quinta-feira, 30 de julho de 2009

Palavra de simpatizante


Meu partido é mesmo um coração partido. Não tenho fichinha de filiação, nunca participei de plenárias, minha opinião não vale um pitaco na escolha dos candidatos a candidatos a vereador, prefeito, deputado, mas o fato é que valorizo muito, sobretudo de alguns anos para cá, a minha condição de simpatizante de uma agremiação partidária chamada Partido dos Trabalhadores, a cada dia que passa mais espezinhada como aquele reles "petê", que os bossais pronunciam entortando a boca com um esgar de nojo. Pois quanto mais o fazem, mais aumenta minha simpatia. Aumenta até mesmo quando a figura que mais deveria limpar a barra desse partido faz exatamente o contrário, que é subjugá-lo sob o peso de uma polularidade acachapante. Pois é, quanto mais batem no PT, mais eu se sinto na obrigação de simpatizar com ele. Mesmo que a porrada venha de um filiado como Lula.

E o velho PT está de novo numa daquelas cruéis encruzilhadas cíclicas - e cívicas - como tantas outras que marcaram sua história. Vamos em ordem cronológica: a primeira grande bifurcação no caminho dos petistas se deu na metade da década de 80, com o partido ainda se firmando ideologicamente no quadro político brasileiro e aquela escolha de Sophia que era ir ou não ao colégio eleitoral. Apoiar ou não a eleição indireta de Tancredo Neves dentro dessa instituição da ditadura, usando o instrumento que os próprios generais criaram para subverter definitivamente o sistema que impedia as diretas para presidente - e que poderia dar um fim a tantos anos de ausência de democracia? O PT e seus simpatizantes reviraram-se por dentro, viram a luz e a escuridão ao mesmo tempo, raciocinaram em tática e estratégia enquanto davam um passo rumo à aliança e dois para trás na direção da pureza ideológica igualmente necessária. Era um dilema, um coração partido que resultou na expulsão de três quadros, entre eles Airton Soares e a nossa mais doce parlamentar, a atriz Bete Mendes. Doeu pra caramba, mas conseguimos ficar inflexíveis ante a euforia midiática e coletiva. Perdemos a festa da eleição de Tancredo mas involuntariamente antecipamos, ainda que base da ironia, o caos que viria a seguir, com ele, ele mesmo, Sarney, na Presidência da República.

Sempre ele, Sarney (e isso não quer dizer que estou ignorando Efraim, demos e companhia, iguais detendores da máquina do Senado por tantos anos, mas a questão aqui ainda não é esta e não convém cortar o raciocínio). Um mandato de cinco anos depois, superinflação galopante superada e cá estamos nós, os aloprados petistas, às voltas com mais um dilema relacionado com a figura do bigodudo cacique maranhense. Um dilema que, à medida que vai se estabelecendo, ganha uma dimensão tão importante quanto aquele de 1984/85. A pergunta que agora racha os corações partidários é: vale a pena fechar os olhos aos desmandos dos donos do Senado para garantir o apoio do PMDB à candidata Dilma no próximo ano? Ou é melhor entregar o marimbondo de fogo aos tubarões, ajudando a encerrar a história de mais uma oligarquia brasileira que já deveria ter morrido de velha, a exemplo do que aconteceu com ACM na Bahia? Da para fazer isso, mesmo correndo o risco de a oposição fazer sua parte e passar a disparar das vidraças do Senado aqueles torpedos de potência máxima com que mais de uma vez já tentou acertar o alvo Lula no Planalto?

