terça-feira, 22 de junho de 2010

Dunga X Globo


O melhor da Copa, até agora, tem sido esta mais do que oportuna briga entre Dunga, meu novo ídolo, e a Rede Globo. A cultura digital está mostrando que nunca houve uma Copa como esta, em se tratando de cobertura da imprensa. Dentre os milhares de textos à disposição de quem quiser se aprofundar no assunto (recomendamos, pra começar, o blogue "Vi o Mundo" do Luiz Carlos Azenha, link ao lado) o Sopão destaca e transcreve, abaixo, postagem do Balaio do Ricardo Kotscho:

Dunga vira a Geni, trégua para os políticos

De volta ao frio e à chuva da minha terrinha paulistana, depois de quase dois meses viajando dentro e fora do país, dou uma olhada geral na imprensa e descubro que algo mudou.

Nos últimos dias, o alvo predileto da imprensa passou a ser o Dunga, que virou a nossa nova Geni. Jogam tantas pedras nele que os políticos, o presidente e o governo ganharam uma trégua, como eu já previa aqui antes da Copa do Mundo começar.

O mais curioso da história é que a seleção brasileira, com duas vitórias em dois jogos, foi a primeira a se classificar para a próxima fase do Mundial, não há nenhuma crise na equipe e continuamos sendo um dos favoritos para o título.

Se não está encantando as platéias com um maravilhoso futebol, pelo menos o time de Dunga vai dando conta do recado numa Copa muito equilibrada em que até agora não apareceu nenhum bicho papão.

O maior problema do técnico da seleção não está dentro, mas fora do campo, no seu eterno embate com os coleguinhas da imprensa esportiva. A coisa desandou de vez quando ele comprou uma briga feia com a TV Globo no domingo à noite, após a vitória contra a Costa do Marfim, ao proibir entrevistas exclusivas de jogadores no “Fantástico”.

Já estava tudo acertado com o presidente da CBF, Ricardo Teixeira, mas o marrento Dunga bateu o pé e não liberou ninguém. Ao perceber o que estava acontecendo nos bastidores durante a entrevista coletiva, após o jogo, soltou os cachorros em cima de um dos repórteres da emissora, foi tirar satisfações com outro, dinamitou as pontes e, na mesma noite, o bafafá acabou ganhando mais destaque do que o próprio jogo.

Lembrei-me do que aconteceu comigo, em 2002, logo após o anúncio da vitória de Lula nas eleições presidenciais. Como assessor de imprensa, tinha combinado uma coletiva do candidato eleito num hotel, mas, sem eu saber, o comando da campanha já acertara com a Globo para que ele desse, antes, uma entrevista exclusiva, ao vivo, para o “Fantástico”.

Claro que, nos dias seguintes, quem virou a Geni da imprensa fui eu, obrigado a ouvir desaforos de todos os outros jornalistas que estavam no hotel esperando a coletiva.

Enquanto Serra e Dilma murcham no noticiário, com sabatinas, entrevistas e eventos sem nenhuma repercussão, Dunga virou assunto de todas as manchetes, matérias, colunas, blogs, até de quem sempre achou o futebol um assunto menor, coisa de ignorantes e fanáticos. De uma hora para outra, ele tomou o lugar de Lula como inimigo número um da imprensa livre.

Há, de fato, algo em comum entre os dois polêmicos personagens: mais do que o resultado do trabalho deles, o que se contesta é o seu modo de lidar com a própria imprensa, por não lhe dar a devida importância e a atenção que a instituição julga merecedora.

Não que eles não mereçam críticas, como qualquer figura pública, muito ao contrário, mas o espírito de manada do linchamento dá a impressão de que virou uma gincana para ver quem joga mais pedras no alvo do momento.

