quarta-feira, 30 de julho de 2008

postagem foguete

Foguete é urgente, enquanto durar o tempo que me sobrou na vã house. Estou no mideimal, onde sempre medoubem, apesar de haver sempre um apressado buzinando enquanto eu me perco pela milésima vez nas vias do estacionamento. Buzina, diga-se, é gentileza: já houve de o motorista estressado, afinal era verão, descer do carro e me dar um esporro. Desta vez, não tenho do que reclamar. Como sempre, passei horas indeciso entre a direita e a esquerda e ninguém me tascou sequer um f.d.p. Mudei eu ou mudou a cidade? Deve ser porque chove, faz um frio chatinho e não é, definitivamente, isso não é um verão.

Nem por isso deixei de levar minha parte no butim da regressão que assalta a cidade - pra não dizer que só falo bem de Natal e só reclamo de Brasilia. Fui fazer um passeio antropológico urbano com Rejane e Cecília, descer de ônibus para a cidade e, na volta, ao entrar no coletivo, naquele arrocha-arrocha que o natalense adora (em Recife e em Brasília já atingimos a civilidade da fila há décadas), uma senhora mui compenetrada, trajando negro, cabelo de evangélica, preso, olhos de capitu de subúrbio, tentou, repetidas vezes, vejam vocês, me roubar a máquina fotográfica digital superadíssima. Tentou mesmo, eu com Cecília no colo, tentando entrar no ônibus e sentindo a bolsa da máquina ficando vazia. Desconfiei daquilo, mas era tão absurdo que a gente se se recusa a acreditar. Uma vez dentro do ônibus, a dita cuja às minhas costas, bem ali naquele momento grave da passagem pela catraca (no meu tempo era mais poético, era "borboleta"), a sinto o saco da máquina vazio, vazio. Viro as costas e encontro a máquina nas mãos da fulana, que me diz, "ia caindo, eu segurei". A-han.

Fiquei puto com a cara de pau, com a preguiça crônica, com o dinheiro fácil da pequena pilantragem. Sentei com Rejane e Cecília num bom lugar do ô-bli-us, como diz minha princesinha, e segui rumo ao Guaíra, numa viagem longa e sacolejante, pensando em como é fácil se agarrar a toda forma de atraso. Parece que compensa, parece que não cansa. Mas atrasa, paralisa, congela e explode um povo e uma cidade. Da próxima vez, venho mais otimista. Prometo, mas não garanto.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Natal que nos espera




Em papel de carta

Olá, pessoal:

Vocês já sabem. Quando o Sopão fica mudo, retraído e cavernoso por vários dias, é sinal de outras ocupações no horizonte do cozinheiro. Foi o que aconteceu nos últimos dias de silêncio. Minha virose de estimação resolveu fazer uma nova visita - ela não dispensa os ares frios e secos desta época do ano em Brasília - e, malas e bagagens devidamente despejadas no meu aconchegante intestino, agradou-se do clima e resolveu ficar. Foram dias meio enjoados, para dizer o mínimo - e o bastante num espaço virtual que tem nome de comida. Mas já passou.

Outro fato que me deixou longe do Sopão por esses dias foi - está sendo - uma longa, paciente e burocrática negociação imobiliária com destino à compra de uma casa onde haja espaço suficiente para eu, Rejane, minha mãe, as crianças, um provável cachorro e meu improvável bom humor, vocês sabem. Agora está tudo muito bem encaminhado, mas foi preciso investir valiosas manhãs e providenciais inícios de tardes em providências bancárias, fiscais, tributárias e tudo o mais.

Mas de silêncios também se compõe a matéria voluntária do Sopão: e novo período de sumiço poderá se processar em breve, a partir de amanhã, quando seguimos para duas semanas de férias em Natal/Acari/Pipa - e quem sabe a gente não vai até São Miguel do Gostoso, como há tempos planejamos, hein, hein? Então, as atualizações virão de onde a gente porventura estiver, com essa qualidade das coisas transitórias que torna tudo muito mais atraente, quanto menos permanente, mais excitante - tais as viagens literais ou inventadas.

Breve, então, aqui, relatos de viagens devidamente exagerados, metáforas forjadas, diários romantizados, realidades espelhadas por nossas lentes tortas, porém humanas. Até.

Tião.

Conexão 84


Uma última conexão entre Marize e Ada: o ano em que a primeira estreou em livro, com "Marros Crepons Marfins", 1984, é o mesmo do nascimento da segunda. Uma sugestiva continuidade, fixada em um belo ano, o mesmo da campanha das diretas, o mesmo em que Chico Buarque lançou o samba "Vai Passar", o mesmo em que Jorge Amado colocou na praça "Tocaia Grande", o mesmo em que entrei para a Unicap, em Recife. Um bom ano para muita gente. (Na foto, Ada, eu e Márcio na noite da Flor do Sal)

Recorte


A propósito da chegada de Ada Lima, encontrei no meu exemplar de "Marrons Crepons Marfins" um velho recorte de uma coluna de jornal, acho que Woden Madruga mas não tenho certeza, em que o autor reproduz comentários de um crítico sobre o lançamento, ainda recente, daquele livro. Vejam, como curiosidade, mas reparem como, trocando-se o nome do livro de Marize e da própria poeta por Ada e "Menina Gauche", o resultado seria o mesmo. (Para ampliar e ler, clique DENTRO do recorte)

O arqueiro Márcio

Junto com Ada Lima, chegou também às prateleiras da poesia potiguar o arqueiro Márcio Simões, o vaqueiro etéreo que empunha uma corda simbólica e emite um aboio que é o assovio do próprio vento em calmaria. "O Pastoreio do Boi - XII poemas sobre uma parábola ZEN " é bem isso. Uma transposição para tórricas e ofuscantes clareiras seridoenses da jornada do herói oriental. Uma poesia que liga os pontos invisível entre duas culturas tão diversas, produzindo elos tão intangíveis. "O Pastoreio" vale mais pelo não-dito do que pelo impresso. Repare nos espaços vazios nas páginas. Atente para o caráter serpenteante das palavras. Vigie pelo ar matreiro e fugidio dos versos, feitos para serem lidos minutos antes de se evaporar.

Assim: "Antes da busca: / a busca. / Andar a esmo / já é o caminho. / A caminhada / começa / onde o que nada / vê enxerga-se cego." Ou assim: Por nenhum atalho / ou vereda / pode-se chegar / ao esperado / Em todos os atalhos / e veredas / passeia o / ansiado / Aquele que anseia / e seu desejado / é todo atalho / e todo veredas". Ou ainda, assim: "O vácuo evolve / plenitude: / o ter todas / as formas / não o forma / O movimento / em seu princípio / em sua expansão / permeada / de início / e reinício."

A poesia do arqueiro Márcio sobe às montanhas da filosofia pura e desce de lá com um ar de mangá biscoito fino. É um produto do velho e bom Caicó arcaico.

Ada e Marize

Em 1984, surgiu uma tremenda novidade em forma de livro e com nome de mulher na praça natalense. Era "Marrons Crepons Marfins", o petardo além-feminista da nossa sempre bela e inspirada Marize Castro. Aquela voz, entre libertária, sensual e - também - angustiada, renovou o cenário poético potiguar, imprimindo coloquialidade e revestindo de uma nova precisão a poesia feita por mulheres no estado. Dizendo assim, parece que Marize apenas tirou o pó de um departamento da poesia potiguar, aquele feito pelas mulheres. Mas, não: o livro era tão novo, tão verdadeiro, tão vivo que, relido hoje, pode-se dizer tranqüilamente que tornou-se um marco de toda a poesia feita no RN, independente do fato de ser assinada por homem, mulher ou qualquer um dos demais duzentos sexos. O clichê é inevitável: "Marros Crepons Marfins" nasceu clássico.

Este ano, ainda agora em julho, uma outra sensível novidade desceu às prateleiras das livrarias da cidade, em forma de livro de bolso e com nome de mulher - um nome, por si só, ainda mais sugestivo, com suas três letras já paridas em forma de verso autônomo. É "Menina Gauche", o minimanifesto poético de Ada Lima, a mulher de verso afiado disfarçando-se por trás de um título-armadilha. Basta ler o livro ainda recém-lançado para abrir o bocão e gritar novamente o mesmo (e bem-vindo) clichê: "Manina Gauche" nasceu clássico. A poesia que ilustra a contra-capa já anda por aí, em colunas de jornal, blogues amigos e antenados, nas bocas que repetem seus versos tão metalinguísticos quanto carnais: "Golpeia / a folha / com fúria: / a carna / do papel / não sangra."

