terça-feira, 26 de agosto de 2008

Cida, Valéria e Kristal


Não sei se já disse aqui, mas meus ouvidos são tarados pela voz, pelo timbre e pela maneira de cantar de Cida Lobo, artista da terra Natal. Quando eu ouço Cida Lobo - tenho um único CD dela, aquele que tem a música sobre a feira do Alecrim - é como se sentisse um favo de mel se derretendo nas profundezas da minha audição. Ela é melosa, mas não enjoa. É terna, mas sabe agredir com doçura. Pronuncia cada palavra como quem mastiga o coração de um ouvinte fatigado de bobagens alheias. Canta como uma guitarra dolente, vibra como uma corda cortante. Cida Lobo recoloca cada coisa no seu devido lugar e, matreira e moleca, logo espalha tudo de novo. É ouvir, babar e sorver.

Também já disse por aqui do tanto que gosto da musicalidade de Valéria Oliveira. Se Cida Lobo é caldo doce e fervente, Valéria é punhal de prata. A voz de Valéria parece assim uma lança afiada, uma agulha madura costurando no ar as notas certas de canções que tanta gente não soube valorizar a tal ponto. Cida é Gal na fase tropicalista; Valéria é Elis no alvorecer dos anos 80. Entricheirado entre as duas, sou um ouvinte completo, refestelado entre as caixinhas de som que enchem a sala com detalhes mil de uma cantoria quase sagrada quando as circunstâncias, o silêncio em volta, a concentração e o relaxamento permitem.

E aí, quem me aparece? Kristal, cujo nome nem sei escrever corretamente - e nem vou me dar ao trabalho de entrar no Google para corrigir. Vocês sabem de quem estou falando. Foi assim: todas as vezes em que vou a Natal, Titina ou outra pessoa me fala, "ó, vai ter show de Kristal, ela é demais, você tem que ver e ouvir". Evidentemente, eu nunca consigo assistir a show algum nesses pequenas temporadas em Natal, especilamente depois que a família virou família mesmo. Mas as sugestões, as indicações, as recomendações sempre ali, independente da minha indiferença. Já estava achando que era exagero. Se eu já tinha Cida e Valéria, o que a tal Kristal poderia acrescentar? Como não sou teimoso, numa dessas temporadas comprei o CD de Kristal e trouxe comigo. Até ouvi - mas eu já devo ter dito aqui centenas de vezes que as circunstâncias são tudo e um pouco mais. Ouvi, mas não devo ter escutado - vocês me entendem.

Como dizem os contadores de histórias populares, passou. Outro dia, não sei por que, essas coisas não têm nunca uma explicação lógica, botei pra tocar o CD de Kristal. Era um momento silencioso em casa, uma hora de pouco movimento, acho que havia acabado de colocar Bernardo pra dormir, noite tipo 22h, devia haver um luar se insinuando da varanda. Não quero estragar a poesia do momento que antecede esta nova audição, mas acabo de lembrar de algo importante. Eu havia sido informado há pouco tempo que Kristal foi a intérprete escolhida pelo nosso amigo Adriano de Sousa para cantar o jingle de Fátima Bezerra, candidata à Prefeitura de Natal. Convém prestar muita atenção nas escolhas do exigente amigo Adriano e talvez tenha sido esse o estalo meio inconsciente que me fez tirar o CD de Kristal das gavetas e botar o bicho pra rodar.

Qual nada: a sala de repente se encheu de uma sonoridade plena, pontuada de sonzinhos e sonzões, artefato sonoro de rendilhados vários, percussão dominante, comentário sibilante aqui e ali de uma guitarra meio Paulo Rafel-Alceu Valença, de uma safona-dominguinhos, clássicos da neomúsica pernambucana revistos e refeitos como jamais se espera. Kristal pega temas como um côco que Lenine modernizou e dá-lhe releitura, com camadas e mais camadas de inventividade sonora. Pega um Mestre Ambrósio e descasca a letra, dando-nos a entender uma segunda dimensão da cantiga. Lança mão de um item do cancioneiro de Cátia de França e o recobre com uma mistura de raggae que logo se transforma em um rock algo hard, "lá vem Batista com pedras na mão, mistura de Carcará com Lampião".

Uma força, uma pisada que levanta a poeira sonora do chão, uma energia que, ao contrário do que eu pensava de tanto ouvir falar dela, não vem necessariamente da voz - mas do diálogo que essa voz tem a humildade de estabelcer com a embalagem sonora em volta. A voz - que, imagino, nos shows é realmente mais intensa - no CD é um instrumento a mais, em perfeito alinhamento com os demais, ancorando a musicalidade geral do disco, recriando em conjunto com os instrumentistas o que a execução costumeira havia adormecido naquele punhado de composições.

Cida é Gal tropicalista, Valéria é Elis no alvorecer dos 80? Pois Kristal é Gilberto Gil endiabrado, sorvendo gororobas regionais com bebidas energéticas de coloração pop. Gil feito mulher como Caetano jamais sonhou.