E se Dunga perder a próxima partida, o que pode acontecer? Ricardo Teixeira vai defender o seu treinador ou jogá-lo às feras? Pelo retrospecto, eu não tenho muitas dúvidas. Façam suas apostas, senhoras e senhores.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Bill and Bil


Quem frequenta a praia de Ponta Negra há de conhecer – ou ao menos já ter avistado – a figura impávida de Bil Pinto. Vendedor de CDs piratas do tipo que passa o domingo pra lá e pra cá entre o hostéis estrelados da Via Costeira e o pé do Morro do Careca, Bil Pinto se destaca entre seus colegas ambulantes pela destreza verbal, pelos reflexos rápidos quando se vê numa enrascada, e sobretudo pela lábia com que empurra pilhas e pilhas de calcinhas pretas e outras bandas do gênero para argentinos e nórdicos ansiosos por se tropicalizar o mais rápido possível.

Semana passada, Bil Pinto saiu de sua rotina e resolveu mudar o itinerário de seu carrinho de CDs. Decidiu se arriscar longe da praia, numa área mais dominada pelos bacanas. Afinal, pensou Bil, bom gosto musical não depende exatamente de dinheiro no bolso. De longe, ele viu a porta de uma universidade famosa e farejou uma boa possibilidade de vendas. Caprichou na arrumação dos CDs, mas preferiu não ligar o som do carrinho. Alguma coisa mais discreta poderia fazer mais efeito, pensou.

Era engano: o tempo passava e ninguém dava bola para o carrinho de Bil, cujo nome verdadeiro só poderia ser mesmo Severino. Pra quem não sabe ou esqueceu que foi pobre, Bil é o apelido mais frequente para quem se chama Severino em terras nordestinas. Não me pergunte o motivo – o que me interessa aqui é apenas a confusão que isso pode causar. Confusão que começou quando nosso Bil, ex-agricultor nascido em São José de Mipibu, resolveu pedir um copo de água na porta da universidade para aliviar o calor de rachar que o sol quente provocava. O porteiro da universidade olhou desconfiado, com aquela cara de preconceito autodefensivo que certo tipo de pobre nutre diante de outro pobre, e pediu um minutinho. Sumiu lá por dentro da universidade por um bom tempo.

De repente, chegou um bando de soldados, tudo de cara fechada como se estivesse indo pra guerra no Iraque. Depois, apareceram do nada uns helicópteros gigantescos do tipo que Bil, coitado, nunca tinha visto na vida. Um bonde viaturas policiais também chegou cantando os pneus, que nem nos filmes de assaltos que param Nova York e fazem sucesso nos DVDs que Bil vende na surdina. De um instante para outro, tudo em volta virou um ruge-ruge cinematográfico em torno de Bil que, esperto como sempre, tratou de fechar o carrinho de CDs. O jeito era procurar uma maneira de escapar dali de fininho, porque aquele alvoroço todo tava com a maior bandeira de que se devia a ele mesmo. Quem mandou deixar o bem-bom da praia e se meter na região dos bacanas? Pintou sujeira, geral.

Mas o nosso serelepe Bil Pinto não conseguiu escapar a tempo. Logo sentiu um puxão no braço. Era um soldado – um man in black dos mais enfeitados, com uns troços reluzentes na farda e no quepe – levando ele pra dentro da universidade. Preso, só pode – pensou Bil. Quando notou, o vendedor estava sendo empurrado para uma sala toda branca, piso brilhando que dava pra ver o fundo das calças, mesona de tampo de vidro de último tipo, uma tremenda tevê de plasma de dez milhões de polegadas na parede e, em volta, uma legião de engravatados – alguns tossindo, tentanto disfarçar o nervosismo. Bil não conseguia entender nada e muito menos por quê.

Ficou aquele clima estranho. Um silêncio. Baita constrangimento. Mas ninguém tinha coragem de fazer ou dizer nada. Bil estranhou, beliscou-se pra saber se não era um pesadelo, e nada. Tudo parado, instante suspenso, nem uma mosca para desanuviar a tensão. Foi quando uma senhora de cabelos meio avermelhados, óculos grandes, batom gritante e sorriso de dentes de tubarão aproximou-se do vendedor e perguntou, como quem fala com um cachorro de rua que insiste em se deitar em porta de mansão:

"Meu filho, quem é você?"
"Prazer, Bil."