Na minha leitura pessoal, que tem a ver com o patrimônio que acumulei ao longo da vida lendo essas poesias e essas mulheres, encontrei outros elos entre a estréia de Marize e a chegada de Ada do que o que já está exposto nos dois parágrafos anteriores. É como se Marize, ao revitalizar a voz feminina na poesia potiguar dos anos 80, tivesse espalhado pelas páginas e pelo ar uma torrente de informalidade poética, de descompromisso afirmativo que, uma vez realizado, permite que, agora, Ada pratique uma poética mais voltada para a criação de sugestivas imagens e para o estudo do potencial do verso. A nova poeta Ada não precisa mais espanar a prateleira do gênero - um trabalho pesado que a antecessora Marize já fez com luvas vermelhas e irônico perfume de jasmim - e pode, então, dar-se ao prazer de resensibilizar, até pela via do feminino, a construção do discurso.

Assim: a Marize de "Marfins" invocava Cary Grant, ícones pós-modernos, belle époque, túnicas indianas, minotauros e outros apetrechos verbais para compor uma poesia entre terminal, escandalosa e carente. Uma poesia com o espírito dos anos 80, quando todos éramos um pouco dark e o suicídio, um apelo distante, porém charmoso - uma imagem, válida. O resultado eram versos assim: "A fúria que há em mim / não sacraliza nem ousa / Serpenteia pelos séculos / rompendo finas louças.". Ou assim: "Sagaz minotauro / reli teu recado / me perdi em pecados.". Ou assim: "Enquando morremos / nesses macios lençóis / de escarlatim / alguns pares / de esparpins / quebram os saltos / por algum amor / assim".

Lendo a Ada de "Menina Gauche", é possível ouvir os ecos daquela Marize, reprocessada mais de duas décadas depois em versos assim: "Uma ninfa e um marujo / habitam em mim. / sinto fome / de algo / que não tem nome. / Tenho sede / de coisas inexistentes / que vivem nas pontas dos meus dedos / palpitantes / e suados / como alguém em derradeira agonia." Ou assim: "Perdi a chave do baú. / E agora, coração? / Não há quem fale por ti." Ou assim: "Apenas deságue em mim / e faça surgir / um coração / em meu ventre.". Ada vai além e engendra imagens inesperadamente interessantes, num efeito tão mais impressionante pelo fato de precisar gastar pouquíssimas palavras para tanto. Vejam: "Pisou-a / porque o asfalto / não é lugar para flores" (impossível não lembrar da "rosa do asfalto" do poeta Carlos). Há ainda uma terceira vertente - além do aspecto feminino reliberado e da criação sintética de imagens já comentados - que é a pura reflexão sobre o sentido, algo inapreensível mas sempre fascinante, do exercício da poesia. Como em "Dessossei a poesia / e deitei-me / sobre ela. /À noite, / tive sonhos mudos."

E uma última analogia entre essas duas belas figuras que marcam duas gerações com sua presença humana e poética: a felicidade de produzir um aforismo exato. Está em "Marrons": "A dor é um anjo por si só". Está em "Menina Gauche": "As palavras preferem os poetas tristonhos".

terça-feira, 15 de julho de 2008

segunda-feira, 14 de julho de 2008

A missa eleitoral

Nesmo momento, a Câmara dos Deputados espelha como nenhuma outra instituição o oposto do país. É como aquela canção de Caetano, "o avesso do avesso do avesso". Enquanto lá fora, no mapa do Brasil, pululam pontos em forma de cidades que se desdobram em vista de mais uma eleição, aqui reina este silêncio quebrado apenas pelas conversas de funcionários que mantêm serviços na ativa - seja um canal de televisão ou a limpeza impecável de plenários, salões e corredores.

Sim, reconheço: em grande parte de tais campanhas municipais vale mais o apoio ocasional, o acordo conveniente, o agrado eleitoreiro. Mas cada um desses pecados faz parte dessa missa que estamos, aos trancos e barrancos, tentando celebrar já lá se vão uns vinte e poucos anos. Não sou eu que vou bancar o padre mau humorado e passar sermão na molecada que grita na hora da homilia. As crianças vão crescer - o padre vai ficar mais tolerante. E rezaremos todos.

É de outra reza que estou falando, sob o peso bruto dessa metáfora banal. Mas há outras rezas em andamento - outras missas, involuntariamente tão metafóricas que quase levantam a batina do padre. Na campanha eleitoral em Natal, a religiosidade do voto deu o tom nos últimos dias. Candidatos à Prefeitura e à traição sentados lado a lado, numa confluência que seria louvável não fosse tão conveniente. Ali, no meio do banco, espremida entre a santidade governamental do estado, a candidata Fátima Bezerra parecia uma cabocla beata. Justo ela, a - felizmente, e supostamente - menos religiosa entre todos os santos da capela. Mas menos hipócrita, também - e a santidade auto-invocada, qualquer ateu sabe, pode ser muito mais nefasta.

Ao lado dela, dividindo o mesmo e cultuado banco, a adversária, Micarla de Souza, com a tez de menina de catecismo ligeiramente melhor educada nas coisas do Senhor. Perto dela, Fátima parece uma pagadora de promessas cansada - e as leituras que tais imagens proporcionem estão liberadas para todas as interpretações que a Justiça eleitoral permitir. Além desse limite, só mesmo recorrendo aos padroeiros e padroeiras presentes, sem que se precise torcer o pescoço para a vista alcançar os altos nichos. Ficam ao nível do chão mesmo, cuidando de manter erguida suas mãos energizadas, como espíritas que generosamente oferecem seus passes aos candidatos à unção, a beata Fátima e a noviça Micarla.

A dádiva está ali - e é para todos. É isso o que o sermão afirma. Quem tiver carisma para arrebanhar o maior número de fiéis fica com o butim dos apoios. Pelo menos é o que parece aos olhos de quem, no fundo virtual da capela, espiona a novena.

Deserto amado

Quando nasci, já senti o cheiro de pó, seco, quente, a matéria oposta ao mormaço que queima as dobras das palmas da mão. O ar chicoteado por rajadas de vento fervente do meio-dia, que vinca o rosto, escava máscaras na face dos meus irmãos. Era noite, mas ainda assim, quando do meu nascimento, o sol torrava seus raios adormecidos, prontos para despertar no primeiro galo e despejar sua fúria amarela na primeira manhã. Eu era um pequeno ser vivo irrompendo no chão seridoense. Naquela noite, na manhã seguinte, todos os dias, até hoje, seridoenses pipocam na paisagem encandiada por tanta luz, tamanho calor, brutal desmatamento. Um oitão vale ouro em terras assim.

Sou um que surgiu ali e se criou. Como eu, há muitos outros de mim – inclusive os que, muito mais fortes que eu, lá permanecem – austeros, firmes e sorridentes. Gilton, Antônio, Taísa, Augusto. Como eu, há muitos outros de mim que também se ausentaram, agoniados de ver outras terras, peneirar outras poeiras. Ítalo, Zuleica, Moacy. Os nomes vão enchendo os horizontes, aqui, lá, e a dança da migração levanta seu pó sem no entanto encobrir nunca a paisagem primeira. Boqueirão, rio, capelinha na serra – o piquenique à sombra da velha oiticica.

Hoje é oiticica com buriti, ladeira do boqueirão com eixo monumental, ginásio estadual com campus universitário, monsenhor Amâncio Ramalho com Dom Bosco. Subir a ladeira do sol e descer a ladeira do Ovidão, pegar a tesourinha da 316 Norte e ir parar na casa da minha avó no Beco Estreito. Transitamos da poeira ao mar, do asfalto à grama – seridoenses surgidos daquele chão, nômades convictos, portadores de um catecismo regional caro a quem o detém e de força desconhecida para quem nunca por ele rezou.

Está num blogue amigo: relatório do governo reafirma o que já se sabia, que a região do Seridó é uma das mais secas do país e das que se encontram em situação mais grave quando se fala em algo básico como é a capacidade de um lugar de se fazer habitável. Um território pronto para virar deserto. Na maioria dos municípios, a expectativa de vida está abaixo da média nacional. Neste país sentimental para tantos, vivem 30 milhões de brasileiros, dos quais 90% sobrevivendo com menos de R$ 75,50 por mês. Eu poderia ser um deles – digo, eu SOU um deles. Ítalo é um deles, Gilton é um deles, Augusto é um deles. Uns continuam lá – e, lendo tais relatórios, me pergunto o que diriam quando confrontados com esses levantamentos.

