teve deputado se enrolando na hora de votar a favor da convocação da ministra Dilma Roussef (sim... quer dizer, não!) e por aí vai. A videoreportagem de Edson Cordeiro, que eu passei o dia todo editando sem nem ver o tempo passar, mostra o melhor desses momentos e confere um tom mais coloquial à cobertura da disputa política nos palcos de Brasília. Assistam, se puderem. Vou deixar abaixo o link da TV Câmara. Uma vez lá, é só procurar a edição desta noite do Câmara Hoje ou a edição desta semana do Panorama (a revista semanal da TV Câmara). Claro que ainda está em tempo de ver os programas na televisão mesmo (Câmara Hoje logo mais às 21h e Panorama logo depois às 22h, com reprises exaustivas desse último durante todo o final de semana). Mas eu sei, pela minha própria prática, que é melhor ver na hora que der na telha usando a internet. E é claro que os programas e a reportagem só estarão disponíveis na rede depois da exibição na tevê. Segue o link:

http://intranet2.camara.gov.br/internet/tv

Na espera

Jesus acaba de atualizar o "Acari do meu amor" e a contagem regressiva vai perdendo mais uns pontos. Agora falta 1 metro e 12 centímetro para a sangria do Gargalheiras. Informação dos técnicos responsáveis pela barragem. Nem precisa descer lá nos links, pegue logo o atalho aqui:
http://acaridomeuamor.nafoto.net/. E a foto acima é de outra que achei aqui nos meus alfarrábios, de outra sangria pretérita, embora mais recente.

Xô, bactérias

Mais um pouco do noticiário da Tribuna: "O Seridó é a região que mais está se beneficiando com a distribuição temporal e espacial das chuvas, situação considerada ideal para a agricultura e também para os açudes, que estão tomando água regularmente. A maioria deles estava praticamente seco. É o caso do Gargalheiras, em Acari, e do Itans, em Caicó. Com capacidade para 80 milhões de metros cúbicos, antes da chegada das chuvas o reservatório que abastece Caicó tinha apenas um quarto da água que pode acumular. O açude Dourado, em Currais Novos, que estava seco, encheu. A Caern agora vai aproveitar para reativar o sistema de abastecimento de água da cidade."

E o comentário quase involuntário, de tão automático: as autoridades não fizeram nada, a natureza se encarregou de tanger para longe "você sabe quem", aquela substância que provoca a aquela doença que o povo também evita chamar pelo nome.

Enquanto a sangria não vem

Somos eu e Rejane, alegres e jovens, com o Gargalheiras sangrando ao fundo, em algum momento da última década do século passado. A propósito, clique dentro da foto para ampliar e leia na minha camisa...

Contagem regressiva

A primeira tarefa do dia é checar no blogue de Jesus e nos sites dos jornais potiguares se Gargalheiras sangrou. Ainda não. Mas, na contagem regressiva, uma informação publicada na edição de hoje da Tribuna do Norte, creditada ao jornalista Robson Pires, informa que falta 1 metro e 72 centímetros para a barragem transbordar. Ontem à noite, Jesus informava que faltavam menos de 2 metros. Os sites dos jornais de Natal destacam a sangria da barragem Armando Ribeiro Gonçalves, a maior do estado, nossa desde sempre Barragem do Açu (não consigo escrever Assu, por costume mesmo) onde tantas vezes estive nos tempos de repórter daquela mesma Tribuna (uma delas justamente numa dessas tão esperadas sangrias). A foto que ilustra a postagem é do Diário de Natal, feita por Frankie Marcone, com quem trabalhei na ex-TV Cabugi, eu como editor de textos e ele como editor de imagens. E, antes que eu chegasse aos sites dos jornais, Ana Nossa Mana já havia me informado - com a atenção que tem para comigo - sobre a sangria em Açu. Ah, sim, Jesus ainda não atualizou o "Acari do meu amor", o que é, em si mesmo, um sinal de que a sangria ainda não veio, pois que senão a cidade inteira já teria despertado ainda mais cedo que o habitual. (Aproveito para abrir um novo marcador, menos meteorológico que poético, espero, vez que se chama "Inverno")

Dilma na guilhotina da mídia

Acordo mais cedo e a primeira notícia do dia, escanchada no portal UOL, é a descoberta de que a principal assessora da ministra Dilma foi a responsável pelo suposto "dossiê" com as contas de FHC e sua senhora. Está em http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u386578.shtml, acessível para assinantes e não assinantes. Na seqüência do noticiário, vem uma análise (essa sim ainda restrita aos assinantes) lembrando que o caso pode colocar em questão a projeção política da ministra como candidata à sucessão de Lula. Não sei não, mas um novo "dossiê" feito para deixar os tucanos na defensiva e um novo caso de ministro poderoso e próximo de Lula na guilhotina da mídia... A gente não já viu esse filme antes? Ou melhor, esses filmes? Não lembra o vendaval soprado pela imprensa às vésperas da reeleição em torno do dossiê dos empresários sanguessugas? E não lembra a fritura hipócrita de Palocci? A rapaziada quer é ver o circo pegar fogo. País consolidado que é bom, nada.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Leia Merten


Uma última postagem antes de encerrar o expediente. Estou saindo agora da TV e quando chegar em casa é quase certo que vou direto pra frente da tevê, assistir a mais um filme em DVD e tirar o sangue do meu novo brinquedinho, aquele home teatro recém-adquirido que tem feito a minha felicidade tecnológica de segunda-feira pra cá. Ontem, por exemplo, tirei o cansaço do dia de trabalho das costas assistindo a um clássico do cinema italiano, "Ontem, hoje e amanhã", de Vitório de Sicca, com Sophia Loren e Mastroiani estalando de estrelismo e talento. Outro dia volto ao filme, mas por hora - e antes de sumir provavelmente até amanhã - voltei mesmo foi pra recomendar mais um blogue sobre cinema, o do crítico do jornal "O Estado de São Paulo", Luiz Carlos Merten, que ando lendo compulsivamente. Se você entrar agora mesmo vai ler, por exemplo, sobre os filmes de George Stevens ("Assim caminha a humanidade") e David Lean ("Passagem para a Índia"). Vai saber que Merten está a caminho das filmagens do novo 007, em algum lugar do Chile, e sair da leitura com uma vontade danada de passar numa locadora especializada em clássicos - ou que tenha um bom acervo do gênero. Duvida? Vá lá: http://blog.estadao.com.br/blog/merten/.

