quinta-feira, 18 de junho de 2009

Intrigas e diplomas


Não é exatamente a última cena do filme. É mais uma sequência de imagens usadas como plataforma para os créditos finais. Mas acaba sendo uma síntese geral de boa parte do que se viu nas duas horas anteriores da projeção de "Intrigas de Estado", o filme de Kevin Macdonald ("O Último Rei da Escócia") estrelado por Russell Crowe. Assistindo a essa cena derradeira, não tive como não rodar no meu particular cineminha mental um filme só meu, que aqui projeto para todo mundo a propósito de falar um pouco sobre a decisão de ontem do Supremo Tribunal Federal, que acabou com a exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista.

Primeiro, o meu filme que é, em tudo, muito parecido com a sequencia final de "Intriga de Estado": aqui estou eu, um jornalista não autorizado por lei na oficina do jornal "Tribuna do Norte" que, a despeito de considerado chapa branca em função da notória propriedade (a família Alves, no Rio Grande do Norte), para mim foi como uma espécie de escola de fato e de direito sobre os (muitos) limites do jornalismo e (igualmente tantos) oportunos canais de expressão da realidade que esse mesmo jornalismo permite. Mas voltemos ao cenário da ação: e aqui estou eu, na oficina da Tribuna, em 1988, circulando entre o chefe dos gráficos, Baltazar, e seus comandados, uma turma animada e amiga, entre máquinas de fotocomposição, chapas metálicas e gigantescas rotativas de onde logo sairia a edição do dia seguinte.

Muito provavelmente, estamos num início de tarde de sábado, momento em que a fotocomposição já preparou aquelas tirinhas de notícias impressas, o montador já colou tudo numa grande folha em branco do tamanho da página do jornal, deixando espaço para os clichês (que são as fotos e imagens em geral) e o responsável pelo fotolito (uma espécie de foto em negativo da página do jornal) já está apagando falhas que passaram por essas etapas iniciais do processo. Agora, vem o momento de gravar a imagem do fotolito na chapa - que é isso mesmo, uma grande chapa metálica do tamanho da página do jornal (afinal, tudo isso é a descrição de como se imprime cada uma delas) - de maneira a se ter uma espécie de matriz que será implantada nas rotativas e, a partir dela, num processo industrial de contato de tintas e emulsões, será impresso o jornal do dia seguinte. Uma edição dominical e, como tal, mais volumosa, colorida e trabalhosa de se preparar. Mas também muito mais interessante.

Tirando as etapas do processo que a informatização subtraiu, como a fotocomposição, é isso o que vemos no final de "Intrigas de Estado". E rever aquele processo me lançou de volta a 1988, num tempo em que, para substituir um profissional mais experiente que estava de férias, fui designado como secretário gráfico interino nas oficinas da Tribuna. Durante um mês, avancei madrugadas adentro lá nas dependências abaixo da redação, indo pra casa na kombi do jornal junto com o pessoal da área, os últimos a sair (e com o supremo prazer de levar comigo, na mão, o jornal do dia seguinte prontinho e ainda quente do contato com as rotativas), conquistando um conhecimento do processo de se fazer um jornal dos mais enriquecedores. Uma pós-graduação na escola da Tribuna, que a tantos outros formou.

O curioso é que, nesta época, eu era de fato ainda um estudante de Jornalismo, mas trabalhava como repórter normalmente. Era uma prática da época, uma forma de pirataria que proporcionou formação melhor não só pra mim mas para muito mais gente. Havia quem me criticasse por isso, mas a sede de exercer essa profissão ignorava as piadas e os gracejos. Mas éramos, eu e uns outros, de fato, ilegais - de um tipo de ilegalidade permitida como tantas outros de que o Brasil é um exemplo. Ilegalidade, no entanto, provisória - e com data marcada para acabar, que era quando da conclusão do curso e da consequente concessão do registro profissional pelo Ministério do Trabalho que, por sinal, ficava na mesma rua da Tribuna, ali na Duque de Caxias, coração da Ribeira Velha de Guerra.