Certamente não se veriam, Antônio e Taísa, representados por realidade estatisticamente tão redutora. Mas é que lá, como aqui – triste entorno de Brasília com seus catadores de lixo de Valparaízo; triste peleja dos subúrbios natalenses – há uma bela, viva, teimosa e insistente diversidade que escapa ao corte sociológico. É por isso que, quando o relatório do governo diz que lá, no Seridó (e nas regiões de Irauçuba-CE, Cabrobó-PE e Gilbués-PI) “a vida do brasileiro é a pior e a mais difícil”, nem parece. Porque não é – mesmo. E é – claro. De maneira que, sendo, por vezes, tão ruim, ao mesmo tempo pode ser arejado como a sombra de um oitão, abrigado sob um paredão de reboco meio comido, com a proteção que só as casas velhas dão.

Estou aqui, Gilton está em Parelhas, Ítalo em Recife, Augusto já passou por Campina, Taísa gostava de Currais Novos; e o fato é que, saqueado pela falência do algodão, desmamado pela pecuária igualmente infeliz, e derretido pelo calor das cerâmicas que mastigam lenhas, o Seridó esturricado e feliz vive plantado no solo interior da gente. Indiferente ao relatório do governo, alienado de matemáticas tão opressoras quanto mais exatas sejam. Felizes ao saber do nascimento de novos seridoenses – lá mesmo ou nos galhos de suas árvores partidas, Cecílias e Bernardos frutificados em compotas temporais. Lá mesmo, outros seridoenses vão brotando, um Rafael que desafia a álgebra do especialista, expondo-se à provação, espantando o deserto que se aproxima cada vez mais.

Cada um que nasce é um quilômetro a menos de desertificação – um arbusto abusado desafiando o sol, gaiato como um bom caicoense, marginal à sua maneira, outsider sem grife, viajante nato dentro de seu próprio território. Que a terra seja deles, como o ar que respiramos.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Um cinema desiludido


Tommy Lee Jones vem se tornando a nova face da América desiludida. É assim que ele aparece em pelo menos três filmes recentes: o árido drama sobre fronteiras e imigração "Três Enterros", que também dirigiu; a sufocante jornada de "No Vale das Sombras" (Paul Haggis), onde interpreta um pai em busca do filho desaparecido em meio às batalhas do Iraque; e "Onde os fracos não têm vez", o filme que deu o Oscar mais consagrador à dupla Ethan e Joel Coen. A ficha me caiu enquanto assistia, com algum atraso, a este último título.

Se era para funcionar como reconhecimento ao cinema dos irmãos Coeh, o Oscar de melhor filme dado a "Onde os fracos..." não chega a fazer justiça à dupla. Todos nós, freqüentadores dos cinemas, do vídeo e do DVD, nos acostumamos a identificar a dupla de cineastas como autores de peças marcadas por um humor do tipo non sense. Era com essa arma irônica que eles costumavam levantar o cobertor que esconde o ridículo de muitas das convenções do universo mais norte-americano. É isso o que se vê, por exemplo, na comédia quase maluca que é "O Grande Lebowski"; é também o que fica do só aparentemente violento "Fargo".

Em "Onde os fracos não têm vez", parece que os rapazes resolveram subir um degrau, colocando um pouco mais de seriedade na proposta. O filme é descrito em jornais, revistas e afins como um tratado sobre a violência extrema dos dias atuais, essa crueldade que chega em ondas não se sabe de onde, num quadro absurdo que causa sofrimento ao mundo e torna tudo um grande absurdo.

Absurdos são a especialidade de Ethan e Joel Cohen, mas desta vez o discurso audiovisual deles sobre o tema resultou anticlimático demais. Tirando o cabelo estilo Beiçola que Javier Bardem exibe e o uso inusitado de um tubo de ar comprimido como arma letal pelo criminoso, praticamente não há humor no filme. E o humor, repito, era a arma mais letal da dupla. Nem tanto a violência estilizada, comentada, às vezes ridícula de tão exagerada que ocorria em filmes anteriores.

Sem o humor ferino, restou a violência pura. E o que eles pretendiam retratar como quadro nefasto de uma realidade atual e inexplicável resulta na tela como exibicionismo. Você não sabe até que ponto há um lamento diante de uma violência que engoliu as civilizações e até que ponto o filme se aproveita do temor gerado por essa mesma violência para envolver o espectador.

Há os registros inevitáveis: os bem engendrados planos gerais, a performance de atores tarimbados, a evocação dos antigos faroestes, a inspiração em um livro de Cormac McCarthy. Mas a reunião de todos esses elementos parece, ao final, compor um quadro sem moldura – um questionamento sobre a violência desmedida que, ao situá-la em contexto tão específico do interior norte-americano, padece de uma significação mais geral. A metáfora está lá, mas também está fora do filme. E é preciso juntar as duas partes para dar sentido à sua construção. O filme, sozinho, visto sem a moldura das entrevistas de atores, diretores, roteirista, não expõe de todo o seu propósito. Nisso, é um filme muito semelhante a outro sucesso recente, "Sangue Negro" (Paul Thomas Anderson) – o que talvez configure, e isso é algo a se estudar, uma nova tendência do cinema americano atual.

Neste sentido, o fato de os Coeh terem recorrido a um texto de Cormac McCarthy não ajuda muito. Quer dizer: ajuda ao dar uma legitimidade literária, uma licença estética e uma pré-aprovação cultural ao filme. Mas a escrita propriamente dita de McCarthy, um autor difícil, um escritor de westerns barrocos, por si só já coloca no meio do caminho o obstáculo da necessidade de adaptação. É mais um complicador para a plena fruição de um filme que, do meio para o final, vai desabando junto com o seu discurso descrente e derrotado.

Não é, vê-se, um filme que estuda causas e prevê conseqüências diante da violência banalizada que toma como tema. É, antes, um filme que se contenta em apreciar essa violência, desenhar sua manifestação, documentar seu modus operandi, deixar-se cair perplexo diante de sua fúria. Não poderia, sendo assim, deixar de ser incômodo a quem o assiste.

E aqui ele se alinha aos demais citados ao longo deste texto, pois se é incômodo ver "Onde os fracos..." se render à maldade crônica do mundo representada por Javier Bardem, também é exasperante ver Tommy Lee Jones carregar o cadáver literal de uma convivência falida em "Três Enterros". Como também é, em muitos momentos, um fardo assistir ao mesmo Lee Jones ser jogado daqui para acolá, e novamente de lá para cá, como um cidadão perdido num país em crise na busca pelo filho em "No Vale das Sombras".
Coincidência ou não, é sempre ele, Tommy Lee Jones, o espantalho humano estatelado na tela, em quadros estáticos, em cenas desprovidas de ação, fotogramas desiludidos de um cinema rendido ao real. Mas difícil de apreciar, no seus horizontes sombrios e silenciosos.

Árido Movie, segundo Amin


"Árido Movie é uma road-expedição, sociológica e antropológica, ao Brasil profundo. Maconha, crime, vendeta familiar, banditismo rural. Prostituição, clientelismo político, misticismo secular. Escassez de água, disputa de terra, choque cultural, sermões desconexos. Roncos de motos, idiotia rural, rodovias duplicadas, paisagem esturricada. Índios aculturados, machismo estereotipado, matriarcado virago. E a oralidade surreal da última Flor do Lácio: o dialeto arcaico sertanejo redivivo, saldo colonial, em diapasão dissonante com o maconhês metropolitano, herança linguística da contracultura.

(...)

Vez por outra, num criativo fatalismo cíclico, surge um novo olhar sobre a velha paisagem e suas almas secas. É o caso de Árido Movie, com sua originalidade lisérgica a se contrapor ao acumulativo histórico realista, teatralizado. O que interessa aqui é o relato cambaleante do inconsciente. O realismo já cumpriu o seu papelão histórico. Muito embora o cenário, os personagens, os sentimentos e os conflitos, como sabemos, sejam absolutamente iguais aos de antes. Mas, liberto e distanciado do realismo, Árido Movie desbrava o sertão deste início de século como os olhos livres, e é também, dessa maneira que o filme pede para ser visto."

(....)

É nessa suposta imperfeiç~çao que Árido Movie cumpre sua melhor performance. É como se o filme incorporasse o destino errático - geográfico e humano - do sertão, impregnado de sua, agora atualizada, taxa luminosa de desordem. Beleza mais que imperfeita, falsa promessa de felicidade. Bem brasileiro."