É duro encontrar a resposta - mas já dói o bastante a simples formulação da pergunta. Quase oito anos de mandato depois, ainda estamos nesse pé? Avançamos socialmente, demos saltos econômicos e, sim, é inegável, abrimos mão de muitas mudanças estruturais que fizeram parte dos nossos planos partidários durante anos, mas mesmo assim, tudo contado, por que politicamente, no plano da micropolítica mais contaminada, ainda dependemos de acordos desta natureza, com um PMDB e um Sarney tão pouco dignos de confiança? Não gosto de dissidências fáceis, até hoje não vejo com simpatia o "banco de reservas" formado por Cristovam, Marina e Suplicy curiosamente no mesmo Senado de que estamos tratando aqui. Mas o fato é que, sinceramente, neste momento, desmancharia o dilema e repararia os cacos do coração partido dando apoio a Aloisio Mercadante que neste momento representa as reservas mínimas que nos restaram. Mais ele do que Tião Viana, que reage mais em termos de derrota pessoal do que de indignação política.

Tudo isso lembra uma crise menor, mas sempre um dilema como o atual e tantos outros. Lembra quando o PT nacional passou por cima do PT fluminense e obrigou o partido no Rio de Janeiro a apoiar a figura exdrúxula de Garotinho? Naquele momento, também doeu muito - mas nem por isso a gente deixava de tentar enxergar a estratégia nacional, a ambição necessária de alcançar o poder que é inerente a qualquer partido. Era um sacrifício, não diria menor - pois que doeu como todas as hemorragias - mas parecia que valia a pena pagar aquele preço, afinal a política não é linear como pensa o ingênuo nem exata como quer o apressado (ou seja, todos nós, simpatizantes, no fundo um bando de antipolíticos erráticos ajudando a iluminar no grito o quadro geral dos acordos).

Agora, neste momento, este simpatizante espezinhado, esse aloprado involuntário aqui atrás da tela desse computador desabafa: é doloroso confirmar que meu partido insiste em ser, após oito anos de poder, ainda um coração partido. Lula não precisava tanto de Sarney, assim como Fernando Henrique também nunca precisou tanto de ACM. Precisava mais era ouvir a voz silenciosa do partido, como o outro falou quando se referiu à voz rouca das ruas.
Palavra de simpatizante. Que vale muito pouco, mas pode ser sempre um voto sintomático.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Bye bye, Blackbird



Dizer que Michael Mann passou um espanador novinho em folha no gênero filme-de-gângster ao realizar este "Inimigos Públicos", em cartaz nos cinemas, é pouco. Não dá conta: o que o homem fez, além de espanar o velho móvel de antiquário, foi encerar bem as superfícies e lustrar com força a antiga fórmica deste tipo de cinema, com aquele cuidado extra de deixar as quinas tão limpas que parecem lâminas de facas afiadas que cortam como folha de papel ofício em mãos incautas. E não é pouco a pretensão de atualizar um gênero como este: uma coisa é revigorar os filmes de heróis dos quadrinhos, com mais uma leva de Batmans engraxada com uma nova mão de tinta de sombras agora de natureza psicológica; outra bem diferente é retomar algo que já rendeu obras primas absolutas como a série "O Poderoso Chefão" e "Era uma vez na América", de Sérgio Leone.

Mas Michael Mann não decepciona. Ele é o cara que pratica tanto o cinema plástico quanto a tensão dramática das cordas audiovisuais mais esticadas. O resultado é mesmo uma retomada do gênero filme-de-gângster com elegância máxima, violência quase tátil e tensão no limite da responsabilidade. A sequência do assalto principal tem, sim, um quê de deja vu, chegando até a lembrar o nosso cinema brazuca de "O que é isso, companheiro?", com o bandido subindo no balcão, fuzil agarrado e apontado para o ar, aquela coisa de ninguém-se-mexa com música grandiloquente ao fundo. Mas outra sequência que vem depois - a do cerco ao bar na floresta onde o gânsgter se esconde, seguida pelo tiroteio que faz do quarto uma peneira - tem um vigor técnico que só o cinema atual consegue produzir, com aquela impressão de que as balas ilusórias estão espetando e arrancando buracos também nas paredes da sala de exibição.

