segunda-feira, 24 de maio de 2010

Pra lá de Teerã


"Não há entidade, instituição, setor, capaz de representar de forma mais eficaz a elite brasileira do que a nossa mídia. Desta nata, creme do creme, ela é, de resto, o rosto explícito. E a elite brasileira fica a cada dia mais anacrônica, como a Igreja do papa Ratzinger. Recusa-se a entender que o tempo passa, ou melhor, galopa. Tudo muda, ainda que nem sempre a galope. No entanto, o partido da mídia nativa insiste nos vezos de antanho, e se arma, compacto, diante daquilo que considera risco comum. Agora, contra a continuidade de Lula por meio de Dilma. Imaginemos o que teriam estampado os jornalões se na manhã da segunda 17, em lugar de Lula, o presidente FHC tivesse passado por Teerã? Ele, ou, se quiserem, uma neoudenista qualquer? Verifiquem os leitores as reações midiáticas à fala de Marta Suplicy a respeito de Fernando Gabeira, um dos sequestradores do embaixador dos Estados Unidos em 1969. Disse a ex-prefeita de São Paulo: por que só falam da “ex-guerrilheira” Dilma, e não dele, o sequestrador?"


Isso é Mino Carta destrinchando Lula, o Irã, o acordo e a mídia brasileira em "Carta Capital"

Um grande filme menor


Para quem tem saudades das comédias ligeiras do cinema dos anos 80, vai um trecho da análise do crítico Roger Ebert sobre "Antes só que mal acompanhado", filme de John Hughes com Steve Martin e o saudoso John Candy.

"John Hughes, diretor e produtor do filme, é um dos mais prolíficos cineastas das últimas décadas. Não é citado muitas vezes pela excelência de seus filmes, embora alguns títulos, como Clube dos 5, Mulher nota mil e Curtindo a vida adoidado, tenha admiradores fervorosos. O que se pode dizer a respeito de Hughes é que em geral ele produz histórias reais sobre pessoas que conhece bem; por exemplo, muitas de suas comédias de adolescentes são bem mais criativas do que as recentes sagas de sexo e bailes de formatura. O tema oculto da história de Antes só que mal acompanhado não é a amizade que cresce devagar, nem a hostilidade entre a estranha dupla (recursos que um filme inferior talvez empregasse) mas a empatia. É a compreensão dos sentimentos alheios."

Vale a pena ler a análise completa, no livro "Grandes Filmes", que reúne críticas e estudos de Roger Ebert, edição da Ediouro. Ebert é um crítico que se ajoelha aos pés dos cânones do cinema mundial, mas não se furta e erigir belas e inesperadas análises de produções consideradas menores, vulgares ou, como é mais comum no dialeto dos supostos iniciados, comerciais. O filme citado é um deles - e mostra a difícil convivência de Martin e Candy numa longa e ansiosa viagem. Se você não assistiu nem que seja numa reprise distante da Sessão da Tarde é sinal de que nunca teve 40 anos.

Para relembrar o filme e se divertir com ele, clique aqui e assista à sequencia final.

Para viciados em História


Se você é como eu e tem uma queda por livros de História - qualquer livro de História, pode ser o mais didático mesmo - então vai gostar um bocado de "Uma breve história do mundo", esse best seller internacional inesperado que vendo feito água e - espera-se - vem sendo lido avidamente pelo mundo afora. Você - sobretudo você que não olha com muita simpatia para livros de História, sobretudo se forem livros didáticos de História - há de pensar que se trata apenas de mais um novo livro sobre a mesma e velha história da humanidade, só que turbinado pelo marketing das editoras dos quais ninguém está livre. Pode ser, mas não é só isso.

Como um fã meio abilolado dos livros de História - não esqueço aquele antigo manual escolar da sétima série que trazia uma foto da acrópole de Atenas sobre fundo verde na capa - preciso dizer que este aí é, sobretudo, um livro divertido, leve, de abordagens inesperadas. Talvez por isso venha fazendo esse sucesso tudo. Não é apenas por contar a história do homem em linguagem coloquial, de bate papo na esquina (ao menos as esquinas onde ainda se respeita o léxico) - o que ele de fato faz - ,mas é por optar por iluminar a história usando luzes que nem sempre são valorizadas. Vamos aos exemplos, que tornam tudo mais claro: há um capítulo denominado, veja só, "A cúpula da noite". Só pelo título, o leitor desconfiado já fareja alguma coisa diferente, uma pegada algo poética, uma sugestão que vai além do fato cru.

Pois esse capítulo todinho é sobre isso mesmo: sobre a importância, que não podemos calcular bem nos dias de hoje, que tinha a noite, com suas estrelas, para a orientação dos povos que ainda estavam saindo lentamente da África para a Ásia e de lá para muito mais longe. Um capítulo inteiro só sobre isso, sobre como esses elementos - noite, estrelas, fogo, claridade e escuridão - orientavam, amedrontaram, preveniram ou danificaram a existência do homem de então sobre aquela terra primitiva. Outro exemplo é o capítulo que se dedica somente a lembrar como o mundo medieval era desprovido de cores. Não havia nem um décimo da variedade de cores que para nós, hoje, são até banais. Não havia variedade de cor nas paredes das casas e demais instalações humanas, não havia cores nas roupas. Era um mundo cor de terra e nada mais. E a tonalidade rubra era um artigo luxuoso, valorizado, caro. Só para os muito ricos. E o Brasil tem participação decisiva neste capítulo, onde é citado várias vezes, devido à coloração avermelhada que os europeus monocromáticos obtinham do nosso pau-brasil.

É disso que se compõe a graça dessa breve história do mundo que conta tudo de novo com um gostinho renovado. Estão lá a rota da seda, a era das navegações, a importância da conexão entre o protestantismo e a criação da imprensa, as mudanças que o surgimento do islamismo provocou nas feições do mundo e por aí afora. Mas está, sobretudo, a crônica de um personagem múltiplo chamado humanidade, narrada com o ritmo de uma reportagem deliciosamente bem circunstanciada. Um livro que supre a necessidade premente dos viciados em História, mas também alimenta os que querem apenas uma refeição rápida dessa iguaria que passa da mesa dos egípcios para o banquete do planeta globalizado.

Ave Maria do Morro



Clique aqui para ouvir Dalva de Oliveira cantando "Ave Maria do Morro", a criação de Heriveldo Martins que Benedito Lacerda, um de seus parceiros, tentou esnobar dizendo que era "música de igreja", como relata Pery Ribeiro no livro "Minhas duas estrelas"

Herivelto, Dalva, Nelson e Orson


O mote é o enrelo dramático e novelesco, cheio de explõsões de raiva e também de rancores repressados no relacionamento entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, mas ao largo do relato também comovem e impressionam dramas outros, de personagens do mundo da música e dos cassinos que orbitavam em torno do casal. Depois da minissérie de tevê, o livro ficou bem conhecido e está em destaque nas vitrines das livrarias. É "Minhas duas estrelas", um vasto, emocionado, pungente e ao mesmo tempo
sensato depoimento de Peri Ribeiro sobre o que ele viu desde menino no lado tanto público quanto privado da epopéia amorosa e profissional de seus pais. A minissérie da tevê era atrativa na sua narrativa de idas e vindas que marcaram a vida de Dalva e Herivelto, algemados por uma legítima paíxão tipo anos 40 e um contrato invisível de trabalho que fazia com que um dependendesse - e não só afetivamente - do outro, mesmo quanto já estavam definitivamente separados.

Peri surpreende em distanciamento no livro, sobretudo nos capítulos finais, em que tenta, mais do que contar o que viu e aquilo por que passou, analisar o que de fato houve entre seu pai e sua mãe. O diagnóstico dele para esse caso quase clínico de tempestade emocional permanente vem com uma clareza que não se espera de quem, garoto ainda, suportou o pior dos mundos, vivendo entre internados improvisados, escolas afastadas, casas de parentes e - num certo período - até sem endereço certo, tudo devido à maneira tumultuada como esses dois gênios da música brasileira conduziram - diria melhor, não conduziram - seu casamento e os filhos que dele resultaram.

Mas para além disso já foi dito que impressiona também no livro os relatos breves - mas marcantes - dos dramas paralelos, conflitos igualmente com cores típicas daquelas tituras pesadas do Brasil dos anos 40 e 50, vividos por outros artistas do mundo da Urca de ouro da era pré-presidente Dutra. Vê-se no livro um Nelson Gonçalves cindido internamente pelo vício em drogas que até hoje em dia pode-se considerar tranquilamente como coisa da pesada - e ainda às voltas com um suicídio de paixão como nem na literatura mais clássica se vê com tal intensidade. Encontra-se também no livro o relato paralelo sobre as agruras de Grande Otelo, o artista soberbo que, fora do palco, virava gato e sapato nas mãos dos mulherões que cobiçava.

Mas a história à margem de Dalva e Herivelto que mais impressiona o leitor é a de um mito internacional vivendo seus infernos particulares no Rio de Janeiro. Ele mesmo, Orson Welles, surge em "Minha vida com meus pais" no conhecido episódio do filme jamais concluído "É Tudo Verdade". Welles está no Brasil com a ambição de fazer uma produção megalomaníaca sobre um grupo de jangadeiros que faz uma jornada marinha de protesto navegando do Ceará até o Rio, então capital da República. Na reconstituição para o filme da chegada dos jangadeiros, morre acidentalmente o líder do grupo. O estúdio americano que produz o filme vai perdendo o interesse - e cortanto o envio de dólares para o enfant terrible do cinema de Tio Sam. O criador de "Cidadão Kane" mergulha numa depressão que o faz evitar a sucessão de festas mundanas e se refugiar, com a alegria possível, em temporadas na casa de praia que Dalva e Herivelto compraram justamente com o dinheiro pago a Peri (então, um menino de calças curtas), pelo desempenho como ator mirim do filme.

É triste mas também doce ver, pela narrativa de Peri, o desamparo de um cara como Orson Welles numa praia do estado da Guanabara: sentindo-se acolhido aqui embaixo da linha do Equador em meio a paisagem e pessoas anônimas, enquanto rumina a ruína de mais um projeto financiado pelos estúdios lá de cima. O fragrande em palavras construído por Peri humaniza essa criatura que assombra o sono de todo admirador do cinema. Diz um pouco mais sobre ele - e um tanto além sobre o Brasil de então, sobretudo para que não viveu suas dores, suas noites e sua trilha sonora onipresente saída da lavra de Herivelto Martins e interpretada pela voz de Dalva de Oliveira.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Bernardo, 3 anos











Em meio à crise familiar que exige o reposicionamento geral de cada um daqui de casa, uma boa notícia, que não pode passar ao largo: nesse 19 de maio deste 2010 de tão lamentável lembrança, comemoramos, com a felicidade que se realiza em pequenos gestos, o aniversário de Bernardo, que fez 3 anos. Vida longa ao nosso bravo garoto, visto na sequencia de fotos acima em várias fases de sua ainda curta, mas mui agitada vida.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Ladeiras


Olinda, Salvador, Ouro Preto e outros territórios da festiva alma brasileira já começam a pressentir o vai-e-vem dos brincantes que o janeiro terminal anuncia. Pelas ladeiras desses recantos, costelas de paralelepípedos retocam as curvas - ondulações das pedras morenas onde reverbera o gingar nativo de moleques e caboclas. Pensando nessas ladeiras e seus habitantes fevereiros, lembrei das minhas próprias, aquelas que subi e desci por tempos variados, conforme a fase dessa existência em construção. Botei aqui pra compartilhar o esforço das subidas e a recompensa das descidas - mas também pra que a rapaziada que consome o Sopão não esqueça que de ladeiras várias também tem as suas. E se curve a elas, santuários informais de cidades e memórias, individuais e coletivas.

A ladeira do Boqueirão – Minha ladeira primordial, ficava na estrada de barro que ligava Parelhas ao sítio da Timbaúba, terra de seu Severino e dona Sebastiana, meus pais. Essa ladeira ficava bem na beirinha do rio Seridó, escanchada em situação de risco no boqueirão que lhe dá nome. Nos anos setenta, eu menino passei muito nessa ladeira, passageiro da carroceria das camionetes que papai fretava para ir buscar carregamento de frutas nos sítios. Naquele tempo, era a ladeira mais temida do mundo. Quantos carros velhos não fraquejavam bem no meio da subida e deram pra trás botando em risco as vidas das carrocerias?

A ladeira do Ovidão - Lá onde morava meu tio Antônio, em frente ao ginásio de esportes que abrigou gerações de estudantes e atletas parelhenses – relação em que me incluo apenas na primieira categoria, claro. Mas engana-se quem pensa que não tive também meus dias de atleta, ainda que forçado. Tôca de seu Miguel, a professora de educação física, pegava pesado e não deixava aluno nenhum ficar fora de forma: nas voltas dela, corríamos em zigue-zague subindo e descendo as arquibancadas reforçadas do ginásio Ovídio Dantas; não satisfeita, ela ainda fazia o cooper se prolongar pela rua em frente, razão pela qual não raramente os alunos subiam correndo a referida ladeira. Pense num exercício puxado.

A Ladeira do Sol – Não foi a primeira visão do mar, mas entre as primeiras dessas visões, foi a mais marcante. Faça o teste: peque uma tarde de sábado e caminhe, assim meio casualmente, da Maternidade Januário Cicco até o alto do Hospital das Clínicas, em Natal. Caso tenha esquecido, você vai relembrar o que sentiu na primeira vez em que viu o mar. Pra mim a Ladeira do Sol justifica até hoje aquele slogan oitocentista, "Nossa Cidade Natal". A expressão fora criada para confirmar, via publicidade oficial da prefeitura, o fato de grande parte dos moradores da capital potiguar serem originários do interior do estado. Pois bem, bastava o interiorano avistar aquele marzão descortinado pela Ladeira do Sol para se tornar um pouco mais natalense e um pouco menos matutão.

A ladeira de Candelária – Outra ladeira natalense por excelência, ao menos no meu mapa sentimental da cidade. Ver, do alto dessa ladeira, Natal se espraiar entre o Machadão, Lagoa Seca, centro administrativo, uma pontinha de Potilândia, Salgado Filho e Prudente de Morais era uma experiência simples e acolhedora. Natal mudou muito mas, até hoje, a ladeira de Candelária me lembra a cidade dos tempos de estudante universitário, das primeiras vezes em que estive na capital dos cajueiros cheirosos de dezembro. Se natal fosse Atenas, a acrópole ficaria no alto da ladeira de Candelária.

A ladeira de Marpas - Aquela que dava um frio na barriga quando o motorista não freava um pouquinho antes de descer. Aquela que cansei de descer socado nas kombis e nos gols da velha Tribuna de guerra. Aquela que tirava o fôlego do infeliz que, por acaso, precisasse subir a pé (como fazia um colega da Tribuna, ainda nos tempos em que trabalhava no Diário, e tinha de caminhar entre uma delegacia e a redação do jornal). Aquela que lhe deixava ver um horizonte composto pelo rio Potengi e os telhados da Ribeira, com os fundos amarelos da igreja do Bom Jesus dos Navegantes dando as boas vindas. "Isso é Natal, ninguém se dá muito mal, como dizem pessoas quase sem se sentir."