Fiel e Fabrício

Outro dia, na van que leva a gente do edifício principal da Câmara para o estacionamento dos funcionários, alguém comentou que, quando se boceja, está-se na verdade refrescando o cérebro. Se for assim, meus miolos devem ser bem arejados, como um oitão de casa sertaneja às duas da tarde. Mas a verdade é que ultimamente tenho recorrido a outro artifício para manter a cuca gelada e refrescante: ando lendo, como quem toma um sorvete napolitano, "Conexão Manhattan - Crônicas da Big Apple", seleta coloquial de escritos de Lucas Mendes, mineiro batuta que se americanizou com todo o direito e que todo mundo conhece, se não dos tempos de correspondente da Globo nos estaites, ao menos - e o que é bem melhor - do melhor dos melhores tempos do programa de tv "Manhattan Connection", noites de domingo, GNT, Caio Blinder, Paulo Francis, já foi melhor, é verdade, vocês sabem.

As crônicas, reportagens e outras amenidades publicadas na imprensa em geral (boa parte deles na revista "Imprensa", outra que já teve tempos bem melhores) funciona com uma bela sobremesa caso você venha de leituras mais sombrias. É uma ótima pedida para intercalar entre um "Torquatália" e um "Moby Dick", pra ficar em títulos citados ainda recentemente neste Sopão. É uma delícia frugal, por exemplo, fuçar os bastidores do Manhattan Connection, como a história do incrível dia em que o engenheiro responsável gravou todo o áudio do programa - e nada, nadinha mesmo, do vídeo, e os rapazes tiveram que, imediatamente, putos como só eles conseguem ficar, regravar tudo. Lucas garante que ficou muito melhor. Também estão lá várias histórias de assistentes de equipes de televisão que acompanharam Lucas Mendes em reportagens mundo afora, no Líbano ou nos conflitos que nos anos 80 marcaram a América Central. Há um em particular que vai arrancar de você, leitor, aquelas risadas ridículas que a gente costuma dar em lugares públicos, quando está sozinho com um livro, e um livro que nos faz gargalhar indiferentes a quem ou o quê esteja em volta.

Quem trabalha ou trabalhou em redações, quem já foi repórter de passar horas nas ruas trabalhando com o auxílio de assistentes de câmera ou motoristas sabe como eles são divertidos - muitas vezes até involuntariamente. Lendo o livro de Lucas Mendes, era impossível que eu não lembrasse de dois deles: dois motoristas, ali por 1988-90, na Tribuna do Norte. Até hoje, se a gente juntar os nomes dos dois, soa cômico, como um título de dupla do cinema ou da música sertaneja: Fiel e Fabrício.

Fiel era gordo, falastrão, meio nervoso, cabeção, dado às risadas, tão expansivo quando sua barriga de morador do Alecrim acostumado ao mundo dos morre-em-pé. Trabalhava à tarde. Era aos cuidados dele que repórteres como eu, Bernadete Cavalcanti, Silvio Andrade, José Zilmar e tantos mais que eu evidentemente vou esquecer o nome batíamos Natal inteira, de Soledade II à Vila de Ponta Negra, "cumprindo pautas" como se dizia. Tenho até hoje uma foto onde apareço, migricelo como o passado, ao lado de Fiel e do fotógrafo Emerson do Amaral, sob o sol do meio-dia, numas pedreiras em Caicó, onde procurávamos histórias de barbearias improvisadas e outras manifestações dos bairros populares da cidade. Fiel participava, dava pitacos, às vezes ficava emburrado por qualquer besteira, levava os problemas de casa para a kombi onde trabalhava - enfim, compunha, com todos os ingredientes, o exemplo perfeito do assistente em equipe de jornalismo. Parecia um personagem - de tão típico, só podia ser inventado. Mas era pura realidade.

A história mais marcante de que me lembro com Fiel deu-se numa noite, num daqueles hotéis chiques da Via Costeira - na época, mais chique ainda, porque recém inaugurado. Pensando bem, não foi no Imirá - o hotel que me veio à memória, mas poderia ter sido, uma vez que, não sei porque, volta e meia nós da Tribuna da época lá estávamos, em algum lançamento de alguma coisa, ou para entrevistar alguma celebridade de passagem. Mas a história se deu, de fato, ali perto, no Centro de Convenções de Ponta Negra. Era um desses congressos gigantescos que reúnem a nata do empresariado de determinado setor, no caso, da alimentação. Quem se congratulava era o ramo dos presuntos, frios, fatiados, as Sadias da vida. E havia, por isso mesmo, uma bela mesa posta para os participantes, convidados e a tal da imprensa. E quem fazia parte da imprensa? O nosso motorista Fiel, claro. Ouso dizer que nunca na história desse país a imprensa se fez representar tão fortemente em evento algum. Fiel, motorista primeiro e único, vendo todos se servirem na mesona de frios, postou sua barriga protuberante à frente do corpo, deu dois passos decididos e, olhar decidido e expressão soberana, pôs-se a recolher com as mãos mesmo camadas e mais camadas de presunto fatiado, torres de queijo fininho empilhado, e fartos punhados de salgados para acompanhar. Tudo isso para comer, há de se perguntar o leitor. Não, meu caro, era "pra viagem". Ia tudo para os bolsos das calças folgadas do nosso bravo motorista. Sem a menor cerimônia, com o mandato que o reinado do Alecrim lhe deu para que agisse soberano onde se julgasse convidado. Nenhum de nós outros, repórteres da Tribuna ou do Diário (neste tempo, Natal era uma pobre cidade bipartidária em termos de jornais), fez qualquer repreensão. Assistimos a tudo aquilo com o ar de riso que torna mais interessante certas ocasiões muito chatas.

