terça-feira, 28 de outubro de 2008

Brasilia, segundo Zé




O texto abaixo eu encontrei no Blogão do Zé, que vem a ser o Zé do Correio Braziliense, um cidadão de Taguatinga City com espirituosidade suficiente para divertir quem estiver por perto dele, na redação do jornal ou num bate papo qualquer. Enquanto o Sopão permanece interditado para obras - digo, para a mudança, que não é uma ação, mas um processo, vocês sabem - vou enganando os leitores com esses entreblogues divertidos, mas também bastante atentos. É que, para além da graça da conversa do Zé, há em todo o relato a marca de Brasília, sua rotina, sua frieza em meio a esse calorão dos últimos dias. Vale por um cartão postal, por uma reportagem deturpada da Veja sobre esta cidade (como tantas que essa publicação e tantas outras já publicaram). Com vocês, uma amostra do Blogão do Zé (p.s: o link para o site do Correio está na lista ao lado):

O PARDAL E O BAILARINO

Aconteceu na última segunda-feira, por volta das 21h, no sinal entre a 502 e a 503 Norte. O pardal, aquela câmera big brother carrasco de quem vive correndo enlouqueceu. Enlouqueceu mesmo. Começou a disparar flashes a três por dois. Estacionei meu Fiat Uno 96, o possante, e fiquei observando a reação das pessoas.
Alguns motoristas chegavam a parar o carro sem entender nada. Atordoados, olhavam para o equipamento piscando e se perguntavam: "Será que fui multado? O que foi que eu fiz?"
Aquele cruzamento da W3 Norte de Brasília se transformou numa pequena ilha de caos. A rotina havia sido quebrada. As pessoas se entreolhavam embasbacadas. A lógica urbana estava rompida por alguns instantes, enquanto o pardal maluco não parava de piscar, flashes e mais flashes. Por sorte, nenhum acidente.
O único sinal de lucidez, de que a vida continua, foi dado por um catador de papel, que passava com seu carrinho abarrotado e a cabeça com muitas doses de cachaça.
Vendo a cena: luz piscando, flashes, como um estromboscópio de boate, ele não pensou duas vezes, começou a dançar, como se ouvisse um funk, um samba, um xote, um reggae. Uma dança tonta no meio da W3 Norte. Uma dança feliz. Os motoristas olhavam a evolução do catador de papel, do bailarino urbano, e sorriam. A evolução do catador os acalmava. Ficavam menos impotentes, percebiam que a vida, atrapalhada por alguns minutos, voltava ao normal. O anjo bêbado viera avisar que era só um defeito nos fios do pardal. Um mau contato.
Agora, os funcionários públicos já podem ir para casa tranqüilos, os playboys para as academias, as dançarinas espanholas para os braços dos seus namorados, porque o bêbado catador de papel dançou a música da "razão" poética. Aquela que não se explica, aquela que simplesmente se sente.
De dentro do meu Fiat pude constatar como a rotina machuca nossas vidas. Um pardal enlouquecido conseguiu atrapalhar todos que passavam por aquele cruzamento. Transformavam-se em kafikanianas baratas tontas. "Estamos nos transformando em autômatos, meros números dentro de uma máquina de quatro rodas e dentro de repartições. Frios indivíduos cumprindo tarefas diárias. Sempre as mesmas tarefas", disse eu, de olho no retrovisor, que refletia um Zé melancólico. Um Zé amargurado por carregar uma porção de chaves no bolso, muitas que sequer abrem alguma coisa. Chaves que representam o quanto estamos presos a coisas materiais.
Obrigado, catador de papel, bailarino das ruas, sua alegria nos mostrou o caminho e que nem tudo está perdido. Obrigado, por nos revelar que a vida precisa ser celebrada até mesmo nos poucos instantes de um pardal enlouquecido.
São Rubem Braga, lá do céu, deve estar dizendo: "Tristeza, pra quê, José?
Responderei simplesmente: "É que ando apaixonado demais".


Legenda: na foto, encontrada numa peneirada rápida no Google Imagem, "o" cruzamento de Brasília, aquele que fica no início da avenida W3 Norte, separando o Setor Comercial Sul do shopping Pátio Brasil. É algo assim como o cruzamento da avenida Rio Branco em Natal, na altura da Ulisses Caldas. Ou, no caso do Recife, daquelas travessias tumultuadas ao longo de boa parte da avenida Conde da Boa Vista.

Tempo quente

Se o critério for a temperatura, estamos a dois passos do inferno - ainda que, contrariando a balada da Blitz, sem sair de casa. Aliás, dentro de casa a situação fica pior ainda. Veja os detalhes na notícia abaixo, que o site do jornal Correio Braziliense está divulgando. E não deixe de reparar no detalhe da umidade, muito abaixo daqueles 18 por cento do título do filme de Nelson Pereira dos Santos:

"Esta terça-feira (28/10) foi o dia mais quente de todos os tempos de Brasília. Os termômetros da capital registaram 35,8º C, a maior temperatura desde a criação o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), em 1961. O dia mais quente antes registrado foi no dia 12 de outubro de 1963, quando a temperatura chegou aos 34,5º. A umidade relativa do ar ficou em 13%. Segundo o Inmet há previsão de chuva para esta quarta-feira em áreas isoladas. Só este mês a capital registrou o primeiro e terceiro dias mais quentes desde 1961. A terceira marca foi registrada na segunda-feira, 33,8º C."

