sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Suco de fumaça

A última de Bernardo, meu filho de 3 anos. Ele entra na cozinha correndo e pede, ou manda - já que o imperativo costuma ser seu tempo verbal preferido quando bate a fome ou a sede:

- Quero suco de fumaça!

Reação da babá Ivone, da avó Sebastiana e de quem mais estiver por perto:

- O quê, menino? Suco de fumaça?

- Quero suco de fumaça!

- Não tem não. Não existe suco de fumaça!

- Tem sim. Quero suco de fumaça!

Minha mãe vai abrir, por outro motivo qualquer, a porta de um armário onde guardamos remédios e, pronto, o mistério se desfaz.

- Dona Sebá! - exclama Ivone - Já sei o que é o suco de fumaça de Bernardo. É Vitamina C!

Pensando bem, pra quem chama água de coco de "suco de coco", faz sentido "suco de fumaça" ser aquele tablete de vitamina C se desmanchando no copo de água, xiiiii, como se fosse uma nuvem se dissolvendo.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Tchau, Cordel



Anunciado o fim do grupo que revitaminou o tropicalismo dos sertões com música percussiva, performances arrebatadoras e poesia mastigada com fúria e prazer

Quem ouviu, encantou-se. Quem não, perdeu definitivamente a chance. Pelo menos ao vivo. Mas era ao vivo que eles davam o melhor de si. O fato é que acabou-se o Cordel do Fogo Encantado, o grupo musical que juntou o sertão pernambucano com os morros recifenses, que fundiu tambores e poesia gritada, que levou ao altar das sonoridades mais sagradas uma música teatralizada de acento regional com revestimento estranhamente pop. Com eles, a percussão tomou a frente - e até os violões soavam como tambores rituais. Quando eles começavam a tocar, em shows noturnos ao ar livre, com o céu do mundo como empanada simbólica, instalava-se uma certa atmosfera cool-tribal, como se mais que a um show de música se estivesse prestes a participar de uma experiência estética coletiva de juventude, tradição, fúria, folia e palavras, êxtase e agonia.

O anúncio do fim do Cordel - guarde seus CDs bem cuidados, meu amigo, que eles ficaram ainda mais valiosos a partir desta notícia - está na edição de hoje do Diário de Pernambuco. As causas da interrupção dos trabalhos não estão muito claras ainda - mas é sempre assim, um emaranhado de motivos, substantivos, adjetivos ou indeterminados, que decreta o fim da trajetória de um grupo de rapazes que durante um certo tempo sintonizam no mesmo som. O Cordel, guardadas as características, foram assim como um "Los Hermanos" de extração nordestina, impondo a imperiosidade da música pura num terreno atolado em marketing. Traziam o rural como premissa do urbano, o fogo como ancestral do asfalto, a rabeca turbinada pelo tambor. Foram uma espécie de último suspiro dos velhos tropicalistas. Reapresentaram a uma nova geração inteira a postura musical e comportamental de um tempo que se julgava morto pelo sucesso dos bem estabelecidos.

Lirinha, à frente das performances do grupo, muitas vezes lembrava um Ariano Suassuna rejuvenescido e transtornado, um Zé Celso replantado no sertão, um cavalo do espírito de Glauber valentemente incorporado. Ao pronunciar aquela poesia mastigada, incorporando em si a prosódia pernambucana de um homem além-litoral, naquelas roupas brancas de coronel pop remitificado, ele foi uma espécie de Carlos Drummond de Andrade de Arcoverde, uma variante de Zeca Baleiro mais embaixo no mapa, um pequeno Roberto Carlos melado de barro seco - uma versão agrestina de Chico Science, pra ficar num exemplo mais próximo. Um pequeno revolucionário da música, Lirinha e os seus, para os quais devemos estar atentos daqui pra frente, pra ver o que esses caras vão fazer e onde farão ouvir o rufar de seus novos tambores.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A intervenção vem aí?


Neste momento, todos os aparelhos de tevê do Distrito Federal estão ligados. Nas lojas, nas repartições, nas redações. É aquela expectativa para visualizar a notícia do dia na capital do país – a renúncia, prestes a se oficializar na Câmara Distrital, do governador em exercício do DF, Paulo Octávio. Sem querer e sem notar, nós, brasilienses nativos ou emigrados, moradores da capital do país por destino, opção ou inércia, descobrimos que viramos a Argentina da vez. Ou você esqueceu daquele período turbulento em que o país vizinho virou a piada do mundo por ter três, quatro, não sei quantos presidentes, um após o outro, claro (senão seria o caos total) em questão de semanas?

Viramos a Argentina, com tudo o que isso implica de ruim e de bom. O que há de bom? Pelo menos termos em quem nos mirar. Porque, não esqueça, a situação pode ficar bem pior – ou, por outra, bem mais enigmática. Ou vai dizer que você também não está incomodado com a falta de precisão do que seja e de como vai se comportar essa tal de “intervenção no Distrito Federal”? A intervenção é o segundo capítulo no livro de nossa aflição, depois do prólogo chamado “A Argentina se repete, e não é como farsa”.

A intervenção, por mais que pareça a solução mais sensata, não deixa de ser uma dessas abstrações sobre as quais tudo se pode projetar. É como “a crise” no raiar dos anos 80: sabia-se que ela vinha chegando, que seria terrível, que mudaria tudo, que poderia acabar com a ditadura mas também não garantiria a qualidade do que seria posto no lugar. E só se falava nela, “a crise” – que de tão (mal) falada mais parecia uma pessoa do que uma situação. Na época, o cronista Carlos Eduardo Novaes escreveu um belo texto sobre a iminência da chegada da crise, e sobre o que tal expectativa fazia com nossos inocentes corações brasileiros de então.

