sábado, 31 de julho de 2010

Pneu no asfalto


Até os túneis de Alcaçuz sabem que o país mudou imensamente nos últimos dez anos. Mas uma coisa é ter consciência – ou uma vaga noção dispersa porém convicta – dessa mudança; e outra, bem mais impactante, é ver, qual um São Tomé embasbacado, as transformações passando na sua frente, como astros de um espetáculo tantas vezes negado. Ou você já esqueceu do espetáculo do crescimento, aquele que primeiramente foi duramente questionado, para depois ser aceito com relutância e em seguida ser analisado como um feito fácil, pela ausência de crises financeiras mundiais que não existiram?

Isso tudo na visão torta dos formadores de opinião de outrora – aquele tempo que já parece distante na poeira da estrada, em que o brasileiro em geral, desprovido de oportunidade na vida, precisava de uma figura deste tipo. Felizmente, ganhamos uma espécie de maioridade civil no estatuto da opinião própria e sabemos que, primeiro, a crise financeira de fato existiu. Segundo, que não foi pequena. Terceiro, que foi administrada de maneira a fortalecer o mercado interno em expansão, neste arranjo possível de cidadania também representada por dinheiro no bolso, e não a seguir cegamente a cartilha dos mandões da economia mundial.

Mas o que se quer destacar aqui é menos a atmosfera intangível do debate econômico às vésperas de uma nova e animadora eleição presidencial e mais a expressão viva e inegável daquela mudança que é do conhecimento até dos três túneis por onde já escaparam bem mais do que dez presos em Alcaçuz. Acabei de fazer uma viagem de carro entre Brasília e Natal, viajando pelo interior do país, correndo o cerradão goiano, cortando o sertão goiano, baiano e pernambucano, xeretando pelo para-brisa os pequenos sítios da caatinga paraibana e potiguar, até chegar aos doces tabuleiros arenosos do litoral aqui da esquina do continente. O que os meus olhos – e os de quem se destinar a fazer essa mesma viagem, por lazer ou por obrigação – viram foi, se não um Brasil já reformado, um país em obras. Obras avançadas, que se entenda bem.

E não se trata apenas de uma reforma do tipo recapeamento de asfalto. Tem disso sim, muito, mas tem principalmente as conseqüências do que uma malha viária nova, associada a outras políticas de governo, provoca na economia do interior brasileiro e, por tabela, na face de quem habita o nosso vasto sertão. O que os meus olhos viram foram estradas impecáveis onde dez anos atrás havia trilhas de motocross com nome de rodovia federal. Foram cidades em notável crescimento, comércio em expansão, manadas de caminhões carregados, uma frota que pareceu inteiramente nova na carga e nas condições, além de demonstrações mais singelas daquele espetáculo do qual tantos duvidaram que são as milhares de fachadas de casas simples visivelmente pintadas há pouco tempo e em cores vivas.

Nem todos os caminhões de algodão e outros produtos agrícolas que tive de ultrapassar naquele infindável interior da Bahia – para exemplificar, num trecho de 100 km, foram 100 caminhões contados – talvez valham tanto para expressar essa renovação do espírito brasileiro quanto uma casinha de beira de estrada estalando de nova na sua pintura reluzente. A pequena reforma da casa onde se mora pode bem ser a etapa final do processo que um economista desapegado vai analisar na sua prancheta de números como conseqüência do crescimento econômico, mas é ali, no verdão chamativo que envolve porta e janela à margem do asfalto que alguém pintou, qual criança com caderno de desenho, seu orgulho derradeiro de viver com um pouco mais de dignidade, inclusive financeira.

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

O Brasil do Bruno


Um amigo muito querido faz um pedido, ou uma provocação sadia – não sei. Ele espera que eu fale menos aqui sobre uma Natal que não mais existe e mais sobre o Brasil do Bruno. De cara eu gostei da expressão que o amigo usou: o Brasil do Bruno; repito, já tomando o termo composto como um refrão verbal daqueles que resolvem a vida de qualquer pessoa que viva da palavra escrita. Mas alto lá. O Brasil do Bruno, como slogan involuntário de um país errático, pode ser um engano circunstancial, meu amigo. Porque a expressão, forte e aliterativa, pode ser uma armadilha dourada, do tipo que encanta o olhar do pássaro confuso que cada um de nós pode ser e nos colhe num instante fugaz de ignorância. Captura nosso raciocínio numa confortável arapuca de palavras, favorece uma impressão de inteligência própria, contorna uma opinião que estava apenas pontilhada. Numa palavra: ilude, causando uma impressão de realidade que não contém o real – este ente múltiplo como as figurinhas de um videowall japonês e escorregadio como um pau de sebo de festa matuta.