A história do saque dos presuntos levou muito espaço e sobrou pouco para falar sobre Fabrício, o Fiel do turno da noite. Mas é coerente que seja assim, já que Fabrício era em tudo o oposto de Fiel: calado, taciturno, se não magro, também não gordo, na-dele, embora, muito de vez em quando, soltasse um comentário que, justo por falar pouco, chamava a atenção dos passageiros. Que éramos nós, plantonistas da noite (havia isso e, logo no meu primeiro plantão noturno pegou fogo a sapataria Manchete Calçados, naquele bequinho que é a rua Cel. Cascudo, na cidade) ou repórteres, editores e diagramadores não-motorizados da era pré-aquecimento global, gente que trabalhava além das nove da noite e por isso tinha direito a transporte para ir para casa.

Você pode chamar de transporte, mas na verdade era uma farra. No bonde havia gente como os repórteres supracitados e pessoas que depois teriam papel de destaque na cidade, como nosso amigo Rubinho, Rubens Lemos Filho, que por ali começou o namoro com Isabel, sim, senhor. Carlão, Sônia (não a companheira do nosso amigo, mas a diagramadora), um bando de gente boa que eu evidente vou cometer o pecado de esquecer os nomes. E, no comando do volante, o igualmente bravo Fabrício, olho vivo, boca fechada e espírito aberto. Aberto ao ponto de desviar da rota principal - o endereço de cada um de nós - para aquela parada estratégia no Bar do Negão, domínios do Jiqui, onde se bebia o de sempre e se reforçava o estômago vazio com um caldo a cavalo de recuperar um exército. Fabrício, ao que me lembre, não bebia - ficava só na mutuca, observando o frevo daquela gente divertida, alegre e jovem.

É muito comum que, à noite, na van que leva o pessoal da Câmara para um dos estacionamentos da casa, eu lembre daqueles tempos da Tribuna. É quase o mesmo clima - mas tudo se dilui bem rapidinho, como o tempo, esse passageiro apressado.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Provérbio

Em Ponta Negra, a noite é, de fato, uma criança.

Bivar e Torquato


Enquanto aqui em volta o mundo fica com uma cara cada vez mais careta, eu encontro refúgio e respiração nas experiências da contracultura. Acabei de ler, nestas férias, quase simultaneamente, dois livros que trazem o melhor e o pior daqueles anos, 69-73, desbunde com tropicalismo, política das armas x política do corpo, festivais x iê-iê-iê, abertura convivendo com conservadorismo, Itapoã e Londres, teatro e cinema novo, ares clássicos que deram em tudo e deram em nada - é uma questão de ponto de vista e de ver tudo sem se grudar às verdades estabelecidas (que, hoje em dia, até o célebre 1968 tem das suas, o ano que não deveria terminar e por isso mesmo em muitas situações virou mercadoria).

Os livros, quem acompanha o Sopão já deve ter advinhado, são:
1) "Torquatália", organização de Paulo Roberto Pires, editora Rocco, primeiro volume com reunião de colunas escritas para jornais como Correio da Manhã e Última hora pelo letrista, poeta e atormentado piauiense; 2) "Longe daqui aqui mesmo", segundo livrinho de memórias existencial-desbundistas do homem de teatro Antônio Bivar (foto), autor de textos celebrizados naqueles tempos, como "Cordélia Brasil" e a outra peça que leva o mesmo título do livro. A edição é daquela coleção de bolso da L&PM, jóia barata e rara para quem gosta de fuçar livrarias e levar ao máximo a máxima desse mesmo Bivar nas ditas memórias - o melhor aproveitamento com o mínimo de gastos.

Eis, pra começar, uma grande distinção: é disso que tratam as memórias de Bivar, livrinho que vem exatamente na seqüência do anterior "Verdes vales do fim do mundo", em que ele narra sua trip por oropa, frança e bahia (não resisti a usar a expressão, mas fica só na oropa mesmo, em particular na Inglaterra, entre Londres e antigas cidades medievais). Bivar e sua troupe mostram o quando se pode viver a vida gastando o mínimo, aproveitando a solidariedade que só aqueles tempos produziram daquela maneira, mistificando até a fome - e principalmente a fome. Nesses tempos em que a gente mal consegue resistir ao consumismo que nos arrasta, ler as memórias de Bivar contando sobre suas peregrinações entre hippies, atores e atrizes, brasileiros exilados além-mar, drogas de um outro tempo, cores de um outro céu numa era politicamente muito mais implacável, é injetar atmosfera nova nesses nosso novo tempo que, embora politicamente livre de amarras, acaba se atrelando a valores vencidos. Curiosa contradição: na era da repressão, aqueles hippies tão intensamente desapegados vivendo a experiência do momento; hoje, na era da pós-liberação, toda essa gente tão fortemente mesquinha contando o muito que tem e vivendo, de fato, tão pouco.

