terça-feira, 30 de agosto de 2011

Rir é o melhor remédio



De como a revista dos filhos da editora Abril vem se tornado o CQC das bancas

De cara, aquele José Dirceu com cara de Jack Nicholson na capa da Veja me pareceu muito mais um anúncio a favor do denunciado do que qualquer dos costumeiros ataques editoriais dos filhos da editora Abril contra o ex-ministro de Lula e grande articulador da campanha vitoriosa de Luiz Inácio em 2002. Acontece que a Veja, de tão ruim, vem se tornando, curiosamente, uma revista divertida, dado ao humor involuntário que suas reportagens provocam. É como esses guias do politicamente incorreto que seus jornalistas cometem em forma de livros: é uma gente que leva tão pouco a sério as possibilidades do país, tão incapaz de enxergar a realidade direta do conjunto do povo brasileiro, que acaba transformando tudo num grande CQC em forma de pretenso jornalismo. Como dizia o lema de uma antiga publicação anticomunista (que eu leio até hoje, também me divertindo muito), "rir é o melhor remédio". Mas a palavra aqui não é pra minhas queixas, e sim para a análise feita por Ricardo Kotcho sobre a capa de Dirceu na Veja. Leia, abaixo, trechos do post do jornalista no seu blogue. O link para a íntegra está na lista dos Outros Cardápios, ao lado.

"Só uma coisa posso afirmar com certeza, depois de 47 anos de trabalho como jornalista: matéria de tal gravidade não é publicada sem o aval expresso dos donos da empresa ou dos acionistas majoritários. Não é coisa de repórter trapalhão ou editor descuidado."

"Ao final da matéria, a revista admite que "o jornalista esteve mesmo no hotel, investigando, tentando descobrir que atração é essa que um homem acusado de chefiar uma quadrilha de vigaristas ainda exerce sobre tantas autoridades (...) E conseguiu. Mas a máfia não perdoa".

Conseguiu? Há controvérsias... No elenco de nomes apresentados pela revista como frequentadores do "aparelho clandestino" de Dirceu, no entanto, não encontrei nenhum personagem que seja publicamente conhecido como inimigo do ex-ministro Antonio Palocci."

"O texto todo foi construído a partir de ilações e suposições para confirmar a tese _ não de informações concretas sobre o que se discutiu nestes encontros e quais as consequências efetivas para a queda de Palocci."

Mundo incerto, Brasil plural




A instabilidade joga a nosso favor, raciocina, contra a corrente, o agora novamente ministro Celso Amorim

É sempre bom reparar melhor em quem vive debaixo das pedradas generalizadas dos veículos de comunicação que formam a grande mídia brasileira. Digo isso a propósito de Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores no governo Lula e agora alçado ao posto de ministro da Defesa do governo Dilma. Antes de chancelar as tarjas pobres que os filhos da editora Abril tacam no homem, não custa nada ler um pouquinho das ideias do dito cujo. E uma bela amostra está no último artigo escrito por Celso Amorim na revista Carta Capital, publicado na edição da semana passada. Muito se fala em instabilidade no sentido não necessariamente político, mas filosófico - na direção de o ser humano conseguir se situar minimamente em meio a um mundo tão conturbado e carente de qualquer garantia do que quer que seja. Pois Amorim, no artigo da Carta Capital, traça esse tema como não se vê nunca no meio político, ao aplicar o assunto, aí sim, à grande política, aquela que remete menos às faxinas de conveniência e mais ao grande jogo de interesses do tabuleiro das relações internacionais. E mais não é preciso dizer: é ler os trechos selecionados do artigo, transcritos abaixo:

"Tudo isso faz pensar em uma crise de valores, que vai muito além de um fenômeno puramente econômico ou político e que nos obriga a uma reflexão profunda. Minha geração, que cresceu no pós-Guerra, foi formada em torno de certezas que não mais se sustentam. A esquerda via no socialismo a esperança de salvação não só do proletariado, mas de toda a humanidade. Teve de ajustar seu discurso e, mais que isso, sua visão do mundo a uma realidade sem paradigmas concretos a serem seguidos. De alguma maneira, reinventou-se com base em movimentos de trabalhadores e na defesa de outras causas nobres, como a igualdade de raça e de gênero, a defesa de padrões sustentáveis de vida e o exercício de uma práxis solidária, tida por muitos como irrealista."

"Essencialmente, trata-se de encarar o mundo como ele é, sem os confortos de uma inserção automática, de um lado ou de outro do espectro político. Àquela época, feita a escolha inicial (ou, na maioria das vezes, aceita a condição que decorria de nossa situação no centro ou na periferia), éramos “poupados” de escolhas subsequentes. Nesse “admirável mundo novo”, que sucedeu não só a Guerra Fria, mas de certa forma o “pós-Guerra Fria”, não há agendas prefixadas nem opções predefinidas. Em política externa, como queria Sartre para os indivíduos, estamos “condenados” a ser livres. Há algo de muito positivo nisso, como vimos no caso das negociações da Alca ou mesmo do Acordo -Mercosul-União -Europeia, em que nossa atitude firme impediu, de forma surpreendente para muitos, que embarcássemos em arranjos comerciais que teriam, no mínimo, agravado os efeitos da crise financeira de 2008. Naqueles dois casos e na ênfase na integração da América do Sul e na busca de diversificação de parcerias, ficou claro que nosso País tinha não só a capacidade de posicionar-se sobre os temas de uma agenda imposta de fora, como também de – algo novo para nós, pelo menos nessa escala – de “criar” nossa própria agenda."