Pois Carlos Eduardo Novaes não sabe o que está perdendo em não pegar o primeiro avião para Brasília nesta tarde de terça-feira, dia 23 de fevereiro de 2010. Não é que as pessoas estejam reunidas, em pânico, fazendo filas e comprando provisões nas padarias das quadras comerciais. Não assim, visivelmente. Mas, nas cabeças e nas conversas, é como se o suprimento de água mineral já tivesse há muito se esgotado. Afinal, ninguém sabe bem como vai se comportar no cargo essa tal de intervenção. Será que ela começa o expediente bem cedo e faz serão, com aqueles anúncios de medidas bombásticas em entrevistas coletivas de parar a Globo News? Será que a intervenção visita obras, será que vai aos viadutos de Águas Claras saber se está tudo direitinho? E, se realizar uma boa gestão, será que a intervenção pode se candidatar à reeleição – quer dizer, à eleição?

Tudo é mistério. Brasília, sempre tão carimbada como capital da corrupção e dos políticos aproveitadores, já virou uma Argentina retardatária e agora está se transformando em capital do mistério. Um laboratório da crise, aquela com C maiúsculo, que volta e meia ameaça levar tudo à estaca zero, pré-64.

*A imagem que ilustra a postagem mostra o Palácio do Buriti, sede oficial do governo do Distrito Federal.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O problema é a coligação


Votar é... fazer de conta que não está vendo a coligação. O cidadão acha correto defender a continuidado do projeto do governo Lula, de redistribuição de renda, valorização dos movimentos sociais e manutenção da estabilidade econômica, enche o peito para dizer "vou de Dilma" mas basta olhar para o lado e lá está o PMDB, Sarney e coisa e tal. Nesse final de semana, durante o lançamento oficial da candidatura da ministra, dizem os jornais que foi preciso diluir Michel Temer numa comissão de frente formada por Lula, Dilma, dona Marisa e o sempre bem acolhido José Alencar. Tudo para evitar que, entrando meio desguarnecido no centro de convenções de Brasília, Temer levasse uma vaia.

Então aquele mesmo cidadão do início do primeiro parágrafo resolve pensar melhor, e chega à conclusão, depois de ler a opinião de não menos que vinte analistas políticos dos jornais, de que a verdadeira continuação do projeto Lula é Serra. Problema resolvido, dilemas nunca mais! Quem dera: quando já está a caminho do instituto de pesquisas mais próximo para fazer questão de ser entrevistado e declarar seu voto com alguma antecedência, o cidadão lembra, muito a contragosto, é verdade, quem é o principal aliado de Serra na campanha. Ele mesmo, o DEM de Arruda e Kassab, pra não falar em coisa pior.

O jeito, pensa o cidadão, é pensar que é vinte anos mais jovem e tentar o que a galera chama de "alternativa". E nada mais alternativo neste momento do que Marina. Marina Silva, ora, quem mais? Que outro candidato teria um grau de pureza imune a qualquer tipo de contaminação de natureza coligativo-eleitoral? Marina. Aos pulos, o cidadão sai de casa pronto para comprar o kit de campanha, com broche, camiseta e bandeirinha no quiosque mais próximo do Partido Verde. Embora ecologista desde criancinha, ele prefere ir de carro, porque afinal fica meio longe e coisa e tal. E como é meio longe, liga displicentemente o rádio do carro, onde um locutor muito do mal humorado lembra que o Partido Verde, a nova legenda de Marina, anda bem enrolada com umas coligaçõe estaduais tão sem lógica quanto um chuchu cor de abóbora. E lá se foi mais um sonho acabado.

Resta Ciro Gomes - é incrível como sempre resta um Ciro Gomes no fim do caminho (leia aqui a postagem "O nome certo" e pegue o fio dessa meada). Ciro, por enquanto, é o PSB e mais ninguém - se muito for, porque nem a candidatura neste bloco do eu sozinho está garantida. É verdade que o próprio pré-candidato já passou por um leque partidário bem vasto - e admite isso, dá explicações sem o menor problema. Talvez por isso, por esse passado multipartidário, Ciro, caso se consolide e ganhe espaço, torne-se o candidato mais desconfiado na hora de firmar as tais coligações, pensa o tal cidadão. Mas, por hora, pelo menos a gente olha pra ele e, não vendo ninguém ao lado, por perto, ou escondido atrás de líderes menos contaminados, dá pra confiar mais. Por hora.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Eu, você, nós dois


No dia em que José Serra olhar para uma multidão popular com a mesma ternura com que olhou para Madonna, o Brasil dará mais um salto de qualidade rumo ao futuro. Mas não é o caso de culpar o governador de São Paulo e virtual candidato do PSDB à sucessão de Lula. Antes de jogar mais uma pedra na careca do homem, é preciso respirar fundo e lembrar que, naquela multidão popular diante dele, não estará exatamente uma Madonna pop star, mas um quadro de Portinari, cheio de rostos disformes, dentes cariados, olhares pedintes e roupas puídas - sem falar naquele cheiro desagradável, bem diferente do que exala a cantora americana. Ou será que mudou muito a maneira como a maioria dos políticos brasileiros encara aquela coisa genérica chamada povo?

Deixa pra lá. O que importa, no fundo, é que Madonna conseguiu o que criancinha alguma em comício nenhum ou inauguração qualquer jamais havia obtido: um olhar entre terno e sedutor de José Serra. Não é pouca coisa - só mesmo alguém como Madonna para atingir esse objetivo. Portanto, na próxima vez em que as frases, a voz, o tom e a prosódia tão tecnicamente correta usada por Serra soar levemente amorosa, é obra de Madonna. Tera sido graças a ela que Serra perdeu um pouco daquela imagem de vampiro do bem para ganhar uma nova embalagem de político antenado com o mundo pop. Claro que tem também o tuiter dele, que bombou e tal - mas quem me garante que isso também não foi dica de Madonna?