Mas não era dessa distinção que queria falar: era, antes, do contraste representado pela experiência de Bivar e pela jornada de Torquato. Ler os dois livros ao mesmo tempo deixa bem claro os claros e escuros da contracultura. Enquanto Bivar sempre se posicionou, apesar de todas as barras, em lugares sob o sol de sua era, Torquato sugere nos seus escritos uma atração irresistível pelo lado mais obscuro, a porção mais sombria daquele mesmo momento. Bivar é bate-papo entre amigos sintonizados na mesa da cozinha, Torquato é monólogo trancado no quarto, tão expressivo quanto hermético. O resultado nós sabemos hoje: Bivar está aí, com seus cabelos brancos, sua cara de hippie vovôzão dando entrevistas em que reavalia o panorama com a calma zen que já estava presente tanto em "Verdes vales" quanto em "Longe daqui". E Torquato se foi, não suportou o peso do movimento, sucumbiu ao alcoolismo e às drogas - leio na linha do tempo ao final do livro que ele usou LSD por trinta dias seguidos para relatar a experiência em cadernos que acabaram se perdendo.

Aí estão: manhã solar e noite escura, os dois lados da contracultura que, sabemos, nos deu régua e compasso - nós, essa geração privilegiada que viveu infância e juventude nos anos 70 e 80 - para tocar a vida em outras formatações. Devemos a Bivar e a Torquato, igualmente. Nossos padroeiros profanos, bons profetas do mau caminho. Senhores da desobediência, catequistas da renovação. Se o primeiro vive e resplandece a energia da época, o segundo, com seu suicídio nem um pouco simbólico, também cumpre sua função.

Hélio Oiticica causou a maior confusão com seu estantarde, "Seja marginal seja herói". Bivar e Torquato, seus livros, em uníssono, parecem dizer, tantos e tantos anos depois, "viva a contracultura e fique esperto".

Todos contra o prefeito


Carlos Eduardo Alves parece o "inimigo do povo" do clássico de Ibsen. Todos falam mal dele. Todos diminuem sua figura, todos debocham de sua gestão, todo o apequenam, pra usar a expressão pedante que o príncipe tucano entronizou no vocabulário político do país. Todos. Blogues de política, colunistas do ramo, o jornal da família dele, o jornal eletrônico e o semanário de Diógenes, todos. Pelo menos foi a impressão que me ficou de uma leitura rápida de jornais e quejandos na recente temporada Natal-Acari-São Miguel.
Não é que se trate de uma crítica generalizada a partir de princípios sobre o crescimento da cidade, a ocupação do solo urbano, a qualidade dos serviços públicos e outros conceitos ligados ao exercício da cidadania. É, antes - ou pelo menos assim me pareceu - uma reserva pessoal que só aqui e ali se apóia em questões urbanas, mas, sempre que o faz, traz muito mal encoberto um interesse imediato.

Por exemplo: comprei animado o "Na Semana", versão em papel do inovador site "No Minuto", iniciativa imediatista como se exige hoje em dia. Gostei de cara da própria cara do jornal, boa respiração gráfica, espaço para o leitor organizar a vista entre matérias devidamente hierarquizadas conforme a importância (algo que os jornais de Natal sempre tiveram dificuldade de processar), títulos menos viciados e com o sotaque oral que estabelece uma conexão mais firme com o leitor. Mas a manchete era "contra" o prefeito: e me permitam usar essa qualificação que parece, a princípio, tão redutora. Mas era "contra" mesmo: "Dois pesos e duas medidas em Ponta Negra", afirmava. A questão: o prefeito estaria autorizando a construção de um prédio alto no bairro enquanto negava o alvará para que fossem erguidos outros dois na mesma região e com praticamente o mesmo gabarito. Então: vou ler esperando encontrar uma reportagem que defenda, antes de qualquer coisa, o estatudo da legalidade urbana, o direito que tem a Prefeitura, em nome do cidadão, seja quem for o prefeito, de normatizar o uso do espaço de uma cidade. Qual nada: o que encontro é uma matéria toda em defesa dos dois empresários que reclamam de terem sido passados para trás. Resumindo: a reclamação, a princípio, procede. Mas a maneira como o jornal dispõe o problema entorta tudo: no lugar de se defender o princípio do planejamento urbano independente de quem seja o prefeito, o empresário ou o empreendimento em questão, o que está lá é uma suposta reportagem isenta (para leitores muito distraídos, diga-se) feita totalmente a partir dos argumentos dos que se julgaram prejudicados - no que, claro, a conclusão, bem antes do final do texto, explicita-se. Assim: se o outro teve permissão para construir, nós também devemos ter. Todos devem construir - é o mote final, e dane-se a prefeitura. E tome porrada no prefeito Carlos.

Em outros espaços, como as colunas de política, a crítica é bem menos substantiva mas não menos discricionária: reclama do fato de o prefeito Carlos não conseguir fazer um mísero discurso sem cair no chamado "oito" - ou seja, ele sempre perde o rumo da conversa, aborrece o ouvinte, carece de objetividade, fraqueja no traquejo verbal. Isso acontece em comícios nos bairros pobres, para a alegria de colunistas que sempre arrumam com isso uma notinha a mais para detonar, na maior elegância e como todo o estilo (como se fossem, ao contrário do prefeito, ases do idioma), o prefeito Carlos. Como se, na comunicação dos dias que correm, os comícios, os discursos, o palanque tradicional tivessem o mesmo peso de outrora, com português castiço e tudo.