Se fosse hoje, e já chego à decisão de ontem do STF, de um dia para o outro teríamos deixado de ser ilegais - sem mesmo precisar concluir o curso de Comunicação na UFRN. Pois, hoje, um dia depois da sentença do Supremo, eu lhes digo: prefiro ter o orgulho pretérito de ter sido jornalista ilegal e provisório um dia do que tirar essa mácula pedagógica do meu humilde currículo. Não reconheço valor na decisão de ontem, não vejo como a extinção da exigência do diploma vá ampliar o alcance e a responsabilidade do jornalismo praticado atualmente no país que, por sinal, já não é dos melhores (ironicamente, a mesma internet que precariza a primeira notícia quase chegando ao ponto da desinformação é a mesma que nos oferece canais alternativos que colocam em xeque a imprensa dominante). Apesar de assinar um blogue (de um tipo muito informal e particular de jornalismo, nem preciso dizer) chamado "Sopão do Tião", não me vejo como o equivalente a um bom cozinheiro que domina o que seria mera técnica apimentada por excepcionais talentos.

"Intrigas de Estado", só pra voltar ao filme, é uma produção que promete, sugere e tangencia mas não vai fundo na discussão sobre as vantagens do "velho jornalismo" diante dos vícios do jornalismo on line. Levanta a poeira do debate, mas a abandona suspensa no ar - porque precisa de tempo narrativo para se desincumbir da trama que tem para contar. Como foi feito com base numa minissérie de tevê que durou dias, imagino que o melhor, para quem pode e tem acesso, é assistir à própria minissérie que, essa sim deve ter tido tempo de se estender no assunto que se propõe a confrontar. Mas aquela sequencia final, com um recado visual sobre a necessidade da permanência de valores jornalísticos que o tempo e a tradição tiveram o bom senso de estabelecer, é um contraponto e tanto em cartaz nas salas de cinema para a decisão da noite passada nos salões da instância máxima da Justiça brasileira.

P.S.: Como todo acontecimento comporta mais facetas do que sugere a primeira impressão, não deixa de ser curioso assistir ao espanto de colegas que, intoxicados por uma autoimagem exarcebada de soberba e poder, caem boquiabertos diante do prognóstico de Gilmar Mendes, o ministro do Supremo a quem, um segundo atrás, cultuavam como horizonte de esclarecimento político. Eis Gilmar Mendes, mais uma vez mostrando a cara para aqueles que, hipnotizados pelo intelectualismo mais encruado, nunca a quiseram ver.

P.S 2: A propósito, o melhor filme sobre jornalismo, suas possibilidades e seus limites, ainda é "O Informante", como o mesmo Russell Crowe divindindo a cena com Al Pacino, os dois sob a direção de Michael Mann. Nem se passa, na verdade, na redação de um jornal. Tampouco nos bastidores de um telejornal. Conta uma história sobre pressões empresariais em torno de uma reportagem do programa "60 Minutos". Deveria ser exibido no primeiro dia de aula de todos os cursos de Comunicação do mundo.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Comida de milho ao luar de Acari em Brasília (as fotos)





Vá agora à "Hamaca de Poti" para ver um pouco dos preparativos da festa, pelos anfitriões Bernardo e Cecília. Basta clicar aqui: http://hamaca.zip.net/

Comida de milho ao luar de Acari em Brasília (1)

Outro dia, assistindo a um documentário sobre o trabalho do fotógrafo Evandro Teixeira, conhecido não só pela atuação no fotojornalismo do “Jornal do Brasil” dos áureos tempos mas também por um ensaio publicado em livro sobre os velhinhos centenários de Canudos, deparei com um comentário que me deixou meio cismado. Comentário feito por um jornalista que admiro, Fritz Utzeri, também do “Jornal do Brasil” daqueles tempos. Fritz, inteligente, gordo, carioca e simpático como se espera de alguém que reúne todas essas características, comenta várias fotos de Evandro, mas o que me chamou a atenção foi o que disse de uma delas. A imagem captada é de um casal que acabou de sair da igreja, ainda em trajes de noivo e noiva, mas sozinhos na foto, sem sombra de mais ninguém ou de qualquer festa matrimonial.

A aparência dos noivos é de um desencanto só. As roupas só não são de humildade franciscana porque, afinal de contas, são roupas para casar – e mesmo as pessoas mais pobres valorizam a importância da roupa em ocasiões muito esperadas. Os rostos sugerem mais máscaras mortuárias do que nubentes excitados. A postura, então, é de quem muito raramente se põe diante de um equipamento fotográfico. Lembro que a foto foi feita em Paraty. E Fritz analisa: é a imagem de dois seres humanos sem qualquer perspectiva, cujo casamento anuncia mais o fim de uma linhagem arruinada do que qualquer chance de procriação de uma espécie evoluída como convém ao ser humano.

