terça-feira, 31 de março de 2009

Notícias de Gabo


Por falar em Gabriel García Márquez, tema de postagem logo abaixo no Sopão, vejam a notícia que circulou hoje na rede, divulgada pela agência EFE:


Santiago do Chile, 31 mar - A agente literária Carmen Balcells, uma das mais atuantes no meio literário de língua espanhola, previu o silêncio definitivo do escritor colombiano Gabriel García Márquez, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1982."Acho que García Márquez não voltará a escrever nunca mais", disse Balcells em entrevista ao jornal chileno "La Tercera", na qual assegurou que o escritor representava 36,2 % do faturamento de sua agência literária.O escritor Gerald Martin, autor da única biografia autorizada de García Márquez, concordou com Balcells. "Eu também acho que (García Márquez) não escreverá mais livros, mas isso não me parece lamentável. Como escritor, foi seu destino ter uma trajetória literária totalmente coerente", declarou Martin. No mês passado, durante a Feira do Livro de Guadalajara, no México, o autor de "Cem Anos de Solidão" chegou a declarar que "escrever livros dá trabalho". Segundo Martin, García Márquez tem alguns livros completos guardados, mas ainda não decidiu se vai ou não publicá-los.

Abu Ghraib, a cegueira e Santa Catarina


Você passa de um livro para outro, de um filme para um livro, de um telejornal para um filme - e as cordas invisíveis das conexões dando seus nós e desatando outros na sua cabeça. Digo isso porque vou falar de um livro, um filme e uma reportagem de televisão. O livro é "Cadeia de comando", a compilação de reportagens - de jornais e revistas - do americano Seymour M. Hersh, o mais festejado jornalista investigativo dos EUA, célebre autor da denúncia sobre o massacre de Mi Lai, no Vietnã, e ultimamente com fama reforçada por ter se dedicado a fuçar as entranhas do aparelho repressivo norte-americano entre Bagdá e Guantánamo na guerra de Bush, que é exatamente o tema do livro em questão.

Quem se dispuser a ler "Cadeia de comando", ademais disponível sempre a preços promocionais até em supermercados, que foi onde comprei meu exemplar, vai ter a chance de organizar minimamente a babel de informações que nos últimos anos recebeu sobre a trapalhada dos americanos entre o Afeganistão e o Iraque, passando por uma recuperação meticulosa do ataque terrorista de 11 de setembro. O ponto forte do livro - o gancho que o jornalista usa como liga para as várias frentes de derrota do guerreiro Bush e suas águias até então implacáveis - é a denúncia dos abusos no presídio de Abu Ghraib, aquele das fotos que chocaram o mundo, com soldados americanos obrigando prisioneiros iraquianos a se deixar fotografar com simulações de masturbação, corpos nus amontoados e similares.

A tese do livro é de que a conduta vista em Abu Ghraib não foi um exagero pessoal de soldadinhos sexualmente perturbados do interior profundo e puritano dos EUA, mas um recurso usado deliberadamente - mais que isso, planejado detalhadamente - pelo governo americano como forma de submeter os iraquianos pela via a que eles são mais vulneráveis: a vergonha ligada a questões sexuais. Seymour M. Hersh escreve: "A idéia de que os árabes são particularmente sensíveis à humilhação sexual tinha sido discutida entre grupos conservadores a favor da guerra antes das invasões do Iraque, em março de 2003. Um livro frequentemente citado era A mente árabe: um estudo sobre a cultura e a psicologia árabes, publicado em 1973 por Raphal Patai, antropólogo cultural que ensinava em Princeton e Columbia, dentre outras universidades, e que morreu em 1996. O livro inclui um capítulo de 25 páginas sobre os árabes e o sexo, descrevendo o sexo como tabu revestido de vergonha e repressão. (...) O assessor do governo disse que deve ter havido um objetivo sério, no princípio, por trás da humilhação sexual e das fotografias posadas. Acreditava-se que alguns prisioneiros fariam de tudo, inclusive delatar companheiros, para evitar a disseminação de fotos tão vergonhosas para familiares e amigos."

A investigação, a tese e o conjunto todo da denúncia do jornalista lembra, formatado em livro, um outro volume importante que compila reportagens de um outro momento histórico grave - o ensaio "Eichmann em Jerusalém", de Hannan Arendt, tema de postagens recentes aqui no Sopão. Temos em "Cadeia de comando" a mesma construção sobre ética, culpa, responsabilidade e punição equivocada - ou deliberadamente distorcida - que a filósofa alemã ergueu no seu livro sobre o julgamento do burocrata nazista pelos judeus sionistas. Prova de que o mundo, infelizmente, não muda com a velocidade que desejamos. E que a História se repete, sim, se não como farsa, certamente como uma espécie nefasta de teimosia.

Para dar um tempo nos horrores desta "Cadeia de comando", tento um entretenimento com substância e vou conferir, atrasado como sempre, a versão cinematográfica de Fernando Meirelles para o livro de José Saramago, "Ensaio sobre a cegueira" (que ainda não li). E o que se encontra no filme, para além de uma tradução visual honesta para as narrativas metafóricas do escritor português? Um outro horror, evocado e aos poucos concretizado quando a humanidade se vê presa de algum tipo de confinamento. No filme, a chantagem e a exploração sexual exercida pelo grupo mais poderoso dentro dos confinados pela quarentena da perda da visão remete absolutamente ao embate extremamente desigual entre os soldadinhos de Abu Ghraib e suas presas iraquianas. A metáfora de Saramago - o escritor que já separou, literal e sugestivamente, a península ibérica do resto da Europa em "A jangada de pedra" - não poderia ser mais verdadeira. A realidade brinca com a ficção qual um menino com sua bolinha de quicar.

E se você ainda duvida, deixe eu encerrar a longa postagem com a indicação da reportagem citada lá no início. Ariadne Oliveira, repórter da TV Câmara, onde trabalho, viajou com um grupo de deputados a Santa Catarina para ver, três meses depois das enchentes, como está a situação do estado e dos desabrigados. Quando perguntei pra ela o que de mais marcante encontrou, a repórter me respondeu com outra pergunta: "Você assistiu ao filme 'Ensaio sobre a cegueira'?" Àquela altura, ainda não havia visto. Mas, se fosse só para me inteirar do horror do confinamente humano, nem precisava: Ariadne me disse - e registrou na reportagem exibida pela TV Câmara - que quem ainda está nos abrigos de Santa Catarina sofre com as bebedeiras, as ameças e a violência inclusive sexual que inferniza as noites lá dentro, especialmente nos finais de semana.

Acho que ainda é possível ver a reportagem, procurando bem no site da tevê (http://www.tv.camara.gov.br/). O livro de Seymor M. Hersh, como disse, é uma edição da Ediouro fácil de encontrar e quase sempre com preço promocional (nos sebos, então, há pilhas dele, certamente de gente que esperava a narrativa do espetáculo da guerra e deparou com o horror da opressão). E o filme de Meirelles dispensa dicas de localização. Agora é só juntar os três e atar ou desatar seus nós cegos pessoais sobre a humanidade em geral.

Gabo e Guimarães



Acabo de ler as 71 páginas do primeiro capítulo de "Vivir para contarla", a autobiografia de Gabriel García Márquez. É muito agradável, bastante saboroso, uma iguaria literária na ponta da língua voltar a ler o escritor colombiano que colocou a literatura latino-americana em novo patamar com seu premiado "Cem anos de solidão".
É um prazer que faz cócegas no cérebro percorrer com os olhos e experimentar com os sentidos que a imaginação dispara cada linha das memórias de "Gabo", anos depois de ter lido alguns de seus outros livros - além de "Cem anos", "O amor nos tempos do cólera", saga amorosa entre charcos e perfumes que se abriga para sempre no coração do leitor, e "Crônica de uma morte anunciada", a história com que ele me foi apresentado, de um exemplar de biblioteca pública, com a novidade que era aquela pronúncia latino-poética, aquela maneira de narrar mais pegajosa, com palavras que parecem amolecer a mente do leitor, embebedá-lo com palavras a ponto de ele não resistir e tombar, ouvinte sonâmbulo do narrador, até a última página.
É a isso que me sinto retornando. É como voltar a ler Jorge Amado depois dos 40. A força irresistível do bom narrador, o paladar adocicado da escrita mais latina. Jorte, Gabo, Scorza, Marcio Souza, essas figuras fantásticas e suas criações amazônicas. E, como se trata, agora, do texto original, que meu portunholzinho de curso autodidatada felizmente vem conseguindo dar conta - imagino eu - então esse prazer lítero-paladar-olfativo que a escrita de Gabriel García Márquez produz fica ainda mais codimentado. Lê-se o texto original como se estivesse ouvindo a música de uma narrativa. Uma estranha conexão entre a substância da palavra escrita e o valor adjetivo da palavra cantada. É comum que eu leia se não em voz alta, em pronúncia sibilante, num entredentes que faz a boca pronunciar o texto baixinho para que meus ouvidos possam ouví-lo ressoar enquanto meus olhos o percorrem. Uma festa sensorial provocada por uma edição de bolso comprada naquela viagem a Buenos Aires.

E por acompanhar, aqui e ali, a leitura com essa verbalização à lá João Gilberto, é que a prosa memomorialística de Gabo acaba me lembrando sempre o monólogo de Riobaldo Tatarana no "Grande Sertão: Veredas" deste outro narrador latino de quatro costados, João Guimarães. A leitura labial destranca as portas e joga luz na casa antiga: nos dois casos, são, para mim, a entrada em linguagens que, embora estranhas, representam variantes do falar normal, em dialetos que alargam o poder que as palavras costumam ter no português comum. O espanhol original de García Márquez espande meus horizontes de leitor como o português movediço dos sertões de Guimarães já o fez antes, sem sair, a rigor, de dentro dos cercados deste próprio português pulador de cerca, como convém a todas as línguas de natureza criativa.

Pixote globalizado


"Quem quer ser um milionário" é uma espécie de "Pixote" da Índia globalizada na era do cinema turbinado. Para além de toda aquela pirotecnia visual que dá ao filme todo um ar de grande viodeoclip-fim de mundo, de terceiro mundo pop, existe o olhar do protagonista, aquelas duas bolas pretas que parecem equipadas com um escudo invisível através do qual as impurezas do mundo real não passam. Um canal ótico por onde só vaza o que a vida tem de fábula - e este é outro dos componentes sutis mas não menos importantes que o filme utiliza, o que faz de seu protagonista não apenas um Pixote moderno mas também um Forrest Gump asiático. Quero dizer que o filme vencedor do Oscar 2009 é um tipo de fábula construída com base na realidade mais insuportável e, sendo assim, lembrou-me muito outros filmes enquanto a ele assistia.

Além de "Pixote", que dispensa explicações, e de "Forrest Gump", cuja explicação acaba de ser dada, "Quem quer ser um milionário" me lembrou muito "O caçador de pipas". Mais o livro do que o filme, na verdade, uma vez que no cinema a história do menino culpado por não ter defendido o amigo de infância no Afeganistão do tudo-ou-nada foi muito mais suavizada do que no texto original, este também já notavelmente aparado em suas arestas mais pontiagudas. Como no "Caçador", em "Quem quer ser" temos a trajetória infeliz de um menino situado num quadro realista e histórico sintomático da história recente - num caso o Afeganistão entrincheirado ora pelos russos, ora pelo Talibã; noutro, a Índia global, o país mais comentado dos últimos anos, com sua miséria perene, sua riqueza emergente ligada ao fluxo dos mercados, seus call centers que foram exaustivamente explicados no best seller "O mundo é plano" e que agora estão até na novela das oito.
Neste cenário, está um personagem massacrado pelas condições adversas em torno de si, tentando construir meio às cegas uma história de superação. Só que, no caso de "Quem quer ser", a superação é tão artificialmente que se torna fábula, e uma fábula de estrutura narrativa a certo ponto já bem previsível, em que a resposta para cada pertunta do programa de tevê de que o garoto participa, a gente sabe, vai precipitar mais um trecho de desgraças da vida que ele teve até aquele momento. Em "O caçador" é usado o mesmíssimo recurso: duas páginas antes, você já antecipa o que vai acontecer. Como não é um livro de suspense, não atrapalha - pelo contrário, até conforta, o que talvez seja uma das explicações para a história ter sido tão lida. Mas, literariamente, é sempre um pecadilho que subtrai um pouco do mistério desconcertante que as boas histórias costumam ter. Essa mesma engrenagem ficcional ocorre em "Quem quer ser" - basta você trocar o registro gráfico do livro pelo gatilho audio-visual com que trabalha o cinema.

E há ainda um outro filme que "Quem quer ser um milionário" lembra a todo momento. Dois filmes, pra ir um pouco além. O primeiro é bem diverso, mas só na aparência: "Moulin Rouge", com aquela colagem visual potente que parecia amarrar o público com cordas visuais hipnotizantes enquanto desfiava sua história em ritmo de música e dança. O segundo é meio óbvio: "Cidade de Deus". Aquela mesma estética plástico-feroz, aquele mesmo ritmo que suga o espectador para dentro da película, aquela mesma montagem matadora - e aquela mesma expressividade que todos esses elementos citados conferem ao filme de Fernando Meirelles -, estão presentes no vencedor do Oscar. Há uma cena flagrante, que é aquela em que a dupla de irmãos foge do policial favela adentro, entre becos, sombras, barracos e populares - em tudo semelhantes à sequencia de abertura de "Cidade", aquela do galo fugindo dos seus perseguidores entre as ruelas da Mumbai brazuca. A diferença é que "Cidade de Deus" é muito melhor do que "Quem quer ser um milionário" - vai muito além na sua investigação estética, na sua busca entre pop e realista, na sua pegada de cinema disposto a enquadrar tudo e esgotar o tema da tomada das favelas cariocas pelo tráfico.

"Quem quer ser um milionário", ao contrário, deixa, ao final da exibição, uma sensação confortável de que foi bom mas que também não foi além de um video rápido, desses que a gente vê no YouTube, sobre a realidade da nova Índia global, com sua miséria de sempre, sua riqueza emergente, seus novos gângsteres, seus prédios reluzentes e suas favelas gigantes. Com fábula, o filme é coerente, se completa e se basta - mas a realidade que ele tangencia é tão maior, e o personagem que ele explora é tão mais rico (especialmente na infância) que o espectador mais exigente fica com uma sensação de refeição interrompida. Parou ali pelo segundo prato. Faltou o terceiro, pra ser comido com as mãos como pede a cultura indiana, e a sobremesa, não obrigatória mas sempre bem-vinda, como sugerem os hábitos do outro lixo - o nosso, ocidental.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Inimigo público