"Não devemos rejeitar o que a tradição ocidental nos legou: a força da razão e a busca da justiça com liberdade. Mas o Brasil é um país plural. É sul-americano- (e não nos esqueçamos que a América do Sul é tão indígena e afrodescendente quanto europeia). É, também, parte do mundo em desenvolvimento, da mesma forma que nações de outros continentes, como a Índia e a África do Sul, com as quais temos interesses comuns e afinidades, como tem sido demonstrado em -foros econômico-comerciais (como o G-20 e a OMC) e políticos (como o Conselho de Segurança). Não podemos nos limitar a opções únicas. Ou, muito menos, deixarmo-nos cercear pelo pensamento único. Temos de nos relacionar de maneira diversificada, não só na economia, mas também na política. Temos de enfrentar a “angústia” sartriana da escolha e deixar para trás os preconceitos, que, além de eticamente duvidosos, já não são operacionais para atuar no mundo de hoje, em que, mais do que nunca, a evolução dos fatos varre velhas certezas."

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Shakespeare com sotaque



Sons e fúrias da estréia de "Sua Incelença Ricardo III", pelos Clowns natalenses de Shakespeare, no festival internacional de teatro de Brasília

O sotaque britânico de Shakespeare, como o de qualquer outro mortal oriundo da mesma nação e do mesmo povo, reconhece-se à distância de um oceano Atlântico. Nem precisa saber inglês e penso que mesmo um ignorante de carteira terceiromundista no bolso é capaz, mesmo incapaz de distinguir o inglês do italiano, de apontar o dedo para o falante inesperado e acusar: - Eita, sotaque britânico da porra! Vou mais longe: arrisco dizer que o mesmo se pode afirmar do sotaque nordestino. Um celta de quinhentos anos atrás, conseguisse por um efeito do tempo transportar-se para a era atual e caísse no centro de Recife, seria igualmente capaz de, abrindo as orelhas, dar-se conta de estar ouvindo, no burburinho das ruas entre pontes, o inigualável sotaque nordestino (claro que, é bom lembrar, em uma de suas versões, que são muitas, mas o detalhe aqui não compromete o inteiro do raciocínio).

Essas considerações parecem não ter nada a ver com a notícia aqui em questão, que é a apresentação de “Sua Incelença Ricardo III” na abertura do festival internacional de teatro de Brasília, o “Cena Contemporânea”, ontem à noite no pátio do Museu da República (a quem os nordestinos, quem mais senão eles, apelidaram de “Cuscuz de Niemmeyer”), ao lado da catedral, bem no início da Esplanada dos Ministérios. Pois tem tudo a ver, visse? Primeiro é preciso dizer que três arquibancadas montadas ao ar livre e de bom tamanho não foram suficientes para dar conta de um público numérico e ansioso. Sem lugar nos puleiros (que é como o bom nordestino chama a arquibancada de circo), o povo acocorou-se como pode no chão mesmo, deixando um tiquinho de espaço para os artistas encenarem esse Shakespeare com sotaque de que nos ocuparemos daqui a pouco.

Antes, é preciso mais uma observação de repórter superficial sobre a maneira como o espetáculo foi recebido: por um público brasiliense (e, sendo assim, fortemente nordestino ainda que por descendência) aquecido e sintonizado com a encenação que tinha diante de si. O público local, sabem todos de que dele tiveram notícia, é visto como frio, distante, exigente, cabreiro e não poucas vezes hostil – lembrai-vos da vaia que Rodrigo Santoro levou ao subir no palco de um já esquecido festival de cinema de Brasília quando ainda não era visto como um ator de verdade. Pois diante dos Clowns natalenses de Shakespeare, essa platéia derreteu-se em sintonia, risos, aplauso e afeição.

Não é pra menos, que o caldeirão de referências que o espetáculo mistura, a partir de uma dos mais desafiadores textos do bardo inglês (e quem o diz é quem o conhece bem, não eu que sou leitor bagunçado), atinge um ponto perfeitinho de cozimento cênico – como se fora preparado por um mestre-cuca brejeiro ciente da porção exata de cada ingrediente na harmonização do banquete. Pois um banquete teatral é esta versão com sotaque de Ricardo III: mistura de artesanato medieval-nordestino com dramaturgia clássica pontuado por enxertos de ópera pop, ele resulta divertido e instigante, provocativo e alegórico. O roteiro, pra quem não conhece o texto da peça, é pescado meio que por associação de imagens e informações dispersas, numa montagem em que o uso que se faz da situação é mais significativo do que a trama interna. O essencial, a disputa fraticida pelo poder no que esse adjetivo tem de mais literal (ou além disso, já que Ricardo III, não satisfeito em matar irmãos, assassina até crianças, seus sobrinhos, para chegar à coroa), transparece e se instala entre estandartes sépias, interpretações rubras e corais escrachados. Um Ricardo III, mais que nordestino, brazuca. Herdeiro do tropicalismo, descendente da poesia concreta, neto do cordel mais encardido. E no entanto, como estamos falando dos Clowns de Shakespeare, industrial – como é preciso para afirmar o teatro como atividade instituída e menos mambembe do que tem sido em terras potiguares.