Bem sei que nada disso tem a ver com canjica, pamonha e outros quitutes da estação – e menos ainda com o arraiá dos acarienses ausentes que Rejane promoveu como sempre na base do improviso que dá certo este final de semana aqui em casa. Mas já chego lá. Por enquanto, peço um pouquinho mais de paciência. Ocorre-me que a análise devastadora que Fritz Utzeri constrói diante da fotografia do casal pobre em Paraty feita por Evandro Teixeira contraria um conceito que venho alimentando sobretudo nos últimos anos. É a idéia de que todo ser humano tem sua riqueza, por maior que seja a indigência – material, moral, regional, espiritual ou o que seja – em torno dele. A vida inteira somos convocados a eleger modelos de eficiência, desempenho, inteligência, sucesso e afins no mesmo ritmo em que somos chamados a condenar, relegar, abstrair ao ponto do desaparecimento aquelas pessoas ou grupo de pessoas que não se enquadram naqueles parâmetros. E assim desistimos muito facilmente de quem não atende à nossa mais apressada expectativa.

É bem verdade que um país – sobretudo um país como o Brasil, esse gigante incompleto que tropeça tanto quanto caminha, embora a gente, estando dentro dele, não perceba o embalo da caminhada – precisa de pessoas e grupos de pessoas que façam as coisas andarem, que batalhem por melhorias de toda espécie, que dêem exemplo daquela dedicação que resulta em sucesso – se não completo, ao menos parcial, mas que sinaliza um rumo a seguir. Mas a primeira impressão das coisas e das pessoas, assim como dos grupos de pessoas, pode enganar muito.

Já encerro essas digressões e caio no arraial, mas ainda preciso só de mais algumas linhas – me acompanhe: sertanejos do Seridó, somos pobres ancestrais se o amigo nos submeter a réguas de comparação entre descendentes dos fundadores de outras partes do país, desde sempre mais prósperas e desenvolvidas. Somos, pois, tal o casal da foto de Evandro Teixeira - e mesmo admirando a capacidade de análise de Fritz, é afinal com eles que mais me identifico. Mas o nosso estranhamento diante de um equipamento fotográfico, como diante do primeiro automóvel ou do último computador, pode revelar antes uma precaução civilizatória do que uma entrega automática. E, agindo assim, somos bem menos mocorongos do que imagina o velho jornalista diante da fotografia. E olhe que o casal da foto era de Paraty, estado do Rio de Janeiro. Haja régua para medir essas distâncias culturais. O fato é que cada cultura tem seus caprichos e é aqui que chego, se não ainda ao arraiá, pelo menos à canjica e ao mugunzá (e, por falar nesse último prato, eu me lembro da canção de Petrúcio Amorim, que pergunta ao sulista apressado: “quem é você pra derramar meu mugunzá?” e, considerando que fui compreendido, fecho o parênteses).

Acontece que, tão pobres e mocorongos quanto o casal da foto, éramos eu e meus pais no Seridó dos anos 70. Mas, aí é que está a questão, yes, nós tínhamos cultura e tradição. Eis que, chegado o mês de junho, era sagrado o dia da preparação da “comida de milho”. Uma coisa rápida, de um final de semana, mas marcante no tempo de duração que as coisas têm na infância. Minha mãe convocava amigas, parentes, vizinhas e visitantes eventuais para o que parecia ser um grande festival gastronômico – um happening na cozinha, uma festa de interior sem sair de casa, que era o espetáculo de reunir todas aquelas mulheres equipadas como colheres de pau e caçarolas, entre o fogo de verdade do fogão de alvenaria triangular que havia num canto e o fogão de gás em outra latitude do cômodo. A grande mesa que havia na cozinha, desde sempre com seu tampo gigante coberto por um encerado cor de laranja madura – e sobre o qual ainda se punha outro, ilustrado por imagens pra lá de realistas de frutas coloridas – cobria-se de ingredientes, panelas, copos com substâncias cor de nada, pós de consistência esfumaçada e uma quantidade impressionante da matéria prima disso tudo, que eram as espigas de milho. Por todo canto, havia palha de milho descascado – como por todo lado havia espigas estalando de vegetabilidade, prontas para virar pamonha e canjica, que era, no final das contas, o que mais se cozinhava.