O sobe e desce da renda

A nota publicada no site do PT (www.pt.org.br) e transcrita (em parte) abaixo mostra em números o surgimento do que, nas conversas com amigos, costumo chamar de "nova classe média" - um segmento social vasto e mutante que passou a compor o cenário social, econômico e político do país e que a grande mídia insiste em não enxergar. Mas não precisa ser jornalista ou estatístico do IBGE para perceber que ela surgiu, cresce cada vez mais e tende a se consolidar. Basta você olhar à sua volta, para o seu vizinho, a sua empregada, um seu colega de trabalho em outras funções que não as de nível superior e por aí afora. Abriu os olhos, vai ver. A não ser, claro, que você more num condomínio fechadíssimo ou mesmo em lugares como o Plano Piloto de Brasília, desde que nunca saia dele. Enfim, lugares por demais marcados por um tipo comum de segregação hoje em dia. E ainda assim, se tiver olhos para ver, verá essa nova realidade (diz o ditado, sábio, que o pior cego é o que não quer ver). Na entrevista que deu à revista Caros Amigos (compre um exemplar e leia já, é leitura para marcar uma época), Luiz Nassif comenta que ocorreram no Brasil recente dois fenômenos não detectados pelos jornais, revistas e telejornais: um é essa transformação da classe média; outro é a junção dessa mudança social com o fenômeno tecnológica da internet, com seus blogs e todo um rastro de comunicação alternativa. As duas coisas juntas, analisa Nassif, transformaram definitivamente a maneira como o brasileiro vê a política e a mídia. Segue a nota que traduz parte dessas mudanças em números. Repare que não tem só gente "subindo" de classe, também tem gente "descendo". Isso se chama redistribuição de renda; onde alguém também terá que perder, daí as reclamações disfarçadas de indgnação cívica ou ética:


"Mais 12 milhões de brasileiros deixam classes D e E em um ano, diz estudo

As políticas de inclusão social e de democratização econômica do governo Lula continuam reduzindo largamente as desigualdades no país e fizeram com que, pela primeira vez, as classes mais baixas (D e E) deixassem de ser maioria no país.
Em 2007, segundo estudo da financeira Cetelem em parceria com a Ipsos, o número de brasileiros nas classes mais baixas era de 72,9 milhões, cerca de 39% da população. Isso significa que 11,9 milhões de brasileiros passaram para classes mais altas em um ano, já que, em 2006, eram 84,8 milhões de brasileiros na base.
De acordo com o estudo, a classe C recebeu, tanto das mais baixas (D e E) como da mais alta (A e B), quase 10 milhões de integrantes, passando de 66,7 milhões em 2006 para 86,2 milhões em 2007, o que significa 46% da população.
O grupo que está nas classes A/B, por sua vez, reduziu de 32,8 milhões de pessoas em 2006 para 28 milhões em 2007, o que representa 15% da população.
Segundo a Cetelem, a pesquisa demonstra que houve diminuição na desigualdade de renda, com uma ligeira queda da renda média das classes A/B, ascensão de um grande contingente para a classe C e um pequeno aumento da renda média das classes D/E."

Água nova

De Natal e Acari chegam as boas novas da volta, agora pra valer, das chuvas. Ana Luiza dá um tempo nas suas atribulações da ex-TV Cabugi para contar que eu tirei férias nos dias errados. Era pra estar lá agora, quando o inverno se consolidou e, Nossa Mana comemora, "está tudo verdinho". Bastou eu abrir o e-mail de Nossa Mana pra ir correndo ao "Acari do meu amor", onde Jesus acompanha passo a passo a subida no nível da água do Gargalheiras: segundo a última postagem (o link tá ali do lado, pode conferir) faltam só dois metros para a barragem sangrar. Jesus aposta as fichas que a sangria pode se dar até... amanhã! Aqui no meu canto eu fico sonhando em levar Cecília pra ver aquele espetáculo tão bonito. Mas, como praticamente acabamos de chegar de viagem, acho que não vai dar. Ano que vem, a gente marca as férias de Acari e Natal para um pouco mais tarde e faz figa.

P.S: Vamos fazer figa também para que a água nova do Gargalheiras dilua o efeito de, como se diz nos livrinhos da série de Harry Porter, "você sabe quem". Xó, bactérias

Chávez, Abreu e Lula


Vi Hugo Chávez discursando na tevê, ao lado de Lula, para uma platéia de ministros e jornalista, lá em Recife. Ele reclamou da imprensa venezuelana - e da mundial também, que reproduz aquela sem constestações - pelo fato de noticiar que a visita dele ao Brasil não vai resultar em nenhum acordo efetivo em torno da refinaria a ser construída no município de Abreu e Lima, em Pernambuco. Chávez disse que a notícia está errada - e há acordos sendo assinados, sim, que garantem 40% de participação da PDVSA (a empresa de petróleo da Venezuela) na construção da refinaria. Falou também sobre a importância do próprio Abreu e Lima, vulto que dá nome à cidade da refinaria, e que batalhou ao lado de Simon Bolívar pela libertação da América Latina das mãos dos espanhóis. Dessa aparição de Chávez, extraio dois comentários pessoais para dividir com vocês (são pessoais mas paciência, que não há nada mais pessoal do que um blogue de internet):
1 - Eu nunca havia visto Chávez discursando sem edição, nunca o havia visto falando sem interrupções, cortes, comentários de jornalistas que supostamente trazudem para o "grande público" o que disse o fulano. Me dei conta disso. Caiu uma ficha e passei a observar com muita atenção: no pouco tempo que fiquei diante da tevê na transmissão ao vivo, vi um homem calmo dizendo coisas absolutamente procedentes, sem maiores bravatas ou arrotos de líder continental. Não vi um ditador e nem mesmo o "amostrado" que Chávez muitas vezes efetivamente é. Então é preciso que a gente tente ir um pouco mais na fonte, na imagem primária, usando de recursos como a NBR ou o Canal Telesur (que tem programas retransmitidos pela TV Câmara e pela TV Brasil, embora eu não saiba dizer os horários) para avaliar o cidadão pelo que ele realmente mostra ser. Não vi - estava de férias, meio desligado como um mutante retardatário - a famosa declaração de guerra de Chávez quando estourou o caso Uribe-Equador. Pode ser que ele tenha posto pra fora seu notório exibicionismo que tanto alimentam a imprensa - inclusive a brasileira. Mas pode ser que tenha ocorrido o exagero de costume. Vou tentar ver no YouTube. Mas, de qualquer maneira, vendo a transmissão ao vivo de hoje a partir de Recife, ganhei mais um motivo para desconfiar, sempre.

2 - Também fiquei envergonhado por saber tão pouco sobre Abreu e Lima, sentimento que devo dividir com imensa parcela de brasileiros - quem sabe até dos próprios pernambucanos, mas disso não posso reivindicar certeza. Abreu e Lima para mim foi, por muitos meses, o nome de uma cidade por onde passava o ônibus que me levava de Campina Grande a Recife, ano 1984, época em que eu cursava Comunicação na Unicap - Universidade Católica de Pernambuco. Um lugar tumultuado - já então cheio de kombis que faziam o papel mais tarde desempenhado pela vans ilegais, as mesmas que o prefeito João Paulo conseguiu tirar das ruas de Recife - pertinho de Paulista e que, afinal, acabou compondo com aquelas cercanias rodoviárias de Olinda, de onde se avistam morros e onde se sente cheiro de maré cheia , a paisagem de uma época. Morria muita gente em acidente de kombi em Abreu e Lima naqueles tempos. Mais Brasil, impossível.

