terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Feliz Natal e um belo 2009

Cecília, Bernardo e os ares azul-natalinos da Esplanada nestes dias de chuva em Brasília falam por nós. O Sopão faz uma pausa, segue para esquentar um pouco o espírito nos piscinões de Caldas Novas e retorna ao batente, espera-se, logo nos primeiros dias de 2009, aí pelo dia 5, mas não vamos marcar nada que é pra não criar obrigação. A gente se encontra para novas batalhas, outras descobertas, futuras aventuras do ano que nos espera. Obrigado pela companhia e até lá.

Prêmio Sopão 2008

Blogue que se preza não passa sem uma lista. E como durante todo o ano o Sopão sonegou esse que é um direito de todos os leitores - listas são divertidas, fáceis de ler, podem ser apreciadas no trabalho sem que o chefe importune e ainda servem como dicas de livros, filmes e afins - agora a gente vai descontar. Com vocês, os melhores de 2009 segundo o Sopão - uma lista mais autoreferente do que qualquer outra que você tenha lido na internet. Tão autoreferente que comporta itens que nem têm a ver com 2009, porque o que importa aqui não é ter "acontecido", mas ter sido "citado" no Sopão no ano que está terminando. Permacultura literária é com a gente mesmo. Segue a lista:

1- MELHOR LIVRO DE ENSAIO: "Eu não sou cachorro, não", de Paulo César de Araújo.
2-MELHOR BIOGRAFIA: "Roberto Carlos em detalhes", de Paulo César de Araújo.
3-MELHOR LITERATURA: "Moby Dick", de H. Melville.
4-MELHOR ANTROPOLOGIA: "Velhos costumes do meu sertão", de Juvenal Lamartine.
5-MELHOR LUGAR MAIS QUENTE E CENOGRÁFICO DO MUNDO: Goiás Velho (GO).
6-MELHOR FILME MAIS BRUTO DO ANO: "Sangue negro", de Paul Thomas Anderson.
7-MELHOR E ÚNICA PEÇA DE TEATRO ASSISTIDA NO ANO: "Cada qual com seus pobrema", monólogo com Marcelo Médici.
8-MELHOR LIVRO DE FOTOGRAFIA DO ANO: "Seridó - Paisagens de um sertão encantando", de Fernando Chiriboga.
9-MELHOR E ÚNICO FILME DE GÂNGSTER DO ANO: "O gângster", de Ridley Scott.
10-MELHOR FILME ANTIGO EM DVD DO ANO: "O homem que odiava as mulheres", com um monstro chamado Tony Curtis
11-O MELHOR E PIOR LIVRO DE NÃO FICÇÃO DO ANO (é isso mesmo, melhor e pior): "O mundo é plano", de Thomas L. Friedman
12-A MELHOR SURPRESA NUMA SALA DE CINEMA DO ANO: "O banheiro do papa", de César Charlone e Enrique Fernández.
13-A MELHOR SÉRIE DE TV MAIS CRUA VISTA EM DVD: "Deadwood"
14-AS MELHORES POSTAGENS EM SÉRIE DO ANO: "Minha viagem com Amy" em quatro partes
15-A MELHOR POSTAGEM SOBRE ASSUNTOS COMEZINHOS MAS DE SUMA IMPORTÂNCIA: "Geléias, calções e o aquecimento global" (falando nisso, agradecimento à Iolete, que acaba de me enviar um potão de geléia feito por ela especialmente pra mim, suspendendo - vejam a honra - temporariamente sua promessa de não mais chegar perto do fogão de doces. Obrigado, mesmo.)
16-MELHOR POSTAGEM EM TERMOS ABSOLUTOS: "Deserto amado" (acabo de repassar tudo pra fazer essa retrô e cheguei a essa conclusão. Vou reprisar pra quem não leu)
17-MELHOR LIVRO SOBRE A CONTRACULTURA (li vários este ano): "Longe daqui aqui mesmo", de Antônio Bivar.
18-MELHOR VIAGEM DE FÉRIAS: São Miguel do Gostoso, mas a concorrência foi pesada.
19- MELHOR DESCOBERTA DISCOGRÁFICA ATRASADA: Charles Brown Jr.
20-MELHOR REDESCOBERTA DEPOIS DE TODO MUNDO: O show "Cê", de Caetano Veloso, em DVD
21- MELHOR POSTAGEM NÃO ESCRITA POR FALTA DE TEMPO: sobre o Natal movido a LEDs, a tecnologia da iluminação que dá novo colorido a este fim fim de ano em Brasília (na foto que ilustra a postagem, a árvore da Esplanada)

E mais:

1-PRÊMIO ACONTECIMENTO À DISTÂNCIA DO ANO: a sangria de todo os açudes do Seridó.
2-PRÊMIO MOMENTO NOSTALGIA DO ANO: a descoberta dos LPs do conjunto Flor de Cactus à disposição para baixar num blogue na internet (Som barato).
3-PRÊMIO MOMENTO ESPECIAL NO CINEMA DO ANO: "Um beijo roubado", de Kar Wai Wong
4-PRÊMIO MOMENTO ESPECIAL EM DVD DO ANO: "Amor à flor da pele", de Kar Wai Wong
5-PRÊMIO MOMENTO MAIS HILÁRIO (E PERIGOSO) DO ANO: o vazamento de gás nos subterrêneos da Câmara dos Deputados, onde trabalha este escriba e mais umas cem mil pessoas.
6-PRÊMIO MOMENTO FESTA DO ANO: a festinha de aniversário de 1 ano de Bernardo.
7-PRÊMIO MOMENTO MEIO TRISTE MAS TUDO BEM DO ANO: A ida de Plácido para BH.
8-PRÊMIO MOMENTO ALEGRÃO DO ANO: a passagem rapidíssima mas muito divertida de Carlão (de Souza) por Brasília.
9-PRÊMIO MOMENTO ESPORRO COM DOÇURA DO ANO: a postagem "Recado à morena Marina", quando ela desistiu do Ministério do Meio Ambiente.
10-PRÊMIO MOMENTO SOU SOLIDÁRIO A QUEM É SOLIDÁRIO AO GOVERNO LULA DO ANO: a postagem "Betto e Gilberto", sobre as diferenças irreconciliáveis entre Frei Betto e Gilberto Carvalho.
11-PRÊMIO ACONTECIMENTO DO ANO: o lançamento de "O poema do caminhão" em livro pela editora de Flávia e Adriano, a gloriosa "Flor do Sal"
12-PREMIO ORÁCULO DO ANO: Tácito Costa, não tem pra ninguém, com o texto "Mentiras e mistificações", sobre a campanha eleitoral em Natal.
13-PRÊMIO POSTAGEM MAIS COMENTADA DO ANO: "Borboletas", também sobre a campanha eleitoral em Natal (foram 9 comentários, o que prova o baixo índice de coments do Sopão, mas a gente assobia, olha pro lado, faz que não é com a gente e segue em frente batucando no teclado).

A anfitriã

Novo seriado do canal Sony, ficou no ar por quase uma semana, estrelando Cecília, Flávia e Adriano, fotografia paterna, roteiro materno, campeão de audiência. Breve, quem sabe, novas temporadas. O pacote, pra quem não viu, a gente ainda está providenciando.

café sertanejo - 2





O segundo café sertanejo da velha casa nova reuniu Adriano e Flávia, nossos primeiros hóspedes, mais Nina e Sérgio e as respectivas filharadas, contando com Bernardo e Cecília fazendo aquela figuração que criança nenhuma dispensa. São eles com Flávia lá no alto. No terraço, Bob pai e Bibo filho que até hoje juram não ter combinado o figurino forever young.

"A Cor Púrpura" para 2009



(Esta postagem é especialmente dedicacada à nossa amiga Marcya Reis)

Nos primeiros cinco minutos desse filme que, tantos anos depois, ainda é a cara do Cine Nordeste, no centro de Natal, somos apresentados a uma série de fatos e situações repugnantes, violentas, abusivas, intoleráveis. Celie - negra, pobre, feia e mulher - como dirá mais tarde um de seus tantos algozes, é ainda uma criança, mas já é uma adulta retirada a fórceps de uma infância estupidamente fatiada. Ficamos sabendo, somente naqueles cinco minutos iniciais, que ela está grávida pela segunda vez. E o pai do bebê é seu próprio pai que, assim como fez com o primeiro filho, também some com o segundo mal ele acaba de sair da barriga da mãe-menina. Mais uns dez minutos e Celie será praticamente vendida a um desconhecido de quem se torna um híbrido de criada e escrava sexual. Temos aqui violência contra criança, estupro seguido e seqüênciado, incesto, miséria material e moral. Em 1985, era demais para um filme americano convencional - e mais ainda quando se sabia, de antemão, que o diretor era o ex-E.T Steven Spielberg, o magnata do entretenimento que sabia fazer chorar sem que doesse tanto.



Pois em "A Cor Púrpura", tudo doía, você deve estar lembrado - sobretudo naquele início que compactava em poucas cenas um volume enorme de lixo humano e degradação social. Ontem eu revi o filme que há tempos não apreciava outra vez. Numa cópia em DVD lançada recentemente, cores estalando, brilho fervente em cada linha da tela caseira, os poros dos personagens conferindo ainda mais vida a cada situação, cada recuo e cada enfrentamento. E, ainda que impressionado com a condensação de desgraças apresentadas no início do filme, o que me saltou aos olhos acabou sendo outro elemento - este sim, spielberguiano por natureza, e normalmente a parte que, já percebi, é o que mais me faz apreciar o cinema desse moço forjado pela indústria mas capaz de renová-la mesmo enquanto máquina de fazer diversão e produzir dinheiro.



Este elemento chama-se "encantamento": está presente nas fantasias sobre a guerra que distraem o menino-herói Christian Bale em "O Império do Sol"; está impregnada na relação entre o garoto que abriga o só a princípio repugnante extraterrestre em "E.T."; está marcada qual DNA na seqüência de "Parque dos Dinossauros" em que cientistas, crianças e nós, o público, vemos pela primeira vez os dinos sobre a superfície da terra; está impressa em todo e qualquer momento daquela jornada fantástica que é "Os caçadores da arca perdida" e suas continuações. No caso de "A Cor Púrpura", a história era outra. Na época, vocês lembram que Spielberg estava tentando ganhar aquele Oscar sempre negado a ele - e, para tanto, buscava fazer o que chamam de "filme adulto".



Toda classificação é inútil nessas horas, todo mundo sabe. Mas o fato é que o cineasta recorreu a um tema forte - aquele congregado de misérias do Sul racista de um EUA primitivo - e não fugiu dele na hora de filmar tudo. Mas há uma lei no mundo do cinema convencional que vale por um Estatuto de Proteção aos Expectadores Mais Arredios à Reconstrução da Realidade na Arte. E foi dela, visivelmente, que Spielberg se valeu para tornar seu filme adulto mais palatável, embora tecendo considerações sobre aquele punhado de temas desagradáveis que estão listadas no primeiro parágrafo deste texto. Se você assistir ao filme hoje, sem a ansiedade dos tempos em que ele foi lançado, vai notar que Spielberg recorreu a imagens líricas que pontuam cada cena - mesmo as mais violentas e exasperantes, ou sobretudo estas.