A senhora de dentes grandes e cabelo com laquê se dirige a um engravatado, visivelmente nervosa, e o repreende, dizendo que se tratou de um engano absurdo e indesculpável. Não termina de dar a bronca e é interrompida pelo vendedor:

"Bil Pinto, minha senhora. Algum problema? Dá pra liberar minha pessoa agora?"


Ave, Clinton


Azar de Bil Pinto ter escolhido justo aquele dia para vender seu peixe na porta da universidade. Fosse outra data qualquer e ele não teria policiais de última geração, helicópteros “de Avatar” e nem mesmo a dança das viaturas imitando “Um dia de cão”. Bil Pinto, com um “ele” só e um “pê” de “pato”, passaria despercebido como um lote de Cds piratas que acabou de chegar para os vendedores do centro da cidade.

Em compensação, sua fictícia presença coadjuvante no cenário da visita do outro Bill, o Clinton, a Natal serve de espelho para o nosso recorrente deslumbramento diante da celebridade estrangeira. Não que a celebridade tenha culpa disso – e Clinton, pelo que se disse e se contou, portou-se em Natal como um cidadão comum até quando lhe foi possível, andando como um turista desavisado pelo Centro de Artesanato de Ponta Negra. O problema não é deles – é nosso. E nem a presença em massa de soldados americanos durante a Segunda Guerra nos valeu na hora de assumir um ar mais altivo e menos subserviente diante de tais visitantes. Ao contrário, parece que favoreceu ainda mais a qualidade espessa de nossa baba frente ao ser supostamente superior.

Não deve ser à toa que, enquanto 300 homens garantiam a segurança de Bill Clinton em Natal, a insegurança cada vez mais preocupante na cidade fazia seus estragos longe dos locais onde estava o ex-presidente norte-americano. Bil Pinto mesmo ficou sabendo, depois, que uma tia aposentada dele foi assaltada naquele mesmo dia ao sair de uma casa lotérica em Nova Descoberta. Quando parou para pensar em tudo que lhe aconteceu na porta e lá dentro da universidade, Bil Pinto concluiu, usando os conhecimentos que perturbam sua mente toda vez que assiste ao Jornal Nacional:

"É o provincianismo, estúpido!"


*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN), uma semana após a visita de Bill Clinton à capital potiguar.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Rosa de Pedra na tv



O Sopão reproduz a boa notícia que apareceu na "Tribuna" de hoje:

A banda potiguar Rosa de Pedra estará no programa Som Brasil desta sexta-feira, na Rede Globo, no especial sobre o cantor Dominguinhos. A gravação do Rosa de Pedra aconteceu no mês de março. O especial junino em homenagem a Dominguinhos será exibido a 01:30hs da manhã (depois do Programa do Jô). Além da presença do Rosa de Pedra em três músicas, o especial terá Paula Fernandes, Zizi Possi, a filha Liv Moraes, entre outros. A apresentação é Camila Pitanga.

Na atração, Dominguinhos cantará “Xote da navegação”, “Lamento sertanejo”, “Eu só quero um xodó” e “Isso aqui tá bom demais”. Zizi Possi o homenageará com “Dedicado a você”,“Gostoso demais” e “Contrato de separação”. Paula Fernandes, cantora e compositora sertaneja de Minas Gerais, se apresentará com “De volta para meu aconchego”, “Quem me levará sou eu” e “Abri a porta”. Já o grupo potiguar Rosa de Pedra, que mistura guitarra e rabeca no som que produz, interpretará “Pedras que cantam”, “Tenho sede” e “Sete meninas”.