Pulando de canal

A "montra condenada, fenetra sinistra", no dizer irônico de Caetano Veloso (ele de novo) às vezes surpreende a gente. Mesmo a gente que, como eu, sempre foi cativo de seu brilho para tantos condenado. O fato é que, depois de dois dias acordando às seis da manhã para botar telejornal no ar, hoje me dei folga e despertei às 10h na qualidade de espectador ocasional. E não é que a programação prometia? Pena que só tinha uma rápida meia hora pra acabar de acordar antes de pular de novo da cama para trabalhar novamente. Mas, vejam: do espectro geral de canais da NET, aquela telinha que abre quando a gente liga tevê, fui para a Record News, onde estava começando - às dez e pouco da manhã, notem bem - um programa sobre a bossa nova, cheia daquelas imagens de arquivo que a gente não cansa de ver e trechos de performances de João Gilberto e Tom Jobim. Claro que o distinto público tinha que suportar mais uma vez a ovação óbvia e autoreferente de Nelson Motta cantando loas ao ritmo, daquela maneira "Ipanema-é-o-centro-do-mundo" que a gente conhece tão bem. Mas, pensando bem, para o público geral e emergente cultivado sabiamente pela Record, as intervenções do bruxo pop até que convêm, pelo teor didático que contêm. Mas pra mim não deu mais e pulei para o canal da UnB (sintonizado só em Brasília, claro), onde era exibido o ótimo documentário "Barra 68", do grande Wladimir de Carvalho, sobre quem há tempos eu tenho vontade de escrever uma postagem caprichada aqui no Sopão mas vou continuar adiando. Mas a UnB vai ter que mostrar muito material desse tipo - que mostra como a universidade foi invadida durante a ditadura - para se redimir dos escândalos de que se tornou protagonista recentemente (assunto pra outro post, tipo "Minhas cismas com a UnB", também adiado, também fico devendo). Por último, voei de controle na mão para o NBR, que é o canal de notícias da Radiobrás. E quem eu vejo? Meu ídolo, Chávez! E o que é melhor, ao lado de Lula. E o que é melhor ainda, ali "pertinho de nós", em Recife! Eu passaria o resto da manhã ouvindo o discurso, mas a fala de Chávez é assunto para a próxima postagem. Essa era só pra dizer da programação surpreendentemente rica da "fenetra sinistra" que Caetano, remando contra a maré, um dia cantou.

P.S: aproveito pra abrir um novo marcador, "Televisão".

Educação e constrangimento

Na edição de ontem do jornal "O Globo", duas páginas para as "experiências que dão certo" (esse chavão a que o jornalismo não se cansa de apelar) na área da educação. Vi, à noite, no Jornal Nacional, que o assunto também é tema de série de reportagens de Cristina Serra. Acontece que saiu um relatório sobre boas experiências em trinta e tantas cidades e o jornalismo vai esmiuçando isso aí como pode. Um dessas experiências me chamou atenção - e temo pelo efeito inverso. No afã legítimo de usar de todos os recursos para manter a assiduidade de estudantes pobres nas escolas municipais, uma cidade do interior do Ceará - acho que Sobral, não estou mais com o jornal aqui do lado - apelou para avisos no rádio. Quem vem do interior sabe a importância desse recurso, especialmente por atingir a zona rural com o poder de fogo de um spam metropolitano. Pois bem: quando o aluno começa a faltar demais às aulas, a escola manda botar um aviso na emissora de rádio mais próxima. Pelo tom da reportagem, dá certo. Mas peço licença para relatar uma experiência pessoal parecida que poderia ter me levado, se não para longe da escola, decerto para uma boa distância dos livros (que não são nada mais do que outro tipo, algumas vezes bem mais eficiente, de escola)

Vale a pena abrir um segundo parágrafo: eu devia ter uns doze anos, morava em Parelhas e a cidade, naquela época, ganhou uma segunda biblioteca pública além da principal situada ali ao lado da Igreja. Era mais que uma biblioteca, uma espécie de centro de convivência com jogos e outras diversões infanto-juvenis mantido, salvo engano, pela estrutura municipal do Mobral (só por aí vocês já viram que faz um tempão). Eu costumava pegar livros dessa biblioteca emprestados. Só que eu nunca fui muito bom em devolve no prazo livros emprestados. Devolvo, mas atraso. Até hoje é assim nas locadoras de DVDs da 216/316 Norte. Então: eu estava com um livro que acho que não interessaria, honestamente, não interessaria a mais ninguém - um tal de "Quem matou Pacífico", que era o romance que havia dado origem a um filme brasileiro daquela época, algo assim. Nem o autor me lembro. Mas eu tinha aquele tipo de curiosidade: havia ouvido falar do filme, achei o livro na biblioteca e quis ler. Como sempre, passou o prazo da devolução e o livro lá em casa.

Terceiro parágro (último, prometo, sabendo que não vou cumprir mas sabendo também que nem por isso serei publicamente execrado): um dia, estou atravessando a praça principal da cidade e ouço, em alto e bom som, pra mim e para toda a cidade ouvir, na difusora municipal (difusora, meus caros, era um serviço de som que havia antes de as cidades do interior terem sua própria emissora de rádio) um aviso. Pra mim. Ou os responsáveis por mim, vai ver. Um aviso para que eu devolvesse o livro imediatamente. Uma amiga minha da época, Alda, que mais tarde se formou em Geografia e se especializou em pesquisas de opinião, também foi vítima do mesmo procedimento. Naquela manhã de domingo, a cidade inteira ficou sabendo que eu e Alda éramos dois irresponsáveis que não devolviam os livros que pegavam emprestado na biblioteca do Mobral. Claro que corri pra casa, fui devolver o livro e nunca mais cheguei perto dessa biblioteca.

Mas ou menos como aconteceu, pouco tempo depois, com meu próprio pai: durante o Plano Cruzado, ele se recusou a baixar o preço de alguma fruta ou legume que o juiz da cidade queria comprar mas julgava caro. O juiz insistiu, papai negou e no final da manhã o segundo estava preso na delegacia local, atrás das grades como um bandido. Passou o dia preso e só no final da tarde, quando o juiz voltou de uma jornada de jogo de cartas numa cidade vizinha, foi solto, em atendimento a um pedido do prefeito. Dia seguinte, o "jornalista" local, que participava dos jornais das rádios de Caicó e Currais Novos, deu a notícia: Severino Vicente foi preso por contrariar o Plano Cruzado. Papai, derrotado pela vergonha, vendeu a banca na feira e passamos alguns anos por dificuldades financeiras.

Não é um parágrafo, é, como diria um professor das antigas, um "fecho": e se o menino faltoso da escola de Sobral ficar revoltado com a exposição de seu nome nas rádios da região? Eu mesmo poderia nunca mais ter chegado perto de um livro emprestado depois daquele aviso na difusora da praça. E seria difícil arrumar livros em Parelhas naquele tempo, porque a cidade (e eu lembro de Caetano Veloso) não tinha livrarias. Nem eu teria dinheiro para comprá-los. Como diz um velho ditado, tudo demais é veneno.