De alguma maneira, talvez até com sinais trocados, o delegado Protógenes é o Luiz Francisco da era Lula. Os dois têm uma aparência meio fora de padrão, um olhar esquisitão, um jeito de corpo de quem circula entre teorias conspiratórias e verdades silenciosas que muita gente se nega a ouvir e admitir. Assim como o procurador Luiz Francisco, Protógenes tem um quê de louco e uns tiques de visionário. Em seu favor, ambos invocam o papel constitucional de estarem cumprindo os seus deveres - e o fazem, claro, por terem sido ambos acusados de extrapolarem esse papel. Até na maneira tortuosa de se expressar - a maneira, afinal, como se expressa a grande maioria dos brasileiros comuns, que não fazem parte do mundo midiático glamourizado - é semelhante. Os dois não têm o talento tão necessário nessas horas de ir direto ao ponto e de ser didático nas explicações sobre as maracutaias federais que desvendam. Pior pra eles, mas também para a Justiça, que nem sempre rima realidade com objetividade.

Essas considerações me ocorreram ao assistir à entrevista que Protógenes deu, ao vivo, agora pela manhã, à tevê do portal UOL. Foi como ver, anos mais tarde, a reaparição de Luiz Francisco, o procurador do Ministério Público que ficou famoso por denunciar o envolvimento de Eduardo Jorge, então funcionário do Palácio do Planalto no escalão mais íntimo do presidente Fernando Henrique Cardoso, no escândalo do desvio comprovado de dinheiro público das obras do TRT de São Paulo. Como acontece agora com Protógenes, Luiz Francisco foi alvo de uma campanha que o desacreditava em cada gesto, cada denúncia, cada palavra. Na época, a imprensa só faltou dizer que Luiz Francisco estava errado porque era feio e meio aleijado - porque todos os demais argumentos possíveis foram jogados na arena onde o procurador foi apedrejado com reportagens, editoriais e afins.

Pois toda a experiência que a mídia colocou em prática contra Luiz Francisco, com a eficiência que ela costuma ter, parece estar sendo reaproveitada agora no caso da Operação Satiagraha. Então um delegado federal recebe a incumbência de investigar uma das figuras mais poderosas, financeiramente influentes e midiaticamente protegidas do país e, relizado o trabalho, vê-se na condição, ele sim, de vilão nacional. A operação policial é meticulosamente demolida constatação por constatação - se não por evidências que negem o que foi apurado, por um silêncio omisso que faz de conta que essas evidências em si simplesmente não têm validade, porque o que não é notícia absolutamente não existe. A existência de grampos, legais ou não, são desde os tempos de Luiz Francisco, um recurso usado nesta estratégia geral de desacreditar o denunciante. Não são novidade nenhuma - e mais uma vez estão sendo postos à frente da investigação primeira e seu objeto, o "banqueiro bandido", como disse Protógenes ao UOL, Daniel Dantas.

Com essa entrevista de hoje, parece que está se explicitando uma decisão de Protógenes de se expor mais, sair da toca e colocar a cara para bater expondo seus pontos de vistas. E nisso mais uma vez a figura dele se aproxima da de Luiz Francisco que, encarnando o profeta maluco que tanto se quis ver nele, também não se furtava a encarar câmeras e microfones. Protógenes, ao escolher uma tevê transmitida apenas via internet, parece ter um pouco mais de dicernimento do que Luiz Francisco, pois que optou por um veículo algo alternativo e mais linkado com a nova audiência formadora de opinão. Uma audiência que desconfia da mídia tradicional e se abastece de informação na rede mundial tanto quanto a utiliza para rebater o que os jornalistas escrevem como reis sentados em seus tronos falsos - como, em outro caso, vem acontecendo com a jornalista Ruth de Aquino, que foi pra lá de parcial numa reportagem sobre o menino Sean na revista "Época" e agora se vê obrigada a receber um retorno dos leitores nem um pouco ingênuos.

A propósito dessa nova era da mídia que não pode passar seus tratores de papel e imagem sobre o bom senso de um público igualmente novo, assim como a propósito da semelhança entre Protógenes e Luiz Francisco, como também a propósito das danças e contradanças daquilo que se convencionou chamar de "opinião pública", deixo uma recomendação aos leitores do Sopão: depois de apreciar os jornais e assistir aos telejornais, leiam, urgentemente, o texto da peça de Ibsen, "Um inimigo público" - um texto impactante e incomodado sobre fenômenos como esse a que assistimos mais uma vez, de uma denúncia que procura desacreditar uma outra denúncia, num jogo desonesto que tenta manipular o julgamento popular. Há uma edição boa e barata em formato de bolso dentro da coleção L&PM Pocket disponível em livrarias e, ironicamente, até nas mesmas bancas de jornais onde hoje reina o vilão Protógenes e ontem foi ridicularizado o bufão Luiz Francisco.