Resta a história do sotaque, que vem a propósito do comentário que ouvi de um jornalista nordestino radicado em Brasília ao final do espetáculo. Ele não gostou do que viu, achou que o Ricardo III fazia pilhéria do sotaque local, usando uma arma fácil para garantir empatia com platéias diversas. É o pensamento típico de alguém que presta as maiores reverências à mais enraizada música nordestina – de Elomar pra lá uns dez xique-xiques -, tanto que fez durante anos aqui um programa de rádio, por sinal muito bom, chamado “Canta Nordeste”. Mas é também a avaliação de alguém apegado em demasia à roupa de origem: tanto que não vê que fica nu ao fechar os olhos à capacidade de impregnação do próprio sotaque. Pois se sotaque não houvesse na pronúncia do ator, haveria na sintaxe do texto – inevitável se estamos tratando da reconstrução em um universo mais específico da via láctea constante na prosa shakespereana. Diante da opinião dessa pessoa, descobri que da aversão naturalíssima ao preconceito pode surgir um tipo de cegueira que faz o cidadão negar sua própria condição - mas fazer isso lutando para não denotar desprezo pelo povo de onde veio. Coisa de apocalíptico que não se dá conta do quanto virou integrado, pra usar os adjetivos consagrados por seu Umberto Eco. Ou então é o tal do avesso do avesso do avesso de que falava aquele compositor baiano.

O resumo da pendenga é que o sotaque é a festa da língua adaptada ao terreiro onde ela habita. Num texto que escrevi há alguns anos e acabou encenado por uma companhia do Rio de Janeiro, “Valsa na Varanda”, a produtora fez questão de me dizer, como se me cultivasse a vaidade e o orgulho, que fizera questão de não reforçar o sotaque. Bobagem: ele estava lá, caladinho e sorrateiro como sempre, na articulação das orações, na maneira crua de os personagens se expressarem, até nos silêncios – ou sobretudo neles. O Ricardo III dos Clowns, dirigido por Gabriel Vilela, escancara essa fala tanto quanto externa à sua maneira alegórica, festiva e bem humorada as entranhas dessa tragédia do poder. O grupo enfrenta com sotaque nordestino e estética idem o mais sombrio conto shakespeariano, sem se intimidar com os raios invisíveis que cortam a tempestade intelectual e impositiva da tradição.

Rir diante de Ricardo III – ainda mais numa encenação específica como a de ontem, feita em pleno centro arquitetônico do poder – talvez seja a mais brasileira forma de se apropriar do consagrado. Tratá-lo como casual, até. Arriscar-se a colocar em prática o prognóstico pretérito do bandido da luz vermelha: “quando a gente não entende, a gente avacalha”. No caso, com correções: quando a gente entende, por dentro e no completo – e de crise política somos sábios por experiência – a gente tem toda a autoridade para avacalhar. A seriedade tantas vezes é fria e infértil. A comunicação pode ter caminhos falsamente óbvios que o jornalista, com os bolsos cheios de pedras antipreconceito, é incapaz de enxergar. Shakespeare com sotaque nordestino, Clowns de Natal com inflexão britânica foi o que vimos ontem na capital das conspirações. Hoje (quarta-feira, 24-08) tem nova sessão, às 21h, no mesmo local, para quem quiser tirar a prova.

Shakespeare com sotaque (Fotos)







Do alto para baixo: os anéis de saturno do Cuscuz de Niemmeyer podem ser vistos na penumbra de Brasília, ao lado do local onde foi montada a estrutura para o espetáculo; na sequência, o público vai chegando e ocupando todos os lugares, deixando aquele tico de espaço para os atores. Isso é vizinhança da catedral de Brasília e entrada da Esplanada dos Ministérios.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A marcha dos acontecimentos

Renovadas pelas circunstâncias, as crises de agosto repetem os cacoetes simbólicos de sempre. Faxina, Cansei, CPI da Corrupção, é tudo arma linguística recorrente da má política brasileira

A gente vai ali dar uma caminhada de uma hora na avenida das Jaqueiras e quando volta parece que mudou de país ou de planeta. É tanto acontecimento em cima de acontecimento que o pobre cidadão não dá conta de se manter nem sequer informado de tudo – quando mais ter condições de construir qualquer análise ou opinião à altura do emaranhado político das últimas semanas. Quem, como eu, é motivo de riso para colegas de trabalho por ter mania de ler, na quinta, o jornal do domingo anterior, está, como se dizia antigamente, em palpos de aranha. Ou, no mínimo, com a impressão de que acionaram a tecla >> do DVD da vida, acelerando a ação do tempo real sem que a gente se dê conta, assim como não nos damos conta de que a Terra está girando o tempo todo. Em outras palavras: o jornal do domingo passado parece mais uma edição do semestre retrasado.