A propósito: esta postagem climático-passageira serve também como pedido de desculpas pela frieza do blogue nos últimos dias. A falta de postagens nos dias imediatamente pretéritos - e que ainda permanecerá por alguns dias futúricos - deve-se um tanto de trabalho extraordinário e a uma boa circunstância caseira. Acontece que o Sopão real está mudando de endereço (real, não toque no mouse, meu amigo). Por isso, estamos às voltas com fios desconectados, cabos desligados e hardware jogados num canto de garagem esperando a hora da remontagem. Assim que for possível, voltaremos às atividades normais - se possível, com alguma chuva e calor de menos.

A propósito (2): leitora Edineuza, Rejane lembrou de você dos tempos da Residência Universitária e quer muito conversar com a sua pessoa. Por isso, pede que você deixe, se possível, e-mail nos comentários. Ou então nos envie uma mensagem para o nosso e-mail, tiaoerejane@uol.com.br. Assim que for possível - ou seja, quando o processo da mudança acabar - ela entra em contato. E volte sempre ao Sopão.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Olho vivo (Entreblogs)

A análise abaixo está no site Carta Maior e merece ser lido e relido. Como se conclui dessa leitura, é importante desde já manter os olhos e ouvidos bem abertos para a forma como os grande veículos de comunicação tratam temas que tangenciam não as atuais eleições - aquelas que, coitadas, já demos como perdidas - mas a próxima, a grande eleição de 2010.

Serra e a blindagem da TV Globo

Por Gilson Caroni Filho

A cobertura dada pela TV Globo ao confronto entre policiais civis e militares, nas proximidades do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, foi um show de culinária. Não bastasse o silêncio durante a tarde, a edição de 16/10 do Jornal Nacional se esmerou em cozinhar textos de uma só fonte para oferecer um produto pouco informativo, incompleto e sem qualquer rigor na apuração. Entende-se. A correta contextualização dos fatos poderia arranhar a imagem do governador José Serra. E de um modo de governar que tem na incapacidade de negociação o DNA tucano.

O interessante é que não estamos diante de um caso isolado ou de falha provocada por profissionais inexperientes e/ou incompetentes. Muito pelo contrário. Mais uma vez, a emissora da família Marinho, reuniu a nata da casa, para subordinar o exercício do bom jornalismo, e as responsabilidades a ele inerentes, ao projeto eleitoral do consórcio PSDB/DEM.As imagens de um conflito em que foram utilizadas bombas de gás lacrimogêneo, munição convencional e de borracha foram ao ar acompanhadas do texto que melhor convinha ao "padrão Globo" de divulgação de notícias. Para o telespectador, a intransigência tinha um só lado: policiais, sindicalistas e partidos políticos, com destaque para o PT, é claro. Não havia greve que se arrasta há um mês e muito menos uma categoria que tem a média salarial mais baixa que o piso de 11 estados. A registrar, uma disfuncão, nada mais.

O que Perseu Abramo destacou como “padrões de ocultação", fragmentação" e "inversão" foram a tônica de um noticiário mais empenhado em evitar desgaste de Serra na véspera do segundo turno das eleições municipais do que explicar os motivos que levaram a barbárie a tomar as ruas paulistanas.

Microfones abertos para o principal personagem a ser blindado e sua versão pautou a cobertura. O relato da emissora serviu como narrativa de corroboração“O governador José Serra disse que o protesto foi feito por uma minoria e que é ilegal. “Essa manifestação reuniu, no máximo, 1.000, 1.200 pessoas. A Polícia Civil tem 35 mil efetivos. Trata-se, portanto, de uma minoria. Muitos dos participantes não são da polícia, são de outros sindicatos, da CUT e da Força Sindical. Há partidos políticos por trás”. Serra também criticou o uso de armas pelos manifestantes. “Armas são entregues às polícias para defenderem o povo contra os criminosos. Não para servirem a movimentos políticos reivindicatórios. Reivindicação se faz na mesa conversando, não com violência. Isso nós não aceitamos”.

E se tivesse havido diálogo, a crise teria chegado a esse ponto? Confronto entre policiais não aponta para crise institucional? Será isso o que estamos vivendo no Estado mais rico do país? Onde ocorreu embates envolvendo forças de segurança antes? Em Belo Horizonte, há 11 anos. A que partido pertencia o então governador de Minas, Eduardo Azeredo? São questões por demais delicadas para que o jornalismo global possa fazer qualquer aprofundamento.

Mas o "melhor", em matéria de manipulação, estava guardado para o dia seguinte. Na edição de 17/10 do Bom Dia Brasil. Com ar contrito, o jornalista Renato Machado anunciou que "A população de São Paulo assistiu atônita a mais um exemplo da crise que assola a segurança pública no Brasil”.

A nacionalização do conflito esclarece o planejamento da agenda. Como no Brasil? É em São Paulo, e sob as ordens de um governador do PSDB, que polícia atira em polícia. Essa é uma anomia exclusivamente tucana. O ato falho talvez tenha revelado o que a emissora antecipa para 2010.

P.S: O link para outros textos da Agência Carta Maior está na lista ao lado.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O veranico


Depois da (falsa) inexistência de esquinas, da (indesejada) presença dos políticos e do (saárico) período anual de seca, Brasília tem um quarto fenômeno muito particular que, embora bem menos badalado fora do quadrilátero que demarca a capital no mapa do país, é tão característico desta cidade quanto os outros três já citados. Estou falando do “veranico”, que nos ataca neste exato momento e, se não é tão demorado quanto a seca e tão criticado quanto os políticos, certamente é tão presente, concreto e substantivo quanto as esquina que a cidade, contrariando a lenda, concretamente contém.