Outra vez houve uma imensa, forçada, esticada, exautiva e boboca repercussão sobre uma entrevista em que o prefeito criticou a candidata Micarla de Souza, considerando a garota despreparada para exercer o cargo hoje ocupado por ele. Isso provocou uma onda de indignação entre os jornalistas do ramo: que o prefeito não podia criticar Micarla naqueles termos, que passou do limite, que Micarla não vai responder. Achei estranho esses pruridos num debate que me pareceu - falo da entrevista - absolutamente normal, distanciado, uma avaliação política, uma reserva nem um pouco pessoal por parte do prefeito em relação à candidata. Já vi posições tão piores na imprensa local, território de disputa política acirrada, sabemos todos, e nunca com brios tão feridos como neste episódio.

Deve ser o novo esporte dos cronistas potiguares, então, pichar o prefeito. Com aquele jeito meio "Garibaldi há vinte anos", ele, coitado, até se presta um pouco ao papel. Não o conheço a não ser muito de vista, lembro dele dos tempos em que eu trabalhava como repórter na Tribunal do Norte, e não me parece, nunca me pareceu, uma pessoa dada a maiores vaidades, teve a coragem de contrariar a própria família quando buscou seu próprio espaço na política local (no que se assemelhou não a Garibaldi, mas a Vilma), fala manso, dobra a língua (como o antigo Garibaldi, não este ancião deslumbrado que aparece agora nas revistas, jornais e na tevê, ao menos até janeiro), e até seu apelido caseiro, embora hoje de domínio público graças aos jornalistas iniciados - "Tata" - corrobora um pouco as chibatadas que os nobres feitores da potiguar press lhe dão.

O curioso, no entanto, é que o prefeito Carlos, coitado, tão detonado, é muito bem avaliado em pesquisas de opinião entre o eleitorado de Natal.

Será que está se reproduzindo em Natal, como num microcosmo de Brasil, aquele outro descompasso, bem maior, entre a chamada "grande imprensa brasileira" e o intragável governo Lula?

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Nos areais miguelinos





O novo Ribeirão


Em Pipa, o idioma extra-oficial é o italiano que a gente ouve na rua, nas mercearias, na barraca da praia. Em São Miguel do Gostoso, o dialeto dominante é o mesmo do interior paulista. Fala-se "ribeirês" no Quintal, sossegado, escurinho e aconchegante recanto próximo à praia da Xepa, onde se sorve um doce açaí e se saboreia pizzas servidas já em porções individuais, massa fina, gosto bom. Atendimento dez, conversa fora entre o cliente e o proprietário, ex-atendente de loja que trocou o trabalho em um shopping center de Ribeirão Preto pela vida semiselvabem, no bom sentido, sob o luar e sobre as areias de Gostoso.

Pois Gostoso, descobrimos, vem se tornando um enclave de Ribeirão Preto na costa oeste potiguar. O sogro do dono do Quintal é, por sua vez, dono de um pousada à beira-mar e foi quem arrastou a família para a mística desse lugar ainda tão marcado pela luz humana que só as praias de pescador têm. Lugar que lembra Exu Queimado (ou seria Enxu, como vi nos guias? Não sei) – outra praia, esta mais primitiva no melhor sentido, que fica um pouco além de Gostoso e onde estive um dia, no alvorecer dos anos 80.

Mas a descoberta de Gostoso pelos paulistas de Ribeirão faz a diferença. Se há um símbolo dessa ocupação silenciosa, é a super-casa à beira do mar, ao lado da Pousada dos Ponteiros – a mais famosa do lugar – equipada com um gramado de matar de inveja o mais burlemarxiano dos jardineiros, com um lago artificial digno de figurar em um daqueles quadros da pintura primitiva e coqueiros taitianos ondulando a visão. Convive com os ribeirões exilados o povo local, gente de boa conversa que trata de igual para igual com os turistas mais descolados. O dono de um restaurante local conta que a super-casa pertende a um usineiro de Ribeirão que, para aferir o valor do imóvel, anunciou a propriedade via internet pela bagatela de R$ 6 milhões – e apareceram, rapidinho, três interessados.

História de pescador – ou a façanha é mais uma pérola verbal de um bom pescador de histórias? Prosas de Gostoso, onde a palavra corre solta e livre pelo vento com os grãos de areia da praia que você não resiste e experimenta fazer correr entre os dedos.

Areias de Gostoso


Todo mundo fala do pôr do sol sobre o mar quando quer contar sobre as belezas naturais de São Miguel do Gostoso. Mas o que mais chama a atenção quando se chega e se permanece por uns dias nessa praia que vai seguindo a tradição de Pipa na atração de estrangeiros brasileiros ou não é outro elemento, bem mais telúrico. São Miguel, litoral norte potiguar, a uma hora e meia de carro de Natal, ex-distrito de Touros, praia emancipada, é a pátria das areias.

Sua faixa de terra, entre a vila de casas e pousadas esparsas e a forte arrebentação no mar da maré alta, é de perder de vista. Um saara umidificado, praticamente deserto em dias de semana, pontuado por rústicas choupanas com estrutura aberta em toras de madeira e cobertura de palha para o pescador ou o visitante se refugiarem do sol forte do lugar. E é só, e basta. O mar de areia domina tudo em volta, determina sua emoção e sua reação a este lugar.