Pra ficar só no dia de hoje, cheguei da caminhada e, depois das tarefas caseiras regulamentares, vim pro trabalho sem ter tempo de abrir um portal sequer no computador. Ao fazê-lo, agora, assisto às novas intempéries do período que, se não são sensacionais como a demissão de Wagner Rossi em meio à rebelião anti-Henrique Alves na bancada do PMDB na Câmara, também não são nenhum PR (quer dizer, não são de jogar no lixo). Às notícias: 1) FHC não quer que o PSDB assine a tal CPI da Corrupção (a propósito, nem precisa criar essa CPI: o importante era criar o nome dela; todo o resto é detalhe); 2) Já tem um movimento “de massa” aí nascendo no Rio de Janeiro, com passeata marcada pra domingo na Cinelândia carioca; 3) PT está preocupado porque um dos efeitos dos escândalos todos é tachar o governo Lula de corrupto e mais nada; 4) O PR, mal saiu da base do governo, já quer voltar; 5) Nathalie Lamour vai se eleger deputada com a bandeira contra a corrupção; e por aí vai.

Dessa lista toda, o último item é o mais sintomático, embora seja pura ficção: é o mais simbólico quanto ao nível de prurido vigente em certa parte do espectro político que defende a tal “faxina”. No fim das contas, enquanto dura o maremoto discursivo feito com um evidente objetivo eleitoral futuro, o que fica é o simbólico, curiosamente o mais próximo da ficção. Ou alguém tem dúvida de que da última eleição para o Congresso o que mais ficou na mente do eleitorado geral da nação foi Tiririca? Então: Nathalie Lamour é o resumo auto-irônico dessa opereta de cidadãos de bem sem nenhum interesse no bolso. E no campo do simbólico, nada mais sintético – e eficiente – do que a palavra. Por isso que não há nem necessidade de CPI, basta que ela tenha um título pomposo de fácil deglutição popular mesmo sem ter sido criada. CPI da Corrupção é um ótimo sinônimo para “faxina” – palavra que, por sua vez, faz lembrar uma outra, já meio esquecida no vocabulário político-jornalístico brazuca: “cansei”.

Todo esse dicionário, no fim das contas, deságua na mesma frase-objetivo, na mesma sentença-recorrente, em idêntico texto-padrão. Neste sentido, é mera distração a maratona de acontecimentos que, como um filme de ação, não deixa tempo para o espectador avaliar nada – ele mal consegue respirar enquanto segue o tiroteio de cenas, numa posição muito semelhante à dos jornalistas do tempo atual. O fundamental é imóvel como as Minas Gerais daquele velho ditado político: não sai do canto desde Getúlio Vargas. Pra valer, o único que consegue mexer um pouco as peças do tabuleiro é o aclamado e combalido Lula que por sinal anda bem calado. Não por muito tempo, imagino. E mais não arrisco, até a próxima caminhada na avenida das Jaqueiras.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O dilema brasileiro



Se a presidente peita o Congresso, é autocrata. Se não, é fisiologista. Ou: a gangorra analítica que tenta explicar o que se passa longe do país, em Brasília


Enquanto o país leva a vida de casa para o trabalho todo dia, com uma pausa pra farra nos finais de semana, o tal do momento político segue saltitante em Brasília. Em cada esquina – caso esquinas houvesse, e há, mas isso é outro papo – paira no ar um prognóstico, uma análise, uma reserva quanto ao que esperar do futuro do governo Dilma diante os últimos acontecimentos. A linha geral, da esquerda à direita, parece ser a mesma: presidente nenhum no sistema político brasileiro governa ignorando o Congresso. E, ao fazer isso, a ex-birrenta e agora faxineira corre risco de não completar o mandato. A avaliação é ambígua: meio que apóia a postura de Dilma, meio que a considera uma figura menos capaz, por não levar em conta aquele vaticínio.

O suspeitíssimo Cláudio Humberto já disse isso e nas redações o comentário vai por aí. Há, claro, um pouco de lógica e um tanto de torcida nesse raciocínio. Mas a questão aqui não é bem a futurologia, e sim a contradição que ela engendra – o grande autodesmentido que 90 por cento dos analistas comete na ansiedade de atender a todos os lados da platéia. Alguém há de estar errado, gente – a realidade é desigual e não dá para fazer avaliação que contemple todas as fontes e públicos, variados como são os dois lados dessa moeda.

Senão, vejamos: não há poder mais apedrejado pela grande imprensa e população em geral – especialmente quando falta assunto mais pungente – do que o Legislativo. E, dentro dele, não há instituto mais condenado do que as tais das emendas parlamentares. Não há, para muito além dos Dnits da vida, espaço mais suscetível ao dedo apontado contra a corrupção do que o tal do político que, em setenta por cento dos casos, é deputado ou senador. O mesmo índice de desconfiança não é exercido contra o Executivo, dada à tradição brasileira mais do que reafirmada de despejar as fichas das possibilidades na figura do presidente da República, independente de partido, ideologia, ditadura ou democracia. Quanto ao Judiciário, é temido demais para ser alvejado por jornalistas, editorialistas, políticos e quejandos.

Então, dito isso, por que tamanha reação a uma presidente que se dispõe a contestar minimamente os desvios seculares do Legislativo – como é o caso das emendas? Na hora em que Dilma dá as costas à cobrança miúda dos parlamentares – o tal do fisiologismo tão criticado – ela recebe apoio ou é duplamente criticada por não saber “negociar politicamente” com o poder instalado no prédio ao lado? Se negocia, é fisiologista – se não, é autocrata. Essa censura política contra Dilma ou qualquer outro presidente que proceder assim (e FHC disse que é realmente inviável adotar esse comportamento) ocorre até mesmo no PT, no que o partido mostra como tristemente a permanência no poder vai desgastando a noção de republicanismo que ele mesmo prega tanto – e corretamente. Felizmente, o PT é variado demais para qualquer generalidade, daí o limite do questionamento.