Não se enganem com a simpatia do nome que os especialistas lhe deram – “veranico”. A palavra sugere um little verão, uma miniestação de calor e águas – uma espécie de temporada condensada de praias (no caso aqui, piscinas e cachoeiras, que as temos muitas), sorvete,novos modismos, novos sucessos na música, na tevê e no cinema e por aí afora, coisas que Ipanema ensinou o país a cultivar sem culpas. Pois não é nada disso: o veranico, embora a palavra sugira o contrário, é, na verdade, um tirano meteorológico que sadicamente tira a paciência e o sangue (nem digo o suor, porque, astuto, o morador de Brasília não é de sair por aí suando, desperdiçando a pouca umidade que nossos corpos ainda conservam, Deus sabe como) dos habitantes dessa cidade.

Em rápidas palavras, o veranico é sim uma condensação – mas do pior que o seu velho pai, o verão, traz para os seres vivos. É, em suma, um período que vai de uma semana a quinze dias em que, sem a menor possibilidade de chuva na atmosfera, o calor mais insuportável se instala sobre a cidade às custas daquela não menos notória massa de ar quente que impede a entrada das massas de ar frias – que são, justamente, as redentoras que proporcionam as chuvas. O curioso é que o veranico não acontece dentro do período clássico da seca brasiliense, mas depois, quando a cidade, incauta, já se deixou enganar pelas primeiras e violentas chuvas. Você pensa que o pior do clima neste ano já ficou para trás e... tome um veranico para deixar de ser besta!

Dadas as explicações literais, vamos às metáforas que são, no fim das contas, o bolo da cereja desidratada. O veranico, meus caros, é assim como aqueles últimos cinquenta metros que separam o atleta matinal do ponto de chegada no cooper obrigatório. Você já vê o local onde finalmente vai poder parar de correr, se desdobra para chegar lá, mas parece que nunca vai conseguir. O veranico é o oitavo mês de gravidez, que faz a gestação de uma criança parecer um processo sem data para acabar, angustiando pais ansiosos e mães pesadas. O veranico é como a fome do meio dia quando o cidadão está a caminho de casa, praticamente à beira de uma hipoglicemia de tão faminto, e cai num engarrafamento que, com redundância e tudo, não sai do lugar. O veranico é como aquelas provas de resistência física que ilustram tantos filmes americanos sobre os preparativos para um soldado se tornar um “marine” antes de cair, completamente confuso, na guerra do Vietnã. Por mais que o coitado se esfarinhe tentando passar em todas as etapas, tem sempre um último teste em que ele, todo sujo de lama, roupas rasgadas pelos arames farpados e auto estima lá nas profundezas por causa dos gritos dos sargentos mais terríveis das telas, ainda precisa se superar caso queira ir morrer com muita honra lá pras bandas de Saigon.

Enfim, o veranico é o último teste de resistência que a providência impõe ao pobre ser humano, como a lembrá-lo de quão ridículo, pequeno, mesquinho e impotente ele é, enquanto alimenta seus sonhos de grandezas. Ou então, se não for tanto assim, é apenas uma piada de mau gosto com que a natureza se diverte à custa de nós outros.
Legenda: na foto que ilustra a postagem, a ponte sobre o lago artificial no Parque da Cidade.

A Crise, II (ou "Parece que foi ontem")


Corria o distante ano de 1982 ou 83 quando o cronista Carlos Eduardo Novaes, uma espécie de Veríssimo da época – por falar nele, por onde anda Novaes? – escrevia, acho que no Jornal do Brasil – também um esquecido fenômeno da imprensa daqueles tempos – que aquela jovem tão comentada nos últimos dias – os últimos dias da época, vocês me acompanhem, por favor – na verdade não era tão garotinha assim. Ela, na verdade, já fazia parte da nossa vida há anos, pra não dizer há séculos. E, se parecia tão novidade assim, é apenas porque a imprensa – na época, ainda não se usava dizer “a mídia”, mas, quer saber?, dava no mesmo – vivia de supostas novidades.

Segure-se na cadeira porque, depois de um exasperante parágrafo todo contaminado por travessões tão incômodos quanto amostrados, vou revelar quem era essa “ela” a quem Novaes se referia. Ora, ora, ela mesma, a Crise – aquela moça que se instalou na minha casa algumas postagens atrás e que, ao fim de alguns dias de abusos, terminei reparando que era até jeitosinha. Então: o fato é que, já em 82 ou 83, Novaes anotava que a tão falada Crise não era, de fato, novidade alguma. Que, na verdade, nós brasileiros nunca havíamos deixado de conviver com ela. A diferença que é a beleza, o fascínio, o esplendor perigosíssimo da jovem havia, enfim, sido descoberto pelos jornalistas, pelos economistas, pelos políticos, pelo high society, pelo grand monde, enfim, por quem dita a moda neste país.

Lembrei do texto de Novaes ao chegar a casa ontem, depois de perder mais alguns bilhões de dólares em outro dia de choro e ranger de dentes no mercado, que é onde, vocês sabem, eu muito trabalho. Abri a porta desanimado, pronto para pedir à Crise que, por favor, me preparasse um drink pra relaxar, quando notei, quase de passagem, que a aparência da minha hóspede mudara – assim como mudam as bruxas nesses filmes de fantasia tão rentáveis e tão comuns hoje em dia no cinema. Não era mais a jovem serelepe de perninhas até interessantes de alguns dias atrás, mas uma velha de faces encovadas, cabelos ralos e grisalhos, boca murcha, dentes subtraídos e olhar de bruxa mesmo. Foi aí que percebi que a Crise, na verdade, é uma velha chata que nos atormenta há décadas, pra não dizer séculos.