Claro que nem é por isso que o gênero renasce, novinho ou ao menos recauchutado. É mais pela mistura cínica de glamour e miséria, com um reforço contemporâneo para o lado mais sombrio da fusão, com que Michael Mann expõe o way of life do gângster da Chicago dos anos 30. A voz de Billie Holiday se insinua entre as imagens, e ninguém melhor do que ela para falar sobre esse pêndulo que define este tipo marcante na cinematografia norte-americana, tanto quanto o cowboy do velho oeste e o detetive dos esfumaçados anos 50. Billie Holiday, você sabe, é tanto um canto cool quanto uma poça de sangue morno, uma voz que evoca ao mesmo tempo o luar e a sarjeta. O registro romântico foi reforçado depois que a atriz Marion Cottilard levou o Oscar pelo desempenho em "Piaf". Coisa do marketing, mas como a matemática da dramaturgia não ignora adições e subtrações, o resultado foi que a bela e expressiva atriz quase detona o protagonista e leva o filme pra casa. A última cena que o diga, com aquela situação e aquele diálogo, um ponto final capaz de suspender o espectador e retardar sua saída da sala escura, pelo menos até ele se recompor.

"Bye bye, Blackbird", diz o texto. É verdade: Brian de Palma também era acusado de ser estiloso e maneirista, mas ele não terminava um filme com essa pequena oração profana que Michael Mann - o homem por trás de "O Informante", "Ali" e "Efeito Colateral" - nos dá.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Leia na HAMACA

"Samarone (Lima), como um viajante que é - e nunca um turista - conviveu com o povo cubano de verdade e conta o sacrifício impressionante que é a sobrevivência diária da gente da ilha. E está autorizado a fazer fazer isso, credenciado - nele você pode confiar, pois que não se trata de um direitista com sorriso de hiena pronto a tripudiar da boa fé dos esquerdistas que desde 1959 não podem negar, nem teriam porque, a simpatia pela ilha. "

Depois do Recesso, agora na HAMACA (link ao lado)

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Entreblogues - O dicionário de Conceição

Uma semana de recesso oficial e lá se foi o blogue para mais uma temporada de silêncio forçado. Estou retornando agora e, enquanto o motor vai sendo reaquecido para novas postagens, desperto os leitores tão entediados quanto o blogueiro com um minidicionário entre sentimental e exato que achei no Blog da Conceição, jornalista do Correio Braziliense que é capaz de matar por amor a Brasília. Confiram - e, se houver possibilidade de uma viagem qualquer para o Planalto Central, imprimam o texto de Conceição e botem no bolso, à guisa de guia de viagem. Vai ser muito útil. Ao texto:

OS NOMES DA CIDADE


CONIC era o nome de um dos prédios do Setor de Diversões Sul. Havia uma placa bem grande com o nome Conic. Por isso o nome de um prédio passou a identificar o conjunto inteiro. ELEFANTE BRANCO porque era uma construção muito grande, com duas rampas que parecem a tromba e o rabo do elefante, e que ninguém sabia o destino que seria dado à obra. SAMDU é nome de uma avenida de Taguatinga. Nela, havia o Serviço de Atendimento Médico Domiciliar de Urgência, o Samdu. Bons tempos. A PRAÇA DO BICALHO tem o sobrenome do comerciante Moacir Dias Bicalho que montou o primeiro armazém da QND, a Bicalho Móveis. IAPI era o nome de um dos institutos previdenciários que custeavam a construção de blocos de apartamentos para seus funcionários. IA-IA era o apelido dos blocos das superquadras de Brasília que foram construídos por institutos.