Meu amigo, meu irmão: quando ouço a expressão “o Brasil do Bruno”, escuto invariavelmente um sermão supostamente esclarecido sobre as mazelas brasileiras, nossas misérias de estimação, de que cuidamos tão bem (digo, tão mal); nosso deleite intelectual de nos colocar acima desta merda toda, com a superioridade de quem não está comprometido com nada – portanto, está limpo – mas também a inferioridade jamais assumida de quem também não move nada para tirar o que quer que seja do lugar. Enfim, quando ouço a expressão “o Brasil do Bruno” querendo sugerir que somos mesmo uma raça condenada ao atraso, tentando manter acesa a todo custo a chama da nossa própria iniqüidade, procurando de todas as maneiras segurar a onda de um estado de coisas do tipo anos oitenta em molho de niilismo blasé, vejo imensa na sala a sombra da nossa culpa de estimação . Aquele álibi perfeito para a paralisia dos nossos atos ou, o que é bem pior, a imobilidade teimosa da nossa mente.

Amigão, o Brasil do Bruno é sim o país da bossalidade remunerada. A pátria da violência desenfreada. O território do jornalismo novelesco que troca o debate igualitário pelo medo coletivo. O Brasil do Bruno é sim o país onde a saúde pública morre como um cão de rua e a educação claudica, especialmente nas categorias de base. É igualmente o Brasil que coleciona estatísticas de fragilidades sociais, ipeas de auto-imolação bem tabuladas, índices indigentes de leitura, fartura de casos de corrupção e inacreditáveis índices de sobrevivência de oligarquias estaduais – embora este último item esteja, ao menos aparentemente, em processo de mudança (ainda que não entre nós, admito).

Mas o Brasil do Bruno, amigo velho, também é um outro que teima em fugir do ângulo de visão estreito de muita gente boa, que estudou sociologia, praticou jornalismo, exerceu a ciência política, percorreu os clássicos da literatura ou só bota a cara fora do carro quanto tem certeza de que está na garagem do prédio ou na porta da loja. E este outro Brasil do Bruno, escondido sob as luzes do último escândalo político ou criminal, é um país renovado, que aparece no sorriso daquela sua prima pobre que você não vê há tempos, que se materializa no emprego novo daquele conhecido que você não avista desde os tempos do governo Itamar, que se traduz em um pouco mais de dinheiro no bolso – e menos no bolo geral da renda pátria – daquela simpática dona de barraca de frutas ali na entrada de Nova Parnamirim.

Este outro Brasil do Bruno é um país que não tem vergonha de ser “do povo”, que acredita em crescimento possível, que não se deixa enganar por qualquer conversa de quem se mostra pronto a resolver tudo em passe de mágica. É um país que não quer mais esperar pela gestão perfeita se divisar no horizonte a possibilidade de que pelo menos metade de seus problemas tenha um indicativo de solução ou melhoria. É um Brasil de brasileiros forjados em décadas de discursos vazios de resultados, um Brasil que passava ao largo da pauta dos literatos, da agenda dos professores universitários, da visão dos planejadores oficiais. Um Brasil invisível até outro dia, que de um dia para o outro parece que resolveu botar a cara na janelinha de casa e abrir aquele sorriso de quem se reconhece em ações mínimas capazes de valorizar suas existências antes meramente numéricas.

Este é o Brasil que a imprensa insiste em não ver – não sabemos se por cegueira natural ou má vontade implantada. O Brasil que dorme e acorda lá fora enquanto você está lendo seus poetas de vanguarda. O Brasil onde seus filhos e seu netinho se ocupam de viver de olho na oportunidade que surge, na possibilidade que se anuncia, sem perder de vista o panorama dos problemas que são tantos mas também sem fechar os olhos para o que efetivamente está mudado. Não devia, mas vou apelar, citando o seu tão querido Belchior, amigão: “É você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”.

Meu caro amigo, me perdoe, por favor. Se não lhe faço uma visita ou se pego pesado no verbo aqui empregado é por querer bem à sua pessoa e não querer lhe ver repetindo, qual fantoche que você não é, o discurso fácil e de interesses restritos que outras vozes, mais poderosas que as nossas, espalham por aí. A tais vozes muito interessa propagar toda e cada uma das ondas turbulentas daquele Brasil do Bruno, contumaz no erro e sombrio na frieza. Mas não se deixe vencer pela força estética do horror que salta do filme a esta altura já antigo para a vida real de todo dia. Esta parcela de horror, por mais medonha que seja, não é todo o real – embora seja parte importante e incômoda dele. Abra os olhos também para o Brasil do João, o Brasil da Maria, o Brasil da Joséria, do Bernardo, da Cecília e do Vinícius, tão fortes e tão verdadeiros como o Brasil daquele outro de tão nefasta presença.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A ressurreição de Ravengar


Meu amigo Carlão, que está convencido de que estamos a um passo do totalitarismo, vai adorar: no novo filme do cineasta paulista Ugo Giorgetti, que vai se chamar "Solo", o ator Antônio Abujamra aparece sozinho, do início ao fim, trancado num apartamento discorrendo sobre as mazelas próprias e as do mundo ao redor que ele, naturalmente, odeia. Repare o que diz a revista da Livraria Cultura sobre o filme: "No monólogo, o personagem, interpretado por Abujamra, trata com perplexidade e sarcasmo sua própria existência e o modo como se relaciona com o cotidiano da vida moderna, que ele não compreende mais. 'É uma forma de mostrar a decadência do mundo, por meio de um cara - já velho -, que fica em casa observando sua própria estupidez e a estupidez do mundo, de um cotidiano trágico como é o cotidiano brasileiro. É tudo muito feio', justifica. O ator cita a frase do poeta Paul Valéry para resumir o sentimento predominante no filme: 'Os acontecimentos me enojam'".