O chiclete de ACM (neto)

Abro mais um "chicle de bola Homem Aranha" para adoçar a alma enquanto escrevo no Sopão e lembro da oposição ao governo Lula. É que ontem, revisando uma matéria do "Câmara Hoje" (o telejornal noturno da TV Câmara, todo dia às 21h, a não ser que o Plenário passe da hora), apareceu-me uma imagem comum e rotineira mas com um detalhe que traduz tudo, para quem tem olhos para ver: a cena era a de mais uma reunião de líderes da Câmara dos Deputados. Coisa que acontece toda semana umas duas vezes e aumenta mais quando há algum entrave especialmente polêmico tocando fogo nos debates parlamentares (melhor seria dizer fogaréu, pois que na maioria dos casos o calor gerado não passa ali do corredor das comissões, que o brasileiro médio, ocupado em ganhar a vida e se divertir que ninguém é de ferro, está certíssimo em não dar atenção demais às fogueiras do Parlamento). Pois bem: o detalhe que me chamou atenção - chamou atenção não, pulou da tela como se fora um hipertexto em forma de imagem - foi o comportamento do deputado Antonio Carlos Magalhães Neto. O cidadão, líder do DEM, o último baluarte da oposição pátria, participava da reunião mascando diligentemente um chicle de bola - não sei de da marca Homem Aranha, o que só aumentaria o caráter revelador da situação. É isso a oposição ao governo Lula: uma turma de derrotados mascando chicle de bola e com olhar blasé para o que se passa na realidade viva do país. Eles matracam os dentes, esfolam o maxilar, deslocam as gengivas nesse balbuciar crônico contra cada pequeno fato emanado do Palácio do Planalto e nada. Ninguém ouve - só os tais 30% de brasileiros que desde sempre rejeitam Lula, por motivos vários, preconceito social à frente. Mas é isso: ninguém ouve porque, dada à falta de relevância do que falam, é como se não estivesse falando mas apenas mascando o chiclete simbólico de sua insignificância.

Pra rever os amigos que um dia

Ao contrário do que pode parecer, não estou em obstrução. O silêncio dos últimos dias não tem nada a ver com protesto contra o excesso de medidas provisórias do governo - até porque, tenho que dizer por uma questão de honestidade intelectual, não há no país inteiro ninguém mais a favor de medida provisória do que eu. Imagine governar um país sem medida provisória. Experimente aí na sua família - e eu tenho certeza de que seus filhos, pais, tios, primos, cunhados e cunhadas são muito mais democráticos do que qualquer senhor parlamentar. Claro que numa coisas todos se igualam - falo de "todos" não me referindo só aos ditos parlamentares, mas a eles e às famílias supramencionadas: no final das contas, cada qual reforça na balança o peso de seus interesses. Todo mundo faz isso, é algo quase inevitável. O que muda mesmo é a qualidade da avaliação do discurso usado para disfarçar tal prática. Se for alguém da família, a gente faz cara feia. Se for um deputado ou senador, a gente decreta a falência dos políticos. Se for o presidente da República, então, a gente providencia uma bela campanha de impeachment. Pra retomar: esta semana fui convocado para trabalhar na terça e na quarta pela manhã bem cedinho, colocando no ar o Primeira Página (o telejornal que abre o dia aqui na TV Câmara) com Cláudio Ferreira e Aline Machado. De maneira que quem pula da cama às seis da manhã no susto não tem a menor condição de manter a espinha ereta e a mente esperta, duas condições walterfranquianas para se atualizar a verborragia de um blogue. Dito isso, assusto ou tranqüilizo a todos: tô de volta.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Pra acordar do feriadão



Veja só o que o poeta Gustavo anda escrevendo no "Razão da poesia" (link ao lado), a propósito desse luão que tem iluminado nossos asfaltos e nossas alamedas - as suas também, caro leitor, isso é certo - nos últimos dias. É leitura pra acordar quem ainda está dormitando o soninho vagaba do justo feriadão. Segue:





BRASÍLIA A SOL E LUA
Hoje cedinho, em Brasília, na parte oriental do céu, a lua cheia estava ainda alta e clara. Na parte ocidental, nascia o sol. Podia ver quem tivesse olhos: lua cheia e sol encontravam-se frente-a-frente. Súbito sentia-se a calmaria do céu promovendo este encontro inusitado, tão cedo. Tive a impressão de ver a lua sorrir e o sol pedir perdão. Cravei meu remo então no rio do céu para espiar melhor. As nuvens eram finas, traziam a poeira da noite, ninguém ainda havia acordado na manhã calma e triste de segunda-feira. Brasília nascia amanhecida de frio. O teatro sacudia sua lona, ia começar tudo de novo... Um novo espetáculo, uma nova distopia. Mas a cidade, no fundo, não ligava para isso. Tinha dentro de si arvorescendos. Pedaços de Natureza por toda a parte; acenos verdes sob copas nevadas.
É, acho que só a poesia salva Brasília. Digo hoje pelo menos isso: o sol e a lua cheia face-a-face a nos fazer olhar para o que realmente importa. E como a poesia não salva nem a si mesma... Brasília também se perde no infinito do céu, no sul de si mesma.

P.S: a foto que ilustra o blogue é, naturalmente, tão copiada quanto o texto. Mas a procedência só os deuses sabem.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Para ler na Semana Santa (Entreblogues)




Um giro rápido pelos blogues amigos e descubro um mundo de informações, reflexões, debates e puro bate-papo a um clique do mouse. Esse Entreblogues especial é para recomendar aos amigos do Sopão outras refeições amigas. Vamos a elas:

1 - No "Luzes da Cidade", Francisco Sobreira vai de efeméride e relembra a Semana Santa de sua infância. Tempos de santos encobertos, música fúnebre no rádio e um certo horário em que a mãe do nosso amigo comunicava, enlutada, ao filho: "Está começando a agonia de Jesus". Sobreira ainda tira do seus baús um antigo debate por escrito em folhas em sépia, quando ele outro integrante do Cineclube Tirol discutiram o que havia de bom e de ruim no filme Boccaccio 70. E você ainda vai ler "As mangas", um miniconto que em pouquíssimas e seletivas frases resume a nostalgia de uma infância inteira na mente de um homem cansado pelo peso da meia idade.

2 - No "Estuário", Samarone também vai de Semana Santa, mas volta sua prosa para as paixões de Cristo de subúrbio, levantando o making off de uma encenação de escola pública em Olinda. Destaque para a súbita interdição do Cristo, um Jesus negro que impedido de subir ao palco por um ataque de epilepsia. Mas prontamente substituído por outro que precisou apenas remover a maquiagem do Diabo, seu personagem original.

3 - No "Acari do meu amor", Jesus - o de cá da Terra, que não é má pessoa mas também não é santo - exibe uma bela foto de Hugo Macedo. É o Gargalheiras sob sombras do nascente (ou do poente?), numa imagem à altura daquelas comentadas na postagem sobre o livro "Seridó - Paisagens de uma terra encantada". O parelhense Hugo também é craque nessa matéria. Para ler, recomendo duas postagens mais antigas, mas ainda disponíveis na página de abertura: uma em que Jesus recupera a epopéia da construção da Igreja Matriz de Acari e outra em que narra peripécias infantis no exercício de tocar o sino da construção religiosa.

4 - O "Balaio Vermelho" de Moacy - que há tempos assumiu o nome de "Balaio Porreta" - traz de presente para o leitor uma lista com o que há de melhor em ficção científica. São livros, contos e filmes com o filé do gênero, num levantamento que inclui Clarke, Brandbury e Kubrick, entre outros. E atenção, que Moacy está pras bandas do Seridó: quando volta, despeja sempre muita coisa boa na panela do Balaio. É esperar pra ver.