AMIN STEPPLE HILUEY, em "Sertão e Lisergia", sobre o filme Árido Movie (Lírio Ferreira), TEOREMA número 9, Julho 2006.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Gabeira, segundo Beirão

"Fernando Gabeira é, como se sabe, político de muita personalidade. Só assim mesmo para merecer as páginas amarelas da revista Veja. Coincidentemente, Gabeira e Veja hoje em dia se parecem muito. O ex-guerrilheiro de tanguinha entrou naquela molecagem da oposição de levar Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara dos Deputados - só para aborrecer o governo Lula. FHC articulou o trote. Eleito Severino, a graça da molecagem acabou. Aí, muito nervosinho, Gabeira ajudou a derrubar o homem que ele e seus asseclas tinha decidido promover. Desliza hoje pelos tapetes do verdadeiro poder (isto é, a Rede Globo), com garbo cuidadoso, para não deixar que lhe caia do peito aquela medalha da ética que atribuiu a si mesmo. Virou tucano. Tudo a ver com convicção e com nariz."

NIRLANDO BEIRÃO, em Estilo (São outros 500), Carta Capital, junho 2008.

As bolhas, segundo Belluzzo

"Primeiro é a fantasia do enriquecimento rápido, sem causa, milagroso, fruto de alguma esperteza inata ou habilidade singular; segundo, a formação de um consenso sobre o ineditismo das circunstâncias que parecem justificar a valorização rápida dos papéis (sempre há uma 'nova economia'); terceiro, o envolvimento de bancos na especulação, fornecendo crédito abundante para alimentar a euforia; quarto, o avanço do endividamento dos investidores, disfarçado pelos valores cada vez mais inflados da riqueza financeira ou imobiliária; quinto, a 'correção de preços', decepção e quebradeira."

LUIZ GONZAGA BELLUZZO, em "Expectativas Irracionais", Carta Capital, junho 2008.

Quinteto sem Toinho

Devia ser o mês de abril ou maio. O ano era 1995. Talvez eu ainda não soubesse, mas dentro de muito pouco tempo estaria me mudando de Natal para Brasília. Se era assim, eu bem que merecia uma bela despedida. E foi o que tive. Vista da perspectiva de hoje, aquela noite, com aquele show, naquele local, o Teatro Alberto Maranhão, foi a minha despedida particular dos dez anos de moradia em Natal.

Quem tocou e cantou para mim naquela noite de despedida simbólica foram os caras do Quinteto Violado. Aquele foi um senhor espetáculo, marcado pelo brado generoso e negro de Toinho Alves, o contrabaixista do grupo, aboiador sinfônico na cena aberta do teatro. Admiro até hoje o conjunto como um todo, sinto compulsão de me ajoelhar quando ouço o Quinteto cantando a música que virou tema da Festa de Santanta, em Caicó – "todo ano tem / uma festa famosa na região / é a festa de Santana / padroeira do sertão". Mas quando lembro do Quinteto, meu pensamento costuma fundir todos os seus integrantes na figura única de Toinho Alves. Naquele noite, melhor do que aquele vozeirão ricocheteando entre as frisas do nosso TAM, só mesmo o coro da platéia, quente e emocionada, estridente e participativa, acompanhando o grupo entre ondas de palmas e outras manifestações vibratórias.

Algum tempo depois, mas não muito, já morando em Brasília, surpresa: o Quinteto vem à capital do país apresentar o mesmíssimo show. Lá estamos eu e Rejane, saudosos nordestinos entre tantos outros na platéia. Foi o mesmo show, mas a cerebral recepção da platéia brasiliense, mais fria do que a potiguar no que isso tem de bom e ruim, tornou tudo um pouco menos interessante. Como faziam falta as intervenções gaiatas dos potiguares loucos. No final, improvisou-se uma ciranda – com a participação do então governador Cristovam Buarque, que estava presente e invocou sua natureza pernambucana – mas não era a mesma coisa. O que num momento, em Natal, foi uma bela despedida, em outro, nos primeiros meses de Brasília, foi uma missa de saudade. O show era o mesmo, mas, como já disse tantas outras vezes neste blogue, há momentos em que as circunstâncias são tudo.

Esta semana, outra noite, outro dia, uma nova circunstância se meteu nessa história e é por isso que volto ao assunto. Estava em busca de notícias do Seridó no blogue de Suerda Medeiros quando os ecos daquela missa da saudade se fizeram ouvir novamente. Encontrei, surpreso, uma postagem noticiando a morte de Toinho Alves, pernambucano de Garanhuns, nordestino querido, músico e poeta do canto, a minha eterna imagem do Quinteto Violado. Como diz minha mãe, que Deus se lembre da alma dele - espírito cantador da saga de um povo.

terça-feira, 8 de julho de 2008

3 anos


Hoje é feriado sentimental aqui em casa. Cecília completa 3 anos. Há bandeiras comemorativas invisíveis espalhadas por toda a quadra, do Golfinho Dourado à comercial. Só a gente vê tais bandeiras, mas como elas brilham contra o céu de Brasília! Viva Cecília!

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Bem na foto

Sábado à noite, num estúdio fotográfico em Natal, juntaram-se duas pessoas muito importantes na vida dessa cidade: o fotógrafo Giovanni Sérgio e a deputada federal e candidata a prefeita, Fátima Bezerra (PT).

De um lado, o primor da técnica iluminada pela sensibilidade. Giovanni, de longe o melhor fotógrafo da cidade - que é farta em talentos nessa área - é aquele sujeito cabreiro de olho atento, comentários certeiros, palavras muito bem escolhidas e ainda melhor distribuídas nas frases da conversa mais rotineira. Melhor do que falar da fotografia consagrada de Giovanni é fazer uns comentários sobre a maneira como ele bate um papo com a gente, sacando idéias e propondo questões da maneira mais casual, mas - e aqui está o detalhe da conversa que desvenda a qualidade do fotógrafo - sempre marcado pela exatidão. Poucas palavras, muito significado: fotografia, eis a conexão.

De outro lado do encontro de sábado à noite, a sindicalista que testemunhou um outro tempo, pôs-se à prova em eras de greves, passeatas e assembléias, mas sabiamente soube se reformatar conforme a mudança dos ventos, a revisão dos conceitos, a guinada histórica que o país atravessa e muita gente se nega a ver. Fátima Bezerra, presidente do Sindicato dos Professores do RN, tratava a nós, humildes repórteres da editoria geral, como "nêgo" - o doce carinho que faz a gente perdoar toda e cada um das burrices da esquerda. Depois, Fátima se fez deputada federal e, nessa condição, viu-se em palanque aberto ao apedrejamento como toda uma geração de parlamentares petistas eleitos na primeira onda Lula. Parte dos ocupantes desceu do palanque com um discurso ético na boca e uma idéia oportunista na cabeça. Parte se manteve lá, suportando as pedradas no trabalho diário do exercício da política. Fátima teve a sabedoria e a paciência de permanecer no palanque avariado e só por isso eu já seria seu fã. Mas ela não ficou parada por lá: ela esteve à frente de complicadíssimas negociações salariais entre várias categorias do funcionalismo público e o Palácio do Planalto. Soube administrar a ansiedade classista dos servidores e a disponibilidade prática do Executivo. Não ficou no discurso, não se pendurou na corda da ética. Continuou trabalhando, como vaticionou Lula, segundo Gilberto Carvalho. Tampouco se escondeu por trás de um p-sol. Agora, está novamente colocando seu rosto, sua prática e sua história na janela eleitoral com que o brasileiro vai redefinindo o país.

Então: sábado à noite, Fátima se encontrou com Giovanni. Entre os dois, um equipamento fotográfico, idioma de tradução livre entre vários outros que pretendem, lançada a campanha, projetar a imagem da candidata. Foram três séries de fotografias, com a produção que a candidata merece e a dedicação que o fotógrafo sugere. Você certamente vai ver por aí, nos muros ou nos folhetos, o resultado dessa sessão de fotos. Quando a vir, repare: lá não está somente a face da candidata, mas o rosto de um projeto. Não deixa de ser uma propaganda, uma imagem publicitária. Mas também é impossível que tal imagem não contenha o halo da percepção que marca o clic do fotógrafo. Seus olhos verão Fátima, em campanha. Mas seu cérebro, ainda que inconscientemente, vai registrar Giovanni, em ação.