Ao que se saiba, antes de Madonna, a única pessoa a dar essa pincelada de fragilidade a esse Serra tão obelístico foi a vereadora paulistana e ex-VJ da MTV Soninha Francine. Pois é, a julgar pela troca de olhares entre Serra e Madonna que fez a festa dos jornais e revistas, Soninha foi só um preparativo - um estágio para tirar Serra do mundo refrigerado dos gabinetes e trazê-lo um pouco - com cuidado, claro, que essas coisas não se faz com estardalhaço - ao mundo do sol, aqui fora. A questão é que no caso de Soninha, a gente não tinha a foto. E a foto, a gente sabe, faz toda a diferença. Em ano eleitoral, então, nem se fala.

O nome certo


Pode não parecer, mas o mais básico de tudo é o nome. Pouco adianta a proposta, o curriculo, a ideologia, os aliados e as contradições. O nome, queiram ou não queiram, vem em primeiro lugar. É aquela tal primeira impressão que pode botar tudo a perder, assim, num piscar de olhos. Ou você votaria para presidente num cara chamado Austregésilo. Já pensou, nas manchetes dos jornais: "O presidente Austregésilo anunciou ontem que vai privatizar o Banco do Brasil"? A privatização nem é algo tão remoto assim, agora, ela ser feita por um presidente chamado Austregésilo vai contra a mais elementar noção de marquetingue caboclo. Por isso, pra começo de conversa, é preciso ter um nome. E um bom nome, que funcione, que grude no ouvido, que emplaque.

Aposto que você nunca havia dado atenção a este detalhe quando lia metros e metros de reportagens sobre as pré-candidaturas à sucessão de Lula (pense num nome bom, esse "Lula"; Dona Lindu podia ser uma flagelada nordestina solta na periferia paulista, mas entendia e muito do riscado). Sempre que falavam na necessidade do "nome certo", você e eu, com nossas cabeças viciadas pela terminologia do noticiário político, pensávamos logo que isso queria dizer a pessoa certa, com biografia à altura, ficha limpa e tal. Ledo engano, meu caro: a mensagem oculta era a mais literal: a importância do nome proprimente dito, Maria, José (ops), Teresa, Zequinha (ops novamente), Barnabé, ou o que seja.

Bem, por esse tão essencial embora tão esquecido quesito, Dilma até que não é má candidata. É um nome tão povão quanto Lula - talvez mais, viu? Lembra a vizinha dona de casa e mãe de onze filhos da rua ao lado, é nome de empregada doméstica, nome de fã de Emilinha Borba - quer dizer, de Ivete Sangalo -, nome daquela colega da sétima série que sempre ficava em recuperação em português. E esta é a primeira lição que Dilma tem para ensinar a Serra, que precisa urgentemente reunir os marqueteiros para providenciar sua mudança de nome. Mudança, não - basta uma inversão: José. O presidente José soa muito mais pé no chão do que "o presidente Serra", esse sobrenome de duplo sentido, meio ecológico (coisa para poucos), meio autoritário (do verbo serrar, cortar, reprimir). Já Marina, que entrou no jogo com jeitão de elemento surpresa no início do segundo tempo, tem um trunfo e tanto, que pode continuar fazendo novos e inesperados gols na trave dos adversários. É que, se Marina soa moderno, uma coisa bem carioca, ipanemense, contraparente de Madonna, palavra revestida de um frescor de ideias novas, há também, para contrabalançar, o nome de batismo da candidata, que é Osmarina - a versão popular que poderá muito bem ser empregada da Bahia pra cima. Uma candidata com dupla denominação, conforme a necessidade do momento político. Nas casas das madames paulistanas, esposas de empresários tão verdes quanto um chuchu maduro, ela será Marina. No comício em cima de um caminhão improvisado lá numa clareira do seu Acre natal, ela voltará a ser Osmarina. E todos ficam satisfeitos.

E Ciro, você há de perguntar? Ciro não tem jeito, gente. É isso mesmo - não muda nunca, por mais que tente. É esse nome meio rústico, que se pronuncia com um jato de respiração só, como quem assobia um palavrão. Você pode até não gostar, mas terá de concordar numa coisa: é, entre todos os candidatos, aquele cujo nome tem uma sonoridade que mais se aproxima do próprio perfil. Em outras palavras, o menos hipócrita. Até no nome.

O Cajueiro e o Parracho

Encerrado o veraneio, não pela natural mudança dos ventos mas por obra e graça de uma portaria do Ibama, o Cajueiro e o Parracho acharam por bem ter uma conversinha. Marcaram um encontro ali mesmo em Pirangi para esclarecer umas fofocas, tirar a limpo umas histórias não muito bem explicadas, acabar com um disse-me-disse que não interessa nem a um nem a outro.

O Cajueiro foi o primeiro a chegar, e já foi logo gracejando:

"E aí, Parracho, tá na crista da onda, hein?"

"Alto lá, Cajueiro. Pode ir parando de tirar onda..."

"Virou manchete de jornal, ficou assim de político, colunista social formigando, só a nata..."

"É, mas no fim das contas, quem veio mesmo foi o Ibama."

O Cajueiro notou que o amigo estava, na verdade, meio pra baixo, como se diz. E tratou de reanimar o companheiro do litoral sul.

"Fica assim, não, rapaz. Que por aqui essas providências nunca valem por muito tempo. Logo, logo alguém dá um jeitinho e no verão que vem você volta às paradas de sucesso."

"Será mesmo? O medo que eu tenho é de virar um Morro do Careca."

"Periga, não, velho. No caso do Morro, os tempos eram outros. Se fosse hoje, duvido que essa proibição de subir nele desse certo."

