quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Neve nos trópicos


Eu sei, eu sei. Falar do clima pode ser a pior maneira de disfarçar a falta de assunto. Mas quem há de resistir à imagem – real e metafórica – daquela chuva de granizo que caiu sobre Guarulhos, na Grande São Paulo, na semana passada? Pra todos os efeitos – e especialmente para os efeitos de uma coisa chamada estilo (e seus pecados derivados), nevou em Guarulhos. E depois de a gente ter visto nevar em Guarulhos, tudo pode acontecer neste 2010 matreiro que, qual um piadista incorrigível, parece gracejar da gente ao dizer que, calma, ele ainda não acabou.

Primeiro foram os desabamentos que transformaram em tragédia o verão de Angra dos Reis. Também assistimos às cheias que viraram pelo avesso o clima em parte do interior nordestino. Houve ainda aquele terremoto que pareceu uma ironia num Haiti já conhecido como um país de terra arrasada. Depois de tudo isso, vem essa piada final (será mesmo?) de 2010, que é a neve cobrindo daquele branquinho tão avançado as ruas de Guarulhos.

Diante disso, de que adianta discutir se uma camisa presa numa porta – no que seria o mais fantástico caso de sabotagem da atual campanha eleitoral – foi a causa de certo tumulto no metrô paulistano? Quem olhar para trás e passar em revista as coisas estranhas deste 2010 teimoso em não acabar vai concluir, rápido e rasteiro, que a campanha eleitoral não tem nada a ver com isso, nem a Mamãe Erenice, tampouco Nossa Filha Verônica, menos ainda os vídeos da Sargento Regina. O problema, eleitor, é o ano. Ou, parodiando aquela frase que o marqueteiro de certo Bil Pinto – ops, Bill Clinton – deixou para os anais da democracia representativa mundial, “o problema é que estamos em 2010, estúpido”.

Diante dessa premissa, tudo é possível daqui até dezembro: macaco falar, cego voltar a enxergar, Derci Gonçalves ressuscitar ou Iberê ganhar uma manchete favorável aqui no Novo Jornal. Pelas molecagens que este 2010 vem promovendo, é bem possível que Marina passe Serra e vá com Dilma para o segundo turno. Já pensou Caetano Veloso como ministro da Cultura? Nunca mais nossas barrigas roncariam de fome de polêmica. Também já dizem por aí que José Agripino corre o risco de não se reeleger, mas pra mim a previsão não bate com a maldição do ano, já que 2010 trabalha na base do inesperado – se algo começa a ser antevisto, está fora do seu saco de maldades.

O estranho caso da neve em Guarulhos também sugere uma leitura algo mística, numa abordagem que mistura disputa eleitoral com desígnios do além. Pra entender essa outra tese é preciso estar ciente de que, como já se disse, “Presidência da República é destino”. Não basta o tal do preparo, nem a tal da biografia, muito menos as promessas – e menos ainda a imprensa amiga. Mas onde fica a tal leitura místico-eleitoral da neve de Guarulhos? Ainda não percebeu? Como dizia aquele outro bordão de humor na tevê, tem leitor que é cego. Deve ser apenas um caso de quem anda ouvindo demais a CBN e assistindo mais do que é recomendável ao Bom Dia, Brasil. Ora, a leitura místico-eleitoral da neve de Guarulhos é tão clara quanto a luz que emana da decoração de fim de ano que enfeitou Natal no ano passado. A neve caiu como um sinal dos céus, como a jogar uma camada de gelo no fogo sem controle da campanha eleitoral em curso. Não pode haver metáfora mais transparente: só não entende quem não quer, como certa classe média remanescente que prefere tiritar de frio numa manhã dominical nos parrachos de Pirangi do que admitir qualquer chance de ascensão para quem até outro dia vivia, calmo e submisso, abaixo de sua linha de consumo, de lazer, de oportunidades . De cidadania, pra ficar numa palavra só.

Se Lula, como diz o colega Arnaldo Jabor, é um caso menos de representação política do que de religiosidade projetada, então é preciso prestar mais atenção aos fenômenos naturais que ocorrem enquanto ele é espezinhado nos meios esclarecidos. A neve de Guarulhos esta aí para comprovar o caso, como o mar se abrindo diante de Moisés. De maneira que ninguém se espante se o cajueiro de Pirangi ganhar fôlego ainda maior e se espraiar até Nova Parnamirim para depois pegar o rumo de Neópolis, alcançar Morro Branco e se insinuar até o Tirol. Será um sinal a mais – ainda não sabemos do quê, mas isso é questão de tempo. Se a padroeira gigante de Santa Cruz descer do seu pedestal no alto do morro e sair caminhando pela margem da adutora do sertão até Natal, também não se espante, meu filho, que as coisas de 2010 não deve o homem menosprezar. Ainda mais se tratando de uma estátua daquele tamanho.