Ocorre que ela havia pego a vassoura e saído para dar uma volta por aí ali por volta de 1994. Andava entediada de tanto tirar coisas do saco de maldades para nos atormentar. Resolveu conhecer melhor o mundo. Estava cansada dos brasileiros. Não era pra menos: antes disso, havia nos aporrinhado com toda aquela tormenta política que terminou no suicídio de Vargas, com a indefinição que sucedeu a renúncia de Jango e antecedeu a posse de Jango, com o golpe de 64, como o supergolpe de 68, com a inflação dos 80, com o Sarney da Nova República, com o Collor da regressão dos 90. Quando a Crise viu o topete de Itamar no horizonte da vida nacional, achou que tava demais, sentiu-se estressada e fez as malas. Foi só por isso que tivemos um break da sua presença e respiramos um pouco com as bondades do Plano Real. Mas as férias da Crise acabaram – sabe-se lá por onde esteve nessa temporada de ausência, talvez a Bósnia, os pedregulhos da Europa central, quem sabe – e ela voltou em 99, esfarinhando o nosso tão amado, forte e intelectualizado Real. Veio Lula e, como a Crise tem horror a povo e a sapo barbudo, fez as malas de novo e foi matar as saudades das ex-repúblicas soviéticas onde passara férias inesquecíveis com um namorado fortão chamado Putim. E só por isso, novamente, nós brasileiros pudemos respirar um pouco aliviados, experimentar um inédita redistribuição de renda, uma nunca vista redução das desigualdades entre as classes sociais, uma espetacular ascensão econômica de pessoas que antes nadavam nas piscinas sujas da pobreza sem perspectivas.


Mas aconteceu de Putim, completamente apaixonado por uma certa Geórgia, dar um chute no traseiro da Crise que, só por despeito, resolveu não voltar para o Brasil, mas jogar-se nos braços de um velhote rico e ranzinza chamado Tio Sam, com quem seu ex-namorado tinha uma rixa notória, histórica e ancestral. Só por isso estourou uma tal de crise imobiliária nos domínios de Tio Sam que, pelo menos nos jornais, já chegou por aqui e confirmou a velha tese que Carlos Eduardo Novaes escreveu nos mesmos jornais – embora, naqueles tempos, eles, os jornais, fossem outros – de que ela, a Crise, sempre viveu entre nós. Por hora, está de férias nos estaites, mas tem feito tantos estragos por lá que é como se daqui não tivesse saído – afinal, o que é bom lá pra cima é uma delícia aqui embaixo, como se dizia nos tempos em que Novaes era nosso Veríssimo.
Legenda: na foto que ilustra a postagem, Cher, Susan Sarandon e Michelle Pfeiffer, as belas bruxas que atormentam o diabo Jack Nicholson em "As Bruxas de Eastwick", filme do australiano George Miller.

Novo homem de imprensa


Com vocês, o novo editor do Sopão. Coloque um charutão virtual na boca do rapaz e vocês estarão vendo o próprio editor do Planeta Diário, o jornal que revelou para o mundo o repórter Clark Kent. Ou então, a imagem virtual remeterá ao insuportável chefão de Peter Parker, outro não menos conhecido e diligente garoto prodígio da melhor imprensa de ficção do mundo. Se for o caso de abrasileirar nosso novo colaborador – digo, editor, e dos mais severos – convém nordestinizar de vez a figura e vê-lo, estilo caboré, como um Chatô reencarnado, pronto para açoitar os donos da mídia do presente com lições de moral nem tão morais assim oriundas dos meios de comunicação de um passado nem tão distante.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Lições de Brasília para Natal

“Cristovam, a História lhe fará justiça.” Essa frase, estampada em adesivos, apareceu colada em carros e ganhou as quadras, escolas e outros ambientes públicos do Distrito Federal quando, em 1999, o então governador Cristovam Buarque, ainda no PT, disputou e perdeu a reeleição para Joaquim Roriz – um político às antigas que dispensa apresentação para quem não mora em Brasília. Neste momento em que o eleitorado mais esclarecido, atento e consciente de Natal tenta digerir o resultado da eleição municipal, a frase emblemática, aquela outra derrota e as lições que ela proporcionaria me vieram à mente. A comparação pode ser muito útil para todos nós que, ainda perplexos, tentamos enxergar algum rumo e divisar alguma esperança para além dos próximos quatro anos.

Cristovam Buarque era um governador muitíssimo bem avaliado, assim como é o prefeito de Natal, Carlos Eduardo Alves. Só que Cristovam era mais ainda: havia se tornado uma referência no país com sua gestão à frente do Distrito Federal, implantando pela primeira vez em grande escala o programa Bolsa Escola – tucanos do interior de São Paulo eram os pioneiros na experiência mas ainda em escala municipal. A saúde pública no DF também havia se tornado destaque nacional com uma inversão simples feita pelo governo Cristovam: a adoção do médico da família, com o programa Saúde em Casa, que fazia medicina preventiva, indo à moradia das pessoas, no que se desafogava o já então frágil sistema público de saúde da capital do país, desde sempre prejudicado pelo fato de também ter de dar conta da população do chamado Entorno de Brasilia, um conjunto de cidades implantadas ao Deus dará que manda todos os seus doentes para as cidades satélites do Plano Piloto.

Em resumo, a marca do governo Cristovam, por esses e outros programas foi a inversão do que o político tradicional sempre faz: nada de grandes obras do tipo viadutos e novas avenidas; prioridade, sim, para programas sociais, que proporcionavam distribuição de renda (a Bolsa Escola é o grande precursor da Bolsa Família), apostavam firmemente na educação (o que também se conseguia por meio do Bolsa Escola, que obrigava as famílias a mandarem os filhos ao colégio) e melhores condições de vida para os mais necessitados, reduzindo o sofri mento que se vê nas filas de hospitais e ambulatórios.