Parcialmente consolado, o Parracho lembrou que o Cajueiro também passou por problemas no verão que acabou de acabar. Não que estivesse muito interessado, já que não conseguia tirar da cabeça o sucesso que fizera nos últimos dias, mas por educação resolveu comentar.

"Pô, Cajueiro, sujeira o que estão querendo fazer com você também, né?"

"É, mas eu tô na minha. Só espalhando meus galhos, provocando aquela estradinha metida a besta. Quero ver alguém querer me cortar!"

"Olha, lá. Melhor não esnobar. Mas tudo bem: se o Ibama voltar pras minhas águas, fique tranquilo que mando os fiscais pra lá suas sombras."

O Cajueiro não gostou muito do comentário. Sentiu uma ponta de soberba na conversa do Parracho que, pelo jeito, estava mais deslumbrado do que parecia. E reagiu, agressivo como tem sido ultimamente:

"Peraí, ô Parracho! Tá se achando melhor do que eu só porque passou uns dias nas colunas e primeiras páginas dos jornais?"

"Ah, Cajueiro, não posso fazer nada. Qualquer um sabe que esse foi ‘o verão do Parracho’ aqui, com ou sem farofa."

"Deixa de ser metido, moleque. Tá pensando que é quem, alguma celebridade feito o Atol das Rocas? Fique sabendo que eu sou você amanhã, viu? Eu sou você amanhã!"

"Como assim, tio?"

"Eles chegam aqui, montam acampamento nos seus corais, nadam nas suas piscinas naturais, bebem, namoram, conspiram, armam, fecham candidaturas, negociam os cargos mas lá na frente, fique sabendo, lá na frente eles vão esquecer você, seu bobo."

O Cajueiro notou que estava impressionando o Parracho, fez uma pausa dramática e concluiu:

"Foi o que fizeram comigo. Era o maior cajueiro do mundo, o orgulho da terra, o ponto turístico, o prodígio da natureza, isso, aquilo, aquilo outro. E eu comendo a corda, crescendo sempre que era pra não fazer feio, esticando meus galhos pra todos os lados como quem bate no peito estufado de orgulho. E então, quando eu tô fazendo bonito nos cadernos de turismo, nos folhetos das agências de viagens, no boca-a-boca dos paulistas e goianos, acontece o quê? O quê, me diga? Uma ameaça de poda, meu, de poda! Pode?"

O Parracho, surpreso com a fúria do Cajueiro, não consegue dizer mais nada. Só olha para o amigo, que retoma:

"É por isso que eu sou pê da vida com o Morro do Careca. Um cara tão antenado, cheio de europeu por perto, todo enfeitado de cerquinha, plaquinha, vigiado por ecologista... Ninguém pode triscar um dedinho naquela areia que senão o mundo acaba. Você não ouviu falar dessa história de espigão, cara? Deu o maior rebu, uma confusão daquelas. Enquanto isso, a gente tá aqui, largado, esquecido. E o Morro nem aí pra botar uma faixa de protesto, uma lembrança qualquer sobre os dramas dos companheiros aqui do litoral sul. Parece que não tem um pingo de consciência de classe, esse Morro do Careca."

Só pra ter algo a dizer, o Parracho comenta:

"Dizem que o Morro agora só quer amizade com o Parque das Dunas. Que o resto, eu, você, essas lagoinhas aqui de perto, é um bando de desclassificado onde qualquer um chega e faz o que quer. Dizem que mandou dizer que a gente precisa se impor."

"Isso é conversa de burguesinho protegido por ONG. Queria ver o Morro do Careca e o Parque das Dunas aguentarem o tranco que a gente suporta, com ônibus lotado de turista, vendedor de pirulito, flash de máquina encandiando o tronco, menino arrancando folha, e no seu caso até farofa d’água, literalmente falando."

Neste ponto da conversa, a convergência surgiu, com o Cajueiro e o Parracho dividindo as mágoas que guardam de outros monumentos naturais. Nada muito diferente do que acontece quando amigos que andaram se estranhando se encontram no mesmo bar e, depois de provocações mútuas, terminam por dividir os ressentimentos. Para em seguida, claro, botar a culpa dos problemas da classe nos que não estão presentes.

"Beleza, Parracho. Bom te ver. E desejo que você se recupere aí nestes meses de chuva que estão vindo. Segundo semestre tem eleição e o pessoal tem muito o que fazer, vai lhe deixar em paz."

"Pois é, né? Mas é que eu também sou humano. Quer dizer, eu não sou humano mas também é da minha natureza gostar de aparecer no jornal, aquelas fotos coloridas, as lanchas, os biquínis e tal. E você, Cajueiro, como é que vai fugir da poda?"

"Minha sorte, colega, é que o veraneio uma hora acaba. E aí ninguém precisa mais ficar indo e voltando da Rota do Sol pra Natal. Eles acabam esquecendo o transtorno da estrada, do mesmo jeito como esquecem de mim e de você. Aproveito para continuar crescendo, que é da minha natureza. E eles continuam batendo boca mas sem fazer nada de concreto para me impedir, como é da natureza deles."