A ladeira da Saída Norte – Pra não dizer que Brasília só é motivo de lamentação aqui no sopão. A visão noturna – a diurna não conta, tem que ter as luzes fazendo o desenho da subida – dessa ladeira que é a continuação do Eixão Norte, no caminho para Sobradinho/Planaltina, é todo dia uma lembrança do dia em que cheguei a Brasília, em 1995. A caminho da casa de Adriano (que aqui me acolheu e facilitou minha nova vida candanga), no percurso entre o aeroporto e a 216 norte, achei de cara uma beleza aquela ladeira iluminada. Parecia um caminho para o céu. Uma alameda de luzes pra fazer o viajante voar. Isso para quem está chegando, com aquela incerteza típica do migrante, não é pouca coisa não. Lembro que, naquele início de noite, tive certeza de que o Palácio do Planalto ficava no alto daquela ladeira. Não fica, todo mundo sabe, mas nem por isso ela perdeu para mim o significado que adquiriu naquele instante.

A postagem acima é uma reprise do original publicado em 25 de janeiro de 2007. Pra compensar a falta de novas postagens, que o tempo curto tem roubado do Sopão. Mas logo a periodicidade do blogue volta ao normal.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

De autoria desconhecida


E se todos os grandes clássicos
não passarem de mensagens psicografadas em momentos
de mera distração?


Levada às últimas conseqüências, a tese informal do filme “Chico Xavier” tem tudo para acabar com um dos valores sagrados no mundo da literatura: o conceito de autoria e, é claro, o orgulho mundano decorrente dele. Segundo o médium demonstra no filme, com humildade e bom humor, é bem possível que grande parte do que foi publicado até hoje, dos dez mandamentos até os clássicos mais cabeludos, tenha sido apenas o resultado de psicografias distraídas. Seriam os grandes autores nada mais do que médiuns involuntários?

Se for assim, teremos de nos conformar com o fato de que todos os grandes romances, as mais eloqüentes análises publicadas, os mais sensíveis poemas e até os aforismos mais amargos fazem parte de um grande patrimônio da nossa pobre raça humana, num amálgama literário coletivo que intimida qualquer esperança de projeção individual de quem quer que seja – tanto faz se Shakespeare ou Dante. Dá no mesmo.

O que conta é o valor intrínseco do que foi dito, problematizado, sublinhado ou ilustrado. O que faz diferença é tão somente a obra, que só por acaso acabou sendo escrita por Proust ou Jorge Amado – ambos, como todos os outros, de A a Z, apenas veículos humanos para verdades, alertas e sabedorias oriundas daquele lugar nenhum a quem a gente chama de além.

Essa conjectura de que todo escrito célebre pode não ser mais que uma psicografia não autorizada teria outros efeitos. Porque, ao nivelar num mesmo patamar – os espíritas diriam “num mesmo nível vibratório” – toda a grande obra até então considerada de natureza absolutamente humana, extinguindo as vaidades decorrentes, seria como se alguém decretasse um estranho tipo de socialismo literário. Já que ninguém é, rigorosamente, o autor de nada, tudo pertence a todos – e qualquer um, eu, você, Dilma Rousseff ou o taxista da esquina, poderia muito bem ter sido escolhido para psicografar a próxima grande obra capaz de redefinir a humanidade.

Seria o fim das noites de autógrafos. Seria a ruína dos advogados especializados em direitos autorais. E seria também a extinção daquela entidade globalizada chamada fama literária, que agracia tanto o mais recente e badalado filósofo europeu quanto o mais rentável escritor de best seller. Eu não sei você, mas aqui no meu canto sempre desconfiei de que Dan Brown, com suas elucubrações fantásticas sobre anjos, demônios, descendentes de Cristo e lunáticos que se flagelam é um senhor médium, embora naturalmente sem a fama de um Chico Xavier – o que seria demais no caso dele.

Tudo isso dá o que pensar: que tipo de espírito agiria sobre a alma de um Graciliano Ramos para que ele criasse, aparentemente do nada, criaturas como Paulo Honório, o dono da fazenda São Bernardo, além de Fabiano e sua família de migrantes miseráveis? Imagino que, no lugar de guias espirituais de extração aprimorada, na verdade o escritor alagoano tenha sido veículo para a expressão dolorida de gerações e gerações de amotinados nordestinos, desencarnados pela fome crônica. Já um Jorge Amado, com livros que compõem um compêndio quase ilustrado da revigorante vida baiana e brasileira, repleto de verdades populares, deve ter escrito tendo ao lado, além da presença visível de Zélia, os fantasmas vadios de todos os rufiões da baía de Todos os Santos.