Com base nesses pressupostos, era grande, como disse, a aprovação a Cristovam, principalmente nas regiões mais pobres da capital. Ele chegou a ser o quarto governador na escala dos mais aprovados pelos eleitores em todo o país. Ocorre que Joaquim Roriz, seu adversário, tinha o que se pode chamar de “carisma da ignorância” – essa característica que faz o brasileiro mais humilde se identificar totalmente com políticos que simulam estar no mesmo nível dele, seja pela linguagem utilizada (os erros de português de Roriz renderam tanto piadas quanto votos), seja pela performance que apresentam, outorgando a si mesmos uma falsa legitimidade que os faz os mais autênticos representantes do chamado “povo”.

Quando se tem a graça de um canal de televisão herdado do pai – que o conseguiu graças a favores prestados durante página infeliz de nossa história – para usar todo santo dia como uma peça de propaganda onipresente, esse tipo de político se torna realmente imbatível. E a vitória é tão certa quanto errado é o sistema supostamente público de concessão de canais de televisão que permite tal situação. Desse ponto de vista, a eleição de Micarla de Souza em Natal é uma imoralidade – nada menos do que isso. O agravante é o fato de o eleitorado de Natal ter dado a vitória à candidatada da TV Ponta Negra logo no primeiro turno, sem permitir o aprofundamento de um debate mais que necessário, ao menos para tornar menos desigual a balança dessa disputa. A perplexidade vem daí.

Mas vamos voltar ao paralelo entre Natal e Brasília, Cristovam e Fátima Bezerra. Todos vocês que agora tentam juntar evidências, cotejar elementos e encontrar alguma explicação para tudo isso não têm idéia de que, naquele 1999, aqui em Brasília, vivemos algo bem pior. A derrota de Cristovam jogou qualquer pessoa um pouco educada politicamente no fundo do poço. A pergunta era: como é que as camadas mais pobres da população, tendo se beneficiado das novas políticas postas em prática por Cristovam, tendo aprovado tais políticas e o próprio governador, preferiram votar em Roriz (porque era isso mesmo o que vinha de lá: elas gostavam de ter Bolsa Escola e médico da família, mas ainda assim preferiam votar em Roriz)? A resposta estava bem antes do governo Cristovam: estava no governo anterior de Roriz, que havia distribuído lotes de terra a granel, no que criou o que hoje são cidades gigantescas, como Santa Maria e Samambaia, nas franjas da capital brasileira. As pessoas eram gratas aos terrenos que receberam de graça e nem a melhor política de emancipação social do governo Cristovam mudaria isso. Havia o agravante de uma promessa jamais cumprida por Roriz, de aumentar os salários do funcionalismo, e uma certa soberba de Cristovam no debate da TV Globo, que salientou por oposição uma simpática humildade na figura de Roriz. Mas esses eram apenas mais dois elementos de última hora, porque o retrato geral da disputa já vinha se consolidando.
Abertas as urnas, houve choro, raiva, decepção. Houve, como está havendo agora em Natal, o não saber ganhar dos rorizistas. As declarações eram do tipo “vencemos os poderosos” – aqui, o “poderoso” era o jornal Correio Braziliense, que teve uma postura fortemente crítica a Roriz durante toda a campanha. Ameaçaram apedrejar os carros nos estacionamento do Correio. Depois da posse, a primeira atitude de Roriz foi denunciar Cristovam por ter deixado a residência oficial do governador em estado de abandono. Roriz, beneficiado pelas contas públicas em dia e empréstimos que Cristovam já negociara, teve dinheiro para fazer um governo do tipo obras para quem quer ver. O Distrito Federal ganhou novos viadutos – necessários, não é esse o ponto em questão -, uma rede de restaurantes do tipo 1 real e outras coisas bem palpáveis. Já o impalpável ficou em segundo plano – e, logo, logo, a capital do país começou a tomar conhecimento de situações dramáticas nos hospitais públicos do DF, onde gente morria por falta de condições de atendimento e tratamento. Faltavam remédios essenciais que meses antes estavam lá. E gente morria mesmo, não é força de expressão. As escolas – bem, até hoje a rede de escolas públicas de segundo grau em Brasília, aqui no Plano Piloto mesmo, sofrem com a falta de professores de física e química.
Mas aquela história de “A História lhe fará justiça” não termina aí. Veio o segundo governo Roriz – sim, meus amigos, ele se reelegeu, portanto, estejam preparados para a possibilidade de mais de quatro anos com dona Micarla no Palácio Felipe Camarão. Ocorre que, na segunda gestão, não havia mais os recursos que Cristovam deixara engatilhados, não havia mais a coesão do grupo político de Roriz que também lhe garantira a eleição e reeleição – logo veio o racha que deu origem à candidatura vitoriosa de José Roberto Arruda – e o resultado foi um governo pífio, incolor, inodoro. Ou melhor: como se saberia mais tarde, um governo marcado pelo velho e previsível roubo de dinheiro público.
E é aí que aquela frase dos adesivos se confirma. Roriz encerrou o governo e se elegeu senador – mas, vejam, não tão facilmente quanto se previa, vez que seu concorrente, o então ministro dos Esportes Agnelo Queiroz, do PCdoB, teve votação inesperadamente elevada, embora não suficiente para derrotar o governador. Com Roriz já exercendo seu mandato no Senado, o Ministério Público anuncia a descoberta de um esquema gigantesco de fraude e desvio de dinheiro do Banco de Brasília, o BRB, em favor do ex-governador e seus aliados. Pressionado, Roriz renunciou ao mandato para não ser cassado. E assim estamos. Cristovam, enquanto isso, permanece lá, no mesmíssimo Senado de onde Roriz foi defenestrado.

A História, afinal, fez justiça a Cristovam – que não precisou mover uma palha para isso. É o que provavelmente vai acontecer com Fátima Bezerra, que vai se tornando com a derrota atual uma espécie de Henrique Alves de saia: aquela figura que não consegue se eleger para o executivo, embora tenha o mandato de deputado federal sempre assegurado. E só estou dizendo isso porque me vem à memória outra comparação: Micarla e Aldo Tinoco Filho. Assim como desta vez demonstrou apoiar Fátima (por injunções específicas, num apoio que não sei até que ponto ajudou ou prejudicou), Wilma Faria, na época prefeita de Natal, apadrinhou como seu candidato o engenheiro sanitarista Aldo Tinoco. No dia da eleição, naquela época pré-urnas eletrônicas, Henrique foi dormir certo da vitória e acordou derrotado. A diferença foi absurda – 900 votos, salvo engano – mas Aldo havia sido eleito. A cidade quedou paralisada, mas nem desconfiava que iria virar geléia. É que Aldo, com a ficha técnica que tinha, não assustava. E o que aconteceu? Ao final da administração Aldo, Natal parecia um chiqueiro a céu aberto, tomada pelo lixo por causa de uma greve infindável na Urbana, com serviços públicos precarizados e uma completa sensação de abandono entre os cidadãos por parte do poder público. A imagem final que a cidade tinha do prefeito oscilava do festeiro deslumbrado ao gestor irresponsável. Era a História, do seu jeito muito particular, fazendo justiça a Henrique – e digo isso deixando claro que tenho quase nenhuma simpatia política pelo filho de Aluízio Alves.
Uma última comparação, embora algo exagerada diante da espessura da candidata eleita em Natal: o que dizer da justiça que a História fez anos depois do embate entre Lula e Fernando Collor? Por falar nele, é inevitável não registrar a semelhança entre o que ocorre neste exato momento em Natal e o que se passou logo após a vitória de Collor em 1989. É o mesmo comportamento rasteiro de vitoriosos ressentidos, a mesma manipulação das emoções mais primárias do eleitorado menos educado politicamente. Essa coisa de “agora a Prefeitura vai ser do povo”. Nada mais vazio. Nada mais Roriz. É como se vitória de Collor se repetisse quase vinte anos depois em Natal. Se nada mais significasse o tamanho do atraso que se deu no último domingo, só essa declaração da prefeita eleita já seria suficiente para demonstrá-lo.
A constatação final, à guisa de previsão, é de que agora resta esperar que a História faça justiça a Fátima que, imagino, também não precisará mover uma peça do tabuleiro do xadrez político para ver tal fato se concretizar. Foi assim com Cristovam, foi assim com o Lula de 1989, foi assim com o Henrique que perdeu para Aldo de maneira tão vexatória quando Fátima perdeu agora para Micarla com essa decisão em primeiro turno. Ao fim e ao cabo, eu fico com a interpretação pré-resultado que nos deu o jornalista Tácito Costa: Natal vem há tempos sendo assediada politicamente por um tipo de candidato populista, manipulador, inculto (mais que isso, que tripudia de qualquer forma de cultura) e, mais cedo ou mais tarde, um deles chegaria ao poder municipal. Tácito disse mais: que talvez seja preciso que isso aconteça, para que a cidade tome consciência dos estragos que a política feita por tais candidatos pode causar na cidade e no exercício da cidadania por parte de seus habitantes.
Pois, então. Chegou a hora. Mas o tempo, dizia seu Cazuza, não pára. E a História é ardilosa no seu jeito todo matreiro de fazer justiça a quem se aproveita de disputas desiguais, de eleitores manipulados e de cidadania jogada fora.

P.S: Da derrota de Fátima, extrai-se pelo menos um fato positivo: não teremos de ver a companheira sendo tutelada por dona Wilma e seu Garibaldi à frente da Prefeitura.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Borboletas

Se amanhã, você chegar à repartição municipal e for encaminhado para o programa de tevê mais próximo, não reclame. Se o nível de nitrato na água chegar a um nível insuportável, nem pense em chamar as autoridades – convoque urgentemente uma repórter, de preferência loura, bem penteada e falante como um papagaio. Se notar que a cidade está sendo administrada como um loteamento mercantil, conforme-se: é assim que funcionam os programas de auditório. Se achar que foi mal recebido pelo assessor do assessor do auxiliar do escritório do chefe do gabinete do secretário municipal, tome aquela providência ao alcance de todos: dê uma vaia nele, pois é esse o código de aprovação ou reprovação vigente na terra da inteligência jogada fora.

Não vá passar vexame espantando-se caso encontre na rua um multidão de tietes de terninho, saltinho e risinho no rosto sempre que a despachante municipal estiver em visita a uma obra qualquer. Contenha-se ou, no máximo, misture-se à massa para não chamar demais a atenção – que este, meu bem, é o crime supremo na nova geração do sim, claro, por que não?, agora mesmo, só se for agora. Nas datas festivas, esqueça o teatro popular – a gente já enjoou desses autos todos. Programe sua cabeça para assistir a shows animados com a presença de figuras que levantam qualquer audição com sua força de comunicador popular. Nas bibliotecas, finja-se de morto. Nas livrarias, socorra-se com a sessão de auto-ajuda. No cabeleireiro, fique à vontade – agora este é o ambiente supremo da cidade do Sol.

Em Ponta Negra, reclame um pouco do serviço do quiosque que é para não lhe confundirem com um bocó qualquer. No Praia Shopping, curta sua nova vida variando as cores e os tecidos conforme as mudanças de estação e nunca deixe de simular a importância de se estar a par de tudo o que há de mais atual. No Miduei, reprove – mas com aquele ar de pouca importância – o nível da freqüência. No Centro da Cidade – mas quem vai ao centro da cidade, querido? Ah, só se houver um evento muito especial. Sinto contrariar mas, naturalmente, você terá que ir ao Centro da Cidade, pois que a sede da Prefeitura – aquele prédio precisando de um retoque há muito tempo – fica por lá. Não tem problema: use o carro – com películas, claro. Na Ribeira, faça de conta que é turista como a moça daquela canção de Chico Buarque.

Canção de quem, amor? Deixa pra lá. O importante neste momento é que você se convença da importância da mudança que vem aí. Se você achava que a cidade estava ficando estressada, abusada, nova rica e tão pedante quanto ignorante, não tema: o futuro imediato anuncia algo muito pior. E você precisa se adaptar, não é mesmo? Comece a treinar agora mesmo. Repita, olhando-se no espelho mais próximo: tudo vai ficar melhor porque eu sou linda como uma borboleta!

A Crise

Eram três da tarde dessa segunda-feira, 29 de setembro, quanto ela saltou a janela da minha casa e, sem que nenhum vizinho percebesse, invadiu meu sacrossanto lar. Uma vez lá dentro, encheu um saco enorme – desses de ladrão tipo irmãos Metralhas – com meus valiosos eletroeletrônicos, dólares falsos, mercadorias made in China e centenas de providenciais bobinas de DVDs virgens. Suja, feia e ambiciosa, ela espalhou por todos os cômodos um mau cheiro nauseabundo. Pichou as paredes límpidas dos meus aposentos com frases do tipo "Entendeu, otário?", gramaticalmente corretíssimas com o uso da inicial maiúscula e a providencial separação entre verbo e vocativo, indício marcante de que ela continua sendo uma criatura muito superior e preparada.

À noite, quanto cheguei em casa exausto do trabalho, passei a chave na porta – sou sozinho, não sei por que sou incapaz de dividir a casa ou o que quer que seja com outra pessoa, ainda que seja uma pessoa igualzinha a mim – e, surpresa! Lá estava ela, abancada na poltrona que mandei projetar especialmente para as minhas medidas. Desavergonhada, de pernas abertas esticadas para o alto, comendo como uma porca faminta minhas pipocas de microondas e embebedando-se com minhas bebidas energéticas enquanto pulava de canal em canal entediada com a bosta da programação. Ensaiei um protesto mas, antes de abrir a boca em impropérios, lembrei assim por uma fração de segundos que não adiava espernear. Por que expulsá-la da minha poltrona personalizada se a esta altura eu já nem sei se ela – a poltrona – ainda me pertence? E o que dizer das pipocas, das bebidas? Se o mais importante, a casa, hipotecada, naturalmente, fugiu das minhas mãos e dos meus bolsos, eu ia dizer o quê?

E assim, não me restou nada além de tentar estabelecer uma convivência mínima – e, tanto quanto possível, civilizada, com a tal da Crise. Hoje de manhã ela trouxe as amigas – a Carestia (nunca vi moça mais cu doce), a Decadência (esnobe como ela só), e a pior de todas, uma tal de Ansiedade. Pense numa mulher de lhe tirar o juízo: é daquelas que falam sem parar, emendando um assunto no outro. Se você disser que tem um parente anão que canta igualzinho ao Julio Iglesias e ainda por cima é casado com uma mulher muda porém sensual como Maddona, pode ter certeza de que Ansiedade vai arranjar um caso parecido na família dela para lhe contar também. Para o almoço, a Crise, que já descobri ser uma pessoa muito coerente, preparou uns sanduíches de mortadela e discursou enfastiada dizendo que era pra todo mundo comer como se fosse caviar.

Isso tudo foi ontem. Hoje, e notem que não foi preciso mais do que um dia para isso acontecer, não é que já estou me acostumando com ela? Se servir como tranqüilizante para o mundo, declaro: diga ao povo que a Crise pode ficar. É perfeitamente possível conviver com ela. Com disse Marta, se a presença da Crise – aérea ou terrestre mesmo – é inevitável, relaxe e goze. Por falar nisso, convivendo assim sob o mesmo teto, posso dizer que a Crise nem é tão feia quanto parece. Pensando bem, até que ela tem umas perninhas...

Nas brumas da Constituinte

A conspiração das efemérides não deixa ninguém dormir em paz. Depois dos 50 anos da Bossa Nova, agora é a vez dos 20 da Constituinte. Paciência: o que seria da mídia sem a cadernetinha de datas de quem insiste em olhar para o passado enquanto o presente – esse incômodo permeado pela alta popularidade do peão Lula – insiste em contrariar o que se quer comprovar. Então, dá-lhe Ulisses, tome Sarney, engula Odete Roitman, recupere a TV Pirata que há em você e entre na dança geral da nostalgia.

Se pelo menos a Constituição em vigor, ponto de partida de toda essa dança pretérita, conseguir sair da festa com um mínimo de reconhecimento aos seus méritos, terá valido a pena. Mas, não sei se vocês lembram, ontem mesmo, ali por volta de 1999, não havia nada mais combatido, desprezado e caluniado do que esta mesmíssima Constituição.

Diziam que ela instalara um reino de fantasias – eram os direitos sociais, esse inimigo monstruoso –, falavam que ela era específica demais – nem tanto, se considerarmos que deixou 200 e tantos pontos a serem definidos em legislação complementar, incluindo um delicadíssimo ordenamento do sistema de comunicações no país, tema, nem preciso dizer, jamais retomado, por contrariar vocês-sabem-quem.

Mas, para além da discussão necessária que pode, de alguma maneira, limpar um pouco a imagem da Carta de 1988, vem, numa segunda onda do noticiário, toda a recuperação tipo You Tube das coisas daquele tempo. Depois de ler tudo – as referências ao mistério da novela "Vale Tudo", ao sucesso do rock Brasil e a tudo o mais que enche divertidos e rentáveis almanaques nas livrarias – a gente fica com uma sensação de empastelamento memorial.

Pra mim, particularmente, 1988 foi um ano muito interessante. Em meio ao empastelamento, consigo divisar certas coisas – embora a qualidade turva da lembrança possa cometer equívocos calendários. Feita a ressalva, acho que era a época em que o jornalista Alfredo Lobo assumiu a direção da redação da Tribuna do Norte, instalando um projeto que estimulava todos que lá estavam a produzir um jornalismo minimamente criativo. Foi o tempo em que passei a morar no Parque das Pedras, esse logradouro que para mim e para tantas outras pessoas tornou-se um endereço sentimental e uma referência de juventude para todo o sempre. Havia o hábito de ler as revistas semanais, a "Veja" de então, que era completamente diferente dessa de hoje em dia. Havia o videocassete que a gente usava até o limite do suportável, havia a locadora de Bal no Posto Planalto, NÃO havia aquela pista de alta velocidade com elevado que encobriu aquela bela paisagem que era a entrada do Campus da UFRN bem em frente ao referido posto. Havia até o Cine Nordeste, onde se exibia "O Último Imperador", e o Rio Grande, onde se podia assistir a "Fulaninha", enquanto a canção-tema cantada por Paulinho da Viola disputava espaço com o som do trânsito lá fora, da avenida Deodoro, porque a sala tinha buracos de cobogós.

Só que, se a memória tenta fundir esses recortes isolados e relacioná-los com o evento nacional que era a formulação da nova Constituição, o que vem à superfície subjetiva da mente é uma nuvem esparsa de um tempo e lugar. Brasil, 1988: como mudou o brasileiro – e tantas vezes, para pior – de lá para cá. E como é difícil tentar recuperar o que fomos e mostrar um pouco para os obsessivos do presente na tentativa de fazê-los melhores do que são.

Nas brumas da Constituinte, éramos, é verdade, mais inocentes. Acreditávamos mais, participávamos com ansiedade, só víamos os obstáculos que queríamos ver. Ainda não havíamos nos diplomado neste niilismo obeso que nos engorda de facilidades e nos satura de egocentrismo.

Um dia, nos século seguinte, as brumas começaram a se dissolver, e gente que caminhava lado a lado sem problemas começou a se irritar com a cara do cara ao lado. Ensaio sobre a cegueira às avessas. O sol global banhou tudo com um brilho fascinante e desde então ficamos míopes de outro tipo de cidadania, de estar no mundo.

Pena que a efeméride tão útil para encher páginas de revistas e cadernos de jornais não sirva para estender a reflexão até essas curvas de estradas embaçadas. Seria imprecisão demais – e os dias de hoje não têm tempo para abrir mão da objetividade que tudo vê e tudo quer.

Newman


Não é de bom tom confundir ator e personagem, mas a despedida, esta semana, do senhor Paul Newman abre uma licença temporária para se contrariar esse mandamento do mundo da representação artística. Todas as informações sobre o Newman real que os jornais recuperaram e republicaram por ocasião da morte do ator parecem validar uma certa – e boa – impressão de que o ator e as pessoas que tão bem representou são uma mesma entidade, sobre e em torno da vã vida real.

Paul Newman é uma dessas unanimidades tipo Chico Buarque de Holanda, que as mulheres adoram e os homens, coitados, tentam tanto quanto possível imitar. Conheço um cidadão que já disse à mulher, amiga nossa: "Não admito traições em hipótese alguma. Ou melhor: só há uma situação que eu poderia tentar entender. Era se você me traísse com Chico Buarque." Por falar nisso, tempos atrás, quando Chico Buarque e Marieta Severo anunciaram a separação, essa nossa amiga chegou para o marido e preveniu: "Cuidado, viu? Que Chico Buarque anda solto por aí..."

A anetoda, tão real quanto Chico Buarque e Paul Newman, é só para validar a idéia dessa unanimidade meio casual – essa empatia que o ator americano, assim como o cantor e compositor brasileiro, exala seja qual for o personagem de que esteja investido. Pode ser aquele cidadão alvo de uma denúncia muito suspeita em "Ausência de Malícia", como pode ser o quase ancião que usa a idade avançada como salvo conduto para dizer o que quer e agir como convém em "O Indomável". Também pode ser o marido tenessewiliano de "Gata em teto de zinco quente". E ainda pode ser até mesmo o chefão frio e violento que se esconde por trás do porte daquele mafioso clássico de "Estrada para Perdição". Nunca houve um capo como aquele – cruel, porém estranhamente simpático em seu rosto de concha e sua expressão de monsenhor do mal.

Deixei para o final a lembrança do marginal bom vivant de "Buth Cassidy", aquele comentário humano que usava a paleta dos westerns remotos para ilustrar a originalidade da contracultura do presente – o tempo da ficção conversando com o tempo do momento em que tal ficção era feita. Num filme ou no outro, é como se todos os personagens de Paul Newman compusessem um amálgama que projetava uma imagem simpática do próprio ator.

A imagem de um inconformista tão charmoso quanto discreto, de um rebelde cioso da força de sua sutileza, de um baderneiro por natureza tão perigoso quanto coerente. Uma bela imagem, o legado imaginário que o senhor Paul Newman nos deixa.