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Carnaval dos amigos

Vocês podem não acreditar, mas o carnaval brasiliense daqui de casa segue animado e a todo vapor. Olinda, Recife, Salvador... vão ter que fazer muito esforço para conseguir atingir o nível de animação da gente aqui. Sim, porque aos de casa vieram se unir Carlos Magno, Rosa, Pedro e Luís. Neste exato momento, também estão integrados ao bloco Gustavo de Castro, Roberto Homem, Klecius e associados. Ontem à noite fizemos a festa no Galinho de Brasíia, depois de uma manhã e tarde de passeios nostálgicos de Carlos Magno na quadra onde morou quando jovem criança. Também formos ao Congresso, visitamos a redação-estúdio da TV Câmara, todos os túneis e buracos do bravo Legislativo. E no sábado anterior, teve prévia no Plano Piloto, onde esquentamos os tais tamborins. Vamos às fotos que não deixam mentir, embora a vontade seja grande.









segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Perdido na terceira dimensão (2)


Na postagem anterior desta série, eu contava do fato de ter experimentado na noite desse domingo uma sensação similar à daquela primeira vez em que assisti a um filme no cinema. A saber: "Paixão de um homem" era o filme, Waldick Soriano era "o artista" e "Rex" era o cinema, em Parelhas, minha cidade quase natal, com a particularidade ainda mais interessante de que aquele era também o primeiro filme exibido pelo cinema recém-aberto, novinho em folha. O cinema onde no domingo assisti a "Avatar" também ainda é recente - é a sala do Boulevar Shopping, aberto na passagem de 2009 para 2010 no centro de compras também ainda recente do final da Asa Norte. E as coincidências não param por aí, o que faz deste início de 2010 um ano estranhamente mágico para mim - um ano que traz de volta coisas que eu guardo com muito cuidado no tal fundo do coração mas das quais não imaginava ter um "revival" tão cedo, ou jamais.

Mas deixemos de drama e vamos às demais coincidências: há quanto tempo você não tem um trabalho danado para comprar um ingresso de filme? Eu não sei vocês, mas pra mim foi um custo e tanto adquirir a preciosa entrada para "Avatar". Era um tal de chegar no cinema e ver a plaquinha: "ingressos esgotados". Ontem eu fui esperto e, antes do almoço, passei no shopping só pra comprar a entrada; e peguei fila, esperei um tempão. Na hora de entrar na sala, fila de novo - embora desnecessária, já que nesta nova sala você já compra o lugar marcado. Uma vez na sala, você entende tudo: o lugar está lotado, por gente de todas as idades, jovens, senhoras e casais, muitos casais. Uma platéia parecida com a do filme de Tarantino já citado na primeira parte da postatem(o "Bastardos Inglorios") - que este também tem o misterioso poder de trazer famílias inteiras de volta para as salas de cinema.

Tudo isso, a dificuldade de comprar ingresso, fila para entrar, a coisa mais cerimonial e organizada do lugar marcado, a sala cheia, a expectativa generalizada sobre como seria a sessão, tudo me levou de volta à infância, aos tempos dos primeiros filmes. Mas nem em sonho eu poderia imaginar a magia que seria esse tal de 3D Digital, capaz de me lembrar daquela velha piada do cara que nunca foi ao cinema e tomou um susto, abaixando-se na hora em que a cena mostrava um trem vindo em sua direção. Não cheguei a tanto, mas houve uma hora no "Avatar" em que alguém sacode no chão umas bombas parecidas com granadas e eu, com a nítida sensação de que um dos petardos vinha bem na direção do meu rosto, pisquei o olho, num susto daqueles. A esta altura, totalmente imerso no filme, eu já havia até esquecido daquele momento em que a gente fica meio sem jeito, sem saber bem quando ou exatamente como colocar os óculos ridículos no rosto. No meu caso, que é de óculos sobre óculos, aí que o negócio fica mais nerd.

"Avatar", o filme para além da tecnologia - embora eu ache difícil desligar uma coisa da outra - lembra muito "Dança com Lobos". É uma espécie de "Dança com Lobos" vestida com robótica, adornada por outras mitologias mas de extração igualmente alimentada pelo conflito entre a tecnologia a serviço do mal e a natureza indefesa, à flor da pele e à beira do abismo. Já se disse que não faz sentido um filme que deve tanto à tecnologia fazer uma crítica deste mesmo instrumento de dominação, como se essa contradição tão evidente não valorizasse ainda mais o filme. E no final das contas, "Avatar" também me lembrou muito os filmes da série de "Maciste", heroi italiano do pequeno expectador que eu fui - numa semelhança que turva ainda mais qualquer possibilidade de análise distanciada do fenômeno do momento.

Perdido na terceira dimensão (1)



Diante de tanta gente que torce o pescoço e se nega a entrar num cinema para assistir ao mais recente arrasa-quarteirão do mundo do entretenimento global, o filme "Avatar" em 3D digital, eu já estou em desvantagem. Vergonhosa desvantagem. Acontece que, antes de fazer qualquer comentário sobre este tão badalado filme, a que finalmente consegui assistir na noite desse domingo, preciso fazer uma confissão daquelas que têm o poder de macular qualquer boa reputação. E, como a minha já não seja muita coisa, vai ficar pior ainda. Meus amigos, perdoem esse pobre coitado que de joelhos rezou um bocado na igreja do lixo cultural mais vil. É preciso que eu admita, de pés juntos e mãos postas: muito antes de "Avatar", eu já era muito, mas muito fã desse tal de James Cameron. E nem venham me falar da breguice de "Titanic" -de que eu, aliás, também gostei muito - que o furo no casco desse velho navio fica muito, mas muito mais embaixo.

Então, vamos, de trás para diante. Corria o ano de 1985 quando este serelepe frequentador de cinemas entrou feliz que só pinto na merda na sala do saudoso cine Nordeste, no centro de Natal, para assistir a "O Exterminador do Futuro". Era uma parábola tecnológica do tipo a-cobra-morde-o-rabo, pois, como hoje em dia não tem quem não saiba, tratava do envio, por um futuro tecnoditadorial, de um exterminador para matar, no presente e ainda na barriga da mamãe, o homem que poderia ameaçar a ordem totalitária do porvir. Era um roteiro sedutor, que dava voltas em torno de si, filmado com uma mão de tinta pop que tornava essa perseguição um atraente triller contemporâneo (contemporâneo de 1985, que fique claro). E eu, este sujeito datado por natureza, não sou de resistir a este tipo de coisa: triller, tratamento pop, roteiro instigante, dilema ético, tecnologia versus humanidade.