LANOLÂNDIA, uma invasão feita de barracos de lona onde hoje é a Candangolândia. Na SACOLÂNDIA, os barracos eram de sacos de cimento. GRAN CIRCO LAR, um circo que foi montado ao lado do Touring, primeiro para apresentações de grupos de rock, depois para ensinar malabarismo a meninos de rua. GRANDE CIRCULAR é a linha de ônibus mais famosa da cidade, símbolo das Asas da borboleta de Lucio Costa. CATETINHO vem de Catete, o palácio presidencial no Rio de Janeiro, a antiga capital. GEB era a temida Guarda Especial de Brasília, arregimentada entre os candangos mais fortes, destemidos e, na maioria dos casos, violentos.
GRAMINHAS eram os fiscais da Novacap que saíam pela cidade fiscalizando as gramas e fazendo a molecada correr. As ZEBRINHAS estão aí até hoje, meio caidaças, coitadas, com suas listras vermelho e branco.

LACERDINHA era o apelido dos redemoinhos que engoliam gente, invadiam casas e pintavam Brasília de pó vermelho. Vem de Carlos Lacerda, o adversário mais ranheta de JK. CEILÂNDIA vem de Cei, Comissão de Erradicação das Invasões, criada para acabar com a invasão do IAPI na Cidade Livre. STALÃO era uma boate no Setor Hoteleiro Sul onde as moças disponíveis se ofereciam aos rapazes à procura. PAPUDA, sempre é bom lembrar, vem de uma senhora com o papo grande que vivia nas terras onde hoje é a penitenciária. O papo era a representação do bócio, a doença que surge da carência de sódio. O BURACO DO TATU é o nome do Eixão quando ele passa por debaixo da Rodoviária. BRASÍLIA, mitológico nome de um país do outro lado do oceano, nome gravado nos mais remotos mapas do Novo Mundo.

P.S: Para acessar o Blog de Conceição, basta pegar o atalho ali ao lado clicando no link para a página do Correio Braziliense.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Os desertos de Zurlini (2)


Assisti aos dois filmes citados na postagem anterior sobre Valerio Zurlini praticamente sem informação nenhuma sobre o diretor italiano. Pra não dizer que estou mentindo, li, meses atrás, num velho exemplar da revista Manchete da sessão de periódicos desbotados da biblioteca da UnB, uma reportagem de duas páginas, com aqueles fotões imensos, sobre, exatamente, a expectativa pela estréia no Brasil de "O Deserto dos Tártaros". Era outro cinema, outra imprensa brasielira, outra crítica cinematográfica, outro tipo de expectativa, em tudo muito diferente daquela que hoje antecede o lançamento de um arrasa-quarteirão de herói dos quadrinhos alçado a estrela de filmes caros, obrigatoriamente divertidos mas também muito barulhentos.

E sendo diferente assim, era interessante ler a reportagem e perceber a boa expectativa em torno da chegada de "O Deserto dos Tártaros" ao Brasil. A julgar pelo texto, parecia que se aguardava um épico convencional - o que ele só aparentemente é; no extremo, parece ser justamente uma crítica feroz a esse tipo de cinema grandioso, heróico e arrebatado. Digo isso porque o filme de Valério Zurlini, se fosse exibido hoje, torraria a paciência das platéias ansiosas e muito provavelmente estaria relegado ao mais sombrio dos circuitos alterantivos do mercado exibidor. Mas, não: lá estava ele numa revista de variedades mundana como era a Manchete de Adolpho Bloch.

Hoje, só depois de ver "O Deserto..." e "A Primeira Noite de Tranquilidade" fui às páginas de uma outra revista, mais atual mas igualmente mundana - a internet -, para saber quem foi esse diretor de cinema tão instigante e tão ignorado na atualidade. E descobrir também porque não se fala dele hoje em dia como se fala de seus conterrâneos Fellini e Antonioni, só pra ficar em dois exemplos do mesmo tempo e lugar.

