domingo, 31 de março de 2013

PECADOS DA SEMANA

 



Meu Domingo de Ramos foi uma bicicleta, pra me harmonizar cristianamente com os novos hábitos de consumo-esporte-deslocamento dos que estão muito além de Deus. Adquirida em supermercado a preço de ocasião que é pra não incorrer no pecado do farisaísmo professante.

Meu jejum de esmoler literário buscou o pão essencial da palavra no anti-santo Itamar Assunção, o músico-poeta que ganhou liturgia nova via o catecismo blues da não freira Zelia Duncan, no CD "Tudo Esclarecido". Do qual recomendo pelo menos a audição - de joelhos, por favor - de "Noite Torta". Coisa para contrastar com estes dias de paixão.



Meu lava-pés foi testar minhas crendices sociais assistindo ao mais recente filme de Cláudio Assis, uma absoluta antimissa marginal filmada em branco e preto com maestria comovente pelo Papa Walter Carvalho, interpretada e protagonizada pela figura natimorta de um poeta de rua do tipo que tanto denuncia os que estão à sua volta quanto lambe a suculenta pena que alimenta em relação à sua própria pessoa. Um Cristo de outra extração, feito pelo ator Irandir em transe glauberiano - uma estranheza que agora as leis de incentivo permitem sem que o realizador precise doar a sua vida pelo irmão, digo, pela arte. Se o público não vem atrás como apóstolo excitado deste evangelho ao avesso o problema é dele, dizem. 




Minha sexta-feira santa foi festiva se comparada àquela dos meus tempos de outrora. Nada de desligar a televisão, nada de música fúnebre no rádio, nada de casas não varridas, comidas não tocadas, banhos não tomados, nada de nada de nada de nada de antigamente - que, por sinal, parece que foi ontem. Agora tudo pode: graças a Deus, somos os novos deuses da liberdade individual. 

Claro que um bispo aqui outro acolá, às vezes onde menos se espera, onde menos cabe a presença de tais bispos, atrapalha um pouquinho: mas o que seria da vida sem um obstáculo pra gente remover? Então: minha sexta-feira não foi santa, foi comum. Melhor (digo, pior): foi bem pecadora. Repleta de sons, imagens, letras, notas (musicais), percepções, contemplações.

Como a gente nunca se contenta, faltou nostalgia:  deu vontade ver a Paixão de Cristo na televisão em branco e preto. Mas nenhum canal exibiu.  Meu pecado supremo: ouvir Madeleine Perroux como quem prova uma hóstia ensanguentada no dia do sacrifício de Adonai. Madeleine é irresistível e Deus há de me perdoar. (Divida este pecado auditivo comigo dando um play num dos videos que acompanham esse não evangelho).


Meu sermão da montanha, o  pungente depoimento do quase padre de tão sofrido João Batista de Andrade, o cineasta que o Brasil parece ter esquecido lá nos anos 80. Sou seguidor de João desde que um dia, em 1984, entrei no Cine Veneza, em Recife, e esqueci quem era, quando era, onde era, o que era, ingressando sem lenço nem documento na história e nas histórias de "A Próxima Vítima", filme em que João Batista usa uma série de assassinatos de prostitutas no bairro do Braz, em São Paulo, para falar do que, diria ele, são questões sociais eternamente tratadas como se fossem problemas policiais. 

O filme mistura demandas sociais com telejornalismo viciado, uma pegada noir nunca oportunista com um ritmo de thriller que jamais perde a brasilidade. Vi e revi - e nunca mais vi outra vez porque é um desses títulos que não apareceu em DVD (desesperançado demais, só tem chance se virar cult). No filme, João insere todo o seu ideário falido, seu sofrimento professo diante dos obstáculos que a vida colocou na vida dele e do país dele - por acaso, o nosso; não olhe para o lado, leitor. O baque de 64 (golpe), a trava de 68(AI-5), o trauma de 75 (Vlado). 

E no livro, tudo isso está muito bem narrado, organizado, dissecado, estudado e só não posso dizer que está digerido, porque João Batista de Andrade (que também realizou o já clássico "O homem que vivou suco" e faria aqui em Brasília "O cego que gritava luz") tem o bom gosto de se declarar permanentemente em crise, sem nunca superar certas coisas. Um delas daria um filme que jamais foi feito - bem que ele tentou: "Vlado", a história do homem e do seu tempo. 




João foi amigo de Vladimir Herzog e integrou a equipe do telejornal revolucionário que o jornalista assassinato pela ditadura militar colocou  no ar pela TV Cultura de São Paulo. Alguém poderia retomar o projeto e filmar "Vlado": até mesmo alguém com um olhar tipo ano 2000, como Fernando Meirelles, que vem de outra tradição no cinema brasileiro. Outro dos novos realizadores poderia seguir a onda e tirar do papel o projeto "Os Demônios", outro filme que João Batista não conseguiu fazer, sobre um tema que palpita na ordem do dia: as limitações da lei de anistia expostas no roteiro feito com Lauro Cesar Muniz a partir da volta de um exilado ao país na brisa política de 1979. 

Filmes que não foram feitos, no livro de João Batista editado pela Imprensa Oficial de São Paulo e organizado por Maria do Rosário Caetano, ganham força muito maior do que tantos que já entraram e já saíram de cartaz sem deixar rastros. É preciso dar atenção a eles, esses outros sacrificados da semana das oferendas mais sofridas. 


Domingo de Páscoa, cá estou eu, esperando o suor da caminhada evaporar do corpo pecador enquanto atualizo a sopa amarga que o jejum frequentemente me serve. Todos continuam sendo muito bem-vindos a tal banquete, meus irmãos em lástimas, glórias e registros docemente macerados.