Pôr do sol, sim – que é bonito mesmo, naquele recanto de mar. Mas a areia é que é soberana em Gostoso. Areia fofa, limpa, amarelo-areia, daquelas que dá vontade de nunca mais parar de pisar. Como a extensão da faixa à beira mar é farta, você escolhe onde prefere praticar o esporte local de pisar no chão - sem sombra de chinelos, naturalmente. Quem pisa mais perto dos quintais das casas pega uma areia fofa, quente, mais grossa e esparsa. Na faixa intermediária, pressente-se a firmeza incipiente que envolve o pé na quentura da terra ou na umidade da chuva da noite passada. Já mais ali, perto da arrebentação da brava maré cheia de praia de pescador, o pisado é sentir a firmeza do coração da terra onde ser apóia o mar. Quando mais perto da água, mais terra firme para a polpa curiosa do seu, do meu, do nosso querido pé.

É verdade que o esporte local que está fazendo a fama e o sucesso de Gostoso é o kitesurf, coisa boa para quem tem grana sobrando e pode investir despreocupado em equipamentos caros que tiram dos ventos do local tudo o que ele pode oferecer em termos de aventura. Mas quem não tem idade, coragem ou tutu para bancar o comercial do cigarro hollywood – "o sucesso", lembram? – pode se contentar muito bem em fazer da caminhada à beira mar um exercício sensorial de contato com a natureza em estado bruto. E gratuito.

Gostoso deixa, permite, estimula. De manhã cedinho, ao cair da tarde, ou ao anoitecer banhado por um luar que não tivemos a sorte de conhecer – caprichos da natureza que o visitante precisa respeitar – o quente é pisar. Areiaterapia para os seus humores, meu bem. Terra de ampulheta para vazar entre as mãos dos seus filhos pequenos. Deserto doce à beira de um mar salgado. Costa do sal, faixa de areia. Assim é São Miguel do Gostoso, areia nos olhos seus e dos outros - refresco, pode acreditar.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Chamada


Breve, aqui, apressadas notas de viagem sobre São Miguel do Gostoso. Aguardem.


OBS: a foto ao lado pertence ao site da Secretaria de Turismo do RN

Desigualdades sociais (2)

Pois é, meu amigo Gustavo: as contradições, sempre elas. É verdade que o governo Lula também tinha a obrigação de atacar a educação, fortalecer o ensino formal, priorizar a formação que o brasileiro mais pobre e a caminho de ascender financeiramente merece ter. Mas, à maneira dele, também tem feito isso. Ocorre que, no plano geral e estratégico para fazer um país sair do lugar, escolheu o problema imensamente maior que é a distribuição de renda. E está sendo muito feliz nesta iniciativa.

Mas, pra gente ver como são as tais contradições: aqui mesmo em Acari, minha cunhada Sandra acaba de me informar, está sendo construída uma creche "de primeiro mundo", como diz ela (não gosto muito dessa expressão mas aqui ela cabe bem). Acari, Sandra me conta, foi uma das quatro, 4, cidades brasileiras contempladas com essa creche mais avançada. Está sendo feita numa área bem pobre, ali em frente ao novo cemitério da cidade. E Acari ganhou o direito de ter essa supercreche por causa do desempenho das escolas municipais da cidade na área da educação.

Então, pra fechar o pacote educação-contradições-Lula-e-tudo-o-mais: o prefeito de Acari, quando se trata de saneamento, é prontamente reprovado, embora seja médico. Mas, veja só, no quesito educação municipal, tem dado instrumentos para a cidade se sobresair nas estatísticas de desempenho do Ministério da Educação. No caso das escolas estaduais, não há esse mesmo sucesso, o que comprova que deve haver algum empenho que seja da prefeitura. E assim, frente à dança viva dos fatos, os nossos conceitos prontos de política balançam como um prédio de fundações menos seguras do que a gente imagina.

Desigualdades sociais

Minha jornada madrugal e acariense pela edição eletrônica da Folha de S. Paulo amarra o burro no editorial do jornal paulista. Comenta o avanço da classe média sobre a pobreza no Brasil, comemora isso, também faz ponderações. Leitura muito recomendada. E, entre as ponderações, uma especial, que esse giro de férias está deixando muito claro para este observador do Sopão: se há atualmente no Brasil uma melhora no combate à desigualdade de renda, não há uma melhora equivalente na luta contra a desigualdade social.

O editorial explica e distingue: o aumento da renda está fazendo crescer esta nova classe média, mas essa mesma nova classe média, embora com mais dinheiro no bolso, sofre os efeitos de longuíssimo prazo de ter recebido uma educação desqualificada, uma segurança precária e serviços urbanos incapazes de atender suas necessidades. Vou ficar no primeiro item: a precarização do ensino público que se deu ao longo de décadas no país compromete seriamente a formação do brasileiro médio. Estou falando de educação formal mesmo, pra dizer o mínimo.