Em sites e blogues, a avaliação é de que Zurlini está próximo de Antonioni mas sem a celebridade do diretor de "O Eclipse" pelo fato de ter renunciado à busca de revolucionar a forma cinematográfica. O diretor de "A Primeira Noite..." teria optado por dirigir o foco de seu cinema à investigação mais profunda de seu objeto - o homem e seus impasses - valendo-se de recursos formais que já existiam de maneira estabelecida. Antonioni foi além na exploração dos seus silêncios visuais e cultivou os impasses formais, enquanto Zurlini se deteve a tempo de fazer suas investigações com o que havia de subjetivo, sim, mas à mão, sem colocar em risco a estrutura que sustentava o filme como suporte geral da especulação.

Concordo que parece sutileza demais, mas quando lembro da força dos vácuos narrativos na antissaga de Jack Nicholson em "Passageiro, Profissão: Repórter", compreendo que estão muito mais ao alcance das massas as pausas climáticas - ou anticlimáticas - de "A Primeira Noite de Tranqulidade". Mas ainda que não houvesse a mínima narração convencional, o mais elementar começo-meio-e-fim entremeado pelos menos detectáveis pontos de virada, ainda assim o cinema de quem faz um filme como esse não deveria passar em branco na memória das artes, como parece ter acontecido.

Os desertos de Zurlini


O cinema de Valerio Zurlini lembra muito o texto de José Saramago. O cineasta italiano faz em "O Deseto dos Tártaros" alguma coisa muito similar, em estética, atmosfera e metáfora, ao que o escritor português realiza em "A Jangada de Pedra". Na literatura de Saramago, um cataclisma faz a Península Ibérica se separar fisicamente do restante da Europa, tornando-se um pedaço de continente boiando à deriva no Atlântico. O que o escritor extrai dessa situação é toda uma fantasia literária que perfila europeus e ibéricos, seus choques mútuos e suas afinidades recíprocas, num estudo realista e perturbador, mas ao mesmo tempo lírico, dos povos de Portugal e Espanha - e da forma como se vêem e são vistos, entre si e pelas demais nações européias.


No filme de Zurlini, um império sem nome, descrito com a subjetividade que favorece a identificação, cerra suas fileiras de defesa em uma fortaleza no deserto, constatemente de prontidão para um ataque sempre iminente - mas igualmente impreciso - de um inimigo desconhecido - e por isso mesmo dado como bárbaro, não-civilizado. É o cinema falando sobre a Europa e seus fantasmas, a civilização branca e ocidental sempre de prontidão ante a ameaça do desconhecido que vem de outra ordem, uma cultura diversa e que não merece esse nome. E em nome desse temor, desenvolve-se uma hierarquia e uma outra cultura, de ordem burocrático-militar, regida cada vez mais pelar armadilhas de seus próprios códigos, com tudo o que isso implica em contradições e absurdos.


"O Deserto dos Tártaros" tem paisagens impressionantes, um cheirinho de épico (o que não é nem pretende ser) e um elenco estelar para a época em que foi feito - estão lá Max Von Sydow, Giuliano Gemma e Phillippe Noiret. Ou seja: tem todo o cartaz dos grandes "filmes de produtor" daquele momento da cinetografia mundial. Mas toma tudo isso e conduz todos os elementos para a construção do que parece mais uma daquelas peças do teatro do absurdo, do tipo que coloca um rinoceronte em cena para fazer a platéia acordar do seu habitual interlúdio digestivo tantas vezes disfarçado de obra de arte. É um filme magnífico sobre o nada, um espetáculo de sutilezas, uma ópera grandiloquente sobre os mais mesquinhos sentimentos do homem articulado em pátrias e nações.


Quem conseguir uma cópia em DVD - que existem, mas só nas lojas e locadoras que vão mais fundo nos catálogos - vai querer ver mais. E o recomendado é "A Primeira Noite de Tranquilidade", uma bela sonata visual sobre o fim de todas as utopias feita muito antes que todos os muros globais viessem ao chão. É Alain Delon perdido no mundo, bêbado de desilusão, numa experiência existencialista filmada com câmeras que sugerem tintas nubladas e pincéis velhos, mas exatos em sua subjetividade maltratada pelos tempos.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Para ler e divulgar (2)


O trecho abaixo é de artigo de Laurindo Leal e reforça os argumentos a favor da exigência do diploma para o exercício do jornalismo. Mais que reforçar, analisa a fundo o verdadeiro objetivo por trás da decisão judicial que desde seu anúncio vem rendendo uma discussão que só tem o defeito de ser posterior ao seu anúncio. A íntegra poder ser lida na agência Carta Maior, cujo link está na lista ao lado.

Não há hoje jornalista formado que não tenha tido contato com as diferentes correntes teóricas da comunicação, estudadas e discutidas nas faculdades. São essas leituras que permitem aos futuros jornalistas compreender melhor o funcionamento da mídia, as suas relações com os diferentes poderes, os seus interesses muitas vezes subalternos. É nas faculdades que se formam jornalistas críticos, não apenas da sociedade, mas principalmente da mídia, capazes de saber com clareza onde estarão pisando quando se formarem. É tudo que os donos dos meios não querem. A luta deles pelo fim do diploma resume-se a dois objetivos: destruir a regulamentação da categoria aviltando ainda mais os salários e as condições de trabalho e, ao mesmo tempo, evitar a presença em suas redações de jornalistas que possam, ainda que minimamente, contestar – com conhecimento de causa - o poder por eles exercido sem controle. Querem escolher a dedo pessoas dóceis e subservientes e transformá-las nos “seus” jornalistas.

Transfere-se dessa forma da esfera pública para o setor privado a decisão de definir quem pode ou não ser jornalista. As universidades públicas quando outorgam um diploma de um dos seus cursos ou quando reconhecem a legitimidade do diploma fornecido por instituição privada exercem a prerrogativa de possuírem fé pública. O diploma de jornalismo era, portanto, referendado pelo Estado em nome da sociedade, dando a ele a sustentação necessária para o exercício de uma profissão regulamentada desde 1938. Agora é o mercado que decide.

Para ler e divulgar


DIPLOMA DE JORNALISMO
Os equívocos do debate

Por Alberto Dines em 7/7/2009

A questão do diploma está colocada de forma equivocada. Os adversários do canudo talvez até o aceitassem se, porventura, pudessem controlar a sua emissão.

O objetivo do recurso interposto pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo (Sertesp), apoiado pelo Ministério Público Federal e aceito com tanto agrado pelo ministro Gilmar Mendes, do STF, não era o da extinção da profissão de jornalista sob o ponto de vista trabalhista. Esta é uma batalha perdida há bastante tempo, a partir do momento em que o profissional de imprensa deixou de ser pessoa física (PF), cidadão, para se tornar pessoa jurídica (PJ) e, como tal, cerceado da sua individualidade. Hoje raros são os jornalistas contratados pela CLT. Este regime acabou há pelo menos uma década, sem que os prejudicados tenham esboçado qualquer resistência.

Também não é sério o pretexto de universalizar o acesso aos meios de comunicação social. Este acesso está mais restrito do que nunca. A homogeneização das redações brasileiras é escandalosa, a diversidade é mínima, apenas cosmética. O jornalismo brasileiro neste momento é mais monolítico, ortodoxo e conceitualmente mais trancado do que o Pravda nos tempos do stalinismo.
Na verdade, o real objetivo da "indústria do jornalismo" e suas entidades corporativas era liquidar a consciência profissional. A ética e a deontologia fazem parte desta consciência, mas nela se incluem outros elementos da esfera moral.

Escolhas cruciais

Jornalismo é compromisso com o interesse público, portanto missão. Isto foi proclamado de forma inequívoca na primeira linha do primeiro texto jornalístico que circulou no Brasil a partir de junho de 1808, jamais revogado apesar do embargo imposto ao seu autor, Hipólito da Costa.
Sem consciência profissional é impossível derrubar um ícone do feudalismo como José Sarney. Sua rede de amizades e a massa de favores que distribuiu ao longo das últimas décadas em todos os poderes e em todos os níveis só poderão ser neutralizadas por jornalistas profissionalmente conscientes. Para desencavar um novo escândalo envolvendo nosso legislador-mor não bastam as técnicas investigativas. Antes e acima delas, indispensável o compromisso com a construção de uma sociedade honrada.