Ao fim e ao cabo, enquanto 2010 tiver vida, veremos e viveremos como se fôssemos figurantes em transe num velho filme de Glauber Rocha, aquele profeta maluco que dizia, com milênios de antecedência, que no futuro todos iriam ceder aos encantos da Rede Globo – e por bem mais do que cinco minutos, acrescento eu. Ele também fez outras previsões, sempre no seu estilo meio caótico e inacessível muitas vezes até mesmo para os mais refinados intelectuais de esquerda do Brasil dos anos 60. De forma que seria inútil tentar explicar, até porque o Brasil mudou tanto que não se sabe mais em que rincão do tabuleiro político estão hoje alguns daqueles intelectuais. O fundamental é que até a mais megalômana previsão de Glauber, feita sobre a miragem anterior de Antônio Conselheiro, de que o sertão iria virar mar, tornou-se obsoleta diante deste 2010 de tantas milacrias ambientais.

Porque, fala a verdade: qualquer maldição premonitória vira fumaça diante da constatação de que nevou em Guarulhos, é ou não é? E de que ainda temos outubro, novembro e dezembro para nos surpreender com o que é possível acontecer neste 2010 enquanto as capas da Veja amarelam nas bancas da memória do que foi esta campanha eleitoral.

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Leia na Hamaca


"É delicioso experimentar a metalinguagem matreira e gaiata de Suassuna, que faz troça dos narradores sisudos e constrói um painel daquele país sertanejo que abarca Pernambuco-Paraíba-e-Rio Grande do Norte recorrendo à mitologia do cordel, à cavalaria medieval e à geografia física que formatou o habitante desta nação à parte. Tudo num tom de chiste e de fantasia sem limites e sem inibições, numa prosa que reafirma linha a linha a natureza e a força da literatura. Dizendo assim, parece que se trata de uma tese disfarçada de romance. Mas não é não – é uma viagem em lombo de jumento cheia de peripécias que diz muito sobre o que somos sem aborrecer nem simular grandezas inexistentes."

Para ler o texto completo, clique aqui.

Brumas de Brasília


Não se assuste se o prédio do Congresso Nacional aparecer na televisão envolvido em uma camada de bruma branca e leitosa, como se fosse a visão fantasmagórica de certo reino podre da Dinamarca shakespeariana. Pode parecer algum fenômeno político de última hora nos dias que antecedem a eleição, mas não é nada disso. É apenas a manifestação visível da seca de Brasília para quem não mora ou nunca esteve na capital do país nesta época do ano.

Veríssimo já disse, não sei se com essa palavras exatas, que o grande mal de Brasília é, curiosamente, o excesso de luz – ou, numa metáfora, de transparência. Mas no mau sentido, já que é difícil viver numa cidade de arquitetura e urbanismo tão expostos ao sol. Neste sentido, Brasília é realmente a cidade mais ofuscante do país. Ai de quem não tiver um bom par de óculos de sol, coitado de quem tem tendência a sofrer de câncer de pele, piedade aos albinos. Isso no ano todo, mas quando chega o período mais crítico da seca – que é cíclica, como a mais autêntica estação do ano por aqui – a situação se agrava. Porque além do brilho natural que tudo clareia como uma ironia política, desce da atmosfera, e justo nos dias que antecedem a volta das chuvas, essa bruma seca que dá a todo aquele esplendor de visibilidade uma mão de tinta branca.

De maneira que você está na janela do seu prédio ou da sua casa e enxerga o prédio ou a casa de frente filtrada pelo que parece algum efeito fotográfico de filme expressionista. É como se Woody Allen finalmente tivesse realizado seu projeto de fazer um filme no Brasil mas, no lugar do lugar comum que é o cenário colorido e tropical da Baía de Guanabara, resolvesse fazer uma continuação de seu “Neblina e Sombras” no Planalto Central do país.

Outro exemplo próximo, ainda recortado do mundo do cinema, é a adaptação de “Ensaio sobre a cegueira”, que Fernando Meirelles fez a partir do livro de Saramago. Porque a camada esfumaçada que recobre a arquitetura de Brasília nestes dias lