quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Maria Stuart



Filmes históricos e referências esparsas sempre me deixaram uma forte impressão sobre a figura de Maria Stuart, a escocesa católica que disputou com a protestante Elizabeth I, a bastarda filha de Ana Bolena, a coroa da Inglaterra. Nesta impressão, ela sempre surge arrebatadora, voluntariosa, sanguínea, fervente. Uma mulher que mal consegue se conter nos limites do próprio corpo e em nenhum momento, por um instante de vacilo que seja, condescendente com a própria condenação à morte pela adversária não menos firme.


Não é bem assim a Maria Stuart que surge no espetáculo teatral que fez sua estréia nacional no último final de semana no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília. A rainha possessa e condenada feita pela atriz Julia Lemmertz, sob a direção de Antonio Gilberto, em remontagem do clássico “Maria Stuart”, do dramaturgo alemão Friederich Schiller, esforça-se para expressar essa tempestade interna que a consome mas, em cena, parece curvada demais ante o peso da autoridade autoconflagrada da Elizabeth divinamente interpretada por Clarice Niskier. Embora a rainha à morte seja título e tema da peça, sobressai muito mais a figura da outra, à margem das decisões e indecisões da vida.


É notável o fato de a Stuart de Lemmertz dar as costas para a platéia quase sempre nas cenas em que conversa com a Elizabeth de Niskier, o que só favorece a empatia do público com a protestante e contribui para apequenar ainda mais a presença da católica no palco. E é preciso dizer também que, como nas grandes obras de ficção construídas a partir de registros reais, o trecho mais forte da encenação é pura criação do seu autor. Elizabeth e Maria Stuart nunca se encontraram mas, ao promover o confronto ficcional, o texto permite a expressão em palavras, gestos e intenções de tudo o quanto havia de obstáculo entre as duas. Disso resulta que o espetáculo dispõe as duas soberanas qual espelho de idéias, posturas e sentimentos envolvidos com o drama histórico que protagonizaram.


A todo momento, é um prazer quase sensorial ouvir a tradução mais que poética de Manuel Bandeira para o texto original, numa prosa semiversejada que ora espeta, ora massageia, às vezes instiga, noutras traz revoltas ao coração auditivo do espectador. É um belo poema reflexivo sobre o poder e as formas como ele se manifesta, seus limites e seus intestinos, sua beleza trágica e sua feiúra desumana. Embora tenha começado a ser escrita no final do século XIX, “Maria Stuart” evoca na sua liturgia clássica sobre as serifas do poder acontecimentos absolutamente atuais, como o Iraque de Bush e afins. Afinal, temos ali um mandatário ungido de poder real determinando a morte de um igual, num caso que já então desafiava os critérios da Justiça. Enquanto Maria Stuart tenta, sem recorrer ao puro e simples pedido de piedade, corrigir uma rota que leva seu pescoço à moradia do cutelo mais impiedoso, Elizabeth perde-se entre jogos de dissimulação da própria responsabilidade e a necessidade de exercer o poder que de fato detém nas circunstâncias históricas em que vive.

Figurinos semicontemporâneos – mas de linhas ritualmente coerentes com o drama de palácios a que assistimos – têm o poder de evidenciar ainda mais o drama histórico que se passa diante de nós. O cenário é igualmente minimalista, com uma estrutura em madeira que ora define uma cela onde se afunda Stuart, ora é um piso elevado para erguer a majestade de Elizabeth, ora um patíbulo, ora uma mesa cerimonial onde a corte se confronta e se digladia em diálogos cortados a machadadas verbais. A luz também é um elemento forte na história, a partir do momento em que se inicia plenamente clara mesmo dando foco à cela onde está presa Maria Stuart. À medida que o espetáculo prossegue e o drama da soberana escocesa vai-se afunilando num beco sinuoso e sem saída, essa luz vai caindo, jogando por oposição suas sombras sobre espectros humanos torturados pelo processo em andamento – o que inclui Elizabeth, é claro. No último instante, essa história à parte contada pela luz coloca delicadamente seu ponto final no palco do teatro: em uma cena muda, ficamos com a imagem superposta dos rostos de Maria Stuart e Elizabeth, lado a lado, brancos, brilhantes, tão vencedores quanto derrotados, em meio à mais completa escuridão. É o fim do espetáculo e o início da reflexão de quem saiu de casa e absorveu ansioso aquele manancial de pensamentos lançados de 1799 para os dias atuais.