O Som Brasil tem direção-geral e de núcleo de Luiz Gleiser e direção de Cacá Silveira. O programa é escrito por Flávio Marinho e Rafael Dragaud, a produção musical da atração leva as assinaturas de Guto Graça Mello, PH Castanheira e Ricardo Leão e a coordenação musical é de Wagner Faria.

Ecos de Poti no Planalto


É curioso morar em Brasília, ligar o rádio casualmente em casa ou no carro a caminho de trabalho e de repente ter a impressão de estar em Natal. Essa é uma sensação freqüente para potiguares que vivem na capital do país e cultivam, de longe mas nem tanto, a admiração pelo trabalho da cantora e compositora Valeira Oliveira. Porque é isso mesmo o que acontece: você está em Brasília, liga o rádio casualmente em casa ou no carro a caminho do trabalho, e ouve... Valéria. Não em todas as rádios, claro: apenas na Nacional FM, justamente a melhor da capital do país em bom gosto musical, ainda que essa definição esteja sujeito a uma série de ponderações.

Danem-se as ponderações: a Nacional FM (que você pode ouvir na internet; veja o endereço ao final do texto) é a melhor rádio numa cidade muito bem servida neste serviço (se você ouve a rádio Senado, que é retransmitida para Natal, vai concordar comigo). E quando você ouve a Nacional todos os dias, escuta Valéria cantar com uma freqüência bem maior do que esperava. Quase sempre são faixas do CD “Imbalança”, um dos últimos que a nossa artista gravou na fase em que se dividia entre Natal e o Japão. Mas não é somente no rádio que a gente encontra Valéria em Brasília. Há poucos meses, o Lago Norte, uma das áreas mais nobres da cidade, abriu as portas de uma nova unidade de um shopping da rede Iguatemi. Uma das lojas de maior destaque é a Livraria Cultura, a segunda desta rede em Brasília.

Pois passeando pela livraria, tive uma sensação bem parecida com a de estar ouvindo a Nacional FM e de repente escutar o canto de Valéria. Estava lá, fuçando as prateleiras de CDs, quando esbarrei na capinha azul, bela e sugestiva, do disco “No ar”, o mais recente de Valéria Oliveira. Foi como se eu estivesse no Midway numa tarde de sábado sem compromisso – com a diferença, lamentável neste caso, de que o shopping natalense, salvo atualizações, não tem loja de CDs, essa casa comercial em processo de extinção, e de que não é tão fácil assim achar o CD de Valéria, seja este ou os anteriores, à venda no comércio regular de Natal.

Estas duas ocorrências – Valéria cantando na Nacional FM e o seu novo CD à venda na Livraria Cultura de um shopping no Lago Norte – resultam na ironia das ironias: a constatação de que hoje talvez seja mais fácil ouvir Valéria no rádio em Brasília do que em Natal (apesar da Universitária FM, embora esta seja uma emissora segmentada e de expressão bem menor do que a citada rádio brasiliense). A segunda ironia é o fato de também ser mais fácil, hoje, encontrar à venda o novo CD de Valéria na capital do país do que na capital do estado onde ela vive, trabalha, divulga seu canto e sua arte. Pra não buscar motivos mais aborrecidos, podemos simplesmente comentar isso usando um chavão que ajuda a não explicar nada: são coisas da vida, não é, Valéria?

Pelo menos em Natal é fácil ouvir Valéria cantar ao vivo, ali no palco à nossa frente. Mas, a julgar pelo andar dessa carruagem de som, é bem possível que, em breve, quem sabe, nem essa vantagem tenhamos (aqui não tenho como não me situar na posição de quem efetivamente vive em Natal), já que Valéria começa a explorar a noite paulistana, com eventos como o show na casa Tom Jazz que foi um dos mais recentes destaques de sua agenda.

Para ouvir a Nacional FM na internet, clique aqui.