Andei trocando uns e-mails com meu amigo Carlão e não tinha como não lembrar dele lendo essa pequena reportagem sobre o filme na Revista da Cultura. Note como o texto legitima essa visão presente no filme reportado, de um mundo mal, errático, sombrio e necessariamente falido, seja em termos culturais, econômicos, sociais e por aí afora. E tudo isso é feito de uma maneira ocasionalmente charmosa, com o brilho blasé que a decadência parece ter aos olhos da intelectualidade. Fico pensando o quanto essa intelectualidade consegue se distanciar da realidade, que pode ser totalmente desprovida de charme mas não de outros valores que não pesam muito na balança de quem vê o mundo por esse prima. Já fui assim, já pensei nestes termos, mas sempre mantive um pé no chão das privações que levam o sujeito a se animar com qualquer possibilidade de felicidade. E hoje, quanto mais velho fico, mas me impressiona esta obsessão com a queda, essa atração para o fim que parece estar por trás deste tipo de análise da realidade brasileira ou mundial. E me irrito mesmo é quando vejo este tipo de apreciação - a que, bem ou mal, tenho que respeitar, embora também possa comentá-la nos termos que uso aqui - sendo usada para interesses outros, ainda mais ilegítimos, como mui frequentemente acontece. Em períodos eleitorais, então, nem se conta.

Que outras pessoas vejam o mundo por meio dessa lente escura que deixa tudo com um ar terminal de que nada-vale-a-pena é aceitável na medida em que muitas outras coisas são. Mas meu amigo Carlão me preocupa, porque às vezes tenho a impressão de que ele está vivendo trancado em casa 24 horas ouvindo a rádio CBN. Carlão, rapaz, abra a janela, respire um outro ar, ouça as novas vozes roucas que vem das ruas. E se meu apelo não lhe sensibiliza, resta-me, com a formalidade da próclise, reproduzir aqui um outro trecho da mesma reportagem da Revista da Cultura, onde se lê uma "aspa" do cinasta Giorgetti que diz assim: "As pessoas acham que dentro de um regime totalitário não há normalidade, o que é um equívoco. A vida continua, em corda bamba, mas não para".

Esclareço a circunstância dessa última frase, para que não haja confusão (mais uma) com o governo Lula. Giorgetti disse aquilo lá a propósito do seu próximo projeto, o filme "Corda Bamba", que apresenta o cotidiano de diferentes personagens brasileiros no ano de 1971.

Diário de férias na Hamaca

Dia desses, num bate-papo de rotina com amigos no trabalho, uma colega - apenas por coincidência, também potiguar - relatou as impressões de viagem que teve uma tia dela, que mora há vinte e tantos anos em Brasília mas, sendo também potiguar, costuma ir periodicamente de carro até o estado do elefante. Segundo a colega, a tia - que, notem bem, sempre vai de carro, pneu no asfalto, o que corresponde quase uma câmera em movimento a captar a realidade do país - voltou encantada da mais recente visita a Natal. Contou à sobrinha, minha colega, que em anos de viagens na mesma rota nunca tinha visto tanta gente com sorriso no rosto, tanta estrada em boas condições, tanta cidade crescendo a olhos vistos.

O trecho acima é parte de um pequeno diário de viagem recém-aberto lá na Hamaca, para registros da viagem que faremos a Acari-Pipa-Natal, de carro, pneu no asfalto, a partir de amanhã.

Todos rumo à Hamaca, clicando aqui.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Espiões, bicudos e bacuraus


Quem diria que, apenas um ano após as comemorações pelas duas décadas da queda do Muro de Berlim, espiões russos estariam sendo presos nos Estados Unidos? Pois foram, como a gente leu nos jornais e viu na tevê: 11 camuflados olheiros das ex-terras de Lênin fuçando segredos de polichinelo de enrolados ocidentais com os pés atolados no que restou do Iraque. Tudo bem que todo mundo só teve olhos para Anna Chapman, a espiã que degela corações e mentes com sua fachada de Bond girl, mas o fato é que no grupo estavam casais de meia idade, uma jornalista, gente com emprego regular. A própria Anna, quanto abstraída da estampa de capa da Playboy, era uma comuníssima corretora imobiliária.

Pois essa gente tinha em casa, além das crianças de praxe, aparelhos de ondas curtas e códigos secretos, como se vivêssemos todos na era cinzenta em que um casal do tipo gente como a gente virou espetinho de cadeira elétrica por suspeita de colaboração com os ogros do Kremlin. Por essas e outras, quem vive tranquilamente à brisa do Atlântico nas esquinas de Natal deve botar as barbas esquerdistas de molho, caso ainda as tenha, claro. É que, embora ninguém se lembre, temos uma vasta experiência quando o assunto é espionagem internacional.