Então: vivemos uma crise política porque a presidente, com seu extrato de origem técnica e gerencial, faz questão de fazer valer esses princípios diante de hábitos tão arraigados que o partido com mais condições de contestar isso desiste no meio do caminho – e justo quando a ocupante do Palácio do Planalto tem sua sigla inscrita na Justiça Eleitoral. Obviamente, as reservas oriundas de terrenos menos respeitáveis, como DEM de longa tradição contrária a toda democracia formal, social e econômica, nem vale a pena comentar. Tucanos têm uma cartilha teoricamente rígida – princípios conhecidos que, assim como ocorre aqui e ali no PT, são jogados no lixo. Mas o fundamental quanto ao PSDB não é isso: é o que eles fazem com isso. É algo anterior à corrupção – é a noção de estado que eles abraçaram no auge do neoliberalismo e teimam em não soltar.

Pra encerrar, uma pequena analogia que não diminuiu o possível erro de avaliação de tudo e de todos diante de Dilma, mas serve para incluir mais um elemento no quadro e aclarar um pouco mais o panorama: a diferença entre o PMDB e o PT é que, no primeiro, não se estranha nem um pouco quando estouram denúncias de corrupção – é capaz de se estranhar mais quanto ocorre o contrário. E com o PT dá-se o inverso. É o resultado dessa balança, aliado às causas de origem e à política desenvolvimentista e distributivista do governo Lula, que mantém o apoio de grande parte do país ao governo Dilma. Em matéria de convulsões, somos – partidos à parte – um povo experimentado, capaz de distinguir até onde o que acontece é uma marola boa para esquentar jornais, revistas e telejornais e até onde a crise entra de fato além da porta da casa de cada um. Quando o brasileiro ouvir o “toc, toc” no bolso, aí sim será hora de cogitar mandatos interrompidos ou similares.

O Cineclube sonoro de Babal e Lívio


A música de Babal, o músico potiguar autor de “In Tecnicolor” e “Avenida 10”, consegue ser duplamente evocativa. Essa afirmação me vem à mente diante do CD “Cineclube”, idealizado por ele em parceria com o poeta e procurador (feliz associação) Lívio Oliveira. É evocativo o som de Babal primeiramente das coisas da Natal dos anos 80, da cidade de tetos baixos e praias ainda meio matutas quando comparadas à cidade-commodittie atual, onde naturalmente a qualidade de vida ainda é gritante quando em comparação a certas metrópoles brasileiras mas resta no ar um certo saudosismos de atmosferas passadas.

É bastante, por exemplo, ouvir a introdução de “Mourão Voltado”, registrada no CD “Algumas pra dançar, outras pra ouvir”, pra o ouvinte familiarizado com o artista e a cidade se teletransportar imediatamente para uma distante e amada cidade do sol. Pois agora, com o CD Cineclube, o som de Babal torna-se duplamente evocativo ao investir num repertório que toma o mundo simbólico de algo por sua natureza já bem evocativo como é o cinema dos clássicos anos 60 como ponto de partida para um punhado de composições.

Quando não citam explicitamente os títulos de filmes que guardamos no coração como relicários culturais sagrados, as canções compostas com Lívio Oliveira têm letras com andamento cinematográfico, repletas de imagens que parecem costurar filmes em curta metragem igualmente representativos de um certo estado de espírito muito a propósito daquela velha Natal de que se fala aqui. Os versos que misturam botas, tênis e seios roçando braços dentro de um carro na faixa “Sem destino” (“Tu eras Janis e eu, Jim / de hortelã e de alecrim”), que remete tanto ao cinema quanto aos ícones da música da época, são um exemplo.

Tenho poucas informações sobre Lívio Oliveira, mas de longe me parece um daqueles casos de pessoas a quem os tribunais de bar da cidade cobrem de reservas, por invocar uma poesia distante dos minimalismo em vigor. Vivemos uma era em que qualquer excesso – estético, emocional – é censurado de pronto como uma manifestação de mau gosto. Pois tenho a impressão de que sem um pouco de excesso não se chega ao essencial, embora as duas pontas dessa equação pareçam tão distantes. O fato é que sem derramamentos eventuais não se tem uma letra e música emocionada à flor da pele como é a canção “Vamos pegar uma tela”, que Valéria Oliveira interpreta no CD Cineclube como se arrancasse, um por um, com uma pinça de carne e dentes crivados, os pelos dos braços da nossa sensibilidade. Ouço e penso no samba “Cinema Novo”, do disco Tropicália II, de Caetano e Gil. Enquanto os baianos fizeram uma crônica-colagem em ritmo de pandeiro, os potiguares investiram numa pungente sucção sonora de emoções que cinéfilos guardam no peito como punhais de estimação. No canto, Elis Regina não faria melhor.

Sempre que vou a Natal, procuro “o último CD de Babal” como quem caça a pepita da estação. Claro que nem sempre há – a freqüência com que vou à cidade e com que o músico lança um petardo novo não poderia ser a mesma. Pois nas férias recentes de meio de ano, a intuição me levou à livraria do Praia Shopping com a desconfiança de que, quem sabe? E lá encontrei este “Cineclube” que, entre o encontro com os amigos, uma visita em que acabei barrado no Forte dos Reis Magos e uma estada agradável em meio à turistada Classe C entre Areia Preta e Praia dos Artistas, valeu a viagem.

Melhor que isso, do ponto de vista mais sensitivo, só a lembrança do dia em que vi e ouvi Babal no nosso estimado TAM cantando a minha preferida, “In Tecnicolor” (que cansei de ouvir no rádio ou num gravador muito pré-MP3 na interpretação do conjunto Flor de Cactus quando tinha 16 anos e habitava como estudante secundarista os tabuleiros de Jundiaí, em Maqueibo Citi). A circunstância desse show de Babal no TAM era uma tentativa sem sucesso de voltar a morar em Natal. Era uma nova despedida da cidade, era uma preocupação com o estado do meu pai que eu deixava com saúde prejudicada no interior, e tudo isso diante daquela música tão importante pra mim resultou num choro secreto que não é comentado aqui à guisa de exibição, mas de informação para aquilatar o valor que um artista – inclusive, e por que não?, “da terra” – pode ter para um ouvinte. Um só.

Agora imagine você essa impressão multiplicada por milhares de ouvidos, dezenas de milhares de mentes atulhadas de memórias, centenas de milhares de corações em busca de um alento que os lembre deles mesmos em outros momentos, diversas situações. Isso é música, mas também é cinema. É, quadro a quadro, o “Cineclube” de Babal e Lívio Oliveira.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Gervásio e a corrupção


Gervásio, o rato do Planalto, é um velho conhecido de quem freqüenta este blogue há algum tempo. Para quem não o conhece, nunca falta oportunidade num país chamado Brasil. E esta maneira de dizer as coisas, com rasgos de indignação e pitadas de hipocrisia pretérita faz bem o estilo do nosso herói. Trata-se do líder de certa malta que durante anos freqüentou os porões do palácio mais decisivo de Brasília e, por mais que o tempo passe, os partidos mudem, as ideologias caiam, mantém-se firme – nem que para isso precise passar umas temporadas de desconforto nos porões vizinhos do Senado.

O rato do Planalto está de volta, como não poderia deixar de ser, em função do noticiário – este espelho em que Gervásio se contempla e se reconhece. Se durante meses ele precisou curtir as agruras de viver às custas das bolachas dos funcionários da Rádio Senado, eis que agora há notícias de que voltou a alimentar-se decentemente dando umas escapulidas até determinados prédios da Esplanada dos Ministérios não muito distante. Há sempre o risco, claro, de um ex-rato do Planalto sem o preparo físico dos tempos dos militares acabar sendo esmagado por um carro no Eixo Monumental, mas e daí? Sempre se pode arriscar um pouco. Até porque no fim das contas um tabefe dado com uma edição mais grossa de uma revista semanal pode causar muito mais estragos.

O fato é que Gervásio reapareceu pra mim naquela mesmíssima faixa de pedestres que separa o acesso à garagem da Câmara e as instalações anexas do Senado. Vinha eufórico, ao contrário dos encontros anteriores. Contando vantagem. Dizendo que foi, enfim, redescoberto. Que a última vez em que teve uma miragem de volta aos bons tempos foi em 2005, quando se falava num tal de “mensalão”. E disse que só espera que desta vez o motivo de seu contentamento se sustente – ao contrário daqueles tempos já tão distantes.

Porque, afinal, já está mais do que na hora de ele e sua gente voltar ao lar, de malas, queijos e bagagens. Além de um farnel de propinas para os quais certa imprensa amiga nunca terá olhos para ver. Dizem, confidenciou-me Gervásio assim como quem conta algo que só circula nas mais restritas rodas, que tem uma tal faxineira dando umas incertas nos porões do Planalto para onde a turma dele pretende retornar. Tirando essa tal, diz Gervásio, parece que é caminho livre. Só nos resta, conclui o rato, esperar. E saiu fazendo figa indeciso entre o Ministério do Turismo e a Conab.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Leia na Hamaca



"Ocorre que chegou a Brasília semana passada e aqui está até esta segunda-feira a figura doce de Tetê Bezerra, alguém que com sua mansidão entre Paraíba e litoral, Nova Palmeira e Natal, carrega o espírito de um tempo de calma que só alguns privilegiados conseguem portar, ao não se intimidar diante da correria financista dos dias atuais. Tetê chegou e fomos mostrar a ela a cidade Pirenópolis, uma espécie de Pipa local para onde fogem brasilienses e goianos em buscar de um fim de semana de descanso, de aventura de cachoeiras ou de boemia mansa de mesas e cadeiras ao luar das ruas."


Leia a postagem completa (e veja as fotos), clicando aqui.

Eu e Tetê, Tetê e eu




Do fim de semana em jornada a Pirenópolis. De uma ventania boa que trouxe os ventos doces da Natal dos anos 80 até os vastos vãos do Planalto Central e goiano. Detalhes ainda hoje na Hamaca.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Roque Santeiro, a escola



Em reprise na tv fechada e de volta em caixa de DVD, a clássica novela de 1985 funciona hoje como uma aula de cidadania política dada por um professor chamado tempo

Numa de suas canções, Caetano Veloso dizia que a telenovela é a educação sentimental da classe média nacional. Pois a volta de "Roque Santeiro" no canal de reprises Viva bem pode relembrar esta tese ao adaptá-la para outro contexto, o da política, dos direitos sociais, da educação ligada à cidadania que as novelas brasileiras também sabem explorar muito bem, dependendo da oportunidade. De "Roque Santeiro" pode-se dizer que funcionou - e ainda funciona, em parte - como a educação política da antiga (e da nova, por que não?) classe C, aquela camada do meio social que, sem acesso histórico à área de humanidades das universidades públicas mais procuradas, vem aprendendo na prática e sem discurso a ocupar seu lugar de direito no mapa do Brasil.