5 - Deixei por último, de propósito, o "Seqüências Parisienses", que se distingue dos demais citados aqui por ser um blogue de uma celebridade intelectual - uma figura de quem gosto muito pela qualidade dos textos e da visão do Brasil e do mundo mas que, enfim, não é um amigo próximo como os demais. "Seqüências" é o blogue do professor Luiz Felipe de Alencastro, nosso homem na Sorbonne.
E as três últimas postagens merecem a atenção de todos. Numa delas, ele conta que a imprensa brasileira comeu mosca na cobertura da visita de Condoleezza Rice à América Latina. Anota o professor que Condi, refletindo a consolidação de uma postura dos EUA, evitou explicitamente a passagem por Buenos Aires. E isso interfere no papel que o Brasil desempanha na Latinoamérica. Outra postagem é um comentário do próprio Alencastro sobre um artigo que ele escreveu sobre as Farcs para o jornal O Estado de S. Paulo". No artigo, também disponível por um link do blogue, Alencastro avalia que o recente conflito foi rapidamente abafado devido ao risco de estourarem conflitos de fronteira muito maiores, envolvendo quase todos os países da América do Sul, da Nicarágua ao Peru. Coisas antigas que a diplomacia mantém caladas como vulcões adormecidos, mas... E a derradeira postagem versa sobre o padre Antônio Vieira, Maurício de Nassau e o fato de essas duas figuras terem sido, na época deles, ardorosos defendores do tráfico de escravos. Diz Alencastro, com a autoridade acadêmica que detém: o verdadeiro desafio do historiador é explicar as razões dessa postura - e não tratá-la como um fato menor. Lembrei de você, Flávia Assaf.
UM ACRÉSCIMO: a bobeira permanente me fez esquecer de indicar aqui o texto em destaque no "Sempre algo a dizer", do doutor Lobão. Mas talvez não tenha sido tão involuntário assim: é que o homem roubou um dos assuntos que eu estava guardando para as próximas postagens. Não tenho como levar o imbróglio às barras dos tribunais porque, afinal, o assunto em questão é público: é a excelente indicação do livro "Preconceito Linguístico", de Carlos Bagno que, fiquei sabendo só agora lendo Lobão (ou sabia mas não tinha me dado conta) é professor aqui da UnB. Como disse Lobão lá e eu iria dizer aqui, é leitura para virar de cabeça pra baixo um punhado de conceitos que você aprendeu a cultivar como dogma a vida toda. Um ensaio à altura de outro também recomendado há pouco pelo Sopão - o "Eu não sou cachorro, não", de Paulo César de Araújo. Reparando bem, os dois seguem uma mesma tendência que passa a vir à tona na observação do país e suas transformações. Um na música, outro na língua portuguesa que, perdoe o chavão, nunca mais será a mesma depois da leitura - rápida e objetiva, pois que o livro é curto e eficiente - do ensaio de Carlos Bagno. O link pro Lobão está ali ao lado, tanto quanto os outros.

Os links, meus camaradas, estão todos aí ao lado. Aproveite o feriadão da Semana Santa e se esbalde nos parágrafos dos blogues amigos, que não querem ver sua mente parada num canal de tevê ou numa revista que mastiga sempre o mesmo e velho discurso. Bom feriado.

O Seridó pretérito em fotografias



Quando Gabriel Villela estiver praticando seu deslumbramento com o Seridó, estará apenas se filiando a um vasto clube com muitos outros sócios. Um deles é o equatoriano Fernando Chiriboga, fotógrafo e designer gráfico que reside desde 1985 no Brasil e lançou recentemente um livro de fotografias com a paisagem natural e humana da região. Nessa mais recente temporada em Natal, encontrei e folheei ansioso, de pé e sem cansar, o livro "Seridó - Paisagens de um sertão encantado" na Siciliano do Natal Shopping. Trouxe comigo e tenho agora aqui em casa para mostrar aos muitos amigos que, por enquanto e por acaso, ainda não entraram para aquele clube de que falei lá no início.

As fotos de Fernando Chiriboga não ficam apenas na paisagem consagrada de Caicó ou Acari. O fotógrafo vai além, entrando por um território que a mim pessoalmente muito diz. Falo das terras do município de Equador, onde a serra do mesmo nome metia medo na minha infância de viagens a Campina Grande. Não sei se o nome da cidade sensibilizou o fotógrafo, já que é o mesmo do seu país de origem. O fato é que nos rincões de Equador e Santana já estamos nos limites entre o Rio Grande e a Paraíba, onde um outro Seridó - o chamado Seridó paraibano" - resseca seus outros painéis do Junco e de Soledade, terra natal de Ariano Suassuna e lugares por onde meu pai, o mangaieiro Severino Vicente, muito transitou. Por isso, na minha memória, esse é um território que compõe um outro Seridó dentro do Seridó, digamos, oficial. Pois Chiriboga esteve lá, no percurso de quatro mil quilômetros que conta ter percorrido para recolher suas imagens. Equador, Santana e Carnaúba, aceiros da pata do elefante, onde o cristão precisa ter boa resistência física e olhos e ouvidos abertos para a antropologia local, tão diversa de tudo o mais.

As fotos de "Seridó - Paisagens de um sertão encantado" quase sempre mostram um cenário verdejante, com especial cuidado para com os açudes da região. O Gargalheiras ao amanhecer, o Poço da Moça (Jardim do Seridó) em destaque absoluto, a barragem de Parelhas em vários momentos - um deles sob um luz que azula suas águas como nunca se viu para além das lentes cálidas do fotógrafo. Há ainda um passeio visual pelas igrejas da região, onde me chamou a atenção uma surpreendente minicatedral branca de adornos pintados em grafia meio moura lá em Serra Negra. Para quem nunca ouviu falar e ainda não entrou para o clube, o simples nome da igreja já abre as cortinas da curiosidade: é a matriz de Nossa Senhora do Ó.


E numa das páginas duplas, a surpresa absoluta: Chiriboga fotografou uma das mais belas imagens que guardo dos tempos de estudante secundarista, quando voltara para Parelhas à noite, nos finais de semana, no ônibus da Jardinense. Um pouco depois da Serra da Rajada - também fartamente registrada no livro -, no breu ou sob o clarão da lua na estrada, de repende, num alto, aparecia na janela do ônibus uma cintilante paisagem de luzes alinhadas que parecia suspensa sobre o solo. Ao fundo dessas luzes, a sombra bem delineada, especialmente nas noites de lua, da Serra do Boqueirão. Era Parelhas respirando sua noite de postes acesos. Era a volta para casa. Uma visão que me impressionava tanto que lhe dei até um nome: a planície dos vagalumes. Pois estou folheando o livro de Chiriboga quando aquela imagem me aparece nas páginas. O equatoriano fotografou minha memória, literalmente. A única diferença é que o fez do ponto de vista do alto da serra, enquanto eu via a mesma noite parelhense do ponto de vista de quem chega pela BR.

Mas nem tudo é lembrança pessoal. No livro, a paisagem natural e humana aparece com uma limpidez tal que refresca e afaga a nossa memória coletiva de um Seridó mais pretérito - um Seridó que existiu muito antes de o fotógrafo adentrar nas terras brasileiras. Me pergunto: como ele conseguiu isso? Me respondo: olhando para o que merece ser visto e estudado sem a facilidade da primeira impressão. Essa talvez seja uma pré-condição para assinar a ficha de filiação ao clube.