Visto deste ponto de vista, "A Cor Púrpura" é, como o próprio nome já sugere, um belo poema visual composto como uma harmonia à parte de uma bela música enquanto a gente acompanha as desgraças contadas pela melodia convencional. Estou falando, por exemplo, das flores púrpuras que surgem logo no início do filme, à frente do foco das duas personagens principais que aparecem ao fundo, brincando. Estou falando da brincadeira infantil de bater as mãos, essa singeleza que abre e fecha o filme, pode reparar. O mundo é cruel, meu amigo, a negra Celie come o pão que o Diabo deixou queimar no forno de propósito, é jogada daqui para acolá e separada abruptamente da irmã que tanto ama, apanha durante o filme inteiro mas, note, no início e no final de sua jornada o que sobressai, o que fica é uma sublime brincadeira infantil de bater as mãos na seqüência certa, entre risos e sorrisos. Apesar de tudo - e todo mundo hoje em dia tem idéia do que seja esse "tudo" - o que fica é a graça de uma brincadeira de criança. Lembro da expressão usada por minha cunhada Titina, falando sobre uma lembrança de infância, ela e as irmãs deitadas sobre a barriga do pai, seu Chico. "Isso fica, viu!", costuma dizer Titina. É verdade - mas isso de presentir o que fica e o que passa é para quem tiver olhos para ver, como Titina e as irmãs têm, como Celie teve, como o filme celebra.

É bom que o Sopão encerre o ano falando desse filme já esquecido, porque ele nos dá um motivo de falar de poesia na acepção mais rica da palavra: esse sentimento que independe mesmo da capacidade de escrever e se abriga também na astúcia e no desprendimento de saber ver. O que tem de poeta que não precisa publicar por aí não é brincadeira - eles "são" poesia, e pronto. Outro dia, a cronista gaúcha Martha Medeiros escreveu algo na sua coluna do jornal "O Globo" que a gente deveria pendurar na parede para lembrar a toda hora: era uma mera, banal, comum lista de coisas que ela vê em casa todo dia e que têm alto poder de sugestão poética: o pedaço de bolo que sobrou e ficou num pires na geladeira, uma velha foto dos avós no porta-retrato, essas coisas. Aqui em casa tem um negócio assim de que eu gosto muito: a pintura gasta no muro que aparece ao fundo da janela da cozinha. Lembra o interior, o ritmo e a cor da vida no interior. Relutarei muito em pintar esse muro - parece que, assim, desenhado pela natureza que a cada chuva vai dando suas pinceladas, fica melhor. Neste fim de ano, pare e olhe em torno você também - há matéria de poesia que vai dar mais significado para a sua vida aí pertinho mesmo de onde você lê este texto agora. Pelo menos um, nem que seja um. Basta ter astúcia e desprendimento para ver. Muito provavelmentes sera algo ordinário, esquecido, que a graça da vida também passa pela aparente banalidade das coisas quietas.



Voltando ao filme: ao longo de "A Cor Púrpura" temos aquela sensível cena em que Celie, limpando a casa do novo "marido", vai retirando a casca de poeira que encobre uma parede e surge, surpresa, a pintura antiga de uma flor; temos os manuscritos em papel de cartas que vêm e vão ao longo de toda a história; temos as compotas límpidas na cozinha que é o mundo que restou para Celie e no qual ela circula tão à vontade embora cercada de desprezo por todos os lados; temos o exemplar de "Oliver Twist", com aquela gravura antiga na capa, com o qual Celie acaba de aprender a ler; temos a cortina de renda tremulando levemente como pano de fundo de uma das cenas em que a personagem é mais humilhada; temos, primor das delicadezas, o velho papel amassado onde está escrito "sky", outra peça de seu aprendizado da leitura, e que torna-se um vestígio dos tempos em que Celie ainda não havia sido separada de sua irmã. Um pedaço de papel velho, desbotado, encarquilhado, despeja no filme, quando aparece, um caminhão de poesia visual. Você há de ter um desses aí pelas suas gavetas. Apegue-se a ele e despeje uma poesia a mais na sua vida.

E tem mais: a luz que entra pelas portas e janelas da capela na cena do casamento de Harpo e Sophia (Oprah Winfrey, estonteante, carregando o filme para si sempre que aparece); o canteiro de girassóis, o blues que Shug canta para Celie ("Sister..."), assim como a dedicatória que faz antes de começar ("Ela cuidou de mim quando eu estava doente"; uma maneira terna de dizer "ela teve paciência comigo quando eu estava de porre"); o enfeite de vidro que fecha a cena do beijo de Shug em Celie; o boneco de neve que surge por trás de um aperto de mão; a canção de trabalho dos homens que constroem a ferrovia.

Por tudo isso, essa digressão quase paulocoelhiana sobre "A Cor Púrpura" se presta bem ao objetivo quase involuntário dessa postagem: desejar Feliz Natal e Ano Novo realmente renovado aos amigos leitores do Sopão. No início, não era bem esse o propósito - mas o filme, a lembrança do filme, o texto, a lembrança dos amigos, foi levando para esse lado e achei melhor não bloquear. Miremo-nos todos no exemplo daquela Celie tão triste e tão doce que nos deram Spielberg e Whoopi Goldberg. E espalhemos entre nós e quem nos quer bem esse espírito benfazejo de saber valorizar as pequenas coisas mesmo em meio ao maior sofrimento. Ou, como é muito mais desejável, quando tudo parece e está indo muito bem.

café sertanejo - 1




O primeiro café sertanejo da casa reuniu a turma que cursa o mestrado com Rejane na UnB. Na primeira foto, lá no alto, o professor Luiz Martins, orientador da aluna. E, já mais abaixo, Plácido e Marleide, que também vieram já devidamente equipados com Manoela, que foi dormir num quarto longe dessa algaravia boa.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Na tela, velhos homens do mar


O que seria do cinema de aventura sem a abnegação e a teimosia dos velhos comandantes dos navios? No fim de semana, à guisa de filmes de profundidades submarinas, saquei da estante de DVDs dois flutuantes representantes da esquadra do entretenimento para combinar com os pés d'água que lavam os jardins brasilienses sem dó, sem sol e sem piedade. "O Grande Motim", comprado a preço de banana num feirão de supermercado da Estrada de Ponta Negra, é a versão divirta-se da histórica rebelião a bordo de embarcação inglesa nas brumas do século XVIII, com um enfezado Clarke Gable mandando para aquele lugar um empedernido Charles Laughton.

No andamento das seqüências, na costura do roteiro, na amplitude da paisagem mas também nos comentários da fotografia, nota-se claramente que se trata de um híbrido - meio diversão sem compromisso, meio documento histórico. Destaca-se, contudo, a visão dos rostos - essa qualidade que o cinema dificilmente consegue nos negar: há closes espalhados ao longo do filme, geralmente closes de personagens pra lá de secundários, quase figurantes, que comentam a tragédia em curso melhor do que muita seqüência "de ação", como se diz. São respiros neorealistas antes do neorealismo sequer pensar em existir, que o filme é de 1935 - e o espírito é de Sessão da Tarde.

O cartaz da segunda sessão foi o bem mais recente "Mar em fúria" que, além do tema marítimo, guarda em comum com "O Grande Motim" o fato de também reconstruir um "fato verídico", como se diz. A semelhança prossegue: fato verídico reconstituído num tom que precisa fazer de uma tragédia notória uma matriz de entretenimento - no que, diga-se, sai-se muito bem. Resultado favorecido pelo fato de se tratar de um registro muito mais real, por força da tecnologia dos efeitos especiais. Nos seus momentos mais marcantes, "Mar em fúria" é um filme quase tátil, de maneira que, quando tudo vai por água abaixo - e todo mundo sabe que no caso desse filme isso não é força de expressão - o espectador praticamente se afoga junto. As montanhas revoltas formadas pelas águas marinhas em tempestade têm o poder tecnológico de envolver o público do filme, a esta altura já devidamente encharcado pelos dramas humanos apresentados na primeira parte da história.

Em ambos, temos a figura - meio óbvia? - do comandante de navio inflexível a um ponto quase sobrenatural. George Clooney ou Charles Laughton, não adianta: o autoritarismo mora no mar e vive de caçar Moby Dicks por aí, para a nossa desgraça ou para a nossa diversão.

De lua e de estrelas

Há duas semanas ou três, que a precisão nunca foi o forte do Sopão, deu-se nos céus do planeta uma conjunção de astros deveras curiosa. No alto, uma meia lua daquelas dos brincos das garotas dos anos 80 e, abaixo dela, alinhadas, duas estrelas brilhantes, Marte e Vênus, bem próximas. Quando a mão invisível do nosso olhar traçava, quase inevitavelmente, uma linha reta entre as estrelas, formava-se como que o assento de um balanço, desses de divertir menino, suspenso na meia lua caso, claro, o mesmo olhar desenhista completasse o esboço e traçasse outras duas linhas - cada qual saindo de uma estrela para a lua lá no alto. Um triângulo luminoso no céu da Terra, espichado como aqueles que vinham em forma de régua nos estojos escolares.

Posicionados no céu como desenho de caneta bic em papel de pão, lua e estrelas pareciam um presente para marcar um final de tarde daqueles. Era sábado e a casa esteva cheia. Nina e Sérgio vieram com a garotada para um café sertanejo com a gente e mais Adriano e Flávia, que passavam uns dias em Brasília - e levaram o invejável título de nossos primeiros hóspedes na casa nova. Depois de horas de comilança e conversa, de esgotada a série "de A a Z" dos velhos tempos da TV Cabugi, das avaliações sobre a recente campanha eleitoral em Natal, a noite foi se chegando e, em meio às despedidas na varanda, Sérgio, não por acaso um arquiteto, chama a atenção de todo mundo para o diagrama inspirador no céu - o triângulo de lua e estrelas que acabou noticiado nos jornais do dia seguinte como um fenômeno raríssimo. Fenômeno raríssimo para a ciência - que, naquela hora, pra nós, foi mais um presente a sacramentar o encerramento de uma reunião de amigos.

Dias atrás tivéramos outro café sertanejo lá em casa, desta vez com a turma do mestrado de Rejane, com direito a professor da UnB ajudando Bernardo a manejar a colher na degustação de um prato de cuscuz. Mas o Nordeste velho de guerra, resistente como ele só, também estava lá: a desculpa do encontro era promover uma despedida do colega paraibano de Rejane que está concluindo o doutorado em Brasília e vivia reclamando dessa cidade onde ninguém chama ninguém pra tomar uma. Pois chama, rapaz. E os dois encontros serviram ainda para apresentar a velha nova casa, ou nova casa velha, a um punhado de amigos que comemoraram com a gente a mudança de endereço. Breve aqui as fotos que confirmam a postagem.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

"Ninguém sabe nada"


Revi estes dias em casa, com o atraso que a boa avaliação exige, o "Fahrenheit 11 de Setembro" do gordo Michael Moore. Continuei não apreciando as partes do filme em que o documentarista não resiste e constrói um discurso sobre as imagens daquele cachorro morto - como é mesmo o nome dele, acho que Bush. É verdade que na época do filme o cãozinho ainda não era visto como tão maléfico assim - ao menos não tanto quanto agora há pouco, nos estertores da campanha presidencial obamiana - mas ainda assim o palavreado de Moore passa do ponto e estraga, várias vezes, o que poderia ser um registro mudo da impotência, da empáfia e da ignorância calculada do ex-presidente norte-americano.

Mas o gordo não se agüenta e, não contente em exibir a cara atônita - humanamente atônita, por baixo do caráter fortemente panfletário do filme - de George W. ao receber a infomação sobre o segundo ataque às torres gêmeas, satura a cena com uma elocubração em off em torno do que estaria passando pela cabeça do então presidente sob aquela cara de tapado. Fica, como se diz, "over". Como Cristovam Buarque elegantemente tirando sarro de Joaquim Roriz no debate eleitoral da Globo enquanto o segundo tropeçava na pronúncia correta da palavra "catástrofe". Deu no que deu.

Lá, nos zéua, também - vocês não esqueçam. "Fahrenheit 11 de Setembro" foi exibido às vésperas da eleição que reelegeu Bush, apesar de tudo. Aqui e lá, não adiantou a crítica subir no tamanco. Passou do ponto, paga o prejuízo. Pior para todos, disso ninguém duvida. E já que caímos nessa conexão entre o caráter panfletário do filme (em vários momentos quase uma peça de campanha, o que não é uma qualidade), a soberba da intelectualidade e os embates eleitorais, vamos a um aspecto que, dessa vez, vendo o filme em casa, ganhou minha atenção.

Refiro-mo àquela mãe de família ultrapatriótica que se orgulha de mandar um filho para o Iraque ali pelo meio do filme para, já próximo ao final, reaparecer no extremo oposto, chorando a morte daquele mesmo filho e solidarizando-se com os mesmos manifestantes que a repugnavam alguns fotogramas atrás. À primeira vista, essa mulher parece aquele tipo de "personagem" que cai nas graças dos documentaristas mais apressados - aquela figura que diz tudo o que o cineasta que ouvir e fazer ouvir, que comprova com palavras as teses pré-existentes na premissa do filme, que encena, dramatiza, didatiza cada expressão e cada sentença.
Personagens assim - e quem viu o último documentário de João Moreira Salles já sabe o que eu vou dizer - são tão bons, mas tão bons, que podem botar tudo a perder. Porque discursam com tal evidência, dispõem-se para a câmara com tal desenvoltura, desfilam pelos filme com tal segurança que no final soam falsos, como se cada verdade que quisessem demonstrar parecesse perfeitinha demais, encenada além da conta.

Ao assistir ao filme pela primeira vez no cinema, foi exatamente o que senti em relação a essa mãe americana que muda de posição no doc de Michael Moore. Agora, apreciando o filme novamente, reparei especialmente numa fala da senhora, justo quando ela tenta amarrar tudo, ao discutir com uma pessoa anônima durante uma viagem à capital, Washington. Ela se revolta pelo fato de a interlocutora não entender a necessidade do protesto contra a guerra no Iraque - como ela mesma pensava lá atrás. E sai-se com esta: - Ninguém sabe de nada. Todo mundo pensa que sabe, mas ninguém sabe de nada.

É um bom resumo, um momento enfim verdadeiro daquela mulher, uma frase que sai ao fim de um processo desenrolado em frente às câmeras, tal os reality shows tão em moda. Mas contém uma autenticidade no seu diagnóstico gritado de uma pessoa que se flagra como vítima de uma manipulação. É, disparado, o melhor momento do filme. E redime os discursos de Moore, asssim como o colaboracionismo inicial de sua personagem. Ninguém sabe nada. Todo mundo pensa que sabe, mas não sabe. Inclua aí os bobalhões americanos médios que apoiaram a invasão do Iraque, os brasileiros que defenderam o golpe militar em 64 e em 68, os eleitores de Micarla de Souza em Natal, só pra ficar em três exemplos de uma longa e infindável lista.

Carta aberta para Adriano e Flávia

Uma das melhores coisas do mundo é quando grandes amigos que, por força das circunstâncias ou da distância mesmo, você não pode ver todo dia ou ao menos uma vez por semana lhe manda um e-mail, uma carta ou dispara um telefonema dizendo que está para chegar. Fiquei sabendo ontem que Adriano e Flávia estão de malas prontas para uma curta mas intensa temporada brasiliense de cinco dias. E vão ficar lá em casa, aquela velha porém nova casa domingueira, cujas janelas, sempre que são abertas toda manhã, parecem implorar com sua voz de rangido metálico: - E os amigos, cadê os amigos? Traga todos para cá, ou ao menos um de cada vez de vez em quando!

Então, como se fora uma maquinação metálica das nossas janelas conspiratórias, chega a notícia da iminente chegada do casal de Sousa, por sinal - e isto é sobremaneira importante, como diriam as portas de vidro que se abrem em par e também são dadas a uma conversa - o mesmíssimo que me abrigou quando um vento bateu na minha cabeça e eu decidi encarar uma tentativa de morar em Brasilia que, todo mundo sabe, enfim, muito me rendeu. Apois: essa postagem de frases saramagueanas (no sentido de tamanho, claro; não no estritamente qualitativo) é para servir como mensagem de boas vindas aos amigos, dizer da cidade para onde eles carinhosamenet me trouxeram, da capital onde eles próprios por tanto tempo viveram e, quem sabe, para onde ainda podem voltar, nunca se sabe.

Adriano, Flávia, aquela pontinha da Asa Norte continua linda! Agora, então, com as chuvas, as plantas estão estourando de verdes, as crianças prateadas de vivacidade, o comércio burburando de movimentado, a tesourinha tonteando de asfalto e tráfico, os mendigos desempenhando com a elegância que só eles podem ter aquele papel que a natureza lhes reservou. Aquela estrada de prata, ladeira de vagalumes ascendentes que é a continuação do Eixão rumo a Sobradinho fica, a cada noite, mais reluzente. E, apesar da chuva, nunca mais um raio fulminante caiu no pedaço, energizando ao limite da morte uma patética, de tão anônima, vida humana.

O cachorro quente, essa tradição das entrequadras, segue firme por lá. Só não sei se é o mesmo dos tempos em aqui cheguei, escapando do frio de maio na casa de vocês. Se for o mesmo, está mais velho - o que não é nada mal neste mundo veloz que de nós tomou conta a partir de algum momento do ano de 1998. Tem um ponto na comercial que não toma jeito - nada emplaca. A última tentativa foi uma sorveteria, mas a qualidade do gelado não estava à altura da atmosfera daquele cantinho de mundo que se chama 215/216 Norte. A locadora de vídeo, sim, está firme - embora tenha mudado de nome, de dono, de leiauti, de funcionários. Nesse processo, perdeu um pouco de alma - mas quem não perdeu de 98 pra cá? Deixa ela.

Deixa nós. Só o fato de transitar nem que seja rapidinho pelo rasgão de asfalto que divide os dois lados da comercial da 216 já é suficiente para trazer de volta às narinas um pouco daquele cheiro de humanidade que foi se perdendo. E depois tem o Parque Olhos d'Água que transpira muito mais no verão chuvoso daqui, a velha e boa Musical Center que nos socorre do futuro com um punhado de vinis saudosistas, e as bancas de jornais, com seus donos cheios de conversas que nenhuma força de mercado será capaz de tragar.

P.S.: Carlão, agora só falta você chegar com Sônia. Eu e Rejane vamos aguardar.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

"Shane" e o ponto de vista de cada um


A leitura de um filme de um ponto de visto algo psicanalítico não é novidade de maneira alguma. De tão comum, é quase um chavão – um formato de resenha, uma forma de fruição da sétima arte. Um exemplo – e dos mais batidos – é "Shane – Os brutos também amam", o mais lacônico dos westens clássicos que, para muita gente, é, da primeira à última cena, a filmagem da fantasia de um menino. A coação dos criadores de gado que tentam expulsar os agricultores teimosos, as casas incendiadas, as brigas no bar que antecedem os tiros e o aparecimento do pistoleiro defensor da justiça e cheio de mistérios, tudo isso seria a projeção da fantasia daquele menino, little Joe.

No final de semana, revi "Shane" duas vezes – uma delas, numa divertida sessão com os comentários do filho e do auxiliar do diretor do filme – e outras duas produções que me fizeram elocubrar um pouco sobre essa história de histórias projetadas pelo inconsciente de seus próprios personagens. Os outros dois filmes, além de "Shane": "Depois de horas", aquela fantasia pop-surreal cheia de deliciosos maneirismos feita por Martin Scorsese", e ""Vestida para matar", a esta sim uma ultrapsicanalítica jornada filmada por Brian de Palma nas gavetas da mente dividida de um psicopata de boa família.

Vistos na ordem em que foram dispostos neste texto, os filmes meio que se puseram a conversar uns com os outros na minha cabeça. Trocaram umas idéias, emprestaram fotogramas uns aos outros, mediram possibilidades e ambições e, desse bate papo instalada no cérebro ansioso do espectador que vos fala, saíram as constatações que seguem, não à guisa de análise, mas a título de diversão mesmo, que a consistência das idéias pode se desfazer com a mesma rapidez com que as platéias atuais esquecem o último filme que viram no cinema.

Então: se "Shane" é, como tantos dizem, a projeção das fantasias de little Joe para tornar seu pai mais corajoso, sua mãe mais feminina, sua realidade menos sufocante e ele mesmo o herói possível dentro dessas circunstâncias todas, arrisco dizer que toda aquela jornada madrugada adentro de "Depois de horas" não passa de um delírio de desejo vivido pelo personagem central, um jornalista semi-yuppie dos anos 80 entediado com a previsibilidade de tudo à sua volta – dos móveis da casa de iluminação clean à redação tipo linha de montagem com estilo onde ele inicia e termina o filme.