P.S: Essa postagem abre um novo marcador no Sopão, que certamente será muito utilizado a partir de agora: "Campanha eleitoral".

domingo, 6 de julho de 2008

A realidade do Poema


Está enganado quem achar que não passam de invencionices as agruras vividas pelos artistas de circo de "O Poema do Caminhão", o texto de teatro que escrevi e a Flor do Sal transformou em livro. Antes de mais nada, tenho que admitir, também me incluo nisso. Nem de longe eu imaginava que fosse tão alto o preço de uma lona de circo, só pra ficar num exemplo bem prático. Nem em pensamento eu poderia imaginar que fosse tão marcada por sacrifícios a busca por um terreno baldio, público ou particular, onde os pequenos circos de periferia possam instalar sua lona e levar seu espetáculo pobre, porém iluminado.

Pois a edição deste domingo da revista do jornal O Globo trata justamente da penúria em que vivem esses artistas - como Birimba e Velho Chico, personagens do "Poema do Caminhão" - e seus circos em fim de carreira. Segundo a reportagem, o que mais os donos desses circos querem na vida é uma lona nova. E sabe quanto custa? R$ 20 mil. Os repórteres contam a história do circo Koslov, que "fechou" sua lona podre depois de uma noite em que não mais de dez pessoas assistiram ao espetáculo. Pois bem: o dono não resistiu e, dias depois, reabriu com uma lona "alugada", isso mesmo, a R$ 400 por mês. Desse jeito, só mesmo botando os malabaristas e palhaços para se apresentarem na carroceria de um caminhão.

"Se pudessem", conta a reportagem, "os circos entrariam também num concurso para arrumar praças livres, sem tanta burocracia com as prefeituras ou com aluguéis mais baratos em terrenos particulares."

Outra surpresa: circo é tradição familiar, portanto, não me espantaria com o fato de crianças praticarem desde cedo a fim de se tornarem grandes malabares, notórios trapezistas, irresistíveis palhaços no futuro. Mas daí a encontrar o que narra a reportagem... crianças de três (três!) anos se apresentando como palhaços - ainda que como quase figurantes em cena - é de dar o que pensar. A revista do Globo conta o caso de um circo cujas três "estrelas" são as filhas do dono - "Laura, de 10 anos, faz corda, trapézio e o palhaço Bolinha. Inara, de 8 anos, é contorcionista e acrobata. Maria Lúcia, de menos de 2 anos, já entra no palco para fazer figuração, ajudar a tia".

No texto "O Poema do Caminhão", e quem já leu já fez a ligação, tenho certeza, há um personagem assim - é o Menino Pingo, desvalido, pidão, meio preguiçoso, ligeiramente malandro, presume-se. Acho que nem Birimba e Velho Chico implorando conseguiriam impor a ele a carga de trabalho que essas outras crianças citadas pela reportagem carregam. Bela magia miserável, a desses circos - tristes cargas, a que carregam.

É a tal história: a realidade sempre pode ser superior à mais cruel das ficções.

O suicídio, segundo LFV

Achados e perdidos na crônica dominical de Luís Fernando Veríssimo:

"É o nosso corpo que nos mata. Matá-lo primeiro, francamente, me parece uma forma de colaboracionismo."

Parceria, segundo Walter


"A parceria nem sempre se dá ao nível de estar trabalhando juntos. Ela se dá também por notas comuns. Às vezes, eu faço um plano num filme meu e penso no Bressane, ou no Beto Brant, ou no Luiz Fernando Carvalho, ou no Waltinho Salles. Penso: ele vai olhar e se lembrar de mim, porque eu estou vendo ele aqui, nesse plano. A parceria se dá também pela ausência."


Falou Walter Carvalho, fotógrafo de "Lavoura Arcaica" (na foto, Raul Cortez no filme de LFC). O irmão do documentarista Wladimir de Carvalho dirigiu, em experiência solo, a transposição para o cinema do livro "Budapeste", de Chico Buarque, em fase de montagem.

Fotogenia, segundo Walter

"A fotogenia é o que agrada ver. Eu acho que, na fotografia de cinema, ela não deve ser um objetivo. Pelo menos pra mim não é. Nem sempre o plano que conta, expressa, revela, comove, transcende, é belo. No entando, tem uma força ali dentro, inesperada. Muitas vezes a força do que contém aquilo enquanto expressão é maior do que a fotogenia. Os documentários estão repletos disso."

P.S: "Amarelo Manga" e "Baixio das Bestas", filmes do pernambucano Cláudio Assis, comprovam as palavras de Walter Carvalho, que fotografou o primeiro.

Pintura e cinema, segundo Walter

"Um Caravaggio não tem significado pra mim por causa da luz. Não vejo por aí. O que vejo é que há uma narrativa, uma teatralidade, um pensamento, um discurso prictórico. E o cinema é exatamente isso"

P.S.: Giovanni Sérgio (a quem agradeço pela presença no lançamento de "O Poema do Caminhão") chamaria tudo isso de "um propósito", como constatei certa vez numa conversa em casa de beira de mar.

Fotografia, segundo Walter

Por falar em Walter Carvalho, veja só o que o fotógrado de "Carandiru" e "Amarelo Manga", entre outros filmes, andou falando na revista do jornal O Globo deste domingo:

"Fotografia não é para aprender, é para praticar. Quando você pensa que fez uma foto, revela, amplia e olha, não é nada aquela foto. Você fala: puxa, mas eu senti que tinha uma coisa ali. E não tem. Você tem que jogar fora e continuar. Você não aprende, você pratica, você procura. A fotografia é uma coisa pra se procurar. E você não encontra. É ela que encontra você."

Flip-se quem puder (2)

Naquela enquete meio anêmica que O Globo realizou entre as celebridades literárias da Flip, uma escritora portuguesa - já que eu infelizmente não estou lá, também não me considero obrigado a ser exato nas identificações - citou "Anna Karenina", o clássico de Tolstoi. Ela não conseguiu ir até o final mas, como todos os entrevistados, declara que sempre soube disfarçar muito bem.

A pauta é banal, os escritores bem poderiam estar sendo provocados a falar de coisas mais importantes, mas ainda assim o chute da escritora portuguesa bateu na minha trave. E quase foi gol: eu também iniciei a leitura de "Anna Karenina" e a deixei inacabada, triste constatação. Mas não foi por dificuldades com o texto - nem poderia, afinal a prosa de Tolstoi não se tornou clássica por acaso. Acontece que a edição que peguei emprestada para ler, da Biblioteca Municipal de Parelhas, bem distante de Paraty, era dividida em dois volumes. Devorei o primeiro durante umas férias nos tempos de estudantes da UFRN e, vencido pelos desencontros e novos interesses da vida universitária, nunca mais peguei o segundo volume para continuar.

Como todo mundo, sei que "Anna Karenina" morre no final - joga-se na linha do trem, não é isso? Mas, como diz o fotógrafo de cinema (e também cineasta, agora mesmo fazendo seu primeiro filme "solo", "Budapeste") Walter Carvalho, "não me interessa uma história factual, em que fulano saiu, foi para a casa de cicrano e matou beltrano... o que me interessa é filmar o que as pessoas sentem". O sentimento de Anna Karenina ficou boiando nas lembranças que eu tenho do livro, de vastos parágrafos, tensas narrativas, aluvião de palavras compondo um painel de uma época e o retrato subjetivo de uma mulher. Qualquer dia, recomeço e vou até o fim.

Flip-se quem puder

O vasto noticiário sobre a feira literária de Paraty é de cutucar a inveja do mais recluso dos escritores. O que dirá então dos leitores? Ler sobre este tipo de evento nos jornais dá sempre a impressão de que se está tentando agarrar o nada. Não é que a feira seja inútil nem que sirva de canal para o marketing das editoras, nada disso. É que é o tipo do acontecimento que só tem graça mesmo quanto se está participando dele, fisicamente, na data e no local. Ler sobre a Flip é um exercício de despredimento de altíssima potência. Quando mais se lê, mais se sofre. Quanto maior a badalação dos presentes, maior é a frustração do ausente.

É como os festivais de cinema. São ocasiões interessantíssimas se você está presente, circulando entre mil e um tótens de vaidade. Uma vez, em Natal, uma atriz conhecidíssima na época chegou para dar uma entrevista coletiva e fez questão de que cada um dos seus anônimos e provincianos entrevistadores se apresentasse - e por aí vocês vêm que o constrangimento também faz parte da festa. Mas, até para isso, é preciso que o cristão esteja lá, em pessoa. Pelos jornais, tudo que vem de lá soa ainda mais falso - embora, presenciada, a falsidade de Flips e festivais seja bem divertida. Um exemplo desse caráter postiço é a própria pauta jornalística que tais eventos inspiram: na edição do jornal O Globo deste domingo, celebridades da Flips contam qual é o grande livro que nunca conseguiram ler. Alguém é capaz de pensar em assunto menos chapado para um lugar onde vicejam tantas cabeças inteligentes?