"Roque Santeiro" é exemplar ao ir direto ao ponto - coisa que o jornalismo, por exemplo, nem sempre, ou quase nunca, faz: em Asa Branca, a cidade a espelhar o Brasil em que a novela se passa, quem manda e desmanda não é o prefeito (leia-se, o presidente da República), mas o criador de gado e exportador de carne verde Sinhozinho Malta. O autor original, Dias Gomes, não perdeu tempo em denunciar a política como valhacouto de aproveitadores e imprestáveis - embora sua denúncia em forma de novela contenha essa informação, claro - e mostrou logo quem manda no pedaço: o poder econômico, sempre acima, aquém e além da lei.

E essa distância nem um pouco protocolar entre dinheiro e poder está mais do que bem explicitada em uma das sequencias mais importantes da novela: aquela em que Sinhozinho Malta é instado a entrar numa delegacia na condição de indiciado por um crime e lá dentro tem que, contrariado como ocorria nos idos de 1985, "tocar piano" no mais que conhecido sistema de identificação criminal. Há pouco tempo, pudemos ler e ouvir jornalistas escandalizados com os abusos da Polícia Federal que obrigava gente importante, com domicílio e reputação de empresário, a ser algemada e ainda aparecer assim na televisão. Pois esse prurido recente tipo Daniel Dantas ainda era um reflexo dos padrões asabranquianos da nossa história relação entre lei, dinheiro e poder. O banqueiro de recentemente nada mais era que o coronel da novela de meados dos anos 80. Todo mundo assistiu à novela, mas nem todos se mostrariam dispostos a admitir essa ligação. Não poucos se negariam.

É curioso que essa sequencia não conste do almanaque das cenas mais lembradas de "Roque Santeiro", como o célebre final à Casablanca ou a morte de Zé das Melhadas afogado no objeto da própria usura. Falando nisso, citações e homenagens da reta final da novela não ficam na recriação da despedida de Ingrid-Porcina e Roque-Bogard no adeus ao pé do avião: no desfecho da novela os autores também recorreram a "O Homem que Matou o Facínora", o western moderno de John Ford que mostra como um mito falso como o próprio Roque Santeiro deu sustentação a uma cidade qual Asa Branca - e o dilema consequente entre abrir o jogo ou manter tudo como está para pelo menos garantir um mínimo de civilidade no oeste americano em formação. Hoje, terminando de rever a novela em DVD, assisti à cena de que não lembrava. Está lá, no disco 16, o último, o momento em que um Roque-James Stewart atira em Navalhada e pensa tê-lo matado quando, na verdade, quem disparou o tiro fatal foi um Sinhozinho Malta-John Wayne incógnito por trás de sua caminhonete ruralista tipo rolo compressor.

O último capítulo - quer dizer, o último disco da caixa - ainda traz uma cena literariamente muito divertida, por metalinguisticamente irônica. É o momento em que o cineasta Gerson reune a equipe pra contar do novo tratamento que pretende dar à 'fita" que roda em Asa Branca: uma ficção desvairada em que o falso mito retorna à cidade vivinho da silva e coloca tudo e todos em xeque. Chega a ser um biscoito fino na novela popular este momento de elaboração que muito deve ter divertido os autores enquanto a roteirizavam e redigiam. Um personagem debocha: "É, daria uma boa novela".

"Roque Santeiro", em caixa de 16 DVDs ou na reprise diária do Viva, é isso: metalinguagem do Brasil se entendendo e se explicando enquanto ri de si mesmo; sem ranço professoral e com uma noção muito exata do que realmente somos. Com direito a um elenco de monstros sagrados que deveriam ganhar homenagem todo santo dia - como esse Lima Duarte capaz de sustentar sozinho toda a segunda parte da história e aquele Armando Bogus que faz de Zé das Medalhas um monumento à mediocridade aparvalhada sem no entando desumanizar a criatura. E ainda com citações ultra-adaptadas à realidade local de clássicos tão populares quanto importantes.

Lição de teledramaturgia, aula de política sem empolação, cinema novo recriado à sua maneira na tevê aberta(vide elenco, de Yona a Othon Bastos), educação para a cidadania num tempo em que havia uma lei para o povão e uma outra, à parte, para quem tinha poder, "Roque Santeiro" extravasa a condição de novela e é uma verdadeira universidade informal que sabe-se lá como um dia aportou nas telas que brilham em nossas casas. E até hoje tem suas lições a dar, nem que seja pra mostrar que alguma coisa mudou - e mostrar como.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Os antepassados do Dnit


O governador instalado no Rio de Janeiro decide abrir uma estrada para Minas Gerais, numa mais que justificável iniciativa para encurtar de 45 para 15 dias a viagem entre os dois futuros estados brasileiros. Outro objetivo é evitar que o viajante tenha que passar por São Paulo, perdendo tempo e mantimentos - e não raro, vidas - num desvio que já não fazia sentido no difícil caminho entre a costa brasileira do Brasil do Século XVII e as então florescentes minas de ouro do sertão colonial. Um paulista, mais afeito na sua ferocidade temida à empreitada repleta de riscos, oferece seus serviços. Mas o governador prefefe um certo Garcia Rodrigues que ganha a concorrência mesmo com fama de sonegador e falso descobridor de lavras nas minas referidas. E não fica nisso: o mesmo governador ainda escreve uma carta ao rei onde informa que Garcia cobra menos pelo serviço - quando o que ocorre é exatamente o contrário.