É importante lembrar que essa tese acidental do filme “Chico Xavier” também explica a dor de cabeça crônica que acometeu outro grande escritor brasileiro, o poeta João Cabral de Melo Neto. Quando todo mundo pensava que se tratava de um problema médico – ou de uma decorrência do conhecido e propalado rigor do poeta – o que se dava na verdade eram os incômodos que a psicografia provoca na mente do médium em atividade. No caso de João Cabral, um sujeito com toda a pinta de ateu convicto e praticante – seja lá o que isso quer dizer – havia a vantagem adicional de se tratar de pessoa absolutamente insuspeita. Perfeito para os espíritos que não fazem a menor questão de autoria e adotam pseudônimos do tipo genérico, como o Emmanuel do filme e da vida de Chico Xavier.

Agora vocês avaliem o perfil de outros autores anônimos que agiram por meio de grandes escritores brasileiros e mundiais, como... Vinícius de Moraes! Que almas estreladas de desenfreado amor teriam soprado ao ouvido do autor dos mais famosos e citados versos sobre paixão e fidelidade? E já que a gente se meteu nessa enrascada de puxar o fio do assunto, imagine o leitor que multidões de espectros hão de ter sussurrado por dentro do juízo em transe de um certo William Shakespeare. Tudo para que ele, lá no seu canto, ganhando a vida com umas peças de teatro de cujo valor real certamente nunca há de ter tido uma noção completa, escrevesse – quer dizer, psicografasse – a obra que hoje é considerada aquela que melhor traduz os habitantes desta bola chamada Terra?

Bem, se para nada disso servir a idéia embutida no filme “Chico Xavier”, pelo menos uma serventia ela terá, que é o poder de acabar, a partir deste exato momento, com o rancor venenoso do típico escritor de província – já que todos, locais, nacionais e mundiais, igualam-se na mesma impotência e a autoria pertencerá sempre a desinteressadas entidades do além, desestimulando qualquer tipo de polêmica. Se bem que, falando em polêmica, há sempre o risco de, numa dessas sessões espíritas de sábado à noite, uma entidade baixar entre os encarnados para avisar que, ao contrário do que todo mundo pensa, tudo o que um certo e desconsiderado escritor chamado Paulo Coelho escreveu, seja bom ou ruim, é obra dele mesmo. Um caso raro, raríssimo, de surpreendente autoria própria, ainda que feita a partir da obra de terceiros, que por sua vez apenas psicografaram as idéias alheias – e portanto não podem reivindicar originalidade alguma.

Essa surpresa – e as conseqüências que ela traz embutida – nem Freud, ou quem quer que tenha ditado ao doutor austríaco cada capítulo de sua teoria psicanalítica – explica.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Escritores não vão ao supermercado


Aos escritores, não bastar escrever. É preciso parecer escritor. Escritores precisam ter um ar de quem vive e está à parte do todo. Escritores precisam ter um olhar vago mas que não pareça perdido. Necessitam expressar, pelo olhar, a capacidade de enxergar o que a gente normal não alcança. No rosto, escritores devem guardar a feição de quem tem muita piedade dos demais - a massa incapaz de ver o que só alguns têm não apenas capacidade de divisar, mas preparo para suportar. Escritores precisam falar com um andamento meio zen de quem tem quatro décadas a mais do que a idade real, ou aquela que aparenta, embora ao mesmo tempo precisem sugerir um tipo particular de inquietação e juventude conservada.