Ricardo III, quem diria, vai parar em Caicó



Gabriel Villela, o mineiro que se notabilizou no cenário brasileiro por uma original releitura de Shakespeare - Romeu e Julieta - em forma de teatro de rua, é o mais novo fã do Seridó. Depois de temporadas em Mossoró e passagens por Natal, o encenador descobriu um novo país chamado Caicó. E pretende levar para a capital do Seridó o mesmo artesanato teatral que arrancou elogios de figuras como Bárbara Heliodora, a severa - e já meio folclórica, vamos admitir - crítica de teatro do jornal O Globo.

Nem Hamlet nem Otelo. Gabriel Villela pretende levar para Caicó ninguém menos do que Ricardo III, o mais terrível, nefasto e autoproclamado vilão da dramaturgia mundial. Um personagem que, em sendo a tal ponto desumano em seus estratagemas de perseguição ao poder, pode-se considerar também como o mais humano dos vilões. Na praça estão disponíveis edições acessíveis (de bolso, da L&PM) com o texto da peça, além de adaptações várias. Assim de primeira, lembro de duas, bastante conhecidas: uma é o filme que Al Pacino dirigiu (Ricardo III - Um ensaio), em que encena o texto mas também divaga sobre seu conteúdo em forma de documentário especulativo; outra é uma adaptação mais fiel e linear, estrelada por Ian McKellen. O texto original também pode ser encontrado gratuitamente na internet. É só acionar o Google que se chega lá.

Com essas referências na cabeça - nunca li o texto original, embora dia desses tenha lido boquiaberto apenas a primeira fala de Ricardo III, trecho que abre a peça e em que ele se apresenta e justifica sua sombria personalidade - fico aqui imaginando como Vilela vai transcrever essa tragédia para o cenário de flores de cactus do sertão caicoense. Vejo, qual miragem, um Ricardo III coxo e cordunda entre facheiros, poeirento entre casarões em ruínas, sedento diante de um Itans terminal. Vejo o irmão do rei sangrando o punhal no fundo de uma torre do Castelo de Engady, em Caicó - ou a viúva docemente ultrajada enfurnando-se nas tocas do Castelo de Bivar, em Carnaúba dos Dantas. Vejo serrotes borrados na linha do horizonte fazendo as vezes das brumas dos reinos europeus. E vejo o sol de rachar enlouquecendo ainda mais a mente doentia de um homem que fez da maldade o sumo da existência, num espelho ofuscante daquilo que, infelizmente, cada um de nós também pode ser.

Ricardo III, quem diria, vai parar em Caicó. O Seridó aguarda e agradece, que isso é muito bom.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Edmilson e os doces espinhos da flor de cactus



Naquele tempo, não havia arquivos de música, iPod, mídia multilaser e programas de baixar música. Mas havia fitas K7 com duração de 45, 60 ou até 90 minutos onde se podia gravar uma programação musical a partir dos sulcos negros dos discos de vinil. E havia um interesse em descobrir toda a força dos ritmos brasileiros, do frevo ao xote. Havia, sim, pouco dinheiro no bolso para custear as tais fitas, como havia uma urgência em desbravar o novo disco de Raimundo Fagner ou Zé Ramalho. Havia, para além disso tudo, um sujeito calmo, quase calado, com a aparência do aspirante a cantor humilde que ele era e cuja profissão era gravar as tais fitas para a gente. Estamos em Parelhas, o ano é 1980 ou 1981 e vamos chamá-lo de Edmilson - porque eu esqueci injustamente o nome verdadeiro dele e porque aqui importa menos a identificação do que a identidade por trás da qual ele se escondeu naquele tempo de fitas K7, bolachões e raros três em um.



Edmilson tinha um rosto meio triste, umas barbas e bigodes ralos, camisa aberta no peito e um previsível cordão, salvo engano adornado por um ainda mais previsível medalhão à la Roberto. Ganhava a vida gravando fitas K7 numa das principais lojas da cidade, onde se podia comprar roupas, discos, cinturões de fivela brilhante e ou outros artigos. A sessão de discos era ótima: não tínhamos do que reclamar. Em destaque na vitrine, "Gal Tropical" e o Fagner de "Eternas Ondas", entre outros. Edmilson passava o dia num cantinho entre o balcão e as prateleiras da loja, gravando em fitas K7 as músicas que os clientes deixavam anotadas em cadernos - música angariadas na vasta discoteca que a loja mantinha. Às vezes, Edmilson curtia as músicas que gravava. Noutras - quase sempre - era obrigado, por dever de ofício, a ouvir milhares de vezes aqueles sucessos retumbantes e repetitivos que desde sempre agradam à maioria mas carecem de sabor depois de tocadas três ou quatro vezes.



Acho que Edmilson gostava quando eu aparecia por lá com meus tostões e a felicidade de poder gravar mais uma fita K7 onde cabiam os baianos todos, Rita Lee, Chico Buarque, sucessos internacionais, músicas de comercial de cigarro e, claro, as últimas novidades da geração de artistas nordestinos que sacudiu o sudeste a partir do início dos anos 80. Até Pink Floyd (o disco "The final cut" inteiro) eu mandei gravar na loja onde Edmilson trabalhava. A loja era um ótimo lugar para ouvir música, com um belo equipamento de som, coisa rara e muito cara naquela época (ou "naquele tempo", como dizia sempre o padre Raimundo na abertura dos sermões). Era bom passar tempo por lá conversando com Edmilson.



Sobre o que conversárvamos? Lembro de Edmilson reclamando de um certo tipo de música - não lembro qual - dizendo que não dava para chamar os amigos pra casa e ficar ouvindo "aquilo" enquanto se batia papo na sala. Desconfio que era algo mais avançado para a cabeça dele. Porque era bem simplório o mundo de Edmilson, morador da chamada "rua do cemitério", que não era bem uma rua mas um conjunto delas, casario humilde, bem próximo do cemitério municipal. Mas não se enganem, que Edmilson não estava morto. Ele tinha, sim, suas abreviadas ambições. Notava-se que tentava vestir-se com um aspirante a pop star de interior. Tovaca violão - o que, acreditem, não era muito bem visto naquele tempo e naquele lugar. Muito provavelmente viajava a bordo de substâncias tão naturais quanto ilícitas. Namorou uma garota de outro "meio social" e, sem a aprovaçaõ da família dela, o romance foi desfeito. E, claro - este é o item principal dessa lista -, Edmilson cantava. Tentou a "Mais Bela Voz do Sertão", que era então um célebre concurso de cantores promovido pela Rádio Rural de Caicó, com direito a ginásios lotados em todas as cidades do Seridó e transmissão radiofônica de finais e semifinais, com torcida e tudo. Minha memória é falha, mas tenho quase certeza que Edmilson - que pegou já a fase meio decadente do concurso - não agradou muito na "Mais Bela Voz".