sábado, 14 de março de 2009

A imagem do som




Nossa Mana, a ilustração da postagem sobre o livro de Ruy Castro foi recolhida no vasto mundo das comunidades virtuais onde se pode obter boas contribuições escapando por um minuto que seja de pagar o valor de mercado tão prezado hoje em dia. Resumindo: peguei na rede e se você quiser ver mais basta digitar "jazz" no Google Imagem e se fartar de tanta beleza e tanta feiúra. Mas, já que tocou no assunto, tenho que dizer que, no dito livro de Ruy Castro, "Tempestade de ritmos", há um capítulo inteiro dedicado às ilustrações de capas de discos, contando inclusive como, por quem, quando e em que circunstâncias elas foram criadas e se popularizaram. Uma curiosidade do capítulo é a explicação do motivo pelo qual até hoje costumamos chamar discos de "álbum".

No mesmo capítulo, Ruy Castro ainda fala sobre o trabalho de grandes capistas de discos; como César Villela, que criou aquelas famosas capas com fotos em alto contraste e em branco, preto e vermelho para o selo Elenco, no que praticamente instituiu uma imagem para o som da Bossa Nova; e David Stone Martin, autor de belíssimas capas de discos de jazz para a não menos famosa Verve. Já que você está no Google, é só digitar os nomes dessas duas feras aí e navegar por outras belas imagens que traduzem visualmente o poder sugestivo da boa música, como se vê nas capas de Martin que ilustram essa postagem-resposta.

Paraíba, meu amor

Comentários muito sensíveis de Tetê Bezerra nas postagens mais recentes sobre as férias me deixaram com vontade de especular um pouco mais sobre o nosso estado-companheiro, a agreste Paraíba. Por razões favoráveis ou não, também voltei das férias com um sentimento, digamos, remixado em relação à terra de João Grilo, o insolente paraibano criado por Ariano Suassuna, cuja naturalidade não está explicitada no texto do "Auto da Compadecida" mas para mim não resta dúvida de que ele nasceu, se criou e morreu - duas vezes, não foi? - ali em Soledade, Junco ou Juazeirinho. Digressão cortada, preciso dizer que há alguma coisa em mutação na Paraíba - provavelmente se poderia dizer o mesmo do Brasil inteiro, mas eu não percorri o país quando criança, e na Paraíba estive sim. É por isso que até hoje quando eu penso no que pode ser uma grande cidade eu me lembro de Campina Grande, sem que a repetição do adjetivo tenha nada a ver com isso - é um signo verdadeiro, muito mais do que uma expressão verbal.

Pois Campina Grande me deixou orgulhoso. Por onde passo, de Formosa, aqui em Goiás, até Carnaúba dos Dantas, lá no meu Seridó potiguar, noto que tudo cresceu, agigantou-se, movimentou-se, numa onda de fortalecimento das outrora pequenas economias do Brasil interior por tanto tempo tão esquecido pelos cabeças dos litorais. Em compensação, do ponto de vista da urbanidade, da organização, da prudência social e similares, tudo piorou na mesma proporção e parece que acompanhando o mesmo ritmo da fartura financeira. Não estou condenando o crescimento econômico das grandes cidades, das cidades médias e dos pequenos municípios do interior - era mais que necessário, especialmente no Nordeste. Estou reclamando da falta de uma coisa geral que a gente pode chamar de educação e que corra paralelamente a esse crescimento. Se houvesse - e mesmo que se queira que haja, é algo no que se investe hoje para colher rendimentos pelo menos dez anos mais tarde - , Carnaúba dos Dantas estaria mais pra-frente, sim, mas com menos balbúrdia na sua rua principal, que parece mais a Índia de Gloria Perez; assim como Formosa, aqui pertinho, teria provavelmente um trânsito mais disciplinado que a fizesse mais afortunada mas menos tumultuada.

E chegamos a Campina Grande: pois Campina me deixou orgulhoso. De todos os lugares que vi, ainda que muito rapidamente, foi o único que me pareceu igualmente mais abastado - embora sempre me tenha parecido uma cidade rica, e acho que sempre o foi - mas sem abrir mão de uma organização mínima que parece até estar estampada na figura dos seus habitantes. Pode ser engano provocado pelo itinerário rápido - repito, foi uma estada de menos de um dia - mas achei a cidade limpa, disciplinada, pouco barulhenta, clara e espaçosa mesmo com, como acontece com todos os lugares hoje em dia, um grande número de carros nas ruas. Sem falar numa ruma de sebos que achei bem no lugar onde parei, aquela praça perto do antigo cinema Capitólio.

Essa foi a razão favorável a que me referi lá no início. A parcela desfavorável nessa balança paraibana veio em João Pessoa. Há uns cinco ou seis anos, estivemos lá, eu e Rejane, ainda sem os meninos, em férias bem agradáveis de dois dias. Agora, voltamos. Um colega de trabalho que visita periodicamente a cidade em férias e havia vindo pouco antes da gente advertiu: o ruim é que agora a cidade está cheia de pedintes. E é verdade. Não que a gente tenha constatado o que o colega disse - a gente meio que foi esbofeteado por essa evidência, o que é muito diferente. João Pessoa, essa Brasília à beira mar de normalmente tão calma, também tão organizada, até meio tediosa de tão quieta, parece ter sido invadida por uma legião de pedintes dos mais variados tipos - desde o cara de pau absoluto de 18 anos até o ancião com a perna enfaixada bem na porta do shopping center, onde mais? Voltamos com uma imagem ligeiramente arranhada - e olhe que nós não somos gente que não suporta pobre, pedinte, petistas e outros espécimes "dessa raça" como diria um certo político brasileiro - ao contrário, nós, por graça de origem, de certa forma ainda fazemos parte dela.

Mas é que fica a impressão nascente de que, com o pequeno impulso no turismo local - impulso ainda bem incipiente perto do que se deu em Natal - já há um apelo no ar que faz as pessoas tentarem tirar proveito da maior quantidade de dinheiro em circulação, e de uma das piores maneiras possíveis. Gonzagão, coitado, já deve ter dado umas cem voltas em torno dele mesmo dentro do túmulo. Num país que, com crise ou sem crise, experimentou uma redistribuição de renda inédita e um aumento na capilaridade dos dutos por onde circula o dinheiro pouco visto, não se justifica aquela quantidade de pedintes nas ruas de João Pessoa. Depõe contra o espírito de certo segmento dos paraibanos - infelizmente, tenho que dizer, de nós, nordestinos em geral. E se você acha que estou sendo autopreconceituoso, eu lhe cito um outro exemplo que infelizmente vem há muito mais tempo causando um rombo na imagem da Paraíba: aquela extorsão oficial que se dá nos postos da Operação Manzuá, quando se entra ou sai do estado. Não foi vítima ainda? Quando for à Paraíba, meu caro, leve um trocadinho para dar ao guarda rodoviário da divisa, caso contrário ele pode criar caso com você.

E não acabou: volto e sai a notícia do desfecho - será mesmo desfecho? - daquela história do processo contra o (então) governador Cássio Cunha Lima. Depois de depor e repor o governador no cargo várias vezes, como se o cidadão paraibano, eleitor ou não do tucano Cássio, merecesse assistir a essa violência institucional, finalmente a Justiça Eleitoral o removeu o cargo. Bem no meio do mandato, pois não? E dando posse ao adversário mais frontal, correto? Isso é lá procedimento jurídico que se respeite, se reconheça e se cumpra? Não seria o caso de demover dos seus cargos os próprios homens da Justiça por terem demorado tanto para julgar a denúncia - deixando o cidadão, o maior prejudicado pelo derruba-e-repõe-e-derruba-de-novo em expectativa e desamparo? Tive pena da Paraíba e dos paraibanos ao saber do veredicto do TSE, me lembrei da Operação Manzuá que também entorta a lei pelas mãos de quem mais deveria cumpri-la, veio à mente a invasão dos pedintes ansiosos por levar o deles na incipiente explosão do turismo em João Pessoa.

Salvou-se Campina Grande, do Açude Velho (na foto), ainda bem, Tetê. Meu relicário não se quebrou. Mas a continuar assim, parodiando o baiano Gregório de Matos, "triste Paraíba, ó quão dessemelhante..."


P.S.: José, de Parelhas, lembra que Equador ainda fica no Rio Grande do Norte. É verdade, José. Eu é que confundo tudo na minha geografia precária e sentimental. Obrigado pela correção.

Rumo ao Dormitório da tartaruga

Quem puder que explique as coincidências. O fato é que, das ladeiras de Olinda às praças de Campina Grande, do Parque das Dunas ao parque aquático Big Blue em Búzios, onde estive nessas férias, ou de Redinha a Maracajaú, como diz o frevo mas onde de fato não estivemos, um lugar simplório e semidesconhecido - na verdade, um recanto inserido numa paisagem essa sim bastante apreciada - ficou na memória nesta volta para casa como sinônimo de sítio ideal para zerar a mente, o que é, muito apropriadamente, um dos objetivos dessa instituição (a caminho de virar mercadoria, como tudo) chamada "férias". Direto ao ponto: voltei com uma lembrança muito boa de um determinado cantinho na barragem Gargalheiras, Acari-RN se é que algum leitor ainda ignora o lugar no mapa, que fez exatamente isso que eu disse nas frases anteriores: qual um faxineiro natural, saiu varrendo dos salões e das quinas da cuca tanto o poeirão quanto as sujeirinhas acumuladas pelo exercício dos dias, essa expressão que engloba trabalho, obrigações, rotinas, prestações e esquecimentos. Depois de aproveitar a calma, o silêncio, a qualidade contemplativa desse lugar bem específico, estava pronto para voltar pra casa e começar tudo de novo.