Anos depois, no vácuo de uma Natal sem cinemas, veio "O Exterminador do Futuro II", ainda melhor, servido em fitões VHS trombulhudos mas igualmente divertidos. E uma pérola misteriosa chamada "O Segredo do Abismo", uma epopéia submarina com sentimento de filme vespertino na tevê e aparência de subproduto tecnológico de última geração. Quando, anos mais tarde, já morando em Brasília, entrei numa das salas do Brasília Shopping para ver "Titanic" eu já estava mais do que conquistado por esse Spielberg de segunda geração. De maneira que gosto mais de Cameron do que de Tarantino, se vocês me entendem. E, sendo assim, não tenho como entrar para o time da rapaziada que, entre cool e descoladíssima, distingue-se da massa geral de ignorantes que torra reais para assitir à revolução de "Avatar".



Não que eu aprecie o massacre informativo que acompanha o filme-evento, seja este ou qualquer outro - como o que antecedeu o "Bastardos Inglórios" anteontem mesmo, sem despertar maiores entusiasmos de minha parte. Mas também não custa nada soltar as pedras no chão, cortar as cordas de segurança dos parâmetros acadêmicos, esquecer por três horas as opiniões dos estetas que dão ou não legitimidade prévia a um filme (poupando a muita gente o trabalho e o risco de se expor a fazê-lo) e, assim, livre feito um passarinho, entrar no cinema e assistir ao tal "Avatar".

Dito isso, só posso falar mesmo por mim. E por mim, meus caros, atesto, assino embaixo e reconheço a firma: da primeira à última imagem na tela, assisti a tudo com o queixo caído. Embasbacado, deslumbrado, imerso naquela novidade que me mostra o ator ou a atriz a um pulo do meu nariz, como se a pessoa em pessoa estivesse à distância de um palmo à minha frente, graças à ilusão que os óculos engraçados promovem. E, claro, quando tal ilusão se coloca a serviço de uma fábula como aquela, usando o pretexto narrativo para exibir, em várias camadas de imagens superspostas, árvores centenárias e criaturas translúcidas, o deleite não poderia ser menor.



Você pode estar estranhando minha entrega matuta diante dessa tecnologia gringa. É que faltou eu lhe dar mais explicações. A sessão de ontem à noite de "3D-Avatar" foi, pra mim, algo como viver de novo a primeira sessão de cinema da vida (falei dela outro dia; se quiser saber mais clique aqui). Pelo simples fato de que, aos 44 do segundo tempo, eu jamais havia assistido a um filme em 3D. Nunca tinha visto aqueles óculos engraçados - só em fotografias. A experiência mais próxima que eu tinha com o tridimensional eram aqueles álbuns de gravuras que fizeram um certo sucesso no ínicio dos anos 90, com figuras que, se você olhasse com atenção e concentração, ganhavam uma dimensão a mais. Se eu não havia visto nem flme em 3D comum, normal, tipo anos 50, imagine o meu espanto diante deste novo 3D Digital que James Cameron desenvolveu.

E você quer que eu torça o pescoço? Não vai dar - a não ser que seja para voltar à sala e assistir tudo de novo.

Leia na Hamaca


"Há leituras que são perturbadoras, daquele tipo que obriga o leitor a parar, de página em página - às vezes, as mais marcantes, de parágrafo em parágrafo - para respirar fundo e assimilar aquilo, antes de prosseguir. "Olga", aquela atordoante biografia da primeira mulher de Luiz Carlos Prestes, escrita com maestria por Fernando Moraes, é um livro assim. Revelador, emocionante, informativo e organizado e, principalmente, perburbador."

Continue lendo aqui.

Longa vida a Alencar


Por dever de ofício, assisto pelo menos três vezes a praticamente todas as reportagens que a TV Câmara exibe em seus telejornais. Como editor do "Câmara Hoje", que é o telejornal noturno (segunda a quinta, 21h, veja aqui), reviso as reportagens antes de elas irem ao ar, para ajustes eventuais, para distribuir os assuntos ao longo do jornal, para escrever as aberturas e outras tarefas do ramo. Depois, assisto a tudo de novo no momento mesmo em que o jornal está indo ao ar, junto com o pessoal do switcher, que é uma cabine onde um monte de técnicos atuando em sincronia absoluta leva o telejornal até sua casa. E, finalmente, vejo tudo de novo toda sexta-feira, quando minhas tardes e noites são dedicadas a revisar a versão final do programa "Panorama" que, por sua vez, é uma espécie de resumo dos telejornais da semana que está terminando. Por isso, quando chego à terceira revisão, é impossível evitar uma certa sensação de saturamento. Mesmo assim há momentos que contrariam esse enjoo visual e saltam da tela até na terceira revisão.

Semana passada, houve um desses momentos. Foi na reportagem sobre a reabertura do ano legislativo no Congresso. Depois dos discursos regulamentares, dos aplausos protocolares e das declarações habituais, a reportagem destacava a homenagem prestada no Plenário ao vice-presidente da República, José Alencar. Uma salva de palmas daquelas de arrepiar coração veio abaixo, fazendo o vice levantar algo timidadamente e agradecer se curvando, com um sorriso meio encabulado no rosto. Belo momento, para sublinhar a bela experiência que o velhinho Alencar tem transmitido a tantos brasileiros quanto sejam aqueles interessados em acompanhar sua epopéia contra sabe-lá quantos tumores.