Parecia que Edmilson estava condenado a viver naquele cantinho entre o balcão e a prateleira da loja onde gravava fitas K7 com músicas que quase sempre odiava. O fato é que, alguns anos depois, eu já estabelecido longe da cidade, minha mãe me deu a notícia: Edmilson (Ah, amigo Edmilson, como eu queria lembrar seu nome, perdoe-me) havia se matado. Parece que o encontraram enforcado na sala de casa - aquela mesma onde se recusava a ouvir com os amigos certo tipo de música.

Mas eu lembro um tipo de música que Edmilson certamente levaria para tocar em casa, colocando as caixas acústicas bem nos cantos da sala que era para dar mais densidade ao som (isso é uma dica que ele me deu e eu nunca esqueci). Essa música que agradava aos ouvidos de Edmilson era o som do conjunto Flor de Cactus - um pioneiro da música pop gravada em Natal, ali no início dos anos 80. Flor de Cactus era um surpreendente precusor de "A Cor do Som", para dar uma idéia da sonoridade a quem não pegou essa época e seus signos. Pois bem: foi por causa do Flor de Cactus e sua música pré-Babal, pré-Pedro Mendes e pré-Valéria e Cida Lobo que lembrei de Edmilson mesmo sem lembrar seu nome.

É que foi Edmilson quem gravou para mim boa parte das faixas de um dos três LPs lançados pelo Flor de Cactus - aquele que contém antológica gravação de "Pepitas de Fogo", de Zé Ramalho" - naquele tempo e naquele lugar, Parelhas, mil novecentos e oitenta um ou dois. Ontem, na casa de um amigo aqui em Brasília, encontrei num blogue desses de baixar música os tais três LPs do Flor de Cactus. Meu amigo, Renato Ferraz, gravou um deles pra mim. Um disco que ouço desde hoje à tarde, quase ininterruptamente, vezes e vezes, como fazia Edmilson com todo tipo de música que lhe pediam lá na loja. Não é uma audição, é um arrepio. Vocês imaginem o que é para os seus ouvidos reencontrar um conjunto de músicas que você cansou de ouvir e cantorolar quando era alegre e jovem, mais de vinte anos atrás?

E junto com a música veio a lembrança de Edmilson, sua breve estada entre nós, sua sombra de cantor anônimo, sua rotina de gravações em K7 e seu violão discriminado e mudo. Agora mesmo, enquanto escrevo, estou ouvindo o Flor de Cactus:

"Quero ser o vento dessa montanha / arrodeando a noite, soprando no seu coração
E quando for de madrugada / Serei galo cantador"



Canta, Edmilson, na montanha que lhe couber ocupar. Aqui embaixo, sou grato às suas gravações que ajudaram a me dar uma formação musical vasta, sensível e curiosa. Quem dera todos tivessem contado com elas.

P.S: a propósito, segue o endereço do blogue onde estão as informações e os LPs do Flor de Cactus, disponíveis para você baixar sem culpa, pois que jamais lançados em CD: http://www.sombarato.blogspot.com/

sexta-feira, 14 de março de 2008

Diário de férias - FINAL


Entrei de férias debaixo de chuva, voltei sob tempo fechado. Voltei e reencontro Brasília ainda encoberta pelas chuvas atrasadas deste verão que se despede. Nem são as águas de março fechando a estação; são os temporais retardatários de janeiro chovendo nas roseiras de asfalto da cidade e alagando tudo.

Por essas e outras, é como se nem estivesse passado duas semanas fora: a pauta do Congresso, que acompanho por dever de ofício, não mudou nada, nada. Quando saí, um Garibaldi ainda meio tonto anunciava com um Chinaglia como sempre cheio de si a firme determinação de votar um punhado de vetos presidenciais que caducam nos escaninhos do Legislativo. E, claro, havia a expectativa retintente desde o final de 2007 pela votação do Orçamento da União - que sem ele é a bagunça institucionalizada com o auxílio dos senhores parlamentares. Por último, havia, sim, sim, a novela da CPI dos cartões corporativos que não saía do canto, como que denunciando nesse vai-não-vai o real objetivo da investigação.

Pois bem, voltei e qual era a pauta? Votação do Orçamento - que só saiu agorinha mesmo, ontem ou anteontem, depois de Lula ter dado um pau geral em oposicionistas e aliados -; votação dos vetos presidenciais (essa ainda está na fila de espera, que juntar senador e deputado em sessão do Congresso é coisa para herói); e a tal CPI que somente esta semana realizou sua primeira reunião efetiva. Não perdi nada. Tudo assunto de que me ocupava antes de viajar. Foi como se eu tivesse ido na esquina fumar um cigarro, tivesse encontrado um amigo, gastado um tempo numa conversa boa e logo em seguida retomado o expediente imutável.

Mas não tenho do que reclamar: trabalhando excepcionalmente dois dias da semana das 10h às 16h, deu até pra retomar a maratona cinematográfica. E o que é melhor, vendo filmes dispensáveis, desimportantes, pouco recomendáveis! "Jogos do Poder" eu assisti o tempo inteiro tentando entender o real significado da piada. Foi mais um daqueles filmes que denunciam minha pouca inteligência: se você também ficar com a sensação de que há algo mais por trás daquela maneira coloquial-gaiata de contar como os zéua entraram na aventura pró-mujaredim lá nas bandas do Afeganistão dos anos 80, trate de ficar calado. É como dizia aquele comercial de desodorante: se um filme desconhecido lhe oferecer flores e você não sentir o cheiro, o tapado pode ser você. Também me aventurei a entrar numa sala escura para voltar no tempo e assistir a "10.000 A.C.". Sabe que eu me divertí? Por que não estava esperando nada além de uma aventura estilo meio "literatura infanto-juvenil" com muita floresta misteriosa, muito deserto implacável e alguma mitologia manipulada. No escurinho do cinema, eu me sentia um menino. Que é que posso querer mais?

Notícias de Rejane, Cecília e Bernardo: ela está se enfronhando nas primeiras aulas, reuniões e reflexões do mestrado em Comunicação que começou agora sim a cursar na UnB. Cecília fez muxoxo no segundo dia de escolinha mas no terceiro já anunciou que estava na hora de pegar no batente do Golfinho Dourado. A impressão é de que não lembrava mais do que é a vida de todo dia aqui no planalto. Uma vez que voltou à escola, lembrou de tudo, dos colegas, das cadeirinhas, das brincadeiras - e enquadrou-se rapidinho. Melhor assim. Bernardo, bem, ressente-se um pouco da falta de espaço, mas segue treinando para andar o que as pernas e os móveis lhe permitem. Feliz e risonho, como sempre - ou talvez até um pouco mais quando a gente chega em casa depois do trabalho.

Contratempos incluídos, as férias foram ótimas. Obrigado à família e aos amigos. Aos leitores, nos quais aqueles se incluem, bora trabalhar para o Sopão não perder o tempero.

Diário de férias - 7 (fotos)







































Legenda: 1- almoço em família / 2-a convivência homem-animal na casa de tia sandra / 3 - banho de piscina com titina / 4 - banho de sombra com vovó isabel / 5 - banho de mar em pipa / 6 - caminhada à beira-mar em ponta negra

segunda-feira, 10 de março de 2008

Diário de férias - 6 (um falso guia)

APONTE...