A consciência profissional começa a ser fomentada na sala de aula das escolas de jornalismo. Por piores que sejam, por mais despreparados que sejam os professores, por mais desqualificada que seja a maioria dos grupos econômicos que tomaram conta do ensino superior (aliás, próximos dos grupos de mídia), um sopro de decência consegue atingir o alunado.
Esta decência, dignidade ou simples brio de alguma maneira irá colar-se nas almas de alguns portadores do diploma de jornalista. Em que proporção é difícil precisar. Importa saber que estes privilegiados se encontrarão nas redações em situações-limite em que fatalmente enfrentarão escolhas cruciais e talvez forçados a experimentar o gosto agridoce da dignidade profissional.

Os "flanelinhas", guardadores de automóveis, do Distrito Federal, acabam de ser agraciados com a especificidade para a sua ocupação, são profissionais (Folha, 6/7, pág. C-5). Em nome de uma falaciosa liberdade de expressão, os jornalistas podem ter fé, mas perderam a sua profissão.

Princesa bailarina borboleta


Ela fez quatro anos ontem, gosta de emílias e barbies, é fissurada em festas, prefere sempre rosa - especialmente o "rosa claro" -, treina a competitividade em brigas caseiras com o irmão, está na fase mais egoísta do apego às coisas que são dela - e não dele, o irmão -, e no meio da noite acorda, levanta da cama calmamente, agarra o lençol e se muda para a cama da avó onde volta a dormir num ninho de pano, calor e afeto.

É fissurada em festas, adora as datas especiais onde há festejos na escola, chora quando tem que voltar para casa depois das festas, tem uma certa dificuldade de se aproximar dos colegas mas é fiel às amizades conquistadas à custa de alguma timidez. Desenha caras de pessoas feitas de bolas e riscos que fazem todo mundo parecer fantasmas expressionistas. Diz que são seu pai, sua mãe, seu irmão, sua avó. De vez em quando, acorda de pá virada, anjo de asa quebrada por motivo incerto - e tome manha, choro por nada, ferida exposta no rosto tristinho. No dia seguinte, passa.

Não há jeito de fazer com que ela durma coberta - e nesses dias frios é preciso sempre dar uma passada no quarto pra ver se está aquecida. De vez em quando tem uns terrores noturnos e desperta num pranto de dar dó. Na manhã seguinte, nem parece - amanhece tão feliz quanto nos primeiros dias de vida, quando acordava sorrindo pra vida que começava. Gosta de mexer com plantas, o que faz com que a gente desconfie que será agrônoma, bióloga ou coisa parecida. Mas quando perguntam sobre o que vai ser quando crescer, a resposta é a mesma: princesa bailarina. Nada mais que isso - e se você tentar explicar melhor e incluir profissões normais na lista das possibilidades, ela chora. No máximo, admite uma variação: princesa bailaria borboleta.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

O dia dos funerais



Ontem foi dia de funeral na televisão. Uma estranha coincidência, com a estranheza particular que convém às coisas que coincidem, fez com que tivéssemos dois desses eventos em horários privilegiados e ampla expectativa de público. O primeiro foi um funeral de verdade, enquanto o outro se deu na ficção. Mas como toda estranheza é pouca quando se trata dessas colisões temporais e conceituais – que é como poderíamos qualificar toda as coincidências – existe ainda o agravante de que o funeral de verdade parecia muito com um evento ficcional, enquanto o velório inventado pela teledramaturgia tinha muito de real.