O personagem interpretado por Griffin Dunne nunca diz isso textualmente, mas precisa, implora, baba por algumas horas que sejam num ambiente diferente do seu – um mundo sem regras, pleno de riscos mas também de prazeres inesperados. E este mundo, para um cara certinho como ele, só pode ser o underground chique e surreal dos artistas pós-punk do bairro boêmio. O filme inteiro capricha no tratamento visual que exibe placas simples – "bar" – , ruas caprichosamente salpicadas de poças e de luar, ambientes desenhados em cores básicas. Tudo como se fosse uma estridente história em quadrinhos para adultos, num momento em que Scorsese muito se aproxima de um cineasta até então inédito, Quentin Tarantino. E essa aquarela noturna que também muito lembra a atmosfera das telas de Edward Hooper, o esteta do realismo e da solidão americana, o que contribui ainda mais para dar ao filme uma saborosa artificialidade – um clima bretchiano que, ao fim e ao cabo, reforça exatamente aquilo que ele poderia, no todo, ser. O quê? A fantasia que seu personagem principal tanto busca. Tudo aquilo é uma criação de Paul Hackett (Dunne). Eu estou convencido disso. E se você quer se divertir, sugiro que resolva discordar de mim e, para tanto, alugue o DVD e deleite-se com "Depois de horas". A comprovação da tese eu não garanto – a diversão, sim.

O raciocínio é o mesmo no caso de "Vestida para matar", embora a complexidade estilosa e proposital de Brian de Palma – e o próprio tema manifesto do filme – pareça tornar as coisas um pouco mais difíceis. Só que, por baixo daquelas camadas de psicologia barata que De Palma usa para emular o seu, o dele, o nosso ídolo Alfred H., sobra apenas um outro exemplo de personagem vertendo em imagens e sons os seus desejos. E se você pensou que esse personagem que projeta suas expectativas é o psicanalista que – vou ter de cotar o segredo do filme, paciência – vai se revelar um assassino travestido de mulher, errou. Feio. Passou longe.

Pra mim, no caso de "Vestida para matar", aquela trama toda de dupla personalidade, misturado ao caso de uma mulher sexualmente insatisfeita, não passa de uma projeção do filho desta. Duvida? Então reveja o filme e repare na maneira como o garoto, um típico nerd do cinemão americano (cujo intérprete, mais nerd ainda, estrelaria mais tarde "Christine", clássico pop-sujão feito a partir do romance pulp de Stephen King), deixa bem claro o tempo todo que seu pai morreu no Vietnã e que foi criado pelo padrasto. Por que esta fala é significativa dentro dessa tese mirabolante sobre personagens que projetam? Porque expressa o inconformismo do adolescente, sintoma primeiro de sua obsessão e gatilho do mecanismo psicológico que o faz detonar toda a história de sangue, navalhadas, travestis e bossalidades policiais.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Valhei-me, Toinho Alves!


Sexta-feira à noite eu fui mais uma vez tragado pela agenda cultural de Rejane. Mas dessa vez temo que o resultado não tenha sido muito estimulante, como foi quando ela me arrastou com os meninos para assistir ao show do grupo "Cabelo de Moça" no edifício sede da Caixa Econômica. É verdade que o programa dessa sexta-feira até que prometia: era o chamado "encontro dos pontos de cultura", que movimentou a Esplanada dos Ministérios durante o final de semana.


Para aquela noite estavam programados dois shows em palcos alternados. Um do Quinteto Violado e outro daquele senhor cearense, seu Raimundo Fagner, conhece? O Quinteto faz meio que parte da nossa história na travessia Natal-Brasília: pouco antes de mudar para cá, assistimos no velho TAM a uma baita e inesquecível apresentação da banda pernambucana, e vimos o mesmíssimo show pouco depois, já morando aqui, na Sala Villa Lobos do Teatro Nacional. Foi como se os caras do Quinteto tivessem acompanhado a gente no caminhão de mudança. E ajudou a nos adaptar, a sair um pouco da umidade salina de Natal para a secura àquela altura meio gelada de Brasília.


Quando ao cearense, caiu a ficha de que seria a primeira vez em que veria um show dele, apesar de me inscrever no vasto, nem um pouco homogêneo, uma vezes calmo, outras vezes passional grupo de ouvintes que o aprecia. Fagner, enfim. Os cearenses vão à loucura. Bora ver.


Tudo corria bem enquanto rolavam as cinco ou seis primeiras músicas do Quinteto. Uma nota antes de prosseguir: que falta faz a presença marcante, sertanaje, negra e verdadeiramente popular de Toinho Alves no palco do Quinteto. Assisti praticamente a todo o show lembrando dos aboios que o velho músico, falecido há pouco tempo, jogava no meio da seara sonora do Quinteto, fazendo da música do grupo algo ainda mais autêntico, tocante e rico.


Mas disse praticamente porque, a certa altura do show nem Toinho me livraria da arapuca que Rejane armou pra mim. Eis que, a tantas horas do show, um forró tocando fogo no pequeno mas animado público, um dos integrantes do Quinteto sugere que todo mundo avacalhe logo o negócio e transforme a platéia numa grande quadrilha junina. Rejane olhou pra mim, eu senti o impacto da olhada, entendi tudo e não disse nada. Mas fiz cara de "agora não vai dar". Ela apelou para a verbalização: "vamos". Eu: "Hoje vai dar não". Resisti, tentei correr, usei a tática de olhar pro lado como se não fosse comigo mas teve jeito não.


Rejane me arrastou para uma quadrilha junina no pé do palco do show do Quinteto. Pensando bem, devo agraceder à providência pelos músicos do Quinteto não terem chamado a quadrilha para subir ao palco de uma vez. Aí não sei o que teria acontecido. Só sei que fui jogado de um lado pro outro, obrigado a pular animadinho quando estava ainda cheio de trabalho na cabeça, mais parado do que estátua de leão em entrada de mansão mal-assombrada. E tinha que dar risada, me mostrar contente e animado como todos os demais. Era um constrangimento a minha cara destoando do resto da quadrilha. Mas Rejane estava irredutível.


O pior, o pior mesmo foi no final, quando o mesmíssimo músico do Quinteto - valhei-me, Toinho Alves! - resolveu, não contente com a quadrilha, sugerir que todo mundo continuasse de mãos dadas e formasse o que ele chamou de "onda gigante humana". Assim: todos de mãos dadas formando uma espécie de círculo humano em caracol. E aí, a um sinal dele, todo mundo tinha que se jogar para o centro do caracol, esbarrando no que quer que fosse. Quase que me afogo nessa onda: me vi empurrado abruptamente para o centro do furacão, digo, caracol, e, imediatamente em seguida, arrastado de volta como se estivesse mesmo em um mal revolto de gente levemente alterada pelo álcool e outros aditivos de noite de sexta-feira.


Falar a verdade: eu até aprecio uma ciranda pernambucana, daquelas de Dona Lia, onde a gente entra, dá aos mãos, e dança meio malemolente, num ritmozinho devagar, bom, parece que tá numa rede de varanda, aquele passo para trás que não tem risco de errar. Aí, sim. Mas quadrilha como a do Quinteto, nessa não caio mais.


Esqueci de dizer que era tanta gente na quadrilha que montaram até aquele "túnel" de casais onde a gente se agacha para passar por baixo: pois o túnel era tão grande que desconfiei que quando saísse dele estaria lá pras bandas do aeroporto, tendo entrado nele no gramado da Esplanada. Mas isso foi pouco: quando enfim saí do túnel e me surpreendi de ainda estar entre os prédios dos ministérios, tive que fazer com Rejane aquele telhadinho de mãos dadas e braços elevados para outros integrantes da quadrilha passarem. Pense no aperreio: se demorei tanto para atravessar, imagine o tempo que vou ter de permanecer com os braços levantados aqui...


Como já havia passado pelo pior, resolvi, encerrado o show do Quinteto, esperar para ver Fagner pela primeira vez num palco assim pertinho. E então relaxei da quadrilha apreciando o show, que me mostrou um Raimundão muito bem disposto em fim de carreira. Com aquela cara de estátua da ilha de Páscoa, Fagner me pareceu, fisicamente, um boneco meio desengonçado. Mas como aquele senhor se revitaliza quando empunha violão e, contando apenas com uma dupla de músicos equipados com sintetizador, sanfona e uma pungente guitarra, é capaz de produzir um show eletrizante. É isso, não se surpreendam: achei o show deste Fagner pós-tudo um troço meio rock and roll, meio o "Cê ao vivo" de Caetano. Som alto, pegada adolescente e cabelos brancos. O que é que eu posso esperar mais?


E Fagner ainda cantou uma das músicas de mau gosto de que eu gosto mais: "Retrovisor". Conhece? "Vejo a manhã de sol entrando em casa..."

Da qualidade cicatrizante do camadara Dost


Titina me escreve enquanto se recupera da cirurgia nas narinas e conta que está lendo "Crime e Castigo". Dostoievisquamente, não sei se ela merece uma porrada dessas a título de pós-operatório. Mas, se está gostando, como celebra, o romanção quase asmático há de ter sua dose de mezinha. Eu, se fosse comigo, perdia logo o fôlego - tão necessário a quem operou o nariz. Mas vou socializar aqui a resposta que enviei pra ela. Pode ser que sirva para mais alguém que se prepara para enfrentar a sala de cirurgia, nunca se sabe:


"Crime e Castigo" é soturno, pesado, sorumbático, profundo, meio demoníaco no retrato que constrói. Li meio a custo, admito. Achei meio hard atravessar aquele mar turvo de palavras duras. Estranhei também a atmosfera russa, que me pareceu assim como uma mistura da branca e incômoda umidade londrina com aquela sensação de fim de mundo que acomete quase todo mundo naquela horinha que antecede o cair da noite - e isso tudo são sensações meio "gráficas", pois que derivadas tão somente do poder sugestivo das palavras impressas. Londes nunca me viu nem eu a ela. Rússia, então, é quase com uma terceira dimensão com a qual eu posso ter no máximo contatos imediatos de quinto grau - quer dizer, o abraço da leitura.


Então: ainda assim, viajei pela mente daquele Raskolnikoviski - cuja grafia, estou certo, não passa nem perto do que escrevi aqui, mas vocês entenderam - com um certo pavor na ponta dos dedos que virava cada página. Foi travessia difícil e a comparação que me ocorre agora, talvez pelo uso dessa palavra mesmo, é com as danações de um Riobaldo, as maquinações para-humanas que nos legou o bruxo João Guimarães. Só que o sertão mineiro, com sua solaridade ainda que sombria, sua luminosidade que tanto clareia quanto cega, pareceu-me mais próxima, mais terra-a-terra, mas aqui. "Crime e Castigo" é mais pra muito longe - um sertão estrangeiro cheio de musgo, paredões e miseráveis congelando em outras eras, sem a secura poeirenta e o calor telúrico de nós outros.

Casa e quintal



A primeira semana ainda não havia se completado e fomos parados na rua, simpática rua sem saída como todas as daqui, por um casal de vizinhos. Eu e Rejane, voltando, a pé, do supermercado ou da banca de jornais no comércio local aqui perto. Eles, os vizinhos, de carro. Pararam no meio do caminho, cumprimentaram, desejaram boas vindas, garantiram que a rua é boa, tranqüila, acolhedora - e se colocaram à disposição para qualquer eventualidade.