A ponte não é para ir nem pra voltar, é somente para atravessar, ver céus listrados passando entre fios metálicos, enquanto lá embaixo o Potengi serpenteia na perpendicular dos pneus dos carros rumo ao tenebroso Atlântico. Finalmente ajoelhei-me motorizado aos pés da ponte, vi sua imponência ventilada e uma vez tragado por suas pistas, desemboquei no ruge-ruge dominical da Redinha negra, pobre, barulhenta e suada. No bar mais lotado, o cantor sintetizado relembrava hits de Raul Seixas, enquanto um navio mercante grandão e vermelho adornava o vasto vão da ponte.


ARRANQUE...

Em Acari, o problema da água é cada vez mais grave. Ai de quem não tem reais para pagar pelos tonéis de minerais ou por outros mananciais. Enquanto isso, a prefeitura ignora Kyoto e arranca pela raiz - eu disse "arranca pela raiz" e não apenas "cortar", "podar", "aparar" - metade das algarobas daquela pracinha que é quase um canteiro na avenida principal. A rua da Matriz perdeu três ou quatro algarobas que ajudavam, ainda que pobremente, a filtrar o ar que a cidade respira, absolvendo o monóxido dos caminhões que sobem - ou descem - a ladeira. As coitadas - falo das algarobas - foram acusadas de propiciar a dengue no sítio em questão. E prontamente executadas sem que a população local se dê conta do alcance do crime. À noite, sentado em minha cadeira na calçada, apalpo a brisa enquanto vejo o Jardinense subir e descer levando a bordo minhas memórias de secundarista. Vai, Jardinense, e traz de volta um cheiro de verde algarobado para a praça do Acari ameaçado.


CONSTRUA...

Pipa está virando um grande paredão que se move em direção ao mar. Um apinhado, na vila que a bem da verdade desde sempre foi feita de estreitezas em alvenaria e amplidões em negócios. A continuar assim, vai faltar espaço para o ventinho tão típico passar. Minha esperança é que sobre um beco qualquer entre as construções em estilo mediterrâneo - a moda local que os turistas estrangeiros trouxeram. Ecologistas profissionais ou aspirantes impressionam-se com a língua de água negra que tomou parte da praia. Eu, não. Lembro de já ter visto aquele riacho de maré há uns bons dez anos - e de depois nunca mais tê-lo visto. Os locais dizem que é um fenômeno natural chamado "maceió". Mas esse maceió de areia me incomodou menos que o paredão geral que estreita ruas, enfurna caminhos e subtrai ventilação. E não é que, de tão profissionalizado, o turismo de Pipa conseguiu finalmente manter visíveis e pisáveis os paralelepípedos da avenida Baía dos Golfinhos? Já lá se vão uns anos, a prefeitura de Tibau tentava, tentava mas nunca conseguia. Os locais sempre davam um jeito de espalhar areia sobre as pedras para, claro, proteger a sola dos pés que sempre preferiram andar descalços. Agora, pelo jeito, têm que suportar a quentura das pedras. Ou aderiram de vez às célebres alpercatas de plástico made in Brazil.

Diário de férias - 5






Na foto, o confronto final de "O gângster": "sem balas, mano"









"O gangster" é tributário de uma tradição. Descende naturalmente dos Scorsese dos anos 80, do gênero policial-dramático-documental que alimentou até Sérgio Leone (lembrai-vos do grande "Era uma vez na América", agora disponível baratinho em cópias em DVD), da grande investigação em imagem e som feita por uma leva de cineastas americanos em torno de gangues-mil, fossem irlandesas, italianas ou de outras descendências - e nem preciso falar de um certo e poderoso chefão. É tributário inclusive do cinema eletrizado, urbano, violento e - sim, senhor - poético de seu próprio realizador, Ridley Scott.

Por tudo isso, "O gângster", o senhor ou a senhora há de dizer, não é nenhuma brastemp - e não merecia a falação toda que o antecedeu e o acompanhou. É, pode ser. Mas, para além de sua embalagam pop-rock-setentista, "O gângster" tem uma surpresa e tanto. Uma anti-surpresa, pra ser mais preciso.

Vai dizer que você não espera que o filme termine num confronto tipo "fim do mundo", uma saraivada duelada entre Denzel Washington e Russell Crowe - um enfrentamento terminal pontuado por balas-mil como o de "Fogo contra fogo", onde Robert de Niro e Al Pacino mediram suas estaturas em widescreen?


Pois isso é tudo o que não acontece no "Gângster" revisitado de Scott. O confronto aqui é, no máximo, verbal - mas sem gritos, que o fato consumado de uma quadrilha espatifada dispensa bravatas. E é só nessa discussão - um diálogo quase telepático a unir bandido e mocinho em torno de estratégias e artimanhas - que os protagonistas se medem, comparam-se, examinam-se enquanto o espectador conclui, ensimesmado: "O gângster" é o triunfo da antibossalidade. Duelo em que os resultados dependem mais da inteligência do que do tiroteio - mas não saiam da sala, que tiroteios o filme os tem, sim, a questão é outra.

Viva a antibossalidade do desfecho do "Gângster", que renova o gênero fugindo de suas armadilhas. Belo encerramento para a maratona do cinema "no cinema". Até a próxima.

Diário de férias - 4


A maratona prosseguiu com duas adaptações de livros para as telas. E as conclusões, ao final das duas exibições, soaram combinadas. Um foi "Desejo e reparação", a transposição para o cinema do livro de Ian McEwan. O outro foi "O caçador de pipas", história predestinada a acabar no cinema por ser, já no plano da escrita, quase um roteiro. A conclusão: "Desejo e reparação", o filme, me pareceu bem melhor do que "Reparação", o livro. Porque intensifica em imagens a tensão que o livro dilui em uma prosa que não diria barroca, mas morna, suada, pegajosa como o verão em que seu início se passa. O filme como que filtra isso, resseca tudo, condensa o resultado - e produz uma adaptação aquecida, onde respira, ansiosa, uma história muito melhor de ser vista do que de ser lida. "Reparação", o livro, já foi tema de extensa postagem aqui no Sopão. Basta pesquisar no marcador "Livros" que o leitor toma conhecimento.

Já "O caçador de pipas" faz o inverso - exatamente o inverso do que se deu na adaptação de "Reparação". O livro, um campeão de vendas por simplório, didático e algo reconfortante com uma boa história ancestral, foi ainda mais suavizado na versão cinematográfica. Fui atraído para ver o filme por um motivo semelhante ao que me levou ao livro. Num caso, o do livro, pelo sucesso mesmo - o fato de essa história estar sendo tão lida no mundo todo. No outro - o do cinema - por um trailer desses que ficam em exibição na internet. Não gosto de trailers e geralmente campanhas promocionais de filmes não me atraem. Mas neste caso, as imagens antecipadas me atiçaram a curiosidade. Vale a pena para quem leu "O caçador..." checar o resultado da adaptação. Mas o ganho que haverá será pela mera transposição das imagens - parece que foi você, leitor, quem dirigiu o filme, tal a semelhança entre o que a leitura inspirou e o filme materializou na tela. Claro que isso não é bom: o filme resulta muito preso ao livro, ainda que esse fosse quase um roteiro já decupado. Mas não deixa de ser um exercício de contemplação - e se contemplação não for um objeto do cinema eu me calo.