Cristo em brasas



“O Evangelho segundo São Mateus” (Pasolini, 1964), é bem um produto de seu tempo. Filmado com elenco de não-atores, despido de qualquer traço de realismo épico, é um filme tão descarnado, tão propositadamente não-profissional, feito com tamanha aversão à técnica que, no limite, transfigura tudo como poucas vezes o cinema convencional consegue. Mas é um filme de seu tempo, do tipo que somente os anos 60, com sua mistura de conflagração social e espírito revolucionário exposto ao auto-sacrifício, conseguiria produzir.

É esteticamente menos alegórico do que se espera e liturgicamente mais agressivo do que se imagina. Os melhores momentos são os sermões exaustivos e verborrágicos de seu Cristo, que funcionam como chicotes verbais para-religiosos. Soam como discursos nos auto-falantes de uma era auto-imolada. Como a música daquele tempo, os sessenta, com suas harmonias transgressivas e suas intenções de igualdade melódica. A crucificação propriamente dita, que normalmente é o forte em filmes ditos bíblicos, fica em segundo plano quando comparado a tais sermões. É como se o diretor dissesse: o verbo fala mais alto que o sangue, numa sentença que contraria o fundamentalismo cristão de Mel Gibson.

Do que se vê, transparece também uma outra fidelidade à tragédia bíblica: ao assistir ao filme, pressente-se ao longe o quando pode ter sido difícil a adesão inicial àquele Cristo nem um pouco bondoso, àquele pregador de ameaças justificadamente peremptórias. As cenas mostram os apóstolos sendo arrebanhados num estado de quase transe – como se essa fosse a única forma possível de adesão naquele tempo e lugar, tamanho o absurdo da proposta de tal profeta. E tudo o que o nosso manso cristianismo de sacristias interioranas nos entregou como doces palavras de catecismos de bolso, de repente retorna na forma de ensinamentos quase blasfemos de tão impensáveis para a humanidade da época (pra não falar da atual). Sentenças do tipo “amar ao próximo sob todas as barras”, “oferecer a outra face quando a porrada vier”. O cristão das primeiras levas tinha que ter costas de aço e mãos de pedra.

“O Evangelho Segundo São Mateus” exibe um Cristo bruto, que conta parábolas como quem vomita impropérios. Um Jesus fisicamente frágil e espiritualmente em fogo, que incita a compaixão humana com uma afiada adaga verbal na ponta da língua em brasa. Teste sua religiosidade submetendo-se ao seu corte – ou passe seu ateísmo de chumbo sob a lavra desse Jesus-dragão. Muito provavelmente você vai se ver refletido nos muitos e muitos rostos que ilustram, comentam, sacralizam ou humanizam o filme, em closes expressivamente vivos que surgem na tela o tempo todo, costurando os fios da história em questão.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Noite boa (mais fotos)




Pela ordem, de cima pra baixo: os catecismos poéticos da Flor do Sal; a conversa com Rosalie e Bartolomeu; o quarteto que formei com Flávia, Ada e Márcio; e a fotógrafa paralela do evento, Titina.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

A derrota, segundo Magno (entreblogues)

Escrevi o texto da postagem anterior com um olho no teclado, a cabeça nas lembranças de ontem à noite e com a pulga - aquela que mora atrás da orelha - cochichando, ardilosa: "cuidado, Carlos Magno está lá no canto dele, decifrando muito melhor a derrota. Perca seu tempo, não. Tião, respeita Carlos Magno." Não dei ouvidos e o resultado está aí. Depois de ler o texto abaixo que roubei do blogue do Magno, você lê se quiser a postagem logo abaixo - eu dispenso, na boa. Seguem a palavras do moço do Diário de Natal:

Meus heróis morreram de overdose

Thiago titubeou na hora em que não podia – nos segundos capitais que separam o Peter Parker do Homem Aranha, o Clark Kent do Super Homem. O goleiro Ceballos, um malandro embaixo das traves, um Doutor Octopus, e Guerrón, um Carl Lewis redivivo e infernal, um Lex Luthor. Uma LDU de onze leões.

Depois de verem a seleção perder a Copa de 1982 e a de 1986, nos longes por aí – com roteiro parecido –, os tricolores mais vividos têm agora um “maracanaço” para chamar de seu, um sofrimento particular e inesquecível, não de todo pintado de tristeza porque a festa da torcida na entrada em campo foi a mais bonita que se viu nos últimos anos no futebol brasileiro. É a flor que nasce no asfalto quente.

Se fosse administrador, eu diria que aquele milhão de crianças que choraram ontem são a partir de agora, nomeados pelo destino que os colocou ali, multiplicadores de uma paixão. É deixar o tempo flui – e florir.

Uma disputa por pênaltis não é uma loteria. É uma disputa de pênaltis – e vence, como deve ser, o melhor. Sem roteiro de mocinho e bandido. Seco e pragmático. O futebol é, como disse Armando Nogueira, um microcosmo da vida.

The end

Se fosse um livro ou um filme, seria um grande final. Mas embora se trate de manifestações de outra natureza, também foram um capítulo final digno de nota nas nossas melhores memórias narrativas. Não estou falando da literatura de fato, nem do cinema convencional. O assunto aqui é a gramática expositiva do futebol e linguagem da realidade mais cruel. Estou falando das duas maiores notícias do dia de ontem, quarta-feira, 2 de julho. Notícias que se misturaram nos noticiários do fim de noite – a derrota do Fluminense para a LDU na final da Libertadores e a libertação de Ingrid Betancourt na Colômbia.

A narrativa do futebol teve um brusco prólogo marcado pelo gol inesperado do adversário, viradas vibrantes protagonizadas por Thiago Neves – um dos grandes personagens da noite, que também teve outros -, vales de palavras desperdiçadas na forma de gols prontos e perdidos, ganchos irresistíveis no entra-e-sai de pausas, tempos, contratempos e shows de intervalo, um epílogo desesperador dividido em duas módicas porções de 15 minutos de ansiedade e, ao final, a figura dramática absoluta dessa forma de expressão humana chamada futebol – os pênaltis, sempre eles.

Não tenho maiores ligações com futebol, embora, quando perguntam, me apresente como torcedor do Fluminense. São coisas de eras perdidas, quando eu era um menino, Rivelino era um herói quase stalinista em sua imponente figura setentista e a rua inteira era tricolor. Mas tenho atração por eventos que reúnem o país diante dos aparelhos de televisão. Gosto da sensação de dividir com a massa a participação nessas grandes audiências nacionais. Por isso, assisti ao jogo de ontem – sem, naturalmente, ter acompanhado um só dos capítulos que antecederam o desfecho da noite passada. Me interessava a sintaxe do enfrentamento, a prosódia do evento, aquele condição que faz de uma partida de futebol muito aguardada um momento de transfiguração para jogadores e de êxtase para espectadores. Para além da competição, o saldo da nossa pobre e poética humanidade.

Não posso reclamar. Nunca vi 45 minutos passarem tão rápido. Para comparar com uma área que me é cara, faz tempo não vejo no cinema um épico com tal fôlego, tamanho esforço. Com páginas e mais páginas de palavras dribladas no idioma gingado de um adversário sorridente e assustador já a partir do próprio nome – Guerrón. Com a contribuição errática do árbitro que parecia deliberadamente ratificar o xingamento mais comum de todas essas arenas. Com os deslizes igualmente humanos – e tão irritantes no momento em que se dão – de um coadjuvante Washington, predestinado protagonista do instante da derrota. Com até mesmo a obviedade mais ululante, a do impedimento que não existiu e aquela outra, a do gol anulado.

Esvaziado o Maracanã, equatorianos esquecidos, entra o telejornal com a súmula de uma outra narrativa em dramáticos instantes finais. Desta vez, é um final feliz, com o desfecho do que já parecia um seqüestro secular. Há quantos milênios mesmo Ingrid Betancourt estava enfronhado no mato, em poder das Farcs colombianas? Há quantos séculos esse grupo está amarrado à face mais sombria de nossa Latinoamérica? É coisa de muito tempo – não é nem mais assunto para jornalista apressados, é tema para historiadores entediados.

A libertação parece funcionar como a queda da última peça do enferrujado relógio histórico do grupo guerrilheiro colombiano. No refúgio datado do último combatente, as jornadas diuturnas do sol e da lua não servem mais para contabilizar essa matéria tão prática quanto imaginária chamada tempo. Compõem apenas ciclos viciados, rotações imóveis, anúncios naturais e peremptórios do fim que chega tarde. O solo da floresta latina logo vai biodegradar os restos dessa engrenaram viciada, embora as injustiças sobre as quais ela se criou e se apoiou continue girando suas rodas, tonificando suas molas. Mas nas clareiras dos embates políticos há um outro maquinário instalado em terreno novo, sujeito à busca de uma engenharia política melhor. Nela, de nada valem as velhas ferramentas – gigantescas, totais e pesadas. Chaves que não cabem mais nas delicadas fendas e elaborados encaixes das virtuais máquinas dos dias atuais.

Dois finais, sem que o espectador possa escolher alternativas. Experimente se deixar pisotear pela dor de um estádio de futebol inteiro. Permita-se, camisetas ideológicas à parte, comemorar uma liberdade superior às selvas humanas. Alguma coisa terminou ontem, no exato instante em que outras, decorrentes daquelas, nasceram. Uma nova geração de torcedores, uma outra política, possível. The end. E começar de novo.

Carlão, a Flor e os poemas

Meu amigo Carlão de Souza comentou no Substantivo Plural os livros da Flor do Sal, incluindo "O Poema do Caminhão". São palavras amigas e isso tem que ser levado em conta, é claro, mas é uma leitura que desvenda aspectos do texto que o autor não consegue mais, de tão envolvido, delimitar (como a comparação com um cordel de feira, coisa que, pode não parecer, mas nunca me ocorreu enquanto escrevia os versos do poema). Aproveito para tranqüilizar os amigos brasilienses: os livros estão comigo e logo chegarão até vocês. É só uma questão de encontros, telefonemas, e-mails, enfim, logística que, todos sabem, nunca foi o meu forte. Segue o texto de Carlão:

Sobre os livros da Flor do Sal

Tem certas coisas na minha profissão que dão o máximo de prazer e quase ou nenhum retorno material. É o caso de comentar livros de pessoas que conhecemos e gostamos. Pois é com imenso prazer que folheio este livro “Menina Gauche”, de Ada Lima, Editora Flor do Sal, sem número de páginas definido, R$10,00. Ada Lima foi minha aluna de jornalismo na UFRN, uma das pessoas mais brilhantes que conheci. Quando soube que ela ia lançar um livro de poesia não fiquei nem um pouco surpreso. Primeiro por ela ser filha de quem é (Adriano de Sousa dispensa comentários), depois pelo modo como ela encara os desafios que a vida lhe impõe. Os poemas de Ada Lima são curtos, afiados, certeiros. Como ela mesmo diz na apresentação do livro: “Pois fazer e ler poesia é muito mais sentir, do que explicar ou entender”. A leitura do livro de Ada Lima dura uma viagem de ônibus para casa, no máximo. Mas depois de lido, duvido que você esqueça o que foi dito. Tem um verso que ela diz assim: “As palavras preferem os poetas tristonhos”. Não preciso comentar mais nada.

O outro livro é “O Pastoreio do Boi (XII poemas sobre uma parábola ZEN)”, de Márcio Simões, Flor do Sal, sem número de páginas definido, R$10,00. Quando eu cheguei no bistrô em que os livros desta coleção foram lançados, não reconheci de imediato aquele rapaz magro na mesa da frente. Fui lá cumprimentá-lo e ouvi a seguinte frase: “Li muitas coisas de sua biblioteca, principalmente aqueles livros beatniks”. Eu sorri de volta e disse, “que bom”, mas ainda sem saber o significado daquela frase. Só depois quando cheguei em casa e parei para pensar foi que caiu a ficha. Claro, aquele era Márcio, o sobrinho de Pipi, minha grande amiga seridoense e quando ele era bem mais jovem, costumava ir na minha casa e ficava fuçando os livros. Deve ter lido muito mais por aí, porque deu no que deu. O livro de Márcio Simões tem aquele leveza do arqueiro zen, todos os músculos retesados, nenhuma intenção de acertar o alvo e, no entanto, que precisão! Então vejamos: “O pri-meiro/vislumbre/o boi surge/e desaparece/Quando anoitece/ele ainda/brilha/A luz da lua/é a mesma/luz da lua/Agora aquele/que se banha/? parte nela”. Está certo, Márcio Simões buscou a síntese da idéia na palavra nua, econômica, despida de qualquer gordura que venha a ter o boi. Mas é também a palavra de alguém que viu o sertão bem de perto. Livrinho gostoso de ler, rápido, conciso, atemporal.

Agora, o terceiro livro da série, O Poema do Caminhão, de Sebastião Vicente, Flor do Sal, 125 páginas, R$20,00 é de outra cepa. Aqui estamos no campo da dramaturgia, uma outra forma de escritura que demanda uma técnica, uma sabedoria, um modo de dizer as coisas para o palco. Meu amigo Sebastião Vicente já ganhou que cansou prêmios de teatro: Valsa na Varanda, ficou em 3º lugar no Concurso Nacional Funarte/Ministério da Cultura e ganhou uma leitura dramática no Rio de Janeiro, no Teatro Glauce Rocha; depois A Exclusão ficou com o 3º lugar do ano seguinte e ganhou uma montagem em Natal com o título Barra Shopping; O Poema do Caminhão ficou com o 1º lugar na categoria infanto-juvenil pela região Centro-Oeste no mesmo concurso anteriormente citado. Só isso já dispensaria qualquer comentário sobre a obra de Sebastião Vicente, mas tem muito mais a ser considerado.

A obra de Sebastião Vicente tem um caráter indissociável de sua personalidade: a simplicidade, humildade, timidez, inventividade, lucidez e inteligência. Quando Sebastião Vicente fala com você ou escreve um texto é com a mesma integridade com que toca seu trabalho jornalístico desde os velhos tempos da TV Cabugi e Tribuna do Norte. Como homem do sertão seridoense, sua terra e sua gente transparecem intactos em seus enredos. Mesmo assim, é impossível não perceber seu olhar penetrante no tempo presente e no futuro. A peça sobre o shopping é completamente moderna, urbana e no entanto guarda pontos de contato com a anterior, que se passa em um lu-gar que poderia ser Parelhas ou Acari, só para citar dois lugares que ele ama.

Este Poema do Caminhão mostra um autor mais apegado às raízes sertanejas, tanto que ele prefere os versos rimados no estilo do cordel. É inevitável a comparação com as peças de Ariano Suassuna, pois a tradição é mesma, a tradição oral, o universo das feiras livres do Nordeste, a fala cantada do povo. Queria que esta peça pudesse ser montada por um grupo itinerante que levasse essas palavras para as ruas de nossas cidades e trouxesse um pouco de luz a essas mentes tão embotadas pela linguagem da televisão, pela barbárie do mundo moderno. Queria que isso fosse possível.Mas vou ficar por aqui sonhando e relendo esses livros que alegram os meus dias.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Jardim de inverno



Pelos coletes de Carlos Minc! Sobrevoando Natal pouco antes do pouso, eu já notava que alguma coisa na atmosfera geral havia mudado. Abaixo do avião havia uma massa quase compacta, embora vaporosa, de nuvens que mais pareciam ondas do mar congeladas no justo momento em que quebram na praia. Um segundo chão, suspenso entre o peso do avião e a planície opaca do solo. E era preciso atravessar aquela cortina de vapor d'água para rever a cidade.

Eu me sentiria como um astronauta a reentrar na atmosfera da terra, exceto pelo fato de que, surpreendentemente, a tal transposição da camada vã soou mais como algodão doce desmanchando na boca da criança surpresa ao provar desse bocado pela primeira vez. Tudo suave, como nunca dantes imaginado. E a cidade abaixo, com seu calor, sua umidade pegajosa, seu outro vapor d'água suspenso na pele.
Qual nada: a cidade que encontrei era outra. Nada a ver com aquecimento global, tão na moda que agora é tema até de out-door de butique nas ruas da mesma cidade. Antes, resfriamento local. Natal, que em fevereiro/março era uma estufa, agora é uma esponja. Chuva sim, sol não, dia sim, nublado é, encoberto quase sempre. Dei sorte e numa tarde em que vi o céu limpo, debandei para Ponta Negra antes que o cobertor vaporoso rapidamente tomasse cada pedaço do latifúndio céu. Ganhei de presente um ocaso vermelhão, uma tela a óleo natural feita por raios de pequena extensão - e por isso mesmo tão encarnados - somente para meus olhos e de quem mais se dispusesse a ver.