À noite, comiam-se os quitutes, não sem antes dividir com as mesmas pessoas que haviam participado, total ou parcialmente, da grande jornada vespertina na cozinha. Depois, as cadeiras de fios eram levadas para a rua de terra batida onde a gente morava, em frente de casa, para acender a fogueira. Meus pais me davam fogos que não consideravam muito perigosos, do tipo chumbinho de estourar barulho no chão e chuveiro de espalhar luz no ar, ouvia-se algum Luiz Gonzaga quando já se tinha uma radiola, a noite caminhava, o sono chegava – e estava realizada a festa. Se Evandro Teixeira, afinal também ele um nordestino pobre nascido no interior da Bahia, passasse por ali e nos fotografasse, talvez colhesse não a alegria inerente ao festejo, mas o espanto de quem não está acostumado a tais modernidades. E talvez a foto saísse com aquela cara de linhagem prestes a ser extinta, como viu Fritz olhando a imagem do casal recém-casado em Paraty. Espero não estar enganado, mas a lembrança da humildade que havia em tudo o que éramos me abastece de uma sensibilidade meio matuta que não me deixa julgar como falida a aparência de coisas e pessoas onde ainda pode haver alguma chama, brilhante como as luzes do chuveiro, por baixo do silêncio de lago parado e opaco que é o olhar sem chumbo com que elas, por sua vez, nos vêem.

E o arraiá dos acarienses ausentes propriamente dito fica para a próxima postagem.

Comida de milho ao luar de Acari em Brasília (2)

Feitas as conexões entre a foto de Evandro Teixeira, a precipitação de Fritz Utzeri e os festivais caseiros de pamonha e canjica que minha mãe promovia lá em casa, vamos à atualização da notícia. Neste final de semana, aproveitando o feriadão, Rejane promoveu aqui em casa o que chamou de “arraiá dos acarienses ausentes” – quer dizer, um encontro junino de alguns dos acarienses que moram em Brasília. Vieram Valdinho, Iolanda, Hortência e Letícia; Chico de Nelson e Suzete; Minho e esposa, Simone de Reginaldo, Lucinete, Esnesto e Elisa e, claro, aqueles que eu vou esquecer – o que diz mais sobre a minha falta de memória e incapacidade de guardar nomes do que sobre o meu descaso com as pessoas, vocês compreendam.

Os preparativos para o arraiá me fizeram ver que, assim como minha mãe lá em Parelhas em mil novecentos e setenta e alguma coisa, também Rejane parecia ter tanto prazer em reunir os amigos à noite quando em preparar os pratos durante a tarde inteira. Só não foi maior a festa prévia da cozinha em palhas porque não foram feitas pamonhas – o que, lembro vagamente, dá muito mais trabalho do que fazer cajica. E haja repetição de rituais familiares – aquela cultura que Fritz não conseguiu enxergar no casal da foto na porta da igreja, mas que resiste nem que seja lá nos cantos da cozinha dos mais pobres. Pois é: Rejane, claro, não perdeu a chance de testar a ancestralidade de Bernardo, que foi posto diante de uma colher de pau e de uma panela gigante cheia de melado de canjica. Se você é seridoense, já adivinhou – e eu já lhe respondo: sim, Bernardo raspou a panela; e com os dedos mesmo, que é como manda a etiqueta do sertão. Passou no teste rapidinho.

À noite, entre pratos de canjica (que aqui eles chamam de curau) e panelas de mugunzá (que aqui eles chamam de canjica, vejam vocês) a festa se fez no alpendre, abastecida por pipas e mais pipas de vinho de Valdinho e companhia providenciaram, como combustível certo para uma noitada de contadores de histórias. É, porque quando se junta comida de milho, gente que se conhece mas dificilmente consegue se reunir assim, uma noite fria (embora menos do que se esperava, e nisso tenho certeza que há a influência certeira da amizade que aquece), o mais certo é que o espetáculo principal sejam as histórias que um lembra, outro completa e um terceiro, que já a ouviu trezentas vezes, tem novamente o prazer de fazê-la outra vez objeto de boas risadas. O único meio estranho na roda era eu, mas nem por isso fui tratado como bárbaro parelhense em meio aos gregos acarienses. Desconfio, destoamentos à parte, que fui o que mais se divertiu, uma vez que boa parte das histórias contadas eram inéditas pra mim.