Escritores precisam saber se vestir, de maneira a não cometer o pecado genérico de usar roupas comuns. Mas também não podem diferir de maneira tal da indumentária geral a ponto de trair, pela excentricidade dos trajes, veleidades vulgares, inconciliáveis com a sobriedade cinza de sua visão de mundo. Escritores devem saber se deixar fotografar nas poses certas, uma maneira Albert Camus de se fixar no papel fotográfico do tempo. Estão liberados para folhear durante horas e horas as revistas culturais no intuito de descobrir as sutileza de tais ângulos. Geralmente, é de lado, olhando para o nada, exalando uma espécie intensamente particular de inteligência trabalhada, fazendo sorrisos pela metade que tanto provocam empatia quanto repulsa - e a medida certa dessa mistura pode ou não botar uma carreira a perder. Ah, sim, e de preferência, se possível, sempre em branco e preto, porque a cor, essa vulgaridade moderna, borra a impressão de seriedade quase cristã que o escritor venera com o mesmo fervor com que nega essa banalidade que é a crença religiosa dos comuns.

Escritores precisam tomar cuidado ao revelar suas influências, não devem citar nomes ordinários demais, outros pares seus que caíram nas graças das massas; é de bom tom recolher, para tais ocasiões, representantes de estilos e literaturas ainda semidesconhecidas, de maneira que ele próprio, o escritor entrevistado, pareça iluminar o caminho dos mortais leitores, ainda que estes tenham pouquíssimas chances de acesso aos citados autores semidesconhecidos. O mais importante, contudo, é que o escritor jamais deve, em hipótese alguma e situação nenhuma, citar seus contemporâneos de ofício. Escritores devem ser e se sentir únicos - ao lado deles, a par da atividade deles, praticando a mesma escrita no mesmo momento (e na mesma cidade, então) não devem, absolutamente, existir. Não há espaço para mais de um escritor no mesmo bairro, quanto mais na mesma cidade. Citar os pares, definitivamente, nunca.

Escritores, em geral, são únicos - ou assim se consideram. Não por outro motivo, de pequenos escritores há bastante, sem que cada um, no seu canto, sequer desconfie da existência dos demais.

Já os grandes escritores, estes dependem menos dos pares ocultados e mais dos leitores massificados. E de sua certificação, só o tempo dirá.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Ratos do palácio na faixa de pedestres


A notícia mais impressionante em Brasília, depois de todo o rolo envolvendo o ex-governador Arruda – com o qual, naturalmente, não dá mesmo pra competir – é a fuga em massa dos ratos do Palácio do Planalto. A informação, divulgada com destaque pelo jornal Correio Braziliense, é de que levas de ratos, tanto do tipo camundongo quanto da categoria ratazana, estão fugindo em massa do palácio construído para ser a sede do pode Executivo, para o prédio do Senado, que fica ao lado.

A notícia é de que, neste êxodo forçado, os ratos do palácio têm dado preferência às instalações da Rádio e da TV Senado, onde devoram os lanches que funcionários distraídos guardam em gavetas outrora consideradas seguras. Resumo da ópera: ratos que durante anos se alimentaram muito bem das sobras das iguarias do palácio presidencial agora têm que se contentar com biscoitos tipo social club que servidores públicos usam para matar a forme no meio do expediente. É a crise brasiliense, que democraticamente não distingue ninguém e se abateu até sobre os ratos – ainda que sejam os ratos do Planalto, com seus crachás que os diferenciam dos parentes próximos, os habitantes dos bueiros.

Acontece que o Palácio do Planalto está em reforma há meses. Como tudo em Brasília, o que atrasa a reforma é o tombamento do prédio, que não pode ser modernizado assim sem mais nem menos. Tem que consultar o escritório de Niemeyer, carimbar no patrimônio histórico e manter intacto cada fosso sem qualquer mureta de proteção que agrediria o conjunto arquitetônico original. Resultado: deu problema com a instalação do novo sistema de ar condicionado – e a obra ficou parada um tempão.

Um tempão suficiente para que, desabitado pelo presidente, secretários, ministros, estrategistas, copeiras e afins, o palácio ficasse desprovido de qualquer resto de comida. Os ratos no porão suportaram até o limite da fome. Chegou um momento em que não deu mais e só restou a alternativa de cruzar a rua e buscar abrigo e alimento no Senado vizinho. Entre os fundos do Palácio do Planalto e alguns anexos do Senado fica uma via chamada N1. Não estranhem, que em Brasília é tudo na base da sigla. Não é muito poético, mas em compensação facilita um bocado a localização, funcionando com uma espécie de GPS informal.