E se no coração oscilante do mundo, os EUA, a polícia anda prendendo pretéritos espiões para os quais o tempo não parece ter passado, nada impede que reapareçam entre nós, potiguares, vultos de antigos e ambíguos agentes do Eixo da II Guerra, como baratas sonolentas que acordam de um sono prolongado e voltam às ruas para assombrar um mundo supostamente pacífico. Duvida? Pegue qualquer livro de história local e divirta-se com os acontecimentos dos tempos em que Natal era o Trampolim da Vitória para as tropas aliadas reunidas em Parnamirim Field sob o comando dos destemidos americanos...

Em apenas um dos capítulos de “Natal, USA”, o livro de Lenine Pinto que narra as peripécias daqueles tempos, o leitor curioso vai encontrar histórias tão incríveis quando a explosão de uma caneta-bomba jamais totalmente esclarecida ou o estranhíssimo hábito feminino de usar flores fluorescentes na lapela em noites de blecaute. Flores que, entendam bem, a leitura sugere terem sido uma mercadoria com muita saída no comércio muito particular da época.

A Natal que emerge de livros como este é uma cidade absolutamente estranha à nossa atual metrópole apressada. Parece mais uma Casablanca brazuca, habitada por um sem número de nacionalidades – holandeses, palestinos, romenos, sírios e por aí afora – atraídas como moscas pelo brilho temporário com que a presença norte-americana iluminou nossas dunas. Se não tínhamos um Rick Café por onde poderia circular, elegante e blasé, uma Ingrid Bergman vaporosa, havia, à guisa de cenário para conspirações, o Café Cova da Onça onde sempre poderia aparecer uma versão cacobla da estrela de cinema.

Atheneu iluminado


No capítulo da espionagem de guerra que vigorou em Natal, as histórias chegam a divertir. O riso despreocupado é obra da subtração da gravidade que o passar do tempo promove – ou produto do nosso muito particular e saudável hábito de rir da nossa própria imagem.

Fato é que até hoje não se sabe bem se é lenda ou verdade o caso do sujeito acusado de sabotar os aviões americanos derramando açúcar nos tanques de combustíveis. Certo mesmo, segundo o relato de Lenine, é que o tal acusado de sabotagem sumiu da cidade assim que o boato se espalhou. Também tem a história dos espiões que tiveram acesso às plantas do que seria a base americana ainda por construir e memorizaram tudo para redesenhar em croquis que iriam parar nas mãos dos inimigos. O que diriam em memória destes abelhudos esforçados seus descendentes atuais munidos de máquinas fotográficas digitais eficientes, discretas e silenciosas?

E o caso das luzes do Atheneu, que um distraído inspetor escolar teria esquecido de apagar justo na temporada de blecautes mais obrigatórios? Um vacilo desses, naquele tempo e lugar, equivalia a uma confissão de culpa sujeita a penalidades de guerra. E pior do que esse que deixou destacado na noite tropical todo o esplendor do Atheneu do anos 40 foi o discotecário que abriu a programação do dia da Rádio Educadora com o hino da Alemanha. Sim, o hino da Alemanha, em plena II Guerra. Se é que isso foi mesmo obra de um discotecário distraído. Há controvérsias, contra e a favor, até hoje. Mas a história ilustra bem o clima de mistério que vigorava na época.

Um clima geral de muitas suspeitas e desconfianças, de maneira que, embora os livros não digam claramente, só podemos concluir que, enquanto durou a Guerra, para andar em Natal o cidadão tinha que olhar para trás o tempo todo, para os lados, calcular bem a esquina onde poderia dobrar, o beco a evitar, a birosca providencial onde se esconder em caso de emergência. Agora imagine testemunhas – e protagonistas esquecidos – daqueles tempos voltando à superfície, repetindo aqui, de outra maneira, o flagrante dos 11 espiões presos nos EUA muito depois do fim da guerra fria. Com a profusão de blogues, colunas, notas e oráculos a dominar o confuso ambiente informativo local, daria um imbróglio bonito neste período de véspera de eleições.

Com a confusão ideológica – para não usar expressão menos nobre – que marca as candidaturas apresentadas, haveria trabalho para todos. Espião algum ficaria desempregado em cenário de tamanha deslealdade e incoerência partidária. E ninguém seria preso, claro, já que mudar a pelagem política para atender à sobrevivência momentânea não é crime. Se até os espiões – aqueles durões, clássicos, de antigamente, retratados nos livros de John Le Carré – trocavam de lado, porque haveríamos de cobrar legitimidade às gerações atuais? Pensando bem, bons tempos aqueles em que, além de espiões calejados, tínhamos inocentes bicudos e angélicos bacuraus.

*Publicado no Novo Jornal (Natal - RN)

terça-feira, 13 de julho de 2010

Gângsteres no saloon


“O Pagamento Final” é um faroeste disfarçado de filme de gângster. Ou um filme de gângster que presta homenagem aos faroeste. Vide a sequência da estação ferroviária – estações parecem ser mesmo um fetiche visual para o diretor Brian de Palma, mas isso é outra conversa. Tanto quanto remete à cena da escadaria em “Os Intocáveis” – que, por sua fez, como deus e o mundo sabem, é uma referência ao cinema de Eisenstein – o tiroteio e a perseguição dessa sequência, de fato a última do filme, reproduz os divertidos cacoetes dos westerns mais manjados. A diferença é que, no lugar de balcões de saloons e cavalos que passam disparados escondendo pistoleiros de mira microscópica, temos escadas rolantes e modernos empurra-empurras.

Al Pacino, vocês lembram, era Carlito Brigante, um criminoso porto-riquenho com a vaga aspiração de cair fora da bandidagem. E o que o filme mostra é a infrutífera luta dele para atingir esse aparentemente singelo objetivo. Claro que ele não consegue: não só porque estragaria a premissa da história, mas porque, enquanto Carlito mofava na cadeia, lá fora nas ruas tudo estava mudando. E é ele quem constata a mudança, na frase que traduz o filme, logo depois de um assassinato brutal como convém ao cinema de Brian de Palma: de organizado o crime não tem mais nada; agora é só um bando de cowboys atirando a esmo. A frase, claro, não é literalmente esta – mas o sentido está claríssimo como o sangue que jorra de mais de um pescoço nos filmes de De Palma.

Há, entrementes, uma interessante troca de papéis a ilustrar a contramão em que vive Carlito Pacino. Enquanto ele tenta, tanto quanto pode, cortar os laços com as máfias portoriquenha, italiana e de nacionalidades outras, seu advogado viajandão Sean Penn faz o caminho inverso, trocando cada vez mais a estampa de cêdêéfe do direito para investir na carreira de consumidor e negociante de drogas, até matar um chefão daqueles de responsa. O diálogo verbo-visual – o bate-bola cinematográfico – entre Pacino e Penn é um mimo à parte que o filme oferece à platéia sedenta por mais um subproduto da era “O Poderoso Chefão” que, via-se ali, ainda dava no couro.

P.S: Mais sobre o cinema de Brian de Palma na postagem abaixo.

Estação De Palma


Todo filme de Brian de Palma tem pelo menos uma cena em que o personagem toma aquele banho de chuva. Não uma chuva qualquer, mas um temporal azulado que desaba como uma orquestra de tiros líquidos sobre a face do herói machucado. Um aguaceiro que deixa o ator em estado de quase desintegração, como se ele pudesse a qualquer momento se desfazer em pasta de gente, gel de pessoa, esgoto saturado em forma de medo, horror e tensão. Tanto quanto isso é verdade – e eu nem preciso ter visto todos os filmes do homem pra saber que a cena da chuva está lá, indefectível como o cigarro no bico do detetive de cinema noir – é igualmente válida a mesma pergunta em todas essas cenas. Nos filmes de Brian de Palma, já se disse, há sempre uma cena de protagonista borrado na chuva. O que não se disse ainda é: por que danado aquele protagonista molhado não usa um guarda-chuva, não se protege sob uma marquise, não levanta sequer a aba do sobretudo para livrar pelo menos os olhos do aguaceiro?

Simples, meu caro cinéfilo: porque, se o fizesse, não se molharia ao ponto de acrescentar tensão visual ao filme. De fato, em todos os filmes de Brian de Palma, por muitos (mas não eu) considerado um reles imitador barato de Alfred Hitchcook, é preciso, vital, imprescindível que alguém atravesse um temporal como quem passa pela cortina de ferro de um fato chocante da vida. Lá está a chuva, sublinhando ainda mais os quadros de De Palma, injetando incômodo na cena primordial, ainda que tal incômodo, com a chuva que qualquer um pode evitar, lá esteja em caráter aparentemente gratuito. Aparentemente. Porque a lógica da vida real não se aplica aos esquemas cênicos a que o senhor De Palma lança mão para fazer do cinema uma aventura tão inverídica quanto divertida – e sobretudo expressiva.

A chuva emporcalha cada sulco da cara naturalmente amassada de Al Pacino em “O Pagamento Final”, enquanto ele observa, do alto de um prédio e sob um temporal tsunâmico a namorada dançando em um salão protegido na construção ao lado. Daqui a pouco, está o casalzinho no café tão americano, ela linda com uma Jessica Lange renascida, e ele – bem, ele seco e aspirado como se nunca jamais em tempo algum houvesse se submetido ao bombardeio líquido da chuva fechada da cena anterior. Em “Vestida para Matar”, o adolescente que investiga o assassinato da mãe está também espionando uma janela – como são indiscretas as janelas dos filmes de Brian de Palma – para solucionar o mistério da trama. Em que condições? Debaixo de um toró daqueles, claro – uma chuva tão azulada quanto os solos de saxofone que fizeram a magia dos anos 80. Os mesmos anos de ouro deste cinema verdadeiro porque falso, eficiente porque forçado. Quem quiser realismo que vá visitar um presídio brasileiro. O cinema de Brian de Palma requer retoques e sombreados, com o que o espetáculo se faz mais marcante para a gente que aprecia a história do lado de cá da tela.