Chamei, comigo mesmo, o lugar de "Dormintório da tartagura" (veja na foto). O apelido se explica pelo fato de ter sido o mesmo lugar onde, um dia antes, eu e Cecília passamos vastos minutos acompanhando um filhotinho de tartaruga navegando na beirinha da barragem, no que parecia ser a busca de um recanto onde poderia se abrigar. Dia seguinte, voltei ao local já sem Cecília e me esbaldei no nada, qual um banhista zen. É que o "Dormitório da tartatuga" é um pedaço de prainha meio brejeiro, com uns tufos de mato num canto e ondas límpidas na maior parte de sua extensão. Ondas de açude, que produzem aquele som suave de um batimento bem diverso da virulência do mar - mas que, ainda assim, também soam uma música particular e especialmente relaxante. Ninguém mais, só eu - nem mesmo a tartaruga que nos levou a tal lugar. Só o banhista zen, o sol, a muralha da serra, a música da água.

É nesta parte que entra a tal da coincidência. De volta para casa, aproveitando a sombra da ameixeira no quintal - que aqui também a gente persegue um cantinho onde se possa, se não zerar tudo, ao menos diminuir a conta das aporrinhações - começo a ler um livrinho comprado há tempos e que, como tantos outros, estava me esperando pacientemente lá na estante. "Os vabagundos iluminados", do "on the road" Jack Kerouac, nessas edições de bolso práticas, bontinhas e nem um pouco ordinárias da editora L&PM. Este outro livro do mito da geração beat difere do seu clássico pop absoluto pelo fato de, aqui, Kerouac acrescentar punhados de filosofia e uma certa religiosidade oriental ao relato de suas contra-aventuras. Como sempre, ele anda de carona de um pedaço a outro dos EUA, participa (ou assiste, platonicamente) às farras de seus iguais insatisfeitos com a hipocrisia abastada da América dos anos 50, mas o forte mesmo são os vastos períodos de medicação em meio à natureza pura, na mais completa solidão ocasional, sob o frio tiritante do inverno ou sobre picos californianos onde dificilmente a presença humana se faz registrar.

É um belo Kerouac porque se permite pitadas de religiosidade onde antes só havia niilismo autosuficiente - e não se trata de uma religiosidade careta, mas de uma busca genuína que não se contenta com o clichê do escritor que tudo vê mas em nada crê. Mas ainda não cheguei lá: o ponto onde a jornada de Kerouac - no livro, sob a pele do personagem Ray Smith - e o "Dormitório da tartaruga" se encontram. Deixe eu recortar um trecho do livro que tudo vai se clarear na íris do olho que tudo enxerga dentro de sua mente:

  • (...) logo volto para o Norte para visitar a mata úmida e as montanhas enevoadas da minha infância e meus velhos amigos intelectuais amargos e meus velhos amigos lenhadores bêbados, por Deus, Ray, você não terá vivido até ir lá comigo, ou sozinho. E daí eu vou para o Japão e vou caminhar por todo aquele país montanhoso para encontrar templozinhos antigos e escondidos e esquecidos nas montanhas e velhos sábios de cento e nove anos rezando para Kwannon em cabanas e meditando tanto que quando saem da meditação riem de tudo o que se mexe.

Peço uma porção de paciência zen aos sábios leitores do Sopão e acrescento só mais um trecho. Fique aí que vale a pena:

  • Chamei o meu novo bosque de "Bosque da Árvore Geminada" por causa dos dois troncos de árvore nos quais eu me recostava, que se enrolavam um no outro, brotos esbranquiçados brilhando brancos na noite e assinalando, dezenas de metros à frente, o lugar para onde eu me dirigia, apesar de o velho Bob (o cão da família) esbranquiçado me conduzir pela trilha escura. (...) centenas de quilômetros de rochas cobertas de neve pura e lagos virgens e florestas altas, e lá embaixo, em vez do mundo, vi um mar de nuvens de marshmallow planas como um telhado, que se escondiam por quilômetros e quilômetros em todas as direções, transformando todos os vales em creme, as chamadas nuvens de estágio baixo, que vistas do meu pico de dois mil metros pareciam estar muito lá embaixo. (...) juntei lenha e identifiquei marcos geográficos com a minha panorâmica e meu detector de incêndios e dei nome a todas as pedras e fissuras mágicas, nomes que Japhy (o amigo de Ray, que é quem fala no primeiro trecho citado) cantara para mim com tanta frequencia: montanha Jack, monte Terror, monte Fury, monte Challenger (...)

E o livro todo é esse desfiar de especulação verbal e poética, embora impressa em prosa que jorra da boca de seu narrador compulsivo, sobre meditações naturalmente tão pouco concretas quando tangíveis são as paisagens que provocam tal exercício. Livro para se ler antes de sair de férias, na verdade, e não ao se retornar delas - porque, sem se tratar de auto-ajuda explícita (e há muito por aí de auto-ajuda não explícita sendo apreciada por gente que tem horror à auto-ajuda) prepara o espírito para viajar no sentido maior da palavra. Fiquei feliz por, mesmo lendo o livro na volta, constatar que, ao menos por algum tempo, tive nessas férias um instante de contemplação e meditação não planejada e tampouco sistematizada lá no "Dormitório da tartaruga". De resto, um lugar à disposição de vocês, como já ficou claro na postagem "Solar do Gargalheiras". A Semana Santa vem aí: que tal comprar o livrinho do Kerouac - disponível em qualquer boteco, naquelas prateleiras que giram com as capinhas da série L&PM Pocket, e escolher um lugar propício antes de arrumar as malas? Pode ser São Miguel, Gargalheiras, Santa Rita (né, Nossa Mana?), Exu Queimado...