Neste ponto já é possível imaginar o que ocorreria depois. Não se fala aqui dos dias atuais, mas do futuro imediato mesmo - embora a primeira tentação seja tão justificável quanto a estrada em questão. Sim, Garcia Rodrigues, filho do incansável Fernão Dias, o célebre caçador de diamantes - não apenas cobrou mais como também não entregou a obra completa. E esta foi inaugurada com trechos por fazer. Para completar a analogia cujo cheiro o leitor já há de ter farejado aqui, só resta dizer que o corrupto governador da Repartição Sul do Brasil de 1698 - Artur de Sá e Meneses era o seu nome - também era sócio de ninguém menos que Borba Gato, o bandeirante de colete antiflexas indígenas que todo mundo já viu em gravuras de livros didáticos. Este, por sua vez, era cunhado do Garcia "vencedor da licitação" para a abertura da estrada de pedras Rio-Minas.

Mais que uma analogia, temos aqui o que poderíamos chamar de "gênesis do Dnit" moderno nos tempos do Brasil colônia - aquela distante fazenda continental que só então, com a tão buscada descoberta do ouro do que viriam a ser as Minas Gerais, começava de fato a se tornar um lote mais valorizado nos mapas mundiais. E a aventura dessa descoberta, com as desventuras consequentes - como o caso da concorrência viciada pelo parentesco e pelos interesses econômicos mais sujos narrados no episódio que ocupa quase todo o espaço dessa postagem - estão em "Boa Ventura", o livro do jornalista mineiro Lucas Figueiredo que recupera em linguagem de gente o que foi o ciclo do ouro na terra de Aécio Neves. A edição da Record está em destaque neste momento mesmo em qualquer boa livraria.

Não há leitura melhor para quem acabou de largar o levíssimo "1808" do tão jornalista quanto Laurentino Gomes. É como voltar no tempo e seguir apreciando a mesma história - por sinal a nossa, ou uma das visões que podemos ter de nossa própria gênese como nação. O livro de Lucas, de fato, parece mais rico e substancioso do que o de Laurentino, embora os dois sejam ouro narrativo extraído do mesmo veio. Ambos têm um quê de reportagem especial que se lê com a avidez que a curiosidade histórica abençoa - mas no caso de Laurentino, a velocidade é tal que a sensação de superficialidade permanece ao se fechar a última página. No caso da "Boa Ventura" de Lucas, que o SOPÃO ainda não concluiu - mas já sabe que terá saudades quando o finalizar - há a vantagem de o tema ser mais restrito, e menos conhecido. Da viagem de Dom João VI ao Brasil e de como sua permanência aqui mudou o que viria a ser o país sabemos bastante, nem que seja das aulas escolares. Mas dos detalhes miseráveis da primeira corrida do ouro da era moderna nesta porção ocidental do mundo, bem menos. De maneira que se o livro de Laurentino soa como ouro de lavra, que se cata com facilidade à primeira leitura, o de Lucas tem algo de ouro de jazida, portadora de matéria mais escondida sob o solo aparente do que supõe o caráter nacional.

Sertão, GO


O sertão goiano, sendo profundo como o mineiro e quente e seco como o nordestino, talvez seja um pouco mais sertão que os demais. Por ser um sertão de sínteses, uma meia estação onde se cultiva à flor da terra a geografia onde a povoação é teima e a doçura agreste é saudade. Aqui, entre o quadrado do poder oficial e a fumaça do sudeste urbano, preserva-se por feliz desinteresse econômico uma atmosfera de céu claro, sol quente, ar frio e terra aspirada.

Aqui é a hospedaria dos sacis, a pousada dos redemoinhos, o ocaso do passado. Cemitério de eras que se superpõem em camadas invisíveis de conquistas e abandonos. O sertão goiano, sem o orgulho histórido do grotão mineiro nem a mazela secular do sítio nordestino, carece de títulos, nobrezas contra ou a favor, reputações, Lampiões, Xicas e diamantinas figuras. O mais que tem são suas Coras, coralinas habitantes de uma vida-sem. Por isso mesmo, seu sertão tem mais essência.

Nele, no sertão goiano, não há mais o que vivenciar que não sua própria flora torta, baixa e de capins amarelados pela estação. Não existe fruta desidratada e poupa de fruta pra fazer suco caseiro... pois então: o sertão goiano é assim como o interior desidratado, sintético e compacto onde mais o Brasil é rural e sertanejo. Sem máculas de fama, sem bravatas de historiador vaidoso, sem facilidades de turismo pronto. Sertão desassombrado de vasta luz a fustigar com natureza o seu viajante.