segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Chegadas

Viajar sem expectativas é o melhor pacote que agência nenhuma oferece. Derrubado por febres vespertinas, segui para Natal e Acari achando que sofria de alguma espécie de gripe asinina. O resultado foi que passei praticamente todo o final da festa de Nossa Senhora da Guia enfurnado em casa enquanto os festejos corriam lá fora. Não que eu seja muito chegado a festejos, mas andar por aí é uma maneira e tanto de aproveitar o clima festivo que toma conta da cidade no mês de agosto. O fato é que, na casa de Sandra, no coração da rua da Matriz, mesmo incapacitado de sair pelas ruas, basta ter ouvidos atentos e olhos para ver que a festa vem até você. Como um presente inesperado - um bônus que agência de viagem alguma banca ao turista desavisado.

E assim foi: logo na chegada a Acari, antes de o carro pisar propriamente na cidade, uns clarões no céu à esquerda da BR 226 chamavam a atenção. "Seriam relâmpagos?", especulamos. Não era chuva nem raio nem trovão - eram os fogos que enfeitam o céu ao final da novena, encerrada bem na hora em que a gente chegava à cidade. E o mais incrível: nunca houve melhor visão dos fogos noturnos da festa de agosto do que aquela que tivemos, nós e os meninos (sobretudo os meninos, que aproveitaram ainda mais impressionados este momento), ali de dentro do carro, chegando ao nosso destino, exaustos depois de quatro horas de voo e duas de estrada. Um belo presente, quanto maior a coincidência proporcionada pelo momento.

Depois, na manhã seguinte, bem cedinho, desperto com os sopros da banda, tocando a alvorada. Outro presente não prometido nos planos da viagem, mas apenas uma prévia do que viria à noite. É que a minha febre vespertina de cinco dias se tornava particularmente insuportável ao cair da noite. Então, lá do quarto, tentando colocar curativos mentais nas minhas juntas doloridas , ouço a banda descendo a rua. Fico com pena - queria ir lá fora, dar uma olhada, acompanhar um pouco, levar Bernardo e Cecília. É quando a banda ataca logo "Royal Cinema", a composição que me inspirou a escrever a peça "Valsa na Varanda" - uma música que, sem qualquer ranço oficial, bem poderia ser o hino nacional do Seridó. Acontece então que o som da banda se torna cada vez mais forte, como se tivesse interrompido a descida da rua, no rumo da praça principal. Como se os músicos estivessem tocando ali em frente de casa: pois estavam. Levantei, fui até a janela e ganhei de presente um rápido concerto - pago pelos vizinhos, tenho que reconhecer (e serei sempre grato a eles).

Na volta a Brasília, depois da rápida temporada em Natal, chegamos ontem à noite, noite de domingo, a capital escura, silenciosa e calma como Natal não tem sido, aqueles vácuos do cerrado, aqueles desertos. Mas então, garagem aberta, bagagens descarregadas, banho tomado, cai aquela chuva sonora, constante, quase cenográfica - algo extramemente raro em Brasília neste época do ano. A chuva continuou a noite inteira, deu pra dormir com essa trilha sonora inesperada, foi possível continuar respirando por aqui um pouco da umidade que se respira por lá. Um outro presente de chegada, imprevisto e marcante, do tipo que agência de viagem nenhuma pode prometer, por preço nenhum neste mundo.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

A procissão

A melhor maneira de se deixar impactar pelo calor da procissão não é, necessariamente, juntar-se a ela e caminhar entre cânticos e orações pelos paralelepípedos poéticos da cidade. Há uma maneira alternativa, que é esperar por ela em qualquer ponto das imediações da igreja matriz. Quem fizer isso, de uma janela, uma cadeira na calçada ou escorado num poste de iluminação pública, vai assistir a um rico curta metragem sobre o povo brasileiro. Basta ter olhos para filmá-lo, e ouvidos para saber editar mentalmente os restos de conversas, ruídos e fiapos de música distante que também fazem parte deste momento.

Derrubado por uma virose de oito dias, o corpo esmigalhado por um dor que parecia querer me derreter as juntas, sonolência drogada causada por um antibiótico, não pude acompanhar a procissão de Nossa Senhora da Guia, o rito de encerramento da festa da padroeira de Acari, RN, onde o Sopão mantém desde a noite de quarta-feira seu posto de observação dos rituais da vida. Incapacitado para caminhar, mas não para contemplar, instalei-me entre a cadeira da calçada, a janela e o portal de casa, aqui na rua da Matriz, para esperar a procissão chegar. Dezenas de pessoas fizeram o mesmo, não sei por quais motivos. O fato é que a simples reunião destas pessoas neste lugar já fornece material áudio-visual mais que suficiente para o filme começar. Liguei minha câmera. Me acompanhe.

Velhos se reencontram, trocam abraços afetuosos. Homens e mulheres, cabelos brancos, roupas de festa, visivelmente gente que passou a juventude se não junto, pelo menos próximo. A revelação da saudade no olhar – saudade do amigo e saudade deles mesmos, algum tempo atrás. Do outro lado da rua, a família de posses escorada no carro reluzente. Cintos que combinam com sapatos. Grandes óculos de sol como os de antigamente. Os loucos do interior, a mulher que grudou uma sacola de supermercado na bolsa e distrai um grupo de crianças enquanto é motivo de chacota para um grupo de mulheres bem vestidas escoradas nas paredes. O olhar do trabalhador braçal, negro, forte e desgastado, o homem comido pelo tempo antes da hora mas ainda assim resistente e que lidera a família de caboclos no esperado dia de festa. A velhinha com cara de Madame Mim de Walt Disney que passa apressada com a roupa de festa por baixo de uma túnica azul meio transparente, uma visão meio Glauber Rocha – aquele azul berrante e no entanto translúcido, chinelas de dedo, como a última integrante de uma congregação cujos membros já foram todos para o além ou pertencem todos a um tempo que definitivamente acabou. Uma sobrevivente de Canudos desfilando sua teimosia azul nas ruas de Acari, como a praguejar silenciosamente contra os males nunca sanados da República.

E então uma chuva de foguetões anuncia que a procissão está chegando ao pátio da Matriz. A cada luz que explode no céu, acende-se uma centelha de fé no olhar do quem espera cá embaixo. A banda ataca um antigo tema de festas populares e enche a rua com um sopro de algo poderoso, como se levantasse a poeira invisível e benfazeja de um lençol de fé que a tudo deseja cobrir. Olho para Bernardo se balançando na cadeira de criança enquanto assiste comigo à chegada da procissão, lembro imediatamente do avô dele, Chico Torres, que fisicamente não está mais aqui com a gente (e, se estivesse, certamente estaria presente neste momento) e sinto os olhos cheios de água. A procissão finalmente chega, espalhando sua multidão em cada recanto do pátio e da rua da Matriz. Logo virão os sermões e os vivas a Nossa Senhora da Guia. Rejane chega trazendo Cecília adormecida no braço. Dormiu a procissão quase toda, o outro anjo daqui de casa.

Mas o momento mais verdadeiro - por espontâneo - já passou. É aquele vácuo que se dá quando a procissão ainda não chegou, criando um momento que deixa ler em todos os olhares um certo espírito de espera por alguma coisa dispersa no ar. Fé, fraqueza, esperança ou incerteza, tudo isso pode ser, chame como quiser. Mas esteja certo de que é algo que se dissolve instataneamente tão logo a imagem da padroeira surge pronta para subir ao altar. Revelador, finito, rico até em sua tristeza. É assim o momento que antecede a chegada da procissão.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Notícias de Cuba

Quem, num passado distante, leu "A Ilha", de Fernando Moraes, e no meio dos anos 80 encarou "Fidel e a Religião", de Frei Betto, tem quase a obrigação de ler, agora, o que parece ser o mais urgente, honesto e revelador livro com um relato de como é a vida real atualmente em Cuba. Todo cuidado é pouco quando se busca informações sobre o cotidiano dos moradores da ilha cuja revolução encantou povos de um continente inteiro, pela bandeira de igualdade que estendeu no seu primeiro momento. Pois "Viagem ao Crepúsculo", o novo livro do escritor pernambucano Samarone Lima, o homem do blogue "Estuário", traz o testemunho do mais isento dos observadores.

Isento à maneira do autor, claro. Não se trata daquela tão falsa objetividade que já serviu para esconder tanta desonestidade intelectual. Quem lê Samarone no blogue sabe que o autor não é nem de longe uma daquelas hienas direitistas que infestam a própria internet onde se abrigam o "Estuário" e este próprio "Sopão". Por isso mesmo, o choque que a realidade cubana atual provoca no autor de "Viagem ao Crepúsculo" surge coberta por uma camada de credibilidade rara quando se trata de relatos sobre a ilha de Fidel. Samarone passou semanas em Cuba e, desde o momento em que pisou no país, foi confrontado com um cotidiano capaz de provocar a mais incômoda perplexidade. Política e pessoal. Viajou levando canetas bic para distribuir com os cubanos afetados pelo embargo e ao chegar lá descobriu que esse mimo é bem-vindo, sim, mas há falta de coisa muito mais básica, como leite, por exemplo.