Em todos esses citados, há a certeza de se encontrar um recanto eventualmente deserto - mas não inacessível - onde se pode confrontar a sujeira acumulada na cabeça com a mensagem muda da paisagem natural e, em consequência quase automática, sentir a mente se esvaziar de todo o supérfluo.

Mais do mesmo


Conforme anunciado, seguem alguns dos bons trechos da "Tempestade de ritmos", de Ruy Castro, que cutuca com alfinete verbal bem afiado nosso culto a Chat Baker, rabisca com caneta estourada mas certeira nossa crença na figura do músico de jazz como um miserável iluminado e ainda liga os pontos para construir em palavras a verdadeira extensão daquele músico brasileiro só recentemente - e meio tarde mais - redescoberto entre nós, o pernambucano Moacir Santos. Aos trechos:



  • Um dia alguém ainda escreverá sobre as relações entre o sobrenatural e o jazz. Talvez só o sobrenatural seja capaz de explicar Clifford Brown.



  • Desde Charlie Parker, a romântica e ingênua ideia de que heroína e genialidade eram sinônimos tornou-se um clichê do jazz. Os músicos que iam morrendo pelo caminho não assustavam os novos usuários.



  • É a velha assertiva de preservar o mito romântico do jazzista como uma espécie de "bom selvagem" de Rosseau: o negro miserável e perseguido, escravizado à música e à droga, mas firme e incorruptível no gueto, em seu quarto cheio de percevejos. Duke Ellington, a caminho de seu alfaiate, tremia de medo dessa teoria.



  • Louis Armstrong não foi apenas o cantor de jazz mais influente do século XX. Foi também o cantor popular mais influente do século.



  • O número de cantoras que pensam dever a Billie (Holliday) sem saber que devem a Louis (Armstrong) é infindável.



  • Bing Crosby foi o primeiro intérprete, branco ou negro, a assimilar a importância de Louis Armstrong como cantor. Dick Farney e Lúcio Alves - sim, todos são filhos estilísticos de Bing, donde netos de Louis. E, se se pensar nos discípulos de Sinatra (bisnetos de Louis!), a lista não teria mais fim.



  • Chat Baker: c0mo trompetista, ele até que foi interessante. Talvez por ter sido o primeiro a tentar ser o Miles Davis branco. Mas Chat se preocupou tanto em reproduzir a sonoridade suave e relaxada de Miles que se esqueceu de assimilar o que este tinha e melhor: a riqueza de ideias em cada solo.



  • Não que Ella fosse a "melhor" - embora houvesse quem a definisse como a melhor de todas, por ser mais completa do que Billie, embora menos emocional, e mais emocional do que Sarah (Vaughan), embora não tão completa.



  • De Nat "King" Cole a Carmem McRae, de Johny Mathis a Diana Krall - todos mestres de um tipo de canto em que a letra é tão importante que se torna quase um recitativo. É um tipo de estilo a que nos acostumamos a dar de barato, como se tivesse sempre existido, mas, na verdade, só se impôs a partir da Segunda Guerra, quando os crooners se libertaram ds big bands e começaram a cantar com trios ou com pequenos conjuntos que lhes davam mais liberdade.



  • Cole (Porter) trabalhava no limite entre a finesse e a grossura, e contrabandeava os mais ricos duplos sentidos para suas letras. Mesmo quando celebrava uma prostituta (em "Love for sale"), era como se falasse de uma rainha.



  • Para a geração de Porter, (Rodgers &) Hart, (George) Gerswin, (Johny) Mercer e Dorothy Field, a construpção de uma letra era como projetar uma casa: com estrutura, fundações, divisão de aposentos e decoração de interiores. Um letrista daquela turma podia passar semanas em busca de uma rima interna. Não se fazia pouco da inteligência do ouvinte - embora eu suspeite que o temor de cada um daqueles gênios era o de ser julgado pelos seus próprios pares.



  • Sua síncope parecia estar nas regiões mais sombrias, densas, pesadas da música: as tonalidades cavernosas do sax-barítono, do trombone-baixo e da mão esquerda do piano. Toda essa riqueza, contida em seus arranjos e composições, começaram a inundar e a fertilizar uma geração de músicos brasileiros - não fosse a súbita mudança da música popular a partir de 1966, quando os praticantes de vários instrumentos que não as guitarras foram praticamente expulsos do mercado. (sobre Moacir Santos)