O funeral de verdade, o planeta inteiro sabe que foi o de Michael Jackson. Um velório transformado em espetáculo planetário com elenco estelar, roteiro apurado, desempenhos marcados – no que parece ter sido algo tão bem elaborado pelos mestres do entretenimento (os americanos) que deu até para culminar com uma cena de emoção autêntica, pois que cuidadosamente cultivada: a emoção da filha exposta tão prematura e perigosamente quanto o foi o próprio morto quando criança. Mas o fato é que, de tão medido, planejado, perfeito e sintonizado, o funeral de Michael Jackson parecia não ser algo de verdade. Se uma fã enlouquecida, ou um clone como há milhares no mundo, tivesse quebrado os protocolos e subido àquele palco para se esborrachar em lágrimas sobre o ataúde de ouro, numa cena entre italiana e nordestina, aí sim teria dado credibilidade ao todo. Teria sido a falha humana que confirma a autenticidade do evento. Sem isso, foi como uma abertura de olimpíada, como uma entrega de Oscar. Perfeito, previsível, controlado – belo, mas estranho quando se trata de um funeral.

O funeral de ficção foi o do diretor teatral feito por Pedro Paulo Rangel na minissérie “Som e Fúria”, a aventura televisiva do cineasta Fernando Meirelles e sua produtora O2. Foi interessante e vivo ver a performance desse ator tão querido pelos brasileiros em cenas de desespero implícito pela noite paulistana, Pedro Paulo bêbado vagando entre a frustração pessoal e as luzes difusas da cidade, minutos antes de ser esmagado por um caminhão de presunto – e aí a nota humorística, que brinca com as ironias da vida real, já se apresentou como uma marca do novo programa. O funeral é no Teatro Municipal de São Paulo e é evidente que, como na vida real – e ao contrário do que ocorreu com Michael Jackson – tudo dá errado. Da luz à decoração, das gafes involuntárias ao mico do pastor homofóbico que deixa a platéia perplexa. Mas, embora produto da construção elaborada por roteiristas, diretor, atores, cenógrafos e demais envolvidos na produção de um produto de teledramaturgia, o funeral de Pedro Paulo foi o mais verdadeiro do dia na televisão. Pelo que continha de inusitado, de falho, de ridículo até.

Tem um ditado batido que só ele que diz que “a vida imita a arte”. Ontem, no funeral de Michael Jackson, não havia vida nem arte – foi tudo espetáculo. Se dizem que no Brasil tudo acaba em pizza, quando se trata dos EUA a gente pode inferir que tudo acaba em show. Vide julgamentos célebres, os mil e um produtos que o 11 de setembro rendeu em filmes, o próprio fenômeno Obama, com um forte componente de evento coletivo para todas as mídias. Pois bem: o funeral da minissérie “Som e Fúria”, sim, teve um quê de vida real, filtrada por meio dos instrumentos que a dramaturgia televisiva usa para emular a arte, quiçá a grande arte – algumas vezes, chegando bem perto dela.

Funeral por funeral, yes, nós temos Meirelles, e o nosso show venceu.

Soledade, PB


Aos leitores

Uma pane geral no computador de casa aliado a uma sobrecarga de trabalho que vai se estender por praticamente todo o mês de julho quase que tiraram o Sopão e a Hamaca do ar. As atualizações minguaram, os assuntos murcharam, a prosa se interrompeu. Mas é temporário: os consertos na máquina caseira estão sendo feitos – embora ainda haja ajustes que podem interromper tudo de novo – e em agosto vem uma minitemporada de férias que traz o ócio e com ele um caminhão de postagens de qualidade variada, mas quantidade suficiente para não deixar a impressão de que a casa faliu e o dono fugiu pra não pagar as dívidas.Enquanto isso, os funcionários mais fiéis que não arredam o pé, temerosos de seus empregos em tempos de crise sistêmica, aqui e ali vão postando uma palavrinha ou outra pra manter os estabelecimentos – a matriz Sopão e a filial Hamaca, que já somos uma espécie de franquia maluca – de portas abertas.