À noite, no Guaíra, janelas são vedadas, frestas tapadas com pedaços de papelão, esquadrias tremem os dentes de frio por causa da temperatura dos ventos, novamente tão diversa dos dias de verão. E as águas de Ponta Negra, resfriadas como se cubos de gelo boiassem bebendo o - agora - pouco sal do mar? E a textura da pele, sem o "preguento" dos veranicos mais abrasivos? Duas estações, duas cidades.

Para completar o panorama, só mesmo a ausência de turistas brazucas ou estrangeiros - algo inimaginável pelo menos nos últimos cinco anos. Pois, pois - assim foi. Ponta Negra ocupada por natalenses em férias, babás banhando crianças, pais de família jogando futebol, maré baixa, retraída como um doce oceano tímido, estirão dourado no sol poente refletido no chão lambido pelas ondas. Antiturística paisagem, benfeitora sensação.

Natal por esses dias




Micarla, o palanque, as colunas e a política

Ligo a televisão pouco antes da hora do almoço na expectativa de ver as notícias de Natal no telejornal da Inter TV Cabugi. Nada feito, ainda está na faixa dos desenhos. Pulo um canal e dou de cara com Micarla no “60 Minutos” da TV Ponta Negra. Pronto: começa o meu curso intensivo de política local, preparatório imprescindível para entender a disputa eleitoral pela prefeitura da cidade.

Micarla é um ás na telinha: apresenta reportagens, faz comentários, repreende o poder público, faz o diagnóstico das mazelas da cidade, lê e responde no ar os e-mails que recebe, manda recados para quem pede, cita carinhosamente os nomes dos telespectadores e, quase ao final, avisa que a partir de amanhã terá que se ausentar do programa porque a legislação eleitoral exige.

Os leitores que não são de Natal vão estranhar, mas Micarla é candidata a prefeita de Natal. Uma das duas principais candidatas – a outra é a deputada Fátima Bezerra, do PT. Dona de uma emissora de tevê que herdou do pai, o falecido senador Carlos Alberto, Micarla é um produto desse tipo de telejornalismo que fala mais diretamente a quem o assiste, dispensando as formalidades dos deles e delas da Rede Globo que, política à parte, confere um distanciamento mínimo ao tratamento da notícia. No telejornalismo de Micarla, não: a notícia exista para servir a ela – ao projeto político dela e de uma maneira que nem o maior escândalo global consegue rivalizar. Porque se o grande escândalo global tipo debate Lula/Collor choca o país e produz uma mudança a longo prazo, a presença diuturna da candidata no vídeo da tevê local passa despercebida e se perpetua, assim como seus efeitos.

E neste quesito, é preciso que se diga, Micarla é ótima. É impossível não simpatizar com ela, uma figura que nem de longe despertava essa empatia quando cursava, na mesma época que eu, o curso de Jornalismo na UFRN. É verdade que, na telinha, não vemos uma formuladora de políticas municipais. Mas, qual uma despachante eficiente, ela delega tarefas aos seus repórteres, pauta no ar os assuntos que o telespectador quer ver na tevê, ratifica cada reclamação, recobre cada denúncia urbana com o seu referendo pessoal de figura paternal e simpática. É a própria Wilma Faria – que apóia Fátima – rejuvescida pela cirurgia plástica da presença no vídeo, um privilégio que a atual governadora, ao contrário de Micarla, nunca teve – ao menos não com essa extensão.

Tudo seria ótimo se não houvesse, por trás desse birô de boas intenções midiático, um privilégio escandaloso, que é o fato de Micarla se servir de um canal de tevê herdado do pai, mácula do viciado sistema de concessões que deu origem ao espectro político da televisão brasileira. É uma experiência marcante ver Micarla na tevê resolvendo verbalmente os problemas da cidade com tal desenvoltura. Mas também é doloroso ver Micarla na tevê fazendo seu palanque eletrônico à custa de uma concessão pública que ninguém – e aqui é o poder da Globo que dá segurança a todos -, pelo visto ninguém nunca terá a coragem de rever.

Blogues e colunas

Desligo a tevê e vou aos jornais, onde viceja a nova onda da comunicação potiguar: as colunas que misturam política e sociedade. É o novo elixir da longa vida das folhas locais – fontes de informações picotadas que medem o sobe-e-desce das reputações e dos prestígios, acompanham cada pequeno passo da política mais diária, detectam cada inflexão no movimento geral do poder no estado. Se é assim, há de haver explicações: a ascensão vitoriosa do colunismo acontece porque existe uma demanda. A cidade que lê jornais gosta de passear pelas notinhas, a cidade que faz política gosta de se ver nela, a cidade que escreve as colunas gosta de se sentir próxima de uns e de outros. E assim o gênero se afirma.

O adversário mais próximo da coluna do jornal é o blogue – e muitas vezes eles caminham juntos. Eliana Lima na Tribuna do Norte está para Thaisa Galvão na internet como a Tribuna e o Diário estão para o site Nominuto (de longe a mais inovadora frente do jornalismo local, mas assunto para postagem futura). São pessoas que cavaram seu espaço, fincaram suas estacas no chão do noticiário dos acordos, das perspectivas e dos planos políticos e, pelo que conversei com mais de um amigo, tornaram-se quase imprescindíveis. Devem ser respeitadas por isso – e, nisso, deram um passo à frente do jornalismo local como um todo.

Se você tem alguma dúvida, basta colocar esse próprio texto aqui em questão: lá no início eu disse que Micarla e Fátima são as duas principais concorrentes à Prefeitura de Natal. Pois pode ser que Fátima nem seja mais: há três dias, ocupado com as obrigações da volta a Brasília, eu não passo nos blogues e colunas políticas de Natal e não sei qual o desfecho de um ataque à candidatura de Fátima, que corria o risco de fazer água no último fim de semana, quando voltei para casa. Desço a esses detalhes para que fique claro: é assim o mundo das colunas, dos blogues e da política neste momento em Natal – a qualquer hora, tudo pode mudar e os colunistas estão acordados para dar a notícia em primeiro lugar. Rosalie Arruda e Virgínia Coelli também estão na prática da neocolunismo tanto no papel quando na tela do computador – e o provocativo Ailton Medeiros, excessos à parte, cumpre seu papel de correr por fora e jogar sobre tudo isso o canhão de luz da polêmica.

Mas por trás de todo esse painel, está a cidade em si e sua encruzilhada de problemas, num momento que mistura expansão e retração. Há anos, nas minhas temporadas de férias em Natal, o que mais ouvia era reclamação pelos efeitos maléficos da entrada da cidade na rota do turismo internacional. Era a prostituição em Ponta Negra, era o custo de vida mais alto no supermercado, era a bolha inflada do valor dos imóveis – todos problemas reais, diga-se. Agora, curiosamente, deu-se o oposto: a grande reclamação da cidade é pela falta de turistas. Natal vai de um extremo a outro, sem o distanciamento necessário para reconhecer as vantagens do sucesso turístico tampouco o bom senso para evitar o crescimento insustentável. Mas não parece haver espaço nas colunas e nos blogues para a discussão desses temas. São assuntos áridos demais, que requerem espaço demais para ficar contidos no espaço das notas rápidas, afiadas e cortantes dos duelos da política partidária.

Portanto, quem quiser pode se habilitar: pelo menos na seara do jornalismo de colunas e blogues, há um espaço disponível a ser preenchido. Que tal um blogue dedicado a acompanhar a campanha política sob a perspectiva das propostas para resolver os impasses da cidade? Um blogue que vá acompanhando os candidatos quanto eles falarem sobre perguntas que incomodam o natalense? Ou que sirva como provocação para que eles falem claramente sobre esses problemas? Por exemplo: como eliminar definitivamente a presença no nitrato na água das torneiras? Como disciplinar a ocupação urbana em áreas como a divisa com Parnamirim? Como garantir que empreendimentos turísticos necessários (e não desprezíveis) na zona norte sejam acompanhados de obras de saneamento que não coloquem em risco a qualidade ambiental? Como reorganizar o trânsito para evitar os congestionamentos? Que política de urbanização vai ordenar a construção de mega-edifícios à beira mar? Os temas estão por todo lado, os candidatos estão nas ruas. Quanto ao blogue, quem se habilita?