Duvido que esse tipo de recepção se enquadre no imaginário que você tem de Brasília, seja um leitor daqui mesmo ou de Natal, que são os dois times que jogam juntos aqui no Sopão. Esse comportamento amistoso, meio "nordestino" não é bem o que se espera de Brasília, cidade vista como fria, distante, dominada por políticos oportunistas e funcionários públicos ensimesmados. Pois bem, e quando se trata do Lago Norte, bairro só de casas próximos à ponta norte do lago Paranoá, a frieza aparente fica ainda mais presente, simbólica, representativa do imaginário da cidade. Pois o que estamos constantando é exatamente o contrário. A vida real, essa danadinha, insiste em nos contrariar. E se esse texto aqui fosse uma "matéria de aquário" (vide postagem anterior), o coitado do repórter ia ter que se desdobrar para comprovar a tese da capital que não passa de uma maquete insensível.

Está sendo assim a nossa mudança de endereço que, como vocês vêem, vai provocando uma série de outras mudanças na maneira como a gente se relaciona com a cidade. E, pra começar, houve isso: um casal de vizinhos (bastante antigos aqui na rua) parando a gente para desejar boas vindas. Descobrimos, em segundo lugar, que existe todo um mercado de serviços exclusivos para quem mora em casa com quintal e tal, do tipo que conserta portões empenados. Posso afirmar da extrema validade desse mercado, pois que dele já fiz uso mais de uma vez. A mais notável, claro, foi quando eu, tal como tantos outros novatos na religião da moradia em casa, empenei o portão de ferro da garagem ao sair com o carro achando que o dito cujo já estava totalmente aberto. O moço que consertou o portão e o motor do portão me disse que acontecem uns dez casos por dia como esse. Mas já tá tudo trancado de novo, fiquem tranquilos, com ou sem trema. Fora essas equipes do tipo "seus problemas acabaram", ainda há as turbas de piscineiros - nos mais variados níveis, bem ou mal motorizados ou equipados com bicicletas repleta de canos e peneiras - que circulam na área oferecendo seus serviços. E, naturalmente, os infalíveis pedintes que a gente vai atendendo na medida do possível, sem prejuízo do nosso humor nem das necessidades básicas deles.

Bernardo e Cecília descobriram, de um dia para o outro, o mundo dos insetos, a algavaria noturna dos besouros (especialmente quando logo antes ou imediatamente depois daquela chuva), a bica da varanda que canta forte quando chove idem, a flexibilidade da mangueira e a terapia que é o ato mero de molhar as plantas, que são muitas. Descobriram também que planta dá no pé e, no caso específico de Cecília, que é preciso esperar que as bichinhas amadureçam para que se possa arrancá-las do galho. Os gatos, ao contrário da expectativa, têm se portado muitíssimo bem: embora passem o dia ciscando nas terras vastas do quintal, não se aproximam do cachorro do vizinho. À noite, já estão todos em casa na hora do fechamento das portas (resistiram um pouco nos primeiros dias, mas era deslumbramento felino mesmo). O único problema, especialmente com um deles que costuma dormitar sob os arvoredos do quintal, é quando cai aquela chuvarada-surpresa. Outro dia isso aconteceu e eu só vi um vulto amarronzado passar voando bem diante do meu nariz, para imediatamente se materializar em uma coisa borrachuda derrapando no piso da sala. Ainda bem que o piso, assim como o quintal, é vasto. E ainda bem que as portas de vidro não estavam fechadas - caso contrário, lá se ia uma das sete vidas de Bolinha, coitado.

Tudo isso já indica o quanto nosso espírito anda sossegando depois que mudamos. A rigor, parece que moramos numa chácara meio afastadinha do ruge-ruge urbano. E aí, quando vamos trabalhar ou fazer supermercado ou levar Cecília na escola, cruzamos a ponte e então é como se estivéssemos "voltando" à cidade - mas só de passagem, claro, que o que a gente gosta mesmo é de ficar aqui ao longe, neste silêncio de sítio. Falar nisso, às dez da noite parece que já é uma da manhã - e intuitivamente acabamos dormindo um pouco mais cedo. Mas também é fácil acordar mais cedo, porque o que tem de passarinho trepado nessas matas de quintais cantando não é brincadeira. Quer saber? Aqui tem até galo cantando ao primeiro raiar do sol. Incrível: a um pulo da ponte do Brageto, quase colados no fim da Asa Norte, com o Eixão de bocão aberto esperando para aspirar o carro da gente junto com o de um monte de gente mais e, mesmo assim, o galo canta todo dia cedinho. Passeando a pé na rua, para exercitar o esqueleto e fazer um reconhecimento mais vagaroso, descobri, mais perplexo ainda, de onde vinha o canto do galo. Rapaz, de uma casa bonita como ela só, moderna, cheia de vidraças e paredes retocadas. E o galo e as galinhas na grama, como se estivesse num chiqueirinho de uma taperinha de sítio lá na Timbaúba, em Parelhas.

Eu não disse, lá no começo, que a vida real insiste em contrariar as "matérias de aquário"? Pois então: o melhor da mudança talvez seja isso. Contraria e, até agora, pra melhor. Tomara que continue. Desculpas pelo sumiço e voltem sempre que pelo contrariar da vida real, o Sopão vai ter cada vez mais assunto besta pra gente passar o tempo enquanto os galos cantam.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

A visão do aquário (Entreblogues)


O Sopão continua em obras, interditado para postagens regulares. Isso acontece porque o Tião do Sopão ainda não terminou de se mudar do apartamento na 316 Norte para a casa na QI 2 do Lago Norte. A distância entre um e outro nem é tão grande, e de fato o grosso da mudança já foi feito. Mas ainda estamos aguardando que a NET compareça para religar os cabos dos computadores, tevê e o combo todo que permite essa lambança virtual entre amigos de Brasília, Natal, Seridó e arredores. Aguardem só mais um pouco. Enquanto isso, fiquem com mais um texto da inigualável sessão "Entreblogues", agora uma postagem do blogue do jornalista Luiz Carlos Azenha, que, como sempre nesses casos, logo logo estará integrado à lista de links ao lado. O texto de Azenha é especialmente recomendado para os leitores que ignoram o lado escuro das redações de telejornais e jornalões - essas folhas consagradas que, não se admirem, são capazes de, em procedimentos absolutamente rotineiros, deixar na poeira qualquer Jornal de Hoje em campanha. Segue o texto:

PAU DE MATAR MATÉRIA

O aquário é uma sala envidraçada onde ficam os peixes graúdos de uma redação de Jornalismo. A mão pesada do aquário vai ficar cada vez mais pesada.Hoje, em qualquer redação moderna da TV brasileira, um editor-chefe de um telejornal pode acompanhar à distância a produção do texto do repórter. Graças à informatização. Você escreve num terminal, salva o texto, e acessando de outro terminal o chefe já tem uma idéia do que você está escrevendo.Problema maior, em minha opinião, é a pauta pré-definida. Se o repórter desmentir a proposta de reportagem corre o sério risco de se queimar.

Essa tensão, entendam, existe em qualquer redação. É óbvio que se você junta três jornalistas discutindo um texto haverá discordâncias. De estilo, de conteúdo, de hierarquização das informações. Mas, no passado, o papel do repórter era preponderante.Não é mais.

Meu amigo Tonico Ferreira costuma brincar que, nas redações, existe um certo pau de matar matéria. Refere-se aos temas relevantes que passam batido pelos telejornais. É que, com raríssimas exceções, a pauta é definida de cima para baixo. Idéias pré-concebidas no aquário acabam sendo entregues a repórteres, que saem às ruas em busca dos fatos e imagens que justifiquem as hipóteses. Curiosamente, a indústria do entretenimento incentiva a personalização do Jornalismo. É comum ver fotos de repórteres e apresentadores na capa de Caras ou de revistas de fofocas.

O repórter é protagonista, muitas vezes mais importante do que a própria notícia. Por outro lado, o papel preponderante do aquário incentiva à "despersonalização" das reportagens. É a vitória da forma sobre o conteúdo. O repórter é mais importante para o marketing do produto do que para a produção de informação.

Os textos são previsíveis, os entrevistados também, o tom de voz, o sotaque - tudo é tão homogêneo que dificilmente você se surpreende com alguma reportagem no telejornal. A criatividade, muitas vezes, fica por conta dos repórteres cinematográficos e dos editores de imagens, aqueles que são encarregados de escolher o que você vê na TV.

Porém, isso está prestes a acabar, se o modelo aplicado hoje aos repórteres for mantido.As imagens gravadas em disco - não mais em fita - serão descarregadas diretamente num servidor. Assim, os repórteres poderão assistí-las diretamente nos terminais de computador. Esse novo sistema também permitirá que a turma do aquário veja as imagens brutas, não editadas, assim que chegarem à redação. O que permitirá o microgerenciamento também das imagens.

Há outro modelo de gestão possível. Se aos repórteres for dada maior responsabilidade pelo conteúdo das matérias, teremos maior diversidade, garantia de pluralidade, uma produção heterogênea e um telejornal mais humano, porque narrado com a convicção daqueles que, em carne e osso, estiveram em contato com a notícia. Esse modelo descentralizado, no entanto, dificulta o uso do Jornalismo para a pregação ideológica.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Brasilia, segundo Zé




O texto abaixo eu encontrei no Blogão do Zé, que vem a ser o Zé do Correio Braziliense, um cidadão de Taguatinga City com espirituosidade suficiente para divertir quem estiver por perto dele, na redação do jornal ou num bate papo qualquer. Enquanto o Sopão permanece interditado para obras - digo, para a mudança, que não é uma ação, mas um processo, vocês sabem - vou enganando os leitores com esses entreblogues divertidos, mas também bastante atentos. É que, para além da graça da conversa do Zé, há em todo o relato a marca de Brasília, sua rotina, sua frieza em meio a esse calorão dos últimos dias. Vale por um cartão postal, por uma reportagem deturpada da Veja sobre esta cidade (como tantas que essa publicação e tantas outras já publicaram). Com vocês, uma amostra do Blogão do Zé (p.s: o link para o site do Correio está na lista ao lado):