Adeus ao JB

Leio no blogue de Ricardo Kotscho que o empresário Nelson Tanure anuncia esta semana a data em que vai circular a derradeira edição do Jornal do Brasil. É curioso que a notícia saia no mesmo dia em que as manchetes da edição eletrônica de O Globo destacam: "FH e Lula tiram 12,1 milhões da miséria"; "Presidente usa trem-bala em favor de Dilma" e "Serra atrasa divulgação de programa de governo (Candidato, que não assina nada sem ler, quer dar uma última olhada)". Vejo isso e fico pensando - eu e muita gente, tenho certeza - se não seria mais honesto intelectualmente o Globo declarar logo, em editorial de primeira página com letras garrafais que é ardoroso defensor do candidato Serra, embora a inclinação do noticiário a favor do tucano seja tão flagrante que possivelmente dispensa tal reconhecimento. O mais lamentável, neste caso, é que O Globo não é nem um caso condenável à parte, como sabe todo mundo que ao menos uma vez por semana passa diante de uma banca de jornal. Ao contrário, isso tem sido a norma, do Rio de Janeiro a Natal. Está todo mundo seguindo essa cartilha de defender seu candidato com unhas, dentes, manchetes e raciocínios tortos - todos fechando os olhos, voluntaria e soberbamente, à capacidade do seu leitor de avaliar ele mesmo os fatos divulgados.

Mas já estamos fugindo do assunto, que o motivo da postagem é o lamento, mesmo, pelo fim do velho JB que foi, pra mim e para tantos, estudantes colonizados da grande imprensa brasileira, ele sim um exemplo - um espelho onde todo mundo queria se mirar. O JB é o veículo que reinou absoluto sobre muitos dos meus domingos natalenses, em tardes espichadas dos tempos de hóspede da Residência Universitária Campus I, nas ribanceiras ventiladas da nossa UFRN. Cansei de atravessar domingos imerso na leitura daqueles entrevistas cuja diagramação me vem à mente quase automaticamente só de falar delas, ilustradas, salvo engano, por belas caricaturas de Ique, assim como no deleite de apreciar os melhores textos da imprensa brasileira dos anos 80, em reportagens longas ou não, em críticas de filmes e análises de livros e discos, a face visível e analítica dos fenômenos da época (o governo Sarney, a era Collor, a emergência do rock Brasil e por aí afora).

O JB era uma excelência em textos: notava-se como cada sentença, cada parágrafo, cada afirmação era burilada em máquinas de escrever cuja mecânica - hoje a gente sabe, diante da leveza do computador - nem ajudava muito. Mas como se fazia questão de que o texto jornalístico fosse um primor à parte, tivesse a matéria duas ou vinte laudas. E era um texto que estava ali perto da gente: no caso de Natal, lembro do cuidado e do apuro com que Luciano Hebert, correspondente do JB que também era editor de política da Tribuna, preparava suas histórias curtas mas sempre curiosas e notavelmente saborosas na forma narrativa com que apareciam naqueles quadros reticulados do diário carioca.

Outro marco, para a minha geração que só foi entrar neste mundo de jornais e jornalistas com os anos 80 já bem adiantados, foi a coluna que Ricardo Noblat manteve durante os renhidos anos Collor, tempos de embates apaixonados nos quais a intervenção do jornalista pernambucano virava uma espécie de abaixo-assinado que todos queriam legitimar. Ler Noblat combatendo Collor fortemente - até ser calado pelo presidente em manobras palacianas-empresariais, o que também não deixa de ser um exemplo invertido para os nossos dias de guerra envergonhada a Lula - era como levantar uma bandeira, sentir-se participante de um embate vital para refazer um país. A intenção era corretíssima, embora o tempo - sempre ele - viesse nos dizer o quanto de inocência havia ali.

E havia, à guisa de sobremesa impressa, aquele doce semanal que era a revista Domingo, com uma pauta que ia da culinária à cultura, do comportamento à moda, mas sem se prender na futilidade que o caráter feminino de tais suplementos quase sempre impõe a esse tipo de publicação. Um espírito que o tempo levou para a revista dominical de O Globo (para onde se mudou o indefectível Arthur Xexeo e sua pauta sempre abastecida de assuntos ligeiros), este mesmo O Globo cuja edição eletrônica publica hoje manchetes tortas que também podem ser o prenúncio de um outro fim, infelizmente nem tão lamentável quanto a despedida do JB sugere. O fim do JB entristece (mesmo que hoje ele já seja uma sombra embotada do que foi, o que também não soa justo), provoca saudades de uma época, nos faz lembrar de nós mesmos e finalmente mexe com esse quadro atual do, digamos assim, sistema de comunicação de massa em exercício no país. Um conjunto de veículos de comunicação que nega a natureza do próprio negócio que pratica e dia a dia parece somente elevar perigosamente o índice dos seus riscos, seus abusos, sua cega e estúpida visão (?) do Brasil - este Brasil tão mudado sem que gente aparentemente tão preparada para analisá-lo possa sequer enxergá-lo no que ele tem de mais óbvio.