A temporada em Brasília continua até 15 de fevereiro, de quinta a sábado às 20h e aos domingos às 21h. O espetáculo tem três horas de duração com intervalo de 15 minutos. Às quintas e sextas dá pra conseguir ingressos na hora, apostando em desistências.

Spread, a minissérie


A expectativa e o noticiário em torno da queda de um ponto percentual na taxa de juros básicos da economia por parte do Banco Central parece conter todos os elementos para uma ficção televisiva daquelas. Senão, vejamos: temos um protagonista com cara de mafioso e estampa de cantor de ópera chamado Henrique Meirelles; temos em torno dele um séquito de diretores e assessores com toda a pompa shakespereana daqueles que tentam influenciar decisões e acercar-se de quem detém o poder; temos um antagonista que já vem até com nome italiano, Guido Mantega; temos as externas daquele prédio que parece um monte de caixotes negros empilhados no ar com a Esplanada dos Ministérios ao fundo; temos a crise financeira internacional como pano de fundo histórico para ninguém botar defeito – e temos, ponto máximo dos ingredientes para uma minissérie de tevê praticamente pronta, o acontecimento a portas fechadas que mais mobiliza o país periodicamente depois do Big Brother Brasil que é a reunião do Copom, o conselho que decide se os juros vão cair, subir ou continuar onde sempre estiveram.


E temos, claro, o gancho: Meirelles, depois de seis anos à frente do Banco Central, quebrando um recorde permanência entre todos os diretores da instituição, agora quer deixar o cargo para se candidatar a governador de Goiás. É o máximo de sua trajetória por si só vitoriosa antes mesmo de assumir um dos cargos mais invejados do país. Ocorre que, justo agora, quando prepara tudo para deixar a casa em ordem e começar a planejar sua campanha eleitoral, estoura uma crise financeira internacional comparada à derrocada de 1929, a mãe de todas as quebradeiras desde que o homem tem memória. E agora, ele sai ou não sai? Seu adversário, o tal de Guido, o maior inimigo das taxas de juros recordes praticadas no país – as maiores do mundo, descontada a inflação – trabalha nos bastidores para vê-lo pelas costas. Mas o presidente da República – aquela figura que vai aparecer na minissérie sim, mas sempre soberanamente de costas, sem que nunca possamos ouvir o que diz (seus diálogos e intenções sempre são revelados pelo pensamento em off do atormentado Meirelles) - deseja e precisa que ele continue no prédio dos caixotes pretos. Dilema pessoal, ingrediente emocional para prender a atenção de todos diante da tevê. Correndo por fora de tudo isso, temos a expectativa pela próxima reunião do conselho que vai, enfim, definir o futuro das taxas de juros. Dilema geral, gancho espetacular que pode dar origem a diversas subtramas.


Vejo cenas nos corredores escuros do Banco Central, com o diretor de Política Econômica conspirando com outros integrantes do conselho, naturalmente contra a queda na taxa de juros, no que incorre em procedimento ambíguo como o mundo escorregadio da política: condenando a queda, parece contribuir com os planos de Meirelles e contrariar os desejos do vilão Guido, mas, por outra e, sem que os demais integrantes do conselho saibam, na hora agá estará automaticamente prestigiado por votar igual a Meirelles que, prestes a deixar a instituição, agora sim acha que é hora de afrouxar o cinto e reduzir a Selic. Logo, esse diretor percebe que, saindo Meirelles, é a chance dele de ascender ao disputado posto – no que, imediatamente se dá conta, entrará em conflito com Guido que certamente tem outros planos para o cargo.


A porta está fechada, é o segundo dia da reunião do Copom – quem não acompanha essa novela não sabe mas a reunião dura dois dias e só no segundo sai a nova Selic - , os repórteres estão lá fora, a sonoplastia procura assinalar a tensão, enquanto, para humanizar a trama, temos cenas de um casal de pobres que melhoraram de vida tentando comprar uma geladeira a prazo se os juros forem camaradas. Corte para o interior da sala da reunião. Copom, interna, dia: Meirelles se levanta e proclama o resultado final. Corte de um ponto percentual. Close rápido dos demais integrantes do conselho, uns satisfeitos, outros abismados. Superclose por sobre os óculos redondos de Meirelles – sua expressão sugere a tal da missão cumprida. Roda a vinheta de encerramento. “Spread, a série”, é a quintessência da teledramaturgia: muda muito pouco de um episódio para o outro mas não importa – ainda assim é campeã de audiência nas redações onde há sempre uma televisão ligada à espera de notícias inesperadas.

Clássicos do Sopão (Ceumar)


Ela está entre Virgínia Rosa e Na Ozetti – mas há vários momentos em que é muito melhor do que essa duas aí juntas. Ceumar, com esse belo nome que funde dois extremos de uma paisagem marinha, canta como uma sereia... do sertão. Mineira do interior como é, tem uma brejeirice ancestral escondida na voz que só à primeira vista parece pequena. Mas também pode ser urbanamente pop quando quer – e já quis, para nosso deleite auditivo.


Em “Achou”, o CD em que interpreta basicamente canções compostas por Dante Ozetti (em parceria com outras figuras), Ceumar coloca essa voz entre camadas de cordas de bandolins e violões de nylon e de aço. Da primeira à última faixa, embora se passe da canção até o samba e o frevo, a embalagem sonora é a mesma: jogos de violas em evolução no meio do qual sibila, segura mas aquática e verdejante, a voz e a interpretação de Ceumar.

Esse jogo é marcante na faixa de abertura, “Pra lá”, onde Ceumar sustenta com voz evocativa uma letra que sugere o poder de qualquer transcendência. Já em “Parei querer”, temos uma ligeira inflexão para o pop de que se falou – e, pudera, aqui se trata de parceria de Dante Ozetti com Zelia Ducan. Em “Partidão”, Zeca Baleiro constrói mais uma de suas freqüentes metáforas futebolísticas, numa faixa que transpira humor por baixo da levada lúdica com que Ceumar conduz o tema.

Mas o momento culminante do disco é mesmo a faixa “Parte B”, que abre – e segue – com piano e bateria em andamento mínimo e sentimento máximo, cheia de pulsos e pausas – e plena de silêncios. Interpretação colocada com um cuidado de delineador de cristais, numa performance em que Ceumar nos faz lembrar da maior de todas, Elis.

Há ainda um hino informal (“Visões”) cantado em dueto qual jogral e, entre outras, a doce ironia de “A tardinha” – canção que cita o clássico da bossa nova e o desdiz, mais ou menos como já fez José Miguel Wisnik em “se meu mundo caiu / eu que aprenda a levitar”. Nesta “A tardinha”, a negativa vem com “o meu barquinho vai / mas a tardinha não cai".

E assim prossegue esse terceiro disco gravado por Ceumar, sempre com essa vestimenta sonora meio “saia azul com blusa de flor” – verso de uma das músicas – que lhe marca o estilo e a aparência. Ceumar, que por si só já tem aquela estampa renascentista de moça extraída de um quadro clássico entre janelas e jardins, soa mesmo, ao cantar, como uma espécie de lirismo que vem de outros tempos e lugares mais remotos.

É daquelas cantoras que conquistam o nosso ouvido inexoravelmente – como se a gente se perguntasse como foi possível, até aquele momento do primeiro encontro, viver sem ouvir tal beleza. A primeira vez que ouvi Ceumar foi em Goiânia, numa loja de discos de um shopping center – o glorioso Bazar Paulistinha, que sempre reserva alguma surpresa a quem passar por lá. Entrei e parei ao ouvir aquela voz transversal refazer, com uma delicadeza cheia de graça e de sertão, as frases de “Galope Rasante”, um quase clássico nordestino de Zé Ramalho. Saí dali com o CD e a expectativa de ouvir o restante. Mais tarde, Ceumar veio a Brasília e fez um show acompanhada apenas por violão no CCBB, desafiando com sua marcante presença física a conciliação da imagem que a gente foi construindo só a partir de sua voz ternamente gravada.

Nunca mais Ceumar voltou por aqui. Deve estar fazendo shows entre Minas, Oropa e Bahia. Se ela passar por Natal, não deixem de vê-la e ouvi-la.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Ligue a tevê (FINAL)


Pelos refrões visuais de Jaime Monjardim! Ao abrir o blogue, você deve ter se perguntado: mas o quê os malucos do The Doors têm a ver com a tevê aberta brasileira? Jim Morrison sempre foi meio Maysa - ou vice-versa - mas a ligação, de fato, é outra e só será revelada ao final da postagem.
Pra início de conversa, o registro é outro: todo mundo reclama do tratamento desumano que o filho da mãe - o menino danado Monjadim - deu à própria genitora na minissérie do momento. Mas, desconfio, na mesma medida em que reclama, todo mundo assiste, não perde um capítulo, para tudo na hora de começar (ainda prefico pára tudo, mas ordens são ordens), corre pra poltrona ansioso antes mesmo da primeira cena surgir na tela, negligencia jantar, filho, mulher, marido, neto e bisneto em função da atração televisiva tal como faria a dona da história (ou você também não está com peninha de Jaiminho?). Agora, falando sério, é bem melhor a gente parar com essas coisas e dizer que a postagem final da série "Ligue a tevê" não está aqui somente pra tirar sarro da inteligência de quem sobe no pedestal e desce a porrada no programa de televisão da hora.

É que escaparam algumas observações picotadas sobre "Maysa", assim como sobre Flora-Patrícia e sobre quem você já imagina mesmo - mas vamos manter o suspense que, já diz o ditado, o negócio é a alma do segredo. Então: faltou dizer que naturalmente a Maysa da minissérie é uma construção narrativa e dramática feita a partir de conceitos associados à Maysa original. Não se trata de um documentário - e nem esses estão livres dos riscos de se reinterpretar uma pessoa ou um acontecimento. Por isso não vejo muito sentido nas queixas de que o filho da mãe pegou pesado no lado meu mundo caiu da própria, negando ao telespectador uma introdução mais profunda na psique avançada daquela que o gerou. A gente vai lendo os textos nesse revistão que é a internet e às vezes fica com a impressão de que tem gente bem longe que parece conhecer Maysa mais do que o filho da própria. E um detalhe: a filiação foi nitidamente usada na minissérie como um elemento de proximidade - coisa difícil de se conceber, quanto mais de se admitir, sejamos francos - que reforçou a figura humana, a mulher menos mitificada que foi possível extrair de uma personsalidade envolta em brumas como sempre foi Maysa. Ou como sempre parece ter sido - é melhor eu me corrigir, caso contrário vai parecer que também fui íntimo daquela senhora e por isso posso sair por aí desconstruindo seriados. Fui não - isso aqui é puro pitaco de blogue sem assunto em princípio de verão.

Mude aí de canal e vamos para Flora-Patrícia: esqueci de citar, na primeira postagem da série, um dos elementos mais fortes do álbum de figurinhas da cultura pop a que se recorreu na hora de explicar a vilã do momento. Flora seria, disse alguém, um Ricardo III do vídeo - e eu recomendo aos mais ilustrados que me lêem neste momento que se segurem, porque em se tratando de dramaturgia popular, sobretudo de teledramaturgia popular, seu Ricardo III, o vilão número um do mundo criado por aquele outro senhor, seu William Shake alguma coisa, é sim ingrediente de receita de programa de televisão vulgar. Não gostou, vá pro GNT se pavonear no "Manhatan Conection"- que, aliás, já teve dias melhores.

E, pra encerrar, aquele que você espera aparecer aqui desde o início da postagem em série. Numa linha: o BBB fica enganchado no meio dessa programação e é bem possível que você, mesmo com a pausa do banheiro e do cafezinha, veja por alguns momentos. Não precisa se crucificar por isso não: é normal, é humano, é uma daquelas coisas que faz a gente lembrar do quanto é importante não levar tudo a sério demais. O programa é vulgar, repleto de exibicionismo, vitrine de uma certa burrice bem deslumbrada e bem brasileira? Sim, senhor. Mas é também, se você assistir de perna pra cima dando uma grande risada enquanto dura a atração, um passatempo curioso - um bom programa de ficção, como disse um crítico de jornal por esses dias. Afinal, disputa de prêmio e simpatias eletrônicas à parte, não deixa de ser intrigante você ver como se entende ou se desentende um punhado de seres humanos trancados durante um tempão numa casa cercada de câmeras. O gancho é esse e é simples - uma armadilha narrativa eficiente para um andarilho descuidado chamado curiosidade, que mora sem pagar aluguel lá dentro da cuca de cada um de nós. Só tem um porém: vicia é que uma beleza. Pegue leve, então.

A série de postagens termina com uma dica para quando você desligar a tevê e ligar o computador: vá à Rádio UOL e ouça, no DJ Mix, um programa com Maysa que termina com ela cantando "Light my fire", o rock do The Doors (os rapazes da foto, eis o link, afinal). É impressionante a interpretação - como se Elis e Cássia Eller estivessem morando antes de seu tempo dentro da mesma voz de uma mulher ainda mais impressionante do que elas duas. Mas tem que ouvir o programa até o final, que esta é a última faixa.

E, quando a tevê merecer, ligue de novo nem que seja só pra ver.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Ligue a tevê (3)


Se você também pretende se inocular com o vírus do vídeo da tevê aberta, previna-se: na segunda-feira, o dependente tem que ser rápido no controle remoto para não perder nem o final de "Maysa" nem o inicio do episódio do dia de "A lei e o crime", seriado da Record que emula "Cidade de Deus", chafurda na estética de tiroteio de "Tropa de Elite", recorre a referências didáticas da série e do filme "Cidade dos Homens", remete à experiência anterior da própria emissora (a novela "Vidas opostas") e, assim como a minissérie global, é filmada com equipamento de alta definição - o que confere, por si só, um visual supratelevisivo à produção.

Produção é a palavra. Assim como Maysa, sobressai de saída essa estampa de filme bem produzido, independente das esparrelas narrativas a que apele para prender o telespectador. Sim, o seriado tem sido criticado por reproduzir o esquema do "filme de favela" - a mesma acusação que foi feita a "Cidade de Deus", e sabemos que dez minutos do filme invalidam essa alegação, pela força dramática e formal do que se vê na tela. "A lei e o crime" também tem sido alvo de críticas que reclamam se seu parentesco com as novelas, de seus chavões que fazem de pobres e pretos bandidos e de patricinhas da alta burguesia heroínas da justiça. Pode ser, mas sendo um produto televisivo - embora com tratamento visual de cinema - para ser apreciado em ambiente caseiro e não numa sala de exibição, torna-se compreensível que o roteiro vá se valer de personas e situações já familitares ao telespectador. Há também um certo ranço politicamente correto nessa crítica. E há o próprio fato de que pessoas e problemas abordados no seriado, da maneira, digamos, tradicional e conservadora como ela o faz, ainda não estão esgotados de todo e se prestam, sim, a uma reflexão visual sobre o tema da criminalidade urbana, do tráfico e consumo de drogas, do controle das favelas - sem esquecer que estamos falando também de entretenimento. Enfim, tudo isso cheira a "Cidade de Deus" - ao que foi dito sobre o filme e à maneira como o próprio filme se sobrepôs ao que foi dito.

Cada dramaturgia tem o James Cagney (na foto que ilustra a postagem) que convém. No caso de "A lei e o crime", a saga ao contrário de Nandinho da Bazuca e a quase inverossímil ascenção dramática da patricinha que se torna delegada de polícia contêm, de um lado, o tom novelesco do anti-herói oprimido pelas circunstâncias e, de outro, o exagero tipo novela-das-oito que se legitima pelos próprios extremos - e prende, efetivamente, atenção de quem, para além de qualquer má vontade crítica, senta diante da tevê à noite e deixa que aquele aparelho, qual Sherazade digital, lhe conte uma história que tanto distraia quanto faça pensar antes de dormir. Trata-se apenas disso - e não é pouco.

Pensando bem, e ao contrário do que disse lá no início, você pode se viciar relaxado: como "Maysa" está acabando, não háverá, a partir da próxima segunda-feira, aquele problema da coincidência de horário entre o final da minissérie da Globo e o início do seriado da Record. Mas é claro que eu não iria abrir mão desse gancho narrativo para chamar sua atenção para as duas atrações quase simultâneas na tevê aberta deste início de ano.

Ligue a tevê (2)


Depois do bricabraque visual e dramatúgico de "A Favorita", outro motivo para você se reconciliar com a tevê aberta neste início de ano é a minissérie "Maysa". Está quase acabando e, se você não viu nada até agora, é bem possível que não demonstre maior interesse. Mas, se caiu na armadilha de assistir ao primeiro capítulo, capitulou, não tem jeito. Manoel Carlos e Jaime Monjardim optaram por contar a história da cantora em fragmentos dramáticos, como aquela montagem em quebra-cabeça de filmes de diretores como Roberto Altman ("Short Cuts") e o mexicano Alejandro González-Iñarritu ("Amores Brutos" e "21 gramas"), que muito sucesso fizeram em momentos diferentes do cinema das últimas décadas. Foram muito criticados por isso - que a técnica confundiria o telespectador, jogado para lá e para cá em momentos variados da trajetória da artista.

Chego lá. Primeiro tenho que dizer que, pra mim e alguns amigos, desde o final dos anos 80 Maysa é uma referência de boa música, de talento dramático (como Elis Regina) nem um pouco esquecido nos escaninhos musicais da fossa pré-bossa nova dos anos 50. Não há redescoberta, há o prazer de assistir à história dessa mulher, pontuada por suas canções e sua voz. Por volta de 1987, a Rede Globo exibiu uma minissérie, "Anos dourados", que trazia na trilha sonora uma dessas belas canções. "Você passa por mim e não olha / como coisa que eu fosse ninguém", cantava Maysa, selando com uma espécie de embalagem sonora especial um programa de televisão que por si só já era tão bom quando a minissérie em exibição atualmente, com a sua própria historia.

Na época, costumava cantarolar essa música na redação da Tribuna do Norte, formando uma improvável dupla vocal como nossa querida Célia Freira, na época chefe de reportagem. Celinha adorava Maysa e vinha com outras peças do repertório da cantora. Comprei uma fita k7 com uma coletânea - vasta coletânea, mais de vinte faixas - de Maysa, que dividia o repertório entre a fase pré-bossa nova, a fase bossa nova, o cancioneiro internacional e outra vertente explorada pela artista. A fita se perdeu, mas ficou o gosto pela voz e pela própria figura de Maysa - desde então uma espécie de anjo avesso terminal no qual nós, mortais comuns, espelhamos nossas questiúnculas. E além do mais havia os blues de Ângela RoRo - outra figura que, além de regravar divinamente a maysiana "Demais", também trazia em si mesma as referências daquele mundo outside tão representativos do momento.

Agora, Maysa reaparece na televisão, em alta definição, em quadros tão dramáticos quanto belos, ligereiramente novelizada (mas isso é quase sempre uma qualidade e não um defeito, porque sem redundância não se faz televisão eficiente). É impossível não assistir. E os mesmos críticos que reclamam da edição fragmentada - os mesmo que reclamam do viés de novela da minissérie "A lei e o crime", em cartaz na Record e da qual se falará em outra postagem - rejeitam a técnica narrativa empregada por Manoel e Monjardim. Pois a montagem em vai-e-vem, pra mim, só fortalece o impacto de Maysa na telinha: ao mesmo tempo em que não permite que o telespectador se envolva muito com a personagem, garante um distanciamento que faz sobressaltar os demônios internos de Maysa. Com tal edição, o telespectador sempre se distancia - e o faz quando já está quase cedendo totalmente aos encantos tormentosos da personagens. Na última hora, entretanto, vem um flash back, vem o corte, vem a fusão com outra fase da vida da cantora e esse instrumento eisensteiniano faz o público dar um passo a atrás e se perguntar: que mulher foi essa?
(CONTINUA)

Ligue a tevê (1)



Corra para o sofá e ligue a tevê, sem medo. Só tome cuidado para não ser atingido por um dos tiros que Patrícia-Flora dispara quando lhe batem os ventos da vilania compulsória. Se acontecer, faça como Bush: abaixe-se que o sapato - digo, a bala - passa voando e você escapa ileso. Ileso, vírgula: uma vez ligada a tevê neste início de 2009, o telespectador estará correndo sério risco de sofrer de doença similar à que acomete a grande Patrícia-Flora: televizite compulsória. Não tem tratamento nem doutor nem hospital que dê jeito. Ligou, pegou. Parece até que o velho e caquético horário nobre da antiga - antiga? - tevê aberta está de volta, com o vigor dos anos 70.

Mas, como diria a psicopata Flora Picadinho, ou Flora-Patrícia, ou Patrícia-Flora, vamos por parte. Primeiro você cai na casca de banana melô-sombria que é "A Favorita". A novela chega ao final com um ar de filme de Quentin Tarantino. Não pelo amplo uso do suspense ou pelo vasto emprego de sangue cenográfico como pode parecer à primeira vista. A analogia se deve a um outro elemento também muito usado na novela: as referências do que hoje se costuma chamar de "cultura pop" - um também vasto repertório de novos clássicos estabelecido pelo cinema, pela televisão, pela literatura ligeira e afins. Logo no primeiro capítulo, já ficavam bem claras duas dessas referências. Uma vinha do cinema - era o filme "O que terá acontecido a Baby Jane", um clássico pop sinistro, meio classe C mas com aquela elegância, em que Bette Davis torturava com sadismo evidente a irmã paralítica, Joan Crawford (veja na foto que ilustra a postagem). Se aquela dupla, naquele filme, não foi a base para Flora e Donatela, eu fecho o blogue agora mesmo. É o mesmo ponto de partida - duas irmãs que se detestam, temem uma à outra mas têm que se suportar - e a mesma inteligente manipulação narrativa que fará com que, logo adiante no filme (como aconteceu na novela) o espectador seja surpreendido com uma inversão de papéis. Quem viu o filme deve ter identificado a inspiração no início da novela - era algo tão claro quanto o fato de "A malvada", outro filme de Batte Davis, ter sido o ponto de partida para outra história recente da tevê brasileira, a novela "Celebridade".
Disse que havia outra referência clara no início de "A Favorita": essa segunda citação narrativa era mais evidente ainda, pois que vinha do próprio acervo a esta altura já clássico da própria Rede Globo. É a semelhança entre a saída de Patrícia-Flora da cadeia e o momento em que Sônia Braga deixava a penitenciária no início de "Dancing Days". Só faltava mesmo repetir a trilha sonora, com Guilherme Arantes cantando "Amanhã". Isso é manipulação de ícones, administração de clichês, gerenciamento de referências da melhor qualidade para provocar o efeito desejado - confundir o telespectador até quando for possível e, nisso, sabemos todos agora, o autor de "A Favorita" foi craque.

Mais tarde, à medida em que a novela prosseguiu, outras referências foram sendo citadas, o que só confirma essa visão da história como uma colcha de retalhos bem costurada de outros momentos da dramaturgia popular, seja no cinema ou na televisão. Patrícia, a atriz, lembrou em algum momento que a novela era um thriller - o gênero do suspense e do mistério absoluto no cinema convencional. Outro ator citou Briam de Palma como referência, lembrando a nítida inspiração dos filmes deste cineasta no climão pesado de cenas como a dos mil assassinatos cometidos por Flora-Patrícia ao longo da história. A própria Patrícia Pilar vem contando, em dezenas de entrevistas e perfis na imprensa, os elementos que ela própria colecionou para construir sua personagem, numa lista que inclui até Amy Winehouse.

(CONTINUA)

domingo, 4 de janeiro de 2009

A noite mágica de Sobreira


O primeiro livro de 2009 foi um legítimo Francisco Sobreira. Há trinta anos, a editora Ática publicou, no número 43 da série "Autores brasileiros", "A Noite Mágica", do poti-cearense radicado em Natal, exemplo quase único entre os batalhões armados de poetas natalenses a remar contra a maré e navegar nas brumas da prosa ficcional. Os contos de "A Noite Mágica" funcionam bem na série da Ática, editora que, por aqueles anos do final da década de 70, fazia sucesso publicando várias séries de livros didáticos e paradidáticos. Nesta última categoria se encaixa o livro de contos de Sobreira, com uma literatura que traz para a apreciação de um público ainda escolar relatos pontuados por atmosfera ligeiramente surreal e personagens marcantes embora nascidos de narrativas breves.

Os instantâneos de Sobreira em "A Noite Mágica" iluminam rapidamente pessoas e situações que revelam apenas o necessário para se fazer notar. Como o passageiro do conto que abre o livro, "A viagem", acariciando as serifas de sua solidão num ônibus onde todos dormem e a vigília se torna uma aventura à la Antonioni. Como o amigo que tenta sem sucesso descobrir a igreja onde se dará o casamento do amigo de farra e freudianamente confunde a cerimônia com um enterro. Como os homens tontos de ambiguidades que cambaleiam entre rituais iniciáticos presentes em três dos contos do livro - "Caçado", "Enquanto o diabo esfrega os olhos" e "O caçador de nostálgicos". Há também um certo corte que mistura simbolismo surreal e Allan Poe nos parágrafos de - repare na sugestão do título - "Os pombos".

Há, ainda, grafado no discurso literário do narrador Sobreira, uma certa inflexão nordestina de tempos recentes, com o emprego de expressões que, sendo regionais, não são forçadas - e conferem aos textos uma musicalidade que só o sotaque mais involuntário pode produzir. Talvez, pelas veredas da diversidade regional, esse elemento tenha sido levado em conta na hora em que a Ática incluiu o nosso amigo na série decidada a novos autores brasileiros. Para conseguir um exemplar, a esta altura, acho que só nos sebos - que são muitos aqui, além, em Brasília e em Natal. Mas, adianto, vale a pena procurar. "A Noite Mágica" é breve, delicadamente inexato, literariamente tocante - e com uma prosa puxada às esquinas dos dias bem vividos, de quem sabe espiar a vida enquanto ela passa, na forma de instantâneos tão vagos quanto reveladores.
P.S: A imagem que ilustra a postagem é um Pollock, subjetivo e sugestivo como a prosa de Sobreira.

Mais grave, mais agudo, mais som, mais Tim Maia


O último livro de 2009 foi também o mais divertido do ano. A biografia de Tim Maia escrita por Nelson Motta é assim como um sunday de caramelo depois de uma refeição reforçada. Sobremesa pura em forma de letrinhas. Não que "O som e a fúria de Tim Maia" seja só um breviário de peripécias pop - o que também, muito frequentemente, agora sem trema, é - mas é que a superficialidade escancarada da narrativa, leveza que condiz com o peso do biografado, ameniza o lado mais sombrio da pessoa. De maneira que ler a vida de Tim Maia segundo o apóstolo de Ipanema Motta soa ligeiro e pegajoso, assim como um sucesso do hit parade. Como uma onda na biblioteca.

O livro segue certa norma editorial em voga que faz das publicações umas quase-revistas de muitas ilustrações, furulas gráficas variadas, tratamento semipublicitário. Mas o fato é que tudo isso torna menos pesado o fardo de atravessar fases da vida em que Tim, ainda muito mais Sebastião, praticamente passava fome vivendo à sombra do sucesso alheio de antigos amigos. Mas também, com aquela vocação para se autoboicotar, chega a ser difícil acreditar que algum dia o gordinho da Tijuca chegaria onde chegou. E, mesmo já estando neste tal lugar onde chegou, continuou - como uma entidade atormentada que conhece sua genialidade e se diverte em desafiar o imponderável - a praticar o nem um pouco saudável esporte de caminhar em rotas de colisão.

Se é que alguém ainda não leu "O som e a fúria de Tim Maia", o livro pop por excelência de 2008, preciso arrumar tempo e espaço aqui para dizer que há no livro a experiência do artista como praticamente um sem-teto nos EUA (lá e então, um bicho resultante muito mais de certa loucura underground do que das necessidades sociais que tanto conhecemos aqui abaixo da linha do Equador), a doença que detonou os testítulos do autor das melhores canções mela-cueca, as chagas das privações que fizeram Tim implorar por uma esmolinha a Roberto - ele mesmo -, sem falar nos coquetéis formados por bauretes-brilho-uísque-mulheres-noitadas tudo ao mesmo tempo agora como convinha ao estilo mais grave, mais agudo, mais som, mais tudo de Sebastião Maia, esse meu xará.