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

Leia na Hamaca - Cecília vê a Copa



"Cecília, pra completar, ainda me perguntou daqui a pouco: "E quando a bola entra no cacho..." "No cacho, Cecilia?" E a ficha rolando na cabeça, procurando o buraco onde cair. Até que: "Ah, bom. Não é bola no cacho, não, Cecília; é boa na rede."

Continue lendo aqui.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Olha aí


O vozeirão convoca, cantando: "Olha aí..." e o samba se instala e evolui, suave e cadente, soberanamente como rei europeu algum jamais poderia. É Walter Alfaiate, na faixa que abre o CD que tem o mesmo nome deste samba-celebração: "Olha aí". Com o atraso regulamentar, o Sopão lamenta aqui a ausência do carioca que foi meio alfaite, como dizia seu nome artístico, e meio sambista, como provam os CDs que ele deixou. Conheci Walter Alfaiate numa idade em que não acreditava poder encontrar nada mais de muito novo em termos de música brasileira - sobretudo se tal novidade fosse um velhão cheio de ginga vocal que cantava como quem evocava a velha guarda de tempos outros.

Mas Rejane, que me levou a ouvir não apenas um mas muitos cantores e cantoras que eu desconhecia, um dia me falou deste Walter, que fazia uma música parecida com aquelas que o velho Chico Torres, meu sogro, apreciava. Chico Torres - bom lembrar dele agora - era um sujeito com cara de poucos amigos que, na intimidade, revelava-se um humorista fino. A coleção de apelidos que ele colocava em quem passava por sua vista - incluindo este que vos escreve agora - comprova a ironia que habitava aquela mente só aparentemente arredia. E Walter Alfaiate nos levava mesmo aos Franciscos Alves que faziam a mente de seu Chico ferver em paz.

Além do mais, seu Chico tinha com Walter Alfaiate uma coisa em comum, ao menos para aqueles que o conheciam além de um mero "bom dia": era um homem muito elegante por dentro, embora por fora andasse na rua calçando havianas surradas e vestindo calças pega-pato. Puro disfarce: o estilo estava lá, pronto a brilhar aos olhos de quem tivesse capacidade de enxergar. E Walter Alfaiate, meu caro, tem um nome que sozinho já denota elegância.

Era pra falar de Alfaiate, mas acabei esbarrando involuntariamente em Chico Torres - e isso há de ser algo de bom neste momento em que a vida da gente, por aqui, começa aos poucos a entrar de novo nos eixos. Mas até nisso o samba "Olha aí", um dos que imortalizaram Walter Alfaiate, ajuda na construção de uma idéia coerente que costure a emergência da postagem. Veja só o que diz a letra da música que ouço na cabeça enquanto escrevo essa conversa aqui:

"Apos a batucada pela rua / Quarta-feira a vida continua".

De Budapeste a Tangará


Para escrever um livro sobre isolamento, desamparo e falta de integração, o escritor Bernardo Carvalho abalou-se até São Petersburgo, na Rússia. Depois de uma temporada curtindo a estranheza de ser um brasileiro na histórica cidade que já se chamou também Petrogrado e Leningrado, o escritor deu à luz o romance "O Filho da Mãe", bastante festejado como outros de sua lavra. Já o músico, compositor e também escritor Chico Buarque conta que jamais pisou na Budapeste que serviu de cenário e de título para uma de suas ficções mais recentes. Quando leio notícias como essas, sinto uma saudade danada de Tangará, cidade por onde passei inúmeras vezes, de ônibus ou automóvel, mas sempre em movimento, e onde em raras ocasiões botei os pés, literalmente falando.

Explico a conexão que tento estabelecer aqui entre São Petersburgo, Budapeste e Tangará: todas têm suas histórias para contar e, sendo assim, todas, independente do tamanho, da expressão demográfica e da fama histórica ou mundana, têm potencial para traduzir conceitos que assombram o ser humano desde os primórdios. A diferença, a favor de São Petersburgo e Budapeste - e contra nossa humilde Tangará - é o fato de que, pela natureza do funcionamento do mundo, sobretudo do mundo literário, e em particular do mundo literário atual, somente as duas primeiras têm capacidade de desenvolver aquele potencial. Se Tangará tem algo a dizer, falta-lhe charme para atrair um Bernardo Carvalho. Afinal de contas, se o caso era encontrar um lugar para um escritor de extração paulista como ele experimentar a sensação do deslocamento no meio, Tangará servia tanto quanto a célebre cidade russa.