E, nisso, passeamos por pensões brasilienses da Asa Norte dos anos 80 conduzidas por freiras italianas que, não sabendo falar português, mais pareciam japonesas perdidas no Seridó; ficamos sabendo do incrível dia em que Valdinho, esse santo e paciente homem, perdeu as estribeiras ao atender a uma cliente de difícil comunicabilidade na agência do Banco do Brasil em Acari; nos inteiramos de todas as contradições do governo Lula na área da educação; e, mais importante do que todos os itens anteriores, ficamos sabendo qual é a maneira correta de se andar de escada rolante segundo uma especialista acariense de primeira hora: para os curiosos, reproduzo, deve-se ficar ereto como uma estátua, com os braços postados nas laterais do corpo como um soldado em posição de sentido, com o queixo erguido pra frente e olhar firme no horizonte (que horizonte? o fim da escada, ora) como uma pessoa que sofre de sonambulismo. É assim que se anda de escada rolante, viu?

Duvido que sábado à noite Brasília tenha tido um arraiá mais animado do que o dos acarienses ausentes aqui em casa – e olhe que nesta época a capital do país, que todo mundo acha que só tem político corrupto, ganha um arraiá em cada esquina (elas existem, meu caro). Se o fotógrafo Evandro Teixeira tivesse passado por aqui na hora da festa, aí sim ele certamente obteria belas fotos de uma gente que não tem medo de ser matuta e muito menos de equipamento fotográfico – uma gente que é uma linhagem perene, instigante, esperançosa e animadamente barulhenta, como convém à etiqueta dos festejos e à prática de celebrar a vida. Fritz Utzeri ficaria impressionado – e descobriria que o sertão, aquele que segundo João Guimarães mora dentro da gente, pode ser triste e feliz ao mesmo tempo. Mas, seja qual for a cara na fotografia, é sempre forte, como disse muito antes aquele outro jornalista, o Euclides.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

O Taos de Gustavo


“Por via das certezas / mantenha as dúvidas”, recomenda Gustavo de Castro em um dos poemas de “Taos”, o livro inédito que a editora Casa das Musas deve publicar em breve. Esse pequeno poema instantâneo, do tipo que dissolve idéias como quem despedaça o sonrisal dos conceitos estabelecidos chiando de prazer verbo-sensorial no copo simbólico da poesia, é bem uma amostra do que se poderá ler nas tantas páginas do livro. Melhor dizendo, dos livros, porque “Taos” está organizado como uma reunião de seis volumes, cada qual optando por um formato para conjugar em poesia as idéias estético-lúdico-filosóficas de Gustavo. Então, é como se o livro, volumoso e vaporoso ao mesmo tempo (volumoso pela aparência física e vaporoso pela natureza do conteúdo), fosse um grande almanaque em versos, às vezes quase em prosa, sobre o tudo, o nada e qualquer tipo de matéria que porventura houver, volumosa ou vaporosa, entre esses dois conceitos.

Em qualquer dos livros reunidos em “Taos”, Gustavo pratica uma espécie mui deleitosa de zen-filosofia poética. Vale-se recorrentemente de verbos no imperativo, como na poesia de outrora – cultiva, passa, esfrega, veste, solta-te – mas emprega tal recurso num contexto absolutamente desprovido de qualquer traço de traça. Outro mecanismo sempre à mão do poeta é o aforismo veloz, a anti-afirmação que nega o caráter peremptório dos ditos, resultando em desditos como aqueles praticados por Karl Kraus, mas naturalmente sem a misoginia do provocador alemão. O resultado é uma poesia proverbial dotada de uma lente que inverte impressões, bagunça conceitos, revê idéias estabelecidas. E o faz de uma maneira muito menos cerebral do que a frase anterior pode dar a entender. O “Taos” de Gustavo, que já cai nas nossas mãos com esse título auto-sugestivo, é tão instigante que quase freqüenta a cidade da auto-ajuda. Sendo filosófico por natureza, não haveria como não fazê-lo. O fato é que se trata de leitura quase terapêutica, para quem soltar as pedras e se entregar ao pedregal orientalizado do poeta. Aquilo que está inscrito em “por via das certezas / mantenha as dúvidas”.