Por sinal, um deles, parece que o maior de todos, tem diminuído, segundo as últimas notícias. Mas, de fato e no fim das contas, nem interessa muito o desempenho médico de Alencar. Interessa, comove, impressiona é a maneira mineiramente sábia como José Alencar carrega sua doença, sem demonstrar o fardo que ela com toda certeza representa, mas, ao contrário, sempre exibindo aquele sorriso que não parece combinar em nada com quem acabou de sair de uma unidade de terapia intensiva, de uma cirurgia de dez horas, de um exame nem sempre reabilitador. Alencar, com seu bom humor imune aos tumores, é um tijolinho a mais no muro de otimismo que o brasileiro vem erguendo em torno de si nos últimos anos.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Sopão por aí








Trancoso, Bahia.

Memórias do Sopão



Severina, a Imperatriz

Hoje, ouvindo umas músicas de Cleudo Freire, aqueles hinos da juvenília natalense dos tempos em que ainda havia luais em Ponta Negra, lembrei de uma figura daquele tempo: Severina, a Imperatriz do Brasil, como ela se autodenominava.

Severina vivia no Palácio do Potengi (foto acima), naquela época ainda usado normalmente como sede do Executivo estadual. Era comum encontrá-la naquele pátio na entrada, ou na solene escadaria de madeira, ou então lá em cima, no andar superior, naquele imenso sofá em forma de curva que havia na ante-sala principal.

É que ela circulava livremente pelas dependências do Palácio. Não seria surpresa encontrar Severina em algum gabinete mais restrito. Lembro que parecia haver um acordo tácito para franquear à Imperatriz toda e qualquer dependência. Não estranhe, meu amigo. É que não havia estresse naqueles tempos. Cerimonial nenhum quebrava a cabeça por causa de Severina. Nâo havia motivos – havia, sim, um respeito por aquela figura tão desmiolada quanto inofensiva.

Severina tinha toda uma história que não cansava de contar. Difícil era entender aquela ladainha, que incluía coisas como descendência de princesas da Áustria ou qualquer outro lugar tão remoto quanto majestático. E como para confirmar – ou simplificar aquela história confusa – ela andava, sempre muito bem vestida, com a simplicidade elegante dos melhores desmiolados, envolvida por uma baita faixa, do tipo presidencial, pendendo entre o ombro e o quadril. Na faixa, salvo engano da memória que nunca é garantia de muita coisa, estava escrito aquilo mesmo: Imperatriz do Brasil.

E havia as grandes ocasiões, em que Severina era presença garantida e destaque absoluto. Ela fazia sucesso com as multidões em momentos como a posse de um novo governador. Numa dessas, acabou entrevistada meio por engano por um repórter de nossa televisão local ainda incipiente. E foi a comédia que se imagina, com Severina abrindo aquele seu discurso confuso para cima do entrevistador. Teria sido Edvan Martins a vítima da lábia de Severina? Ana Nossa Mana tem memória de elefante e pode esclarecer.

Naquele tempo havia um ritual todo final de ano no Palácio. Temo que esse ritual – muito mais absurdo do que os maiores absurdos contados por Severina – ainda seja praticado. Era um ridículo "beija-mão", quando se formava uma fila de autoridades e candidatos a importantes, todos aguardando o momento de cumprimentar o governador e desejar feliz Natal e bom ano novo. Coisa que faria corar qualquer monarquista sério. E quem se destacava? Ela, nossa mais legítima representante de regimes ritualísticos, Severina.

Onde andará Severina? Será que ainda está viva e freqüenta o museu em que transformaram o velho Potengi? Será que morreu, alguém me avisou e eu apaguei a informação da memória de propósito, só pra lembrar dela de vez em quando? Bem que o movimento negro de Natal poderia reabilitá-la como estandarte vivo – ou morto, já lá se vão uns tantos anos, não sei – do orgulho da raça. Nunca conheci um negro mais impávido e orgulhoso, no melhor sentido, do que Severina. Podia ser louca, mas parecia mais uma rainha.

P.S: Lembrei de Severina ouvindo Cleudo porque no CD dele ouvimos a voz da Imperatriz em vários momentos, como vinheta entre uma faixa e outra.

*Texto publicado originalmente na primeira versão do "Sopão" em 5 de abril de 2007. Na época, nosso amigo Alex (de Souza) me corrigiu, lembrando que Severina era a "embaixatriz" e não a "imperatriz" do Brasil, como escrevi. Também foi Alex (junto com Ricelli, em outro comentário) que revelaram o paradeiro de então de Severina. Segundo eles, ela fora internada num asilo de velhos nas Rocas que mais tarde seria interditado pela vigilância sanitária. Depois disso, não tive mais notícias. Quem tiver, é só acrescentar nos comentários: onde andará Severina?

Leia na Hamaca

"Cecília, além de promovida ao primeiro andar, além de agora estudar parede e meia com as turmas das "meninas grandes", ainda ganhou outra auspiciosa novidade: a nova sala tem carteiras. Sim, senhor, car-tei-ras (será a divisão silábica está certa ou terei de voltar aos bancos escolares?). Isso é uma quebra de paradigma e tanto, um ponto de virada daqueles na vida escolar de nossa pequena aluna que ainda nem fez seus 5 anos. Uma evolução na escala da vida escolar pela qual você que me lê agora certamente também já passou, embora tenha esquecido do momento e da imensa importância dele."

Leia o texto completo aqui.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O Código Cascudo


No dia em que Dan Brown descobrir Natal, duplica sua fortuna, com o perdão do palavrão, literária. O autor de best seller que ficou milionário ao estabelecer as mais malucas e divertidas conexões entre Leonardo da Vinci e Jesus Cristo precisa ser informado da existência da cidade dos Reis Magos. Porque, tanto quanto a Paris do "Código Da Vinci" e a Roma de "Anjos e Demônios", a Natal de raros romancistas também está coalhada de símbolos suspeitos. Das Quintas ao Baldo, para onde se olhe há uma estátua, um monumento, um sinal urbano assobiando ao ventinho da tarde pra disfarçar, quando na verdade contém uma mensagem secreta que algum dia, mais cedo ou mais tarde, algum professor Robert Langdon – de férias, naturalmente – vai encarar.