Samarone fotografa com seu antidiário de viagem o que restou do sonho revolucionário, destruído pelo fim do bloco socialista que dava sustentação econômica à ilha, pelo embargo econômico, pela estrutura de poder que qualquer tipo de sistema político - por mais alternativo que seja - sempre acaba gerando e por um certo tipo de corrupção de sobrevivência - bem diferente das grandes negociatas brasileiras - que tudo isso acabou provocando. Mas o escritor não dá aula, nem se preocupa em fixar o quadro das pequenas mazelas diárias num panorama histórico geral do que houve de 1959 pra cá. Ele se limita a observar, conversar e, sobretudo, ouvir. E o simples registro do que acontece diante de seus olhos ergue um painel barulhento sobre a falência de um projeto, quanto mais silenciosos são os seus sinais cotidianos, como a velhinha que reclama baixinho da fome nos dias de frio, quando a comida liberada pelo regime não é suficiente; a mulher que se desespera quando não tem mercadorias como frango e leite para revender no seu mercado negro caseiro; e a garotada dos grupos culturais que fuma maconha às escondidas para protestar contra a obrigação de estar presentes em grandes atos do governo.

O silêncio é o mandamento número um. E aqui o livro de Samarone ganha um peso a mais, por usar de um recurso à altura do relato de que procura dar conta. Em "Viagem ao Crepúsculo", Samarone Lima exercita o que chama, a certa altura, de "jornalismo sem perguntas": ele conhece pessoas, faz amizade naturalmente com elas e nem precisa indagar sobre os fatos que o deixam perplexo. Os próprios cubanos, cativados pelo jeito manso e pela curiosidade aparentemente contida de Samarone, contam tudo sobre a vida real na ilha hoje. A sabedoria do autor é se comportar como alguém que está vivendo, ainda que por uma curta temporada, aquela mesma realidade - sem a impaciência típica do jornalista que não resistiria a solapar com perguntas erradas a visão de algo que não precisa de frases feitas para se mostrar como de fato é. E é assim que Samarone desvenda, qual um detetive cabreiro, a rede de "corrupção de sobrevivência" que faz sumir o frango dos refeitórios de uma universidade - o mesmo frango que havia visto antes na casa da cubana que o acolheu e que sobrevive da revenda ilegal de mercadorias vindas não se sabe de onde.

Este pequeno fato da vida cubana - a rota do frango que some da universiade e reaparece clandestinamente à venda repartido em pequenos saquinhos com se fora uma espécie de droga - se insere no quadro geral da maluca e perversa economia cubana. O relato humano, sensível e muitas vezes deprimido mesmo que faz Samarone define as linhas dessa economia onde a moeda nacional, o peso cubano, vale imensamente menos do que o que chama de "peso conversible", a moeda meio-termo entre o dinheiro que recebem os cubanos comuns e aquela manuseada pelos turistas cada vez mais presentes na ilha. Há uma terceira moeda, e você sabe qual é, bagunçando ainda mais essa economia onde tudo custa muito caro para o cubano - a não ser que ele tenha família no exterior que lhe envie as tais verdinhas. A outra fonte de dólares é a prostituição, um derradeiro subproduto da falência desse projeto, que Samarone também dá conta de mostrar como se processa nos becos mal iluminados do crepúsculo cubano.

Mas aqui o comentário já está cedendo ao impulso de reproduzir o que há no livro - e não apenas antecipar o que se pode esperar dele e da forma como aborda esse tema tão controverso. Os defensores da revolução também estão lá, mas a honestidade do relato não deixa dúvidas quanto à potência das críticas de um lado e de outro - aqueles que ainda acreditam no regime, especialmente os mais velhos, e os muitos que não vêem a hora de haver uma transição muito esperada. Por tudo isso, é dolorosa a leitura de "Viagem ao Crepúsculo": pelo que contém de desmonte de uma utopia, por menos iludido que seja o leitor idealista. Mas, se de fato temos pouca chance de ter acesso a relatos isentos sobre o crepúsculo cubano, também é verdade que os cubanos têm menos ainda oportunidade ver o restante do mundo como ele é. Por lá, o controle dos órgãos de comunicação faz com que se acredite que a Venezuela é uma potência. Se quem diz isso é um cara como Samarone, a gente se rende, lamenta e acredita.

Se é assim, como dizia John Lennon, "o sonho acabou". Só nos resta completar com outra frase, esta de alguém que não tem nada a ver com esse assunto, o diretor de televisão Daniel Filho, que já disse uma vez, ao definir o conceito do seriado televisivo "Ciranda Ciradinha": "O sonho acabou, mas papai não tem razão."