Tangará é também, por sinal, uma excelente locação literária caso se queira erigir um romance cool e descolado sobre a natureza do transitório e do efêmero. Cidade de beira de estrada, rasgada e marcada pela banalidade sertaneja da BR-226, Tangará, com sua flora de lanchonetes e bares à margem do asfalto, sua carne de sol servida em sanduíches para passageiros de agonias outras, teria tudo para sediar a anti-epopéia desses personagens sem nome, sem rosto, sem futuro e sem passado que marcam a literatura intangível dos dias atuais.

Serra do Cajueiro

E não só Tangará: o mapa do Rio Grande do Norte está coalhado de cenários urbanos ou rurais prontinhos para o romancista angustiado utilizar como pano de fundo dos conceitos que tenta explorar via literatura. Vejamos: que melhor atmosfera para uma ficção que desvende os mistérios da placidez que não aquela das cercanias do açude São Bernardo, em Caicó? Se o caso é escrever uma boa narrativa que investigue a natureza da vastidão que contempla a condição humana, que tal largar tudo - emprego, família e aquela bolsa providencial - e se internar durante um mês à sombra das umburanas da Serra do Cajueiro, em Florânia?

E assim por diante. Para especular, pela literatura, sobre o vazio que atinge o ser humano neste novo milênio é provável que ninguém precise viajar para as tundras finlandesas. Nada disso: especialmente para nós, potiguares, basta passar uma quinzena apenas com a roupa do corpo numa cabana improvisada à sombra do Boqueirão de Parelhas, aquele intervalo entre serras que tão logo é avistado ao longe já instala automaticamente uma interrogação quase instintiva na mente de quem o divisa.

Outro tema bem contemporâneo é a frieza. Neste caso, pode parecer que as terras nordestinas como um todo, devido à sua quentura não apenas física mas sobretudo cultural, não são muito propícias como matéria prima da boa literatura. Ledo engano: aqui mesmo no país do elefante, temos Lagoa Nova e Cerro Corá, duas cidade que, pelo menos no meio do ano, sabem se oferecer como orquídeas inspiradoras para o filósofo disfarçado de ficcionista que busca elementos sobre os quais trabalhar a qualidade das coisas que não se deixam derreter.



Monte do Galo

Jogo rápido: para um romance sobre o rancor, a receita é contemplar coroas-de-frade na Gruta da Caridade, em Caicó; para uma grande obra sobre os aleijões subjetivos da alma, experimente mirar as escarpas pontiagudas do Monte do Galo, em Carnaúba dos Dantas; para um tratado literário sobre a solidez das coisas imutáveis, mude-se para o topo da Serra da Rajada, também em Carnaúba; para investir nas danações da brevidade da existência, colecione ocasos em Serra Negra do Norte; para espelhar em palavras a angústia de certas opacidades da vida, instale-se à beira do Poço do Saturno, no Gargalheiras de Acari.

De tudo isso se deduz que, para escrever sobre as geografias que vão por dentro do homem - afinal, o tema geral de toda a ficção praticada desde que o mundo é mundo, seja de boa ou má qualidade - não é preciso ir muito longe. Muito a menos a São Petersburgo, como fez o sofisticado Bernardo Carvalho para discorrer sobre a condição de se estar fora do lugar. Chico Buarque, ao menos, teve a clarividência de fazer de sua Budapeste imaginada um espelho do Rio de Janeiro que lhe serve de quintal.