O PARDAL E O BAILARINO

Aconteceu na última segunda-feira, por volta das 21h, no sinal entre a 502 e a 503 Norte. O pardal, aquela câmera big brother carrasco de quem vive correndo enlouqueceu. Enlouqueceu mesmo. Começou a disparar flashes a três por dois. Estacionei meu Fiat Uno 96, o possante, e fiquei observando a reação das pessoas.
Alguns motoristas chegavam a parar o carro sem entender nada. Atordoados, olhavam para o equipamento piscando e se perguntavam: "Será que fui multado? O que foi que eu fiz?"
Aquele cruzamento da W3 Norte de Brasília se transformou numa pequena ilha de caos. A rotina havia sido quebrada. As pessoas se entreolhavam embasbacadas. A lógica urbana estava rompida por alguns instantes, enquanto o pardal maluco não parava de piscar, flashes e mais flashes. Por sorte, nenhum acidente.
O único sinal de lucidez, de que a vida continua, foi dado por um catador de papel, que passava com seu carrinho abarrotado e a cabeça com muitas doses de cachaça.
Vendo a cena: luz piscando, flashes, como um estromboscópio de boate, ele não pensou duas vezes, começou a dançar, como se ouvisse um funk, um samba, um xote, um reggae. Uma dança tonta no meio da W3 Norte. Uma dança feliz. Os motoristas olhavam a evolução do catador de papel, do bailarino urbano, e sorriam. A evolução do catador os acalmava. Ficavam menos impotentes, percebiam que a vida, atrapalhada por alguns minutos, voltava ao normal. O anjo bêbado viera avisar que era só um defeito nos fios do pardal. Um mau contato.
Agora, os funcionários públicos já podem ir para casa tranqüilos, os playboys para as academias, as dançarinas espanholas para os braços dos seus namorados, porque o bêbado catador de papel dançou a música da "razão" poética. Aquela que não se explica, aquela que simplesmente se sente.
De dentro do meu Fiat pude constatar como a rotina machuca nossas vidas. Um pardal enlouquecido conseguiu atrapalhar todos que passavam por aquele cruzamento. Transformavam-se em kafikanianas baratas tontas. "Estamos nos transformando em autômatos, meros números dentro de uma máquina de quatro rodas e dentro de repartições. Frios indivíduos cumprindo tarefas diárias. Sempre as mesmas tarefas", disse eu, de olho no retrovisor, que refletia um Zé melancólico. Um Zé amargurado por carregar uma porção de chaves no bolso, muitas que sequer abrem alguma coisa. Chaves que representam o quanto estamos presos a coisas materiais.
Obrigado, catador de papel, bailarino das ruas, sua alegria nos mostrou o caminho e que nem tudo está perdido. Obrigado, por nos revelar que a vida precisa ser celebrada até mesmo nos poucos instantes de um pardal enlouquecido.
São Rubem Braga, lá do céu, deve estar dizendo: "Tristeza, pra quê, José?
Responderei simplesmente: "É que ando apaixonado demais".


Legenda: na foto, encontrada numa peneirada rápida no Google Imagem, "o" cruzamento de Brasília, aquele que fica no início da avenida W3 Norte, separando o Setor Comercial Sul do shopping Pátio Brasil. É algo assim como o cruzamento da avenida Rio Branco em Natal, na altura da Ulisses Caldas. Ou, no caso do Recife, daquelas travessias tumultuadas ao longo de boa parte da avenida Conde da Boa Vista.

Tempo quente

Se o critério for a temperatura, estamos a dois passos do inferno - ainda que, contrariando a balada da Blitz, sem sair de casa. Aliás, dentro de casa a situação fica pior ainda. Veja os detalhes na notícia abaixo, que o site do jornal Correio Braziliense está divulgando. E não deixe de reparar no detalhe da umidade, muito abaixo daqueles 18 por cento do título do filme de Nelson Pereira dos Santos:

"Esta terça-feira (28/10) foi o dia mais quente de todos os tempos de Brasília. Os termômetros da capital registaram 35,8º C, a maior temperatura desde a criação o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), em 1961. O dia mais quente antes registrado foi no dia 12 de outubro de 1963, quando a temperatura chegou aos 34,5º. A umidade relativa do ar ficou em 13%. Segundo o Inmet há previsão de chuva para esta quarta-feira em áreas isoladas. Só este mês a capital registrou o primeiro e terceiro dias mais quentes desde 1961. A terceira marca foi registrada na segunda-feira, 33,8º C."

A propósito: esta postagem climático-passageira serve também como pedido de desculpas pela frieza do blogue nos últimos dias. A falta de postagens nos dias imediatamente pretéritos - e que ainda permanecerá por alguns dias futúricos - deve-se um tanto de trabalho extraordinário e a uma boa circunstância caseira. Acontece que o Sopão real está mudando de endereço (real, não toque no mouse, meu amigo). Por isso, estamos às voltas com fios desconectados, cabos desligados e hardware jogados num canto de garagem esperando a hora da remontagem. Assim que for possível, voltaremos às atividades normais - se possível, com alguma chuva e calor de menos.

A propósito (2): leitora Edineuza, Rejane lembrou de você dos tempos da Residência Universitária e quer muito conversar com a sua pessoa. Por isso, pede que você deixe, se possível, e-mail nos comentários. Ou então nos envie uma mensagem para o nosso e-mail, tiaoerejane@uol.com.br. Assim que for possível - ou seja, quando o processo da mudança acabar - ela entra em contato. E volte sempre ao Sopão.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Olho vivo (Entreblogs)

A análise abaixo está no site Carta Maior e merece ser lido e relido. Como se conclui dessa leitura, é importante desde já manter os olhos e ouvidos bem abertos para a forma como os grande veículos de comunicação tratam temas que tangenciam não as atuais eleições - aquelas que, coitadas, já demos como perdidas - mas a próxima, a grande eleição de 2010.

Serra e a blindagem da TV Globo

Por Gilson Caroni Filho

A cobertura dada pela TV Globo ao confronto entre policiais civis e militares, nas proximidades do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, foi um show de culinária. Não bastasse o silêncio durante a tarde, a edição de 16/10 do Jornal Nacional se esmerou em cozinhar textos de uma só fonte para oferecer um produto pouco informativo, incompleto e sem qualquer rigor na apuração. Entende-se. A correta contextualização dos fatos poderia arranhar a imagem do governador José Serra. E de um modo de governar que tem na incapacidade de negociação o DNA tucano.

O interessante é que não estamos diante de um caso isolado ou de falha provocada por profissionais inexperientes e/ou incompetentes. Muito pelo contrário. Mais uma vez, a emissora da família Marinho, reuniu a nata da casa, para subordinar o exercício do bom jornalismo, e as responsabilidades a ele inerentes, ao projeto eleitoral do consórcio PSDB/DEM.As imagens de um conflito em que foram utilizadas bombas de gás lacrimogêneo, munição convencional e de borracha foram ao ar acompanhadas do texto que melhor convinha ao "padrão Globo" de divulgação de notícias. Para o telespectador, a intransigência tinha um só lado: policiais, sindicalistas e partidos políticos, com destaque para o PT, é claro. Não havia greve que se arrasta há um mês e muito menos uma categoria que tem a média salarial mais baixa que o piso de 11 estados. A registrar, uma disfuncão, nada mais.

O que Perseu Abramo destacou como “padrões de ocultação", fragmentação" e "inversão" foram a tônica de um noticiário mais empenhado em evitar desgaste de Serra na véspera do segundo turno das eleições municipais do que explicar os motivos que levaram a barbárie a tomar as ruas paulistanas.

Microfones abertos para o principal personagem a ser blindado e sua versão pautou a cobertura. O relato da emissora serviu como narrativa de corroboração“O governador José Serra disse que o protesto foi feito por uma minoria e que é ilegal. “Essa manifestação reuniu, no máximo, 1.000, 1.200 pessoas. A Polícia Civil tem 35 mil efetivos. Trata-se, portanto, de uma minoria. Muitos dos participantes não são da polícia, são de outros sindicatos, da CUT e da Força Sindical. Há partidos políticos por trás”. Serra também criticou o uso de armas pelos manifestantes. “Armas são entregues às polícias para defenderem o povo contra os criminosos. Não para servirem a movimentos políticos reivindicatórios. Reivindicação se faz na mesa conversando, não com violência. Isso nós não aceitamos”.

E se tivesse havido diálogo, a crise teria chegado a esse ponto? Confronto entre policiais não aponta para crise institucional? Será isso o que estamos vivendo no Estado mais rico do país? Onde ocorreu embates envolvendo forças de segurança antes? Em Belo Horizonte, há 11 anos. A que partido pertencia o então governador de Minas, Eduardo Azeredo? São questões por demais delicadas para que o jornalismo global possa fazer qualquer aprofundamento.

Mas o "melhor", em matéria de manipulação, estava guardado para o dia seguinte. Na edição de 17/10 do Bom Dia Brasil. Com ar contrito, o jornalista Renato Machado anunciou que "A população de São Paulo assistiu atônita a mais um exemplo da crise que assola a segurança pública no Brasil”.

A nacionalização do conflito esclarece o planejamento da agenda. Como no Brasil? É em São Paulo, e sob as ordens de um governador do PSDB, que polícia atira em polícia. Essa é uma anomia exclusivamente tucana. O ato falho talvez tenha revelado o que a emissora antecipa para 2010.

P.S: O link para outros textos da Agência Carta Maior está na lista ao lado.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O veranico


Depois da (falsa) inexistência de esquinas, da (indesejada) presença dos políticos e do (saárico) período anual de seca, Brasília tem um quarto fenômeno muito particular que, embora bem menos badalado fora do quadrilátero que demarca a capital no mapa do país, é tão característico desta cidade quanto os outros três já citados. Estou falando do “veranico”, que nos ataca neste exato momento e, se não é tão demorado quanto a seca e tão criticado quanto os políticos, certamente é tão presente, concreto e substantivo quanto as esquina que a cidade, contrariando a lenda, concretamente contém.

Não se enganem com a simpatia do nome que os especialistas lhe deram – “veranico”. A palavra sugere um little verão, uma miniestação de calor e águas – uma espécie de temporada condensada de praias (no caso aqui, piscinas e cachoeiras, que as temos muitas), sorvete,novos modismos, novos sucessos na música, na tevê e no cinema e por aí afora, coisas que Ipanema ensinou o país a cultivar sem culpas. Pois não é nada disso: o veranico, embora a palavra sugira o contrário, é, na verdade, um tirano meteorológico que sadicamente tira a paciência e o sangue (nem digo o suor, porque, astuto, o morador de Brasília não é de sair por aí suando, desperdiçando a pouca umidade que nossos corpos ainda conservam, Deus sabe como) dos habitantes dessa cidade.

Em rápidas palavras, o veranico é sim uma condensação – mas do pior que o seu velho pai, o verão, traz para os seres vivos. É, em suma, um período que vai de uma semana a quinze dias em que, sem a menor possibilidade de chuva na atmosfera, o calor mais insuportável se instala sobre a cidade às custas daquela não menos notória massa de ar quente que impede a entrada das massas de ar frias – que são, justamente, as redentoras que proporcionam as chuvas. O curioso é que o veranico não acontece dentro do período clássico da seca brasiliense, mas depois, quando a cidade, incauta, já se deixou enganar pelas primeiras e violentas chuvas. Você pensa que o pior do clima neste ano já ficou para trás e... tome um veranico para deixar de ser besta!