A onda de música de péssima qualidade, o culto à vulgaridade mais bárbara, a aversão a qualquer forma de elevação intelectual - tudo isso está muito presente nos mesmos lares que, com toda justiça do mundo e anos de atraso, vivem hoje melhor financeiramente do que há dez, vinte, trinta anos. É o preço que se paga hoje pelo abandono da escola desde os anos 70, num processo que passa pela empáfia tecnocrática dos militares, atravessa a irreponsabilidade burguesa dos anos Sarney-Collor e permanece na estagnação anti-qualquer-coisa-que-signifique-Estado-e-planejamento da era Fernando Henrique Cardoso. Você não vai esperar que o governo Lula, coitado, dê conta de mudar isso, vai?

E, como estamos em período de campanha eleitoral pelas prefeituras, atenção: a redistribuição de renda é, por princípio, uma iniciativa de governos federais, mas a missão de resolver outros níveis de desajustes sociais, como a educação precária, a urbanidade desrespeitada, a segurança corrompida e por aí afora, cabe aos executivos estaduais e municipais.

Sentado à beira do caminho (2)

Esta é a primeira vez que venho a Acari com a possibilidade de usar a internet o dia inteiro, pelo tempo que quiser. Como sempre, estamos na casa da minha cunhada, Sandra, mas agora esta é uma residência plugada na rede. E isso faz toda diferença. Sabe aquela conversa de duas postagens abaixo, sobre o efeito que a BR faz, com seus ônibus e caminhões carregados, ao cortar Acari ao meio e instalar a cidade na plana estrada global? Pois é, com a internet em casa essa conexão fica ainda mais evidente.

Aos fatos: o chororô de Bernardo e Cecília me acordaram mais cedo, aí pelas seis e meia da matina. Sem conseguir emendar o sono, encarei o dia branco, frio e chuvoso, com aquele banho gelado e desaguei, serelepe e sem sequer tomar café, na leitura da edição eletrônica de hoje da Folha de S. Paulo. Você pode me considerar um sujeito deslumbrado, ignorante e distraído - mas a possibilidade de acordar numa cidade do Seridó e ler a FSP às seis e meia da matina sem precisar sair de casa não é, para mim, qualquer coisa não.

Mais do que o meu prazer pessoal em consumir informação (afinal, também se trata disso), há um significado maior: a presença de novos instrumentos à disposição de quem estiver interessado em alargar horizontes, ir além, fuçar o mundo. Hoje em dia, só é provinciano quem quer ou faz questão. O provincianismo, de tão sem lugar nesse mundo, precisa ser cultivado com toda a dedicação para fazer sentido.

Houve um tempo, quando eu eventualmente editava um caderno de variedades da Tribuna do Norte, em que repórteres se orgulhavam de sapecar o texto com a expressão "província" para se referir a Natal. Era um tal de "enquanto aqui na província", "na província isso e aquilo", "dia tal na província". Vício bobo de quem queria, no fundo (além de copiar Woden Madruga, que usava a expressão quando ela ainda não havia se banalizado) se excluir do que julgava provincianismo local (com redundância e tudo). E o leitor do caderno de variedades, coitado, era quem pagava por isso. Só não pagava porque eu revisava o texto todo para livrá-lo dessas vaidades disfarçadas.

Mas Natal é uma cidade que sempre gostou muito de falar mal de si mesmo - e não faz idéia do quanto perde com isso. Já os acarienses são o oposto: nunca vi um povo se adorar tanto. Jesus e seu blogue provam isso. Às vezes, essa auto-adoração até prejudica - e vira um provincianismo renitente, nestes tempos em que eu posso acordar com as galinhas e ler a FSP sem sair do conforto dessa cazona de pé direito alto aqui na rua da Matriz.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Torquato, de perto


Na era que aos poucos vai extinguindo os lançamentos de discos, essa antiguidade de que a gente tanto gosta, nada como ler coisas escritas em um certo - e tão idealizado - passado para botar cada coisa em seu devido lugar. Corria o final dos anos 60 no Sudeste brasileiro e algumas sociedades lutavam pelo monopólio do bom gosto musical. MPB versus um negócio chamado iê-iê-iê. Não podia dar em outra coisa, mas a gente que lê livros, percorre biografias, investiga movimentos e atiça a curiosidade imagina que não seria para tanto.

Falando diretamente: estou lendo, impressionado, o livro que ganhei do nosso amigo Roberto Homem no Natal do ano passado. É é uma coletânea de textos publicados na imprensa - basicamente três colunas de jornais - pelo tropicalista Torquato Neto, o letrista de "Geléia Geral" e "Mamãe, coragem", o ideólogo paralelo do movimento esboçado por Gilberto Gil e que acabaria ficando na história da música brasileira muito mais com a cara de Caetano Veloso. Torquato foi defensor aguerrido da música sem guitarra na era dos festivais e em seguida "desbundou" em defesa de um acento pop para a música brasileira na passagem dos 60 para os 70. Acabou se mantando em 72, aos 28 anos, com um recado em que foi muito claro - "pra mim, chega".