Não dizem que a mais universal ficção tende a ser sempre a expressão de um cenário bem próximo, que o escritor avista da janela da cozinha? Então: Tangará fica mais perto do que Budapeste e, embora não tenha um milímetro do apelo turístico e da densidade histórica de São Petersburgo, é bem possível que fale mais alto à agenda das nossas interrogações. Ou à nossa geografia interna. Só não dá ibope - o que, em termos de literatura, deveria ser algo absolutamente dispensável. Pena que, hoje em dia, não seja.

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

*A foto da igreja de Tangará que ilustra a postagem veio do Umas e Outras, de Clotilde Tavares

Leia na Hamaca


É algo muito novo e ao mesmo tempo feito com base na mais clássica linguagem do seriado televisivo – recebemos os sinais de que algo vai acontecer, mas às vezes somos surpreendidos por algo que contraria nossa expectativa. De tradicional disfarçado, mas nem tanto, há o claro paralelo com o corpo de jurados de um velho programa de auditório dos tempos da tevê analógica que, para Cannito, também tendem a ganhar força com o advento do digital. Ainda que isso aconteça por alusão e não por uma recriação direta – e se você lembrou de um negócio chamado Big Brother, acertou no alvo.

Para ler tudo, clique aqui.

terça-feira, 1 de junho de 2010

De nervo tenso e coração exposto


"Coração Vagabundo", por mais regravada que seja, é aquela composição que sempre surpreende quem estiver de ouvido aberto e coração vulnerável. Seja com Gal Costa, com o autor Caetano Veloso, com a nossa Valéria Oliveira (que realizou uma sensível versão no seu CD "Leve só as pedras") ou com a também um pouco nossa Roberta Sá (foto). Clique aqui para ouvir a cantora poti-carioca dando mais uma pincelada nesta bela canção.

Desistimos?


Tem um novo alvoroço tomando conta da alma natalense. Uma angústia inesperada que tira o sono da cidade. Uma ansiedade de anteontem fazendo disparar o coração das artérias urbanas. É a Copa, as obras da Copa, a agonia do prazo da Copa, a tremedeira do relógio da Copa, a contagem regressiva da Copa. Parece até que 2014 é amanhã. Há uma espécie inédita de pressa no ar. Um desespero antecipado. Quase uma confissão precoce de incompetência crônica. Como se um grande pedido de desculpas ("foi mal, mas não vai dar pra cumprir o prazo") pairasse em faixas no céu do domingo sobre a praia lotada. Um clamor coletivo pela desistência. Um imenso "deixa pra lá" de quem teme não dar conta do recado.

Ocorre que a expectativa por ser uma das sedes do grande acontecimento do esporte mundial é tamanha que, se o sujeito – digo, a cidade – não tiver estrutura psicológica para segurar a onda, desiste mesmo. E é neste ponto em que empacamos: é bate-boca com gente reclamando da organização (ou da falta dela), é uma dúvida hameleteana antecedendo a derrubada de uma creche que nunca despertou maiores interesses, é o embate entre a resistência dos que querem conservar símbolos urbanos como o centro administrativo e outros que não admitem perder as oportunidades que uma Copa do Mundo oferece. Enquanto isso, é fato que nada de concreto parece acontecer – especialmente quando se fala de concreto mesmo, armado, de construção civil. O que só aumenta a ansiedade.

A verdade é que, com Copa ou sem Copa, o espírito desta cidade vem sofrendo deste tipo de aflição há um bom par de anos. Sinal de que nossa personalidade urbana mudou. Até meados da década de 90, Natal era como um cara tranquilão – não exatamente um rato de praia despreocupado com a vida, mas um sujeito que aproveitava o que a cidade lhe oferecia. De lá pra cá, é como se esse garotão tivesse crescido mal e assumido responsabilidades para as quais não estava exatamente pronto. Resultado: o aldeião praieiro daquela época virou um executivo estressado, que precisa pensar mais em dinheiro e acumulação do que em domingueiras e tábua das marés.