Dadas as explicações literais, vamos às metáforas que são, no fim das contas, o bolo da cereja desidratada. O veranico, meus caros, é assim como aqueles últimos cinquenta metros que separam o atleta matinal do ponto de chegada no cooper obrigatório. Você já vê o local onde finalmente vai poder parar de correr, se desdobra para chegar lá, mas parece que nunca vai conseguir. O veranico é o oitavo mês de gravidez, que faz a gestação de uma criança parecer um processo sem data para acabar, angustiando pais ansiosos e mães pesadas. O veranico é como a fome do meio dia quando o cidadão está a caminho de casa, praticamente à beira de uma hipoglicemia de tão faminto, e cai num engarrafamento que, com redundância e tudo, não sai do lugar. O veranico é como aquelas provas de resistência física que ilustram tantos filmes americanos sobre os preparativos para um soldado se tornar um “marine” antes de cair, completamente confuso, na guerra do Vietnã. Por mais que o coitado se esfarinhe tentando passar em todas as etapas, tem sempre um último teste em que ele, todo sujo de lama, roupas rasgadas pelos arames farpados e auto estima lá nas profundezas por causa dos gritos dos sargentos mais terríveis das telas, ainda precisa se superar caso queira ir morrer com muita honra lá pras bandas de Saigon.

Enfim, o veranico é o último teste de resistência que a providência impõe ao pobre ser humano, como a lembrá-lo de quão ridículo, pequeno, mesquinho e impotente ele é, enquanto alimenta seus sonhos de grandezas. Ou então, se não for tanto assim, é apenas uma piada de mau gosto com que a natureza se diverte à custa de nós outros.
Legenda: na foto que ilustra a postagem, a ponte sobre o lago artificial no Parque da Cidade.

A Crise, II (ou "Parece que foi ontem")


Corria o distante ano de 1982 ou 83 quando o cronista Carlos Eduardo Novaes, uma espécie de Veríssimo da época – por falar nele, por onde anda Novaes? – escrevia, acho que no Jornal do Brasil – também um esquecido fenômeno da imprensa daqueles tempos – que aquela jovem tão comentada nos últimos dias – os últimos dias da época, vocês me acompanhem, por favor – na verdade não era tão garotinha assim. Ela, na verdade, já fazia parte da nossa vida há anos, pra não dizer há séculos. E, se parecia tão novidade assim, é apenas porque a imprensa – na época, ainda não se usava dizer “a mídia”, mas, quer saber?, dava no mesmo – vivia de supostas novidades.

Segure-se na cadeira porque, depois de um exasperante parágrafo todo contaminado por travessões tão incômodos quanto amostrados, vou revelar quem era essa “ela” a quem Novaes se referia. Ora, ora, ela mesma, a Crise – aquela moça que se instalou na minha casa algumas postagens atrás e que, ao fim de alguns dias de abusos, terminei reparando que era até jeitosinha. Então: o fato é que, já em 82 ou 83, Novaes anotava que a tão falada Crise não era, de fato, novidade alguma. Que, na verdade, nós brasileiros nunca havíamos deixado de conviver com ela. A diferença que é a beleza, o fascínio, o esplendor perigosíssimo da jovem havia, enfim, sido descoberto pelos jornalistas, pelos economistas, pelos políticos, pelo high society, pelo grand monde, enfim, por quem dita a moda neste país.

Lembrei do texto de Novaes ao chegar a casa ontem, depois de perder mais alguns bilhões de dólares em outro dia de choro e ranger de dentes no mercado, que é onde, vocês sabem, eu muito trabalho. Abri a porta desanimado, pronto para pedir à Crise que, por favor, me preparasse um drink pra relaxar, quando notei, quase de passagem, que a aparência da minha hóspede mudara – assim como mudam as bruxas nesses filmes de fantasia tão rentáveis e tão comuns hoje em dia no cinema. Não era mais a jovem serelepe de perninhas até interessantes de alguns dias atrás, mas uma velha de faces encovadas, cabelos ralos e grisalhos, boca murcha, dentes subtraídos e olhar de bruxa mesmo. Foi aí que percebi que a Crise, na verdade, é uma velha chata que nos atormenta há décadas, pra não dizer séculos.

Ocorre que ela havia pego a vassoura e saído para dar uma volta por aí ali por volta de 1994. Andava entediada de tanto tirar coisas do saco de maldades para nos atormentar. Resolveu conhecer melhor o mundo. Estava cansada dos brasileiros. Não era pra menos: antes disso, havia nos aporrinhado com toda aquela tormenta política que terminou no suicídio de Vargas, com a indefinição que sucedeu a renúncia de Jango e antecedeu a posse de Jango, com o golpe de 64, como o supergolpe de 68, com a inflação dos 80, com o Sarney da Nova República, com o Collor da regressão dos 90. Quando a Crise viu o topete de Itamar no horizonte da vida nacional, achou que tava demais, sentiu-se estressada e fez as malas. Foi só por isso que tivemos um break da sua presença e respiramos um pouco com as bondades do Plano Real. Mas as férias da Crise acabaram – sabe-se lá por onde esteve nessa temporada de ausência, talvez a Bósnia, os pedregulhos da Europa central, quem sabe – e ela voltou em 99, esfarinhando o nosso tão amado, forte e intelectualizado Real. Veio Lula e, como a Crise tem horror a povo e a sapo barbudo, fez as malas de novo e foi matar as saudades das ex-repúblicas soviéticas onde passara férias inesquecíveis com um namorado fortão chamado Putim. E só por isso, novamente, nós brasileiros pudemos respirar um pouco aliviados, experimentar um inédita redistribuição de renda, uma nunca vista redução das desigualdades entre as classes sociais, uma espetacular ascensão econômica de pessoas que antes nadavam nas piscinas sujas da pobreza sem perspectivas.


Mas aconteceu de Putim, completamente apaixonado por uma certa Geórgia, dar um chute no traseiro da Crise que, só por despeito, resolveu não voltar para o Brasil, mas jogar-se nos braços de um velhote rico e ranzinza chamado Tio Sam, com quem seu ex-namorado tinha uma rixa notória, histórica e ancestral. Só por isso estourou uma tal de crise imobiliária nos domínios de Tio Sam que, pelo menos nos jornais, já chegou por aqui e confirmou a velha tese que Carlos Eduardo Novaes escreveu nos mesmos jornais – embora, naqueles tempos, eles, os jornais, fossem outros – de que ela, a Crise, sempre viveu entre nós. Por hora, está de férias nos estaites, mas tem feito tantos estragos por lá que é como se daqui não tivesse saído – afinal, o que é bom lá pra cima é uma delícia aqui embaixo, como se dizia nos tempos em que Novaes era nosso Veríssimo.
Legenda: na foto que ilustra a postagem, Cher, Susan Sarandon e Michelle Pfeiffer, as belas bruxas que atormentam o diabo Jack Nicholson em "As Bruxas de Eastwick", filme do australiano George Miller.

Novo homem de imprensa


Com vocês, o novo editor do Sopão. Coloque um charutão virtual na boca do rapaz e vocês estarão vendo o próprio editor do Planeta Diário, o jornal que revelou para o mundo o repórter Clark Kent. Ou então, a imagem virtual remeterá ao insuportável chefão de Peter Parker, outro não menos conhecido e diligente garoto prodígio da melhor imprensa de ficção do mundo. Se for o caso de abrasileirar nosso novo colaborador – digo, editor, e dos mais severos – convém nordestinizar de vez a figura e vê-lo, estilo caboré, como um Chatô reencarnado, pronto para açoitar os donos da mídia do presente com lições de moral nem tão morais assim oriundas dos meios de comunicação de um passado nem tão distante.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Lições de Brasília para Natal

“Cristovam, a História lhe fará justiça.” Essa frase, estampada em adesivos, apareceu colada em carros e ganhou as quadras, escolas e outros ambientes públicos do Distrito Federal quando, em 1999, o então governador Cristovam Buarque, ainda no PT, disputou e perdeu a reeleição para Joaquim Roriz – um político às antigas que dispensa apresentação para quem não mora em Brasília. Neste momento em que o eleitorado mais esclarecido, atento e consciente de Natal tenta digerir o resultado da eleição municipal, a frase emblemática, aquela outra derrota e as lições que ela proporcionaria me vieram à mente. A comparação pode ser muito útil para todos nós que, ainda perplexos, tentamos enxergar algum rumo e divisar alguma esperança para além dos próximos quatro anos.

Cristovam Buarque era um governador muitíssimo bem avaliado, assim como é o prefeito de Natal, Carlos Eduardo Alves. Só que Cristovam era mais ainda: havia se tornado uma referência no país com sua gestão à frente do Distrito Federal, implantando pela primeira vez em grande escala o programa Bolsa Escola – tucanos do interior de São Paulo eram os pioneiros na experiência mas ainda em escala municipal. A saúde pública no DF também havia se tornado destaque nacional com uma inversão simples feita pelo governo Cristovam: a adoção do médico da família, com o programa Saúde em Casa, que fazia medicina preventiva, indo à moradia das pessoas, no que se desafogava o já então frágil sistema público de saúde da capital do país, desde sempre prejudicado pelo fato de também ter de dar conta da população do chamado Entorno de Brasilia, um conjunto de cidades implantadas ao Deus dará que manda todos os seus doentes para as cidades satélites do Plano Piloto.

Em resumo, a marca do governo Cristovam, por esses e outros programas foi a inversão do que o político tradicional sempre faz: nada de grandes obras do tipo viadutos e novas avenidas; prioridade, sim, para programas sociais, que proporcionavam distribuição de renda (a Bolsa Escola é o grande precursor da Bolsa Família), apostavam firmemente na educação (o que também se conseguia por meio do Bolsa Escola, que obrigava as famílias a mandarem os filhos ao colégio) e melhores condições de vida para os mais necessitados, reduzindo o sofri mento que se vê nas filas de hospitais e ambulatórios.


Com base nesses pressupostos, era grande, como disse, a aprovação a Cristovam, principalmente nas regiões mais pobres da capital. Ele chegou a ser o quarto governador na escala dos mais aprovados pelos eleitores em todo o país. Ocorre que Joaquim Roriz, seu adversário, tinha o que se pode chamar de “carisma da ignorância” – essa característica que faz o brasileiro mais humilde se identificar totalmente com políticos que simulam estar no mesmo nível dele, seja pela linguagem utilizada (os erros de português de Roriz renderam tanto piadas quanto votos), seja pela performance que apresentam, outorgando a si mesmos uma falsa legitimidade que os faz os mais autênticos representantes do chamado “povo”.

Quando se tem a graça de um canal de televisão herdado do pai – que o conseguiu graças a favores prestados durante página infeliz de nossa história – para usar todo santo dia como uma peça de propaganda onipresente, esse tipo de político se torna realmente imbatível. E a vitória é tão certa quanto errado é o sistema supostamente público de concessão de canais de televisão que permite tal situação. Desse ponto de vista, a eleição de Micarla de Souza em Natal é uma imoralidade – nada menos do que isso. O agravante é o fato de o eleitorado de Natal ter dado a vitória à candidatada da TV Ponta Negra logo no primeiro turno, sem permitir o aprofundamento de um debate mais que necessário, ao menos para tornar menos desigual a balança dessa disputa. A perplexidade vem daí.