Pois bem: ler as colunas (editadas na íntegra, e na íntegra até demais, porque incluíram até as notinhas pra lá de datadas que acompanhavam os textos maiores) de Torquato nos tempos do jornal "Última Hora" é como acompanhar um blogue daqueles tempos. A surpresa é o tom entre agressivo, simplista e atrasado mesmo. É impressionante perceber o que significava naqueles tempos o lançamento de um disco. Parecia assim com o anúncio da descoberta de um novo planeta. Um disco era um disco era um disco. Nem de longe a banalidade dos tempos atuais, mas aí é que está: a facilidade atual permite muito mais. Naqueles tempos, 68, 69, tudo era muito policiado, à direita e principalmente à esquerda. Polícia política e polícia estética. Só lendo para crer.

E o primarismo de boa parte das primeiras colunas de Torquato é também de impressionar. Tá bom, eram as primeiras. Mas o crítico do iê-iê-iê chega a reclamar da gravadora Phillips, que não lhe enviava discos gratuitamente para ele comentar. Eu já estava ficando incomodado com essa situação quando felizmente Torquato mudou de jornal, foi para o extindo Correio da Manhã, e iniciou sua fase de "desbunde". Neste momento, outro Torquato surge na cena aberta da imprensa da época: o texto enlouquece calmamente, as picuinhas estéticas antiguitarras cedem lugar a uma linguagem alusiva que nem sempre se preocupa em ser tão exatinha - e, nisso, mesmo eventualmente hermética, torna-se muito mais expressiva sobre o que pretende dizer ao analisar a música que se fazia então.

É neste ponto em que estou (há recaídas, mas eu agüento). Minha esperança maior é quanto ao segundo volume, um outro livro (que Roberto deu de presente de Natal para Rejane mas do qual eu me apossei). Neste, a capa, mostrando um Torquato cabeludo e de ar poético-marginal-viajandão, já anuncia material melhor. E então é como dizia o outro, "de perto ninguém é normal", uma verdade que a republicação, praticamente sem edição, dos escritos de TN vem reafirmar.

Sentado à beira do caminho

Várias vezes, ao longo de "O Mundo é Plano", livro que escreveu para contar a história de como o mundo mudou da água para o vinho neste breve início de século XXI, Thomas L. Freedman faz a mesma pergunta a seus entrevistados. "Quando foi que você percebeu que o mundo ficou plano?" Aqui em Acari, instalado no meu posto de observação sempre míope mas que afinal é o que resulta de minhas andanças por aí, em plena rua da Matriz, sentindo a brisa agostina que em nada lembra o mormaço fevereiro, me vem uma resposta.

Eu devo ter percebido que o mundo se tornou plano quando sentei pela primeira vez nesta cadeira de plástico neste local, a rua da Matriz, e deixei o tempo passar enquanto via caminhões descendo, Jardinenses subindo, carrocerias gigantescas indo e vindo, caminhões-baú pra lá e pra cá na forma de anúncios volantes, out-doors sobre seis rodas, marcas famosas a meio caminho entre Campina Grande e Natal, cruzando esta pequena e sugestiva cidade. Acari, rasgada ao meio, fez-se plana, como este novo mundo onde intenet rima com call center na Índia, terceirização globalizada e cabos invisíveis que ligam tudo a tudo, nada a nada, contradições, que não são poucas, incluídas.

Agora estou de volta e, como é agosto, há um clima de animação com ambições de se fazer feérico - até domingo, de fato, tal nível vai chegar. Como é meio de semana, a festa da padroeira só faz figura na trilha sonora meio incidental que vem da igreja, onde reza-se a novena de Nossa Senhora da Guia, e nas ainda mal aquecidas luzes do vasto parque de diversões. Quando a novena acabar, o burburinho aumentará um pouco, o luzir nervoso da diversão imprescindível se intensificará, mas num quadro ainda distante do que o espolcar final do fim de semana promete - uma uma algaravia bem pouco religiosa, já nem tão comunitária e por isso mesmo menos interessante, por exemplo, do que o singelo ciclo natalino dos acarienses feitos por e para eles mesmos.

Por isso, dezembro me emp0lga mais. Mas agosto tem seus mimos, como a brisa ligeriamente fria, especialmente agora que o inverno foi generoso. Ainda falta ver a sangria do Garga que - acreditem - continua, com exibicionismo perenizante, como a se estender para além dos prazos naturais somente para não deixar de se mostrar a quem a ela ainda não conseguiu ver.

E a propósito do livro de TLF citado lá no início, convém esquecê-lo. A radiografia da planificação do mundo é perfeita mas, como bom propagandista norte-americano, o homem, terça parte do livro à frente, põe tudo a perder com os sempre mastigados chavões sobre Bin e os quarenta terroristas do Afeganistão, sem se afastar muito da cantilena sobre liderar o mundo com seu exemplo de empreendedorismo democrático. Nem tanto, seu TLF.

Mas isso é prólogo de postagem represada: o que se queria mostrar já foi. Que era: você quer testar o seu nível de globalização intelectual? Então bote sua cadeira na calçada de uma cidade pequena e veja subir e descer caminhões carregados de mercadorias e ônibus lotados de pessoas. Enquanto você curte sua imobilidade poético-geográfia, o mundo dança à sua volta, carregando flores de Holambra ou regriferadores das Casas Bahia. De vez em quanto, uma velhinha beata passa pela rua com seu pobre vestido desborado, lembrando que, assim como a era global, a vida real também não é uma ficção. Tudo existe, tudo dança. Inclusive você.