Eis que, para completar o quadro, anuncia-se que o Brasil sediará a Copa do Mundo de 2014 e que Natal será uma das cidades onde os jogos serão disputados. É muita exposição para quem estava na sua – e esse, infelizmente, nem era mais o nosso caso. A gente já não estava na nossa há tempos. Há anos a gente já estava sofrendo com a ansiedade global de atender às expectativas de ser uma cidade de marcas, grifes, granas e bossas à altura das demais.

Mas tem um jeito simples de reverter – ou ao menos controlar – essa doença urbana de proporções inesperadas. E mais uma vez é o passado quem pode nos ensinar a lidar com um problema atual. Pois bem: se a Natal matuta dos anos 40 segurou a onda de "sediar" uma base aérea internacional para ajudar os aliados a derrotar os nazistas de além-mar, porque iria submergir como um suicida covarde diante da onda da Copa que vem aí? Jovens, conversem com seus avós e no lugar da banalidade da palavra consumo, descubram embasbacados o valor do substantivo coragem. Banquem os enfermeiros e usem as tais redes sociais para medicar o doente, dando-lhe um mínimo de força diante do desafio de estar com as obras prontas e a saúde em dia para 2014. Ou então ajudem a jogar a toalha – e mais uma vez reafirmar a autopiedade de quem acha que nada aqui vai pra frente. Seja um campeonato de frescobol em Ponta Negra ou a Copa do Mundo no tal estádio que nunca sai do chão.

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

Edmar / Lampião


Pode ser um blefe, mas também pode não ser. O fato é que a afirmação de que Lampião, o histórico cangaceiro, não morreu naquela saraivada de balas disparadas contra ele e seu bando em Angicos (SE) em 1938, mas faleceu velhinho e incógnito em Buritis (MG) aos 96 anos, dá o que pensar. Se essa hipótese acabar confirmada, toda a mitologia em torno de Virgolino Ferreira terá de ser reescrita e revisada. Vai dar um trabalho danado para o pessoal que milita na área da história e da sociologia. E ainda vai causar aquele estrago na idéia pura do mito em si – que, como alguém mortinho e enterrado há décadas ou séculos, é, vamos admitir, muito cômodo para quem a ele recorrer.

O mito não fala (ao menos não com um mortal), não oferece ameaça (ao menos não como um assaltante que aguarda na esquina) e ainda por cima pode ser moldado à vontade por aqueles que citam sua pessoa. Dessa perspectiva, o mito é inofensivo, ajustável, mudo, paralítico e frequentemente ainda dá dinheiro, se bem utilizado para este fim. Por tudo isso, o pior que pode acontecer com um mito é a sua negação. E parece ser este o caso do renascimento – ou das duas mortes – de Lampião

Mas toda essa história de mito desfeito ou posto em dúvida é só para fazer um paralelo entre Lampião e um parente seu do mundo da criminalidade nordestina que viveu entre nós, potiguares: Edmar Leitão. Quem lembra do pistoleiro que, dizia-se, escrevia seu nome a bala nos oitões de Caicó? Aquele que, contaram um dia os jornais em branco e preto, apareceu morto com uma bala na cabeça e um bilhete ao lado dizendo "Eu fui Edmar Leitão"? Realidade, medo, fascínio e ficção se juntam e se misturam na lembrança que Edmar Leitão provoca em quem, sobretudo na infância, ouviu falar seu nome. A pergunta é: e se ele, como o Lampião de Zé Geraldo, também não tiver morrido naquelas circunstâncias? E se tiver, como se cogitou na época, assassinado um sósia para sumir no mundo e não ser mais alvo das caçadas policiais?

Maldita mitologia, que faz troça das certezas que construimos em torno de fatos e pessoas que nos causaram medo, fascínio, terror ou júbilo. Nem a essa forma de estabilidade temos direito. E o herói de hoje, tanto quanto o bandido de ontem, pode ser o canalha ou o salvador de depois de amanhã.