De qualquer maneira, adeus JB - que vire ao menos uma boa memória.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Vida que segue











Um giro de fotos para vocês lembrarem da gente - e lembrarem também, a tempo, que hoje, 8 de julho, é aniversário de Cecília, que faz cinco anos. No giro, além dos de sempre, tem ainda Plácido com Manuela e Marleide com Aninha.


A propósito: a primeira foto da série foi "batida" por Bernardo aqui em casa, e a segunda foi "feita" por Cecília num feriado em Caldas Novas. Como se deduz, os dois infantes da casa parecem ter vindo equipados com bons sensores estéticos. Veremos.

Aos campeões do preconceito


O Brasil está fora da copa, mas o preconceito permanece em campo. Infelizmente, esse é um artilheiro indesejado que só o tempo e a teimosia conseguem vencer. Um time sempre adversário mesmo para quem o considera um aliado. Um gol contra permanente que anula conquistas e reduz o rendimento de todos, seja qual for o lado do campo em que estejam jogando.

A seleção de Dunga ainda não havia sido eliminada pela Holanda quando, no blogue que mantém no portal do jornal O Estado de São Paulo, o escritor Marcelo Rubens Paiva disse que nesta Copa o brasileiro não estava torcendo muito pelo país. Que nas rodas de bar ou no circuito dos boleiros ninguém se empolgava muito com a escola Dunga de futebol.

Já outro oráculo paulistano por excelência, o jornal Folha de S. Paulo, publicou anúncio da rede de supermercados Extra sugerindo, antes do jogo contra o Chile, que o Brasil seria eliminado naquela partida. Você não leu errado – eu escrevi “antes” da partida que resultou num placar de 3 X 0 a favor do Brasil. O anunciante se retratou, mas responsabilizou o jornal pelo erro, como sabe quem acompanhou o fato pela internet. A prática publicitária e jornalística de preparar, por antecipação, duas possibilidades de notícia é normal e recorrente, mas o episódio não deixa de ter um fundo freudiano de ato falho mas nem tanto.

Encerrada a participação brasileira, se a gente juntar esses dois fatos – a constatação de Rubens Paiva e a vexatória bola fora da Folha – com o esporro em rede nacional que a Globo deu em Dunga fica mais do que evidente: tanto quanto a jabulani, entrou em campo nesta Copa aquele jogador inesperado chamado preconceito. Dizem que joga bem este moço – um galeguinho metido que dribla a insensibilidade de um, dá um chega pra lá na decência futebolística de outro e, quando a galera vê, está cara a cara com o goleiro adversário, pronto para marcar mais uma humilhação institucionalizada no placar do segmento menos favorecido que encontrar pela frente.

De maneira que, para nós brasileiros comuns que acompanhamos tudo de longe por meio de tevês gigantes como não costumavam ser nossos preconceitos de alcova, a Copa da África virou, sintomaticamente, uma amostra de preconceito social e linguístico. Duas variáveis do mesmo tipo de reserva que determinadas camadas da população alimentam em relação a outras, historicamente menos valorizadas. E todas essas manifestações de preconceito em HD se concentram na figura do técnico rude, bronco e que mal domina o nível idiomático mínimo exibido para a boa performance nas entrevistas coletivas.

Dunga, descobriram jornalistas de português castiço burilados nas leituras mais soberbas, foi useiro e vezeiro em praticar o mais manjado erro de concordância que um falante do português pode cometer: “com nós”, ao invés do ultracoloquial “conosco”, esse sim um termo comuníssimo em cada esquina brasileira, seja no cruzamento da Ipiranga com a avenida São João, seja no encontro da Ulisses Caldas com a avenida Rio Branco. Claro que Dunga poderia adotar o “com a gente”, mas aí ele deixaria de ser um pouco o Dunga que marcou a ferro, palavrões e nervosismo sua imagem na mente dos brasileiros que torceram pela seleção até a sexta-feira passada. Ou não torceram, segundo Marcelo Rubens Paiva.

Pois cada vez que Dunga sapecava um “com nós” numa coletiva, era como se o Brasil inteiro, bem-falante como Bilac algum poderia imaginar, tivesse uma síncope de indignação ultrajante. Ao menos nas cogitações dos professores de português de cursinho, dos jornalistas formados nos manuais de boas maneiras das editoras Globo e Abril ou da elite cabocla que habita o quem-é-quem do neocolunismo político e social brasileiro.

Não pega nem bem falar a esta altura em Galvão Bueno, mas registre-se, com próclise e tudo, que cada dolorido “com nós” do Dunga equivalia, na cotação da moeda verbal que sustentava a nova auto-estima brasileira (e ainda sustenta, apesar da desclassificação), a um pretérito “éééééé do Brasil” do locutor pátrio em campeonatos passados. Galvão, afinal, faz sucesso porque sabe como poucos a maneira eficiente de falar à média idiomática nacional, ao contrário do que julgam seus algozes.

Pois Dunga, com seu português de estivador e sua expressão tosca de gente sem estudo, converteu-se em emblema de uma nacionalidade revisada – e condenada, claro. Nada mais apropriado a uma “era Lula” na política do que um Dunga no futebol – e certamente grande parte da carga de antipatia que o técnico inspirou deve-se menos à quantidade palavrões que ele disparava diante das câmeras globais do que de similaridades outras que era (e, derrota à parte, ainda é) capaz de sugerir, ainda que em grau subconsciente, ao novo cidadão brasileiro médio.