Também há, de ponta a ponta, uma certa atmosfera natural em “Taos”. Como um secreto componente ecológico aqui entendido não como bandeira política mas como natureza poética. O mundo natural, com suas floradas e rarefações, fala por meio do poeta e o poeta dele se vale para falar, como uma relação entre muro velho e trepadeira faminta, pisando a trilha aberta pela culto à mitologia primeira do homem. Um ar grego-romano, um eco dos cânticos, dos cânticos, dos cânticos. Uma leve brisa shakespereana, embalando frases com laços primaveris, ramos seculares recobrindo muito lentamente pedras poéticas lapidadas pela voz do tempo. Flores do campo e tufos do sertão crescendo ao léu entre uma sentença e outra. Neste sentido, “Taos” não é só um livro de poesias – é um jardim, onde quem tem olhos para ver e mãos livres de qualquer tipo de carga vai se sentir muito bem. Pensar não implica necessariamente em rodear-se de sombras, embora elas existam – como se diz das bruxas.

Uma delícia especial é o livro “Guia impreciso para perplexos”, a parte de “Taos” que pratica uma prosa poética de curta duração e intensidade máxima. Gustavo coloca em prática um conceito que aprendeu com seu mestre absoluto, Ítalo Calvino, objeto de seus estudos e trampolim de seus saltos intelectuais. É bem conhecida a pregação visionária de Calvino, que preconizou o advento de uma nova literatura, feita de narrativas curtas, mas intensas. Gustavo põe-se a praticar a receita e o faz dando humanidade a conceitos que os homens cultivam sem muito pensar sobre o que, de fato, representam. Assim é que surgem os pequenos contos estrelados por uma mulher chamada Solidão ou uma dupla formada por Vitória e Fracasso. “Solidão gosta de televisão”, perfila o poeta. “Vitória e Fracasso, dois enganos”, prossegue. “Ar gosta de respirar”, sentencia. “Fim não sabe acabar namoro”, diverte-se. E esses são apenas quatro exemplos de uma fauna humanizada que ocupa um livro inteiro. Coloque um rosto, uma circunstância ou um dilema diante de uma dessas criaturas – Preguiça, Chuva, Vida - e (re)veja como nos comportamos nós, humanos de fato, diante deles. Terapêutico sim, mas desconcertante como convém à boa poesia.
*Na foto que ilustra o comentário, nada mais coerente do que um poente de São Miguel (RN).

BR-226 (6)

Na entrada de Currais Novos
um mendigo se decompunha
No retorno da Rajada
O tempo se refrescava
Na parada das Três Marias
a farinha adormecia
No acesso a Lajes
As pedras quaravam
Na saída pra Jardim
A secura salivava
No acostamento do Itans
a água acenava
No avanço da adutora
a estrada se ressecava
Mas no verde de Macaíba
a viagem se distraía

terça-feira, 2 de junho de 2009

Música no ar (2)


Rejane tem algo em comum com Luiz Fernando Veríssimo: os dois cultivam a mania de "descobrir" novas cantoras brasileiras - o que, você há de concordar comigo, é uma tarefa e tanto, dado à frequencia e quantidade com que essas novas cantoras brotam de tudo quanto é canto do país. Então um dia é Celmar, no outro é Eliana Printes, e por aí vai. Só pescando pérolas, catando um disquinho aqui e outro ali até outra novidade surgir - Jussara Silveira, Céu, Adriana Maciel, todas essas que a essa altura já ficaram, digamos, velhas, e estão podem ser substituídas por outras que ainda vamos ouvir.

Pois bem: uma das descobertas de Rejane nessa tarefa de mineração musical atendia pelo nome de Juliana Aquino (agora só escrevem "de" Aquino, mas me acostumei com o nome sem preposição). Ela mesma - a cantora "brasiliense" que também estava no avião espatifado sobre o Atlântico. Quando vi a foto de Juliana Aquino no jornal Hoje, uma foto meio borrada, como cópia lavada e mal feita da mesma imagem que ilustra a capa do CD que um dia Rejane trouxe lá pra casa bateu uma tristeza em tom maior.