Duvida? Ok, vamos começar pela Coluna Capitolina. Ou você acha que tem sido produto do mero acaso a verdadeira peregrinação que este monumento de origem não muito clara tem feito pelos quatro cantos de Natal? Repare: presenteada aos potiguares por ninguém menos do que Benito Mussolini no auge do poder (o que já é, no mínimo, digno de desconfiança), a tal coluna foi instalada na esplanada do cais do porto às 7h30 do dia 8 de janeiro de 1931 (a exatidão aqui se justifica, afinal, ela pode esconder em sua numerologia oculta muitas intenções desconhecidas). De lá, foi removida para a Praça João Tibúrcio, na Cidade Alta; daí foi para a Praça Carlos Gomes; e então para o Largo Vicente de Lemos, em frente ao suspeitíssimo prédio do igualmente bandeiroso Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Tem que haver alguma coisa não revelada por trás desse deslocamento todo – talvez uma tentativa de dificultar as investigações de algum abelhudo que tenha se aproximado da grande verdade. Ninguém mais se lembra, é claro, mas o próprio motivo pelo qual ganhamos a Coluna Capitolina também já desperta uma bela linha de investigação: é que o monumento marcou a vitória da terceira travessia sobre o Atlântico, feita naturalmente por um italiano. A própria coluna foi trazida num desses voos aguardados com medo e fascínio, quando quatro esquadrilhas de hidroaviões realizou novo "raid" Roma/Natal (era assim que se chamava a façanha).

Ora, o que poderia levar aquele bando de italianos a se meter em hidroaviões precários e atravessar o oceano como quem pega um esqui-bunda em Genipabu? Na época, essas travessias eram uma verdadeira mania. Era muito "raid" para pouco rio Potengi, cujo estuário servia de pista de pouso. O que poderia justificar tamanho trânsito aéreo em tempos de tecnologia tão incipiente? Pergunte ao professor Langdon e garanto que ele arranja uma explicação. Se você lembrar, a tempo, que o estuário do Potengi vai dar nos paredões do Forte dos Reis Magos, aí é que a coisa esquenta.

Afinal de contas, quem garante que André de Albuquerque, senhor de Cunhaú e nosso herói da revolução de 1817, o homem que conseguiu por poucos dias instalar a República em Natal em pleno Brasil Colônia, morreu mesmo nos porões infectos da fortaleza de então? Ele poderia muito bem ter escapado com a ajuda de algum tapuia aborrecido com o tratamento que recebia dos portugueses. Nunca se sabe. E quando essas reviravoltas vêm à tona, não é incomum que vendam milhares de exemplares nas boas livrarias.

Quem garante que foi mesmo o rei D. José I quem mandou de presente para o povo da terra as estátuas de Gaspar, Belchior e Baltazar, aquelas da igreja de Santos Reis, no longínquo ano de 1752? E já pensou quantas mensagens cifradas poderia conter o interior das imagens assim que desembarcaram em algum pântano pré-Ribeira, naqueles tempos repletos de santinhos de pau oco? Ou você é do tipo absolutamente crédulo, daqueles que pensam que o massacre de Cunhaú não tem relação alguma com a rivalidade entre xarias e canguleiros e a apresentação de Tommy Dorsey na Parnamirim Field de uns aninhos depois? Ah, tem natalense que é cego mesmo.

Não é o que Dan Brown pensaria. Aposto que, informado apenas dessas notas esparsas, ele pegaria o primeiro charter para Natal e iria, antes mesmo de deixar as malas no hotel, bater na porta de Mr. Cascudo, ali na ladeira da Junqueira Aires – por sinal, excelente locação para a adaptação cinematográfica. Brown ou Landgon, criador ou personagem, seria recebido com desconfiança por Anália, eterna serviçal na casa do mestre Câmara Cascudo. E a muito custo, sob o olhar cuidadoso de Dhalia, franquearia a entrada de um deles ou de ambos no célebre gabinete do mestre, já ausente. E veríamos um Langdon ansioso correr para aquelas paredes onde os visitantes ilustres deixaram seus autógrafos. Porque, entre a algaravia rabiscada de tantos nomes, haveria uma mensagem secreta essencial para resolução do grande mistério natalense.

Claro que a aventura completa, segredo editorial guardado a sete chaves, ainda teria uma esticada a praias de nomes tão sugestivos como Zumbi e Exú Queimado, uma investigação com lupa nos detalhes de um painel de Newton Navarro, uma análise estruturalista nos versos de Othoniel Menezes para aquela só aparentemente inocente canção de seresteiro chamada "Praieira" e, para o professor Langdon relaxar um pouco, uma colherada de um dos doces mais típicos do sertão, o chouriço, aquele feito com sangue fresco de porco. Isso lhe diz alguma coisa?

Ainda havia muitos outros sinais para fundamentar essa argumentação, em forma de monumentos (lembra da cabeça de bronze de Kennedy, roubada sabe-se lá por quem e com que objetivos?) e de pessoas (você ainda acha que Severina, a administradora-geral do Estado, tinha passe livre nas repartições só porque era tida como doida?). Mas em primeiro lugar o limite de palavras do texto está estourando, e em segundo algum projeto de escritor pode estar lendo esse relato, prontinho para transformar tudo num romance bem prejudicado pela pressa afoita. Guardemos os trunfos. Quem sabe Nei Leandro de Castro, ao que parece um dos poucos entre nós que realmente tem prazer em ser lido, resolve encarar a epopéia?

*Publicado no Novo Jornal