São inúmeras as maneiras de se exercer dominação, sobretudo de um grupo social sobre outro. E se a gente parar pra pensar vai ver que a exigência da correção idiomática não é apenas mais uma delas – é, sim, uma das principais, porque das mais frequentes. Vai desde o nível doméstico da correção entre amigos, quando um deles escorrega numa conjugação verbal e é pedantemente alertado por outro, até a escala institucional em que se cobra que um presidente da República não pode falar “merda” numa cerimônia pública, ainda que seja para dizer, sem disfarces, que deseja tirar o povo daquela substância repulsiva.

Dunga, com seu português de esquina e sua estampa de sujeito comum, estava bem no meio de campo desta batalha social disfarçada de embate verbal. Poderia até vencer a Copa da África, mas com toda certeza ainda vai levar – ele e quem se viu representado pela sua figura – muito mais tempo para sair vitorioso naquela outra.

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

Liberdade de expressão, lembra?

O Sopão recebeu o e-mail abaixo do amigo Klecius Henrique e cumpre com a obrigação cidadã de republicar, repassar, dar divulgação. Vejam:

Marília Gabriela será a nova apresentadora do Roda Viva. Heródoto Barbeiro foi demitido depois de ter contestado o ex-governador José Serra, ao vivo, no Roda Viva, sobre o valor dos pedágios em São Paulo. Gente, é Heródoto Barbeiro, não é nenhum jornalista em início de carreira. O cara pediu e Alberto Goldman, seu ex-vice, deu a cabeça de Heródoto. Nem na CBN, das Organizações Globo, Heródoto Barbeiro passou por isso. Agora, imagine o que não fará essa criatura se chegar à Presidência da República.

Abraços, Klecius.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

A primeira Copa deles







Foi a primeira Copa dos meninos e quem leu as postagens sobre o assunto na Hamaca sabe que Cecília, pelo menos, acompanhou o quanto seus cinco anos à beira de serem completados permitem. Vejam nas fotos, onde também aparece Manuela, que veio aqui pra casa ver os jogos com os pais Plácido e Marleide.

A minha Copa

Agora que acabou a participação brasileira, bora juntar os cacos e tentar um relato. A Copa pegou a gente num momento não muito favorável, para ficar no tucanês de praxe. Por isso, não gerou expectativa, não fez ninguém contar os dias para o início, tampouco criou platéia diante da tevê para a solenidade de abertura, esss coisas. No início, eram só os jogos do Brasil, porque afinal não dá - nem há por quê - pra escapar do clima geral que toma conta de todos, com a dispensa do trabalho, a curiosidade das crianças e todas as outras camadas de papel de presente que envolvem o espetáculo do campeonato mundial de futebol.

Mas no meio do caminho, não tem jeito: quando a gente vê, já providenciou aqueles badulaques verde e amarelo para a garotada, já marcou almoço com os amigos no dia do jogo, já sofre como um desgraçado a ansiedade das partidas propriamente ditas. Enfim, quando a gente vê, por mais insignificante que seja a ligação com o mundo tradicional do futebol, já se está completamente vencido pelo show que é a Copa. Um belo show, quer a gente ganhe ou não. Se não fosse pela destreza dos jogadores - e não só os brasileiros, claro - seria pelo falta de destreza dos juízes, esses sim grandes promotores dos momentos de maior emoção, tamanha a carga de erro que são capazes de cometer. Um erro de um juiz, a gente sabe, embora lamente, tem tudo para corresponder a uma carga emocional de revolta que faz o torcedor se desdobrar ainda mais contra ou a favor de alguém. Nâo falo nem de juiz corrupto, mas juiz vacilão como aquele que anulou o gol da Inglaterra é, realmente, parte vital para este espetáculo. Sem ele, aquela partida teria sido outra coisa.

O primeiro tempo de Brasil e Holanda também foi de roer as unhas das mãos e dos pés de um time inteiro, incluindo os reservas. Do segundo tempo não ouso falar, porque além do mais abandonei o campo, digo, a sala e a tevê, logo depois do segundo gol dos descendentes de Maurício de Nassau. Pra quem começou a ver os jogos do Brasil na Copa meio com um rabo de olho desinteressado, o desfecho ficou um pouco demais. E, no entrecho, tivemos um embate à parte, o de Dunga com os grandões da Globo, que valeu por uma Copa à parte. Coitado, agora o técnico brasileiro vai provar o gosto da derrota propriamente dita - embora, como disseram muitos, depois de peitar tamanhos poderosos, já estivesse certo de que seria chutado do cargo mesmo que tivesse vendido na África.

Enfim, lições da Copa, essa escola de esportividade e entretenimento - pra não falar na parte financeira - que também se mostrou bem instrutiva em termos de preconceito social e linguístico (mais sobre isso na coluna da próxima terça no "Novo Jornal", de Natal).