Não só pela morte brusca, violenta - estúpida como a morte tantas vezes tem o cuidado de ser. Não por isso, embora também. Mais pela imagem, certamente a única que os jornalistas encontraram na pressa da primeira notícia, na ansiedade de estampar o rosto - um rosto - dessa tragédia sem imagens. A mais rarefeita das catástrofes surgiu na tela com a cara turva da mesma mulher que aparece na capinha do CD com retoques caprichados de quem precisa se tornar conhecida para melhor se garantir com o ofício incerto - o de cantar.

Juliana Aquino estava morando na Alemanha, disse o telejornal. A gente não sabia disso - mas também nunca mais havia ouvido falar dela. Na verdade, nunca mais havia ouvido o CD da cantora. Dele, do disco, lembro mais da primeira faixa, que vem a ser também a faixa-título, "A Primeira Vez". Um canto ritmado, uma musicalidade entre pop e negra - alguma coisa, para citar um similar, meio com a cara da potiguar Khristal. É claro que, assim que as atribulações permitirem e a lembrança da tragédia ficar um pouco mais branda, a gente lá em casa vai parar um pouco, talvez numa manhã de sábado, e abrir bem as janelas, deixar entrar o sol de junho e encher o céu azul do nosso pedacinho de Brasília com a voz de Juliana Aquino.

Música no ar (1)

Não faz muito tempo, o Centro Cultural Banco do Brasil promoveu um ciclo de homenagens ao compositor clássico Giacomo Puccini. Uma das atrações programadas era a execução de árias de óperas, em duas sessões diárias, com entrada gratuita ao meio dia e simbólica ali pelas nove e pouco da noite. Como alimento uma atração irresistível pelos programas gratuitos que Brasília oferece - como um contraponto aos programas caríssimos dos quais quero distância - lá fui eu ao CCBB, disposto a me ilustrar um pouco pagando quase nada, com a chancela de qualidade que essa instituição garante às suas promoções.

Foi uma bela noite - simples e emocionante. No palco, cantores líricos de várias latitudes. Uma garota bonita aqui mesmo do Cruzeiro, o bairro brasiliense que até hoje conserva uma ginga carioca trazida pelos seus primeiros ocupantes. E um rapagão de voz tronituante que foi apresentado como uma promessa do canto lírico mundial -um jovem que já então tinha na agenda uma série de apresentações com ninguém menos do que Plácido Domingo (e que outro dia foi destaque na revista "Bravo"). Havia os músicos, claro - aquela leva de violinos que tira o ouvinte do chão quando toca essas composições criadas há tantos anos, cheias de observações sonoras, repletas de revoadas acústicas e dotadas de harmonias humanamente celestiais.

E havia, apresentando todo esse pessoal; melhor, regendo todo esse pessoal, um sujeito baixinho, de cabeleira à Carlos Gomes e ar de alma renascentista com roupagem contemporânea. Essa pessoa era o maestro Sílvio Barbato, de quem eu já ouvira muito falar, por ser tido como uma figura meio polêmica no período em que estivera à frente da direção do Teatro Nacional Cláudio Santoro, aqui de Brasília. Então aquele era o tão falado Barbato. Pareceu-me um sujeito simpático mas, sobretudo, apaixonado pela matéria de seu ofício - a música.

Vi nele, sim, um ar de quem caminha alguns milímetros acima do solo dos mortais - uma elevação que a sua baixa estatuta reforçava ainda mais. Mas esse traço de superioridade encontrava um contraponto no sorriso sempre aberto. E, ademais, havia nele aquela aura que qualquer olho atento enxerga quando depara com alguém tomado pela força invisível de uma paixão. Silvio Barbato transpirava música, isso estava muito claro. E o concerto, fortemente marcado por um caráter didático, encontrou nele um professor e tanto. Acredito que todos os que, leigos como eu, assistiram àquela homenagem musical a Puccini, saíram mais ricos daquela noite do CCBB. Saíram, diria mesmo, flutuando.

Como se carregassem em si, ao mesmo tempo, o peso de um air bus e a leveza de uma só nota musical. Se alguém ainda não ligou o nome à pessoa, tenho que dizer, agora, que esse mesmo Sílvio Barbato é um dos passageiros que o destino pulverizou sobre o Atlântico no desastre que tanto nos deixa chocados quanto dá nova sensibilidade a nossas almas saturadas de trabalho, compromissos, horários, carnês e cupons.