Mas o que importa aqui para a nossa conversa sobre ratos e palácios é o fato de praticamente todos os dias eu precisar passar justo nesta via, a N1, a caminho do trabalho. Importa saber também que bem no espaço entre os fundos do Palácio do Planalto e o início das instalações da rádio e da TV Senado, existe uma outra coisa típica de Brasília – uma faixa de pedestres, que aqui virou uma instituição talvez mais respeitada do que o próprio Senado.

Até agora, toda essa explicação sobre ratos, palácios, respeito e instituições foi um preâmbulo necessário. Porque nossa história de hoje começa aqui, nesta faixa de pedestres. Foi onde eu parei o carro outro dia, para um transeunte atravessar a rua que separa os fundos do palácio dos anexos do Senado. O transeunte passou, mas eu mal tive tempo de empurrar de novo o pé no acelerador. Porque me apareceu outro pedestre na faixa, acenando qual um desesperado e dando pulinhos para ser visto, morto de medo de acabar atropelado pelos meus pneus.

Era um dos ratos do palácio. Um dos maiores, carregando um trouxinha de parcos bens nas costas, olhar triste mas ao mesmo tempo altivo, como seria o olhar de alguém pertencente a uma realeza derrubada. Começou a atravessar lentamente, com aquele ar soberano de quem já foi marajá mas perdeu tudo no jogo, aquela superioridade adquirida com a qual o ser humano se acostuma rápido e da qual tem uma dificuldade imensa de se livrar. Parou. Bem no meio da rua. Pensou, com ar de indeciso. Ainda bem que o horário era de pouco movimento e não havia outros carros atrás de mim. Movido pela curiosidade, nada fiz. Esperei o movimento seguinte daquela figura tão inesperada na faixa de pedestres.

O rato olhou para mim e, sem que eu esperasse, veio na minha direção. Encostou o cotovelo peludo e fedorento na janela do carro e entabulou uma conversa. Você se recusaria a ouvir o desabafo de um rato do palácio, apesar do mau hálito? Eu não tenho esse poder e fui todo ouvidos. O rato me disse que se chamava Gervásio, que vivia no palácio desde a construção, que assistiu à inauguração de Brasília quando era alegre e jovem num belo camarote subterrâneo, que arranjou seu primeiro emprego nos porões e teve dias de glória durante os governos militares, que jamais foi incomodado no que chamavam de Era Collor – muito ao contrário, adorou as novidades daqueles tempos –, que construiu um fusquinha com restos de batata para se locomover melhor nos subterrâneos do palácio durante a gestão de Itamar, que roeu pilhas de papéis durante os dois governos de FHC e mesmo assim jamais conseguiu entender mesmo o que quer dizer "ajuste fiscal".

Disse também que sua ruína, iniciada já há uns 10 anos, acentuou-se radicalmente quando um tal de Lula se instalou no palácio. Que desde que o cara chegou lá, a ratolândia teve que se contentar em comer restos de churrascos e outros pratos menores, que falta bom gosto e refinamento aos novos inquilinos, e que nesse tipo de classificação os ratos são especialistas. Que eles formam uma espécie de FGV roedora, capaz de detectar, pelo que se descarta para o lixo no porão, a qualidade do que é consumido nos andares superiores.

"E ainda por cima resolveram fazer essa reforma", finalizou Gervásio, não sem antes, como convém aos ratos de boa cepa, usar de ironia para dizer que nos tempos de FHC pelo menos a palavra reforma tinha outros significados. "Com esse povo do PT, não. É tudo literal, um pobreza." Achei melhor não discutir com Gervásio minhas simpatias político-partidárias. Nunca é bom pisar em alguém que já está bem por baixo, mesmo que seja um rato. E mesmo que seja um rato do Planalto.