Mas vamos voltar ao paralelo entre Natal e Brasília, Cristovam e Fátima Bezerra. Todos vocês que agora tentam juntar evidências, cotejar elementos e encontrar alguma explicação para tudo isso não têm idéia de que, naquele 1999, aqui em Brasília, vivemos algo bem pior. A derrota de Cristovam jogou qualquer pessoa um pouco educada politicamente no fundo do poço. A pergunta era: como é que as camadas mais pobres da população, tendo se beneficiado das novas políticas postas em prática por Cristovam, tendo aprovado tais políticas e o próprio governador, preferiram votar em Roriz (porque era isso mesmo o que vinha de lá: elas gostavam de ter Bolsa Escola e médico da família, mas ainda assim preferiam votar em Roriz)? A resposta estava bem antes do governo Cristovam: estava no governo anterior de Roriz, que havia distribuído lotes de terra a granel, no que criou o que hoje são cidades gigantescas, como Santa Maria e Samambaia, nas franjas da capital brasileira. As pessoas eram gratas aos terrenos que receberam de graça e nem a melhor política de emancipação social do governo Cristovam mudaria isso. Havia o agravante de uma promessa jamais cumprida por Roriz, de aumentar os salários do funcionalismo, e uma certa soberba de Cristovam no debate da TV Globo, que salientou por oposição uma simpática humildade na figura de Roriz. Mas esses eram apenas mais dois elementos de última hora, porque o retrato geral da disputa já vinha se consolidando.
Abertas as urnas, houve choro, raiva, decepção. Houve, como está havendo agora em Natal, o não saber ganhar dos rorizistas. As declarações eram do tipo “vencemos os poderosos” – aqui, o “poderoso” era o jornal Correio Braziliense, que teve uma postura fortemente crítica a Roriz durante toda a campanha. Ameaçaram apedrejar os carros nos estacionamento do Correio. Depois da posse, a primeira atitude de Roriz foi denunciar Cristovam por ter deixado a residência oficial do governador em estado de abandono. Roriz, beneficiado pelas contas públicas em dia e empréstimos que Cristovam já negociara, teve dinheiro para fazer um governo do tipo obras para quem quer ver. O Distrito Federal ganhou novos viadutos – necessários, não é esse o ponto em questão -, uma rede de restaurantes do tipo 1 real e outras coisas bem palpáveis. Já o impalpável ficou em segundo plano – e, logo, logo, a capital do país começou a tomar conhecimento de situações dramáticas nos hospitais públicos do DF, onde gente morria por falta de condições de atendimento e tratamento. Faltavam remédios essenciais que meses antes estavam lá. E gente morria mesmo, não é força de expressão. As escolas – bem, até hoje a rede de escolas públicas de segundo grau em Brasília, aqui no Plano Piloto mesmo, sofrem com a falta de professores de física e química.
Mas aquela história de “A História lhe fará justiça” não termina aí. Veio o segundo governo Roriz – sim, meus amigos, ele se reelegeu, portanto, estejam preparados para a possibilidade de mais de quatro anos com dona Micarla no Palácio Felipe Camarão. Ocorre que, na segunda gestão, não havia mais os recursos que Cristovam deixara engatilhados, não havia mais a coesão do grupo político de Roriz que também lhe garantira a eleição e reeleição – logo veio o racha que deu origem à candidatura vitoriosa de José Roberto Arruda – e o resultado foi um governo pífio, incolor, inodoro. Ou melhor: como se saberia mais tarde, um governo marcado pelo velho e previsível roubo de dinheiro público.
E é aí que aquela frase dos adesivos se confirma. Roriz encerrou o governo e se elegeu senador – mas, vejam, não tão facilmente quanto se previa, vez que seu concorrente, o então ministro dos Esportes Agnelo Queiroz, do PCdoB, teve votação inesperadamente elevada, embora não suficiente para derrotar o governador. Com Roriz já exercendo seu mandato no Senado, o Ministério Público anuncia a descoberta de um esquema gigantesco de fraude e desvio de dinheiro do Banco de Brasília, o BRB, em favor do ex-governador e seus aliados. Pressionado, Roriz renunciou ao mandato para não ser cassado. E assim estamos. Cristovam, enquanto isso, permanece lá, no mesmíssimo Senado de onde Roriz foi defenestrado.

A História, afinal, fez justiça a Cristovam – que não precisou mover uma palha para isso. É o que provavelmente vai acontecer com Fátima Bezerra, que vai se tornando com a derrota atual uma espécie de Henrique Alves de saia: aquela figura que não consegue se eleger para o executivo, embora tenha o mandato de deputado federal sempre assegurado. E só estou dizendo isso porque me vem à memória outra comparação: Micarla e Aldo Tinoco Filho. Assim como desta vez demonstrou apoiar Fátima (por injunções específicas, num apoio que não sei até que ponto ajudou ou prejudicou), Wilma Faria, na época prefeita de Natal, apadrinhou como seu candidato o engenheiro sanitarista Aldo Tinoco. No dia da eleição, naquela época pré-urnas eletrônicas, Henrique foi dormir certo da vitória e acordou derrotado. A diferença foi absurda – 900 votos, salvo engano – mas Aldo havia sido eleito. A cidade quedou paralisada, mas nem desconfiava que iria virar geléia. É que Aldo, com a ficha técnica que tinha, não assustava. E o que aconteceu? Ao final da administração Aldo, Natal parecia um chiqueiro a céu aberto, tomada pelo lixo por causa de uma greve infindável na Urbana, com serviços públicos precarizados e uma completa sensação de abandono entre os cidadãos por parte do poder público. A imagem final que a cidade tinha do prefeito oscilava do festeiro deslumbrado ao gestor irresponsável. Era a História, do seu jeito muito particular, fazendo justiça a Henrique – e digo isso deixando claro que tenho quase nenhuma simpatia política pelo filho de Aluízio Alves.
Uma última comparação, embora algo exagerada diante da espessura da candidata eleita em Natal: o que dizer da justiça que a História fez anos depois do embate entre Lula e Fernando Collor? Por falar nele, é inevitável não registrar a semelhança entre o que ocorre neste exato momento em Natal e o que se passou logo após a vitória de Collor em 1989. É o mesmo comportamento rasteiro de vitoriosos ressentidos, a mesma manipulação das emoções mais primárias do eleitorado menos educado politicamente. Essa coisa de “agora a Prefeitura vai ser do povo”. Nada mais vazio. Nada mais Roriz. É como se vitória de Collor se repetisse quase vinte anos depois em Natal. Se nada mais significasse o tamanho do atraso que se deu no último domingo, só essa declaração da prefeita eleita já seria suficiente para demonstrá-lo.
A constatação final, à guisa de previsão, é de que agora resta esperar que a História faça justiça a Fátima que, imagino, também não precisará mover uma peça do tabuleiro do xadrez político para ver tal fato se concretizar. Foi assim com Cristovam, foi assim com o Lula de 1989, foi assim com o Henrique que perdeu para Aldo de maneira tão vexatória quando Fátima perdeu agora para Micarla com essa decisão em primeiro turno. Ao fim e ao cabo, eu fico com a interpretação pré-resultado que nos deu o jornalista Tácito Costa: Natal vem há tempos sendo assediada politicamente por um tipo de candidato populista, manipulador, inculto (mais que isso, que tripudia de qualquer forma de cultura) e, mais cedo ou mais tarde, um deles chegaria ao poder municipal. Tácito disse mais: que talvez seja preciso que isso aconteça, para que a cidade tome consciência dos estragos que a política feita por tais candidatos pode causar na cidade e no exercício da cidadania por parte de seus habitantes.
Pois, então. Chegou a hora. Mas o tempo, dizia seu Cazuza, não pára. E a História é ardilosa no seu jeito todo matreiro de fazer justiça a quem se aproveita de disputas desiguais, de eleitores manipulados e de cidadania jogada fora.

P.S: Da derrota de Fátima, extrai-se pelo menos um fato positivo: não teremos de ver a companheira sendo tutelada por dona Wilma e seu Garibaldi à frente da Prefeitura.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Borboletas

Se amanhã, você chegar à repartição municipal e for encaminhado para o programa de tevê mais próximo, não reclame. Se o nível de nitrato na água chegar a um nível insuportável, nem pense em chamar as autoridades – convoque urgentemente uma repórter, de preferência loura, bem penteada e falante como um papagaio. Se notar que a cidade está sendo administrada como um loteamento mercantil, conforme-se: é assim que funcionam os programas de auditório. Se achar que foi mal recebido pelo assessor do assessor do auxiliar do escritório do chefe do gabinete do secretário municipal, tome aquela providência ao alcance de todos: dê uma vaia nele, pois é esse o código de aprovação ou reprovação vigente na terra da inteligência jogada fora.

Não vá passar vexame espantando-se caso encontre na rua um multidão de tietes de terninho, saltinho e risinho no rosto sempre que a despachante municipal estiver em visita a uma obra qualquer. Contenha-se ou, no máximo, misture-se à massa para não chamar demais a atenção – que este, meu bem, é o crime supremo na nova geração do sim, claro, por que não?, agora mesmo, só se for agora. Nas datas festivas, esqueça o teatro popular – a gente já enjoou desses autos todos. Programe sua cabeça para assistir a shows animados com a presença de figuras que levantam qualquer audição com sua força de comunicador popular. Nas bibliotecas, finja-se de morto. Nas livrarias, socorra-se com a sessão de auto-ajuda. No cabeleireiro, fique à vontade – agora este é o ambiente supremo da cidade do Sol.

Em Ponta Negra, reclame um pouco do serviço do quiosque que é para não lhe confundirem com um bocó qualquer. No Praia Shopping, curta sua nova vida variando as cores e os tecidos conforme as mudanças de estação e nunca deixe de simular a importância de se estar a par de tudo o que há de mais atual. No Miduei, reprove – mas com aquele ar de pouca importância – o nível da freqüência. No Centro da Cidade – mas quem vai ao centro da cidade, querido? Ah, só se houver um evento muito especial. Sinto contrariar mas, naturalmente, você terá que ir ao Centro da Cidade, pois que a sede da Prefeitura – aquele prédio precisando de um retoque há muito tempo – fica por lá. Não tem problema: use o carro – com películas, claro. Na Ribeira, faça de conta que é turista como a moça daquela canção de Chico Buarque.

Canção de quem, amor? Deixa pra lá. O importante neste momento é que você se convença da importância da mudança que vem aí. Se você achava que a cidade estava ficando estressada, abusada, nova rica e tão pedante quanto ignorante, não tema: o futuro imediato anuncia algo muito pior. E você precisa se adaptar, não é mesmo? Comece a treinar agora mesmo. Repita, olhando-se no espelho mais próximo: tudo vai ficar melhor porque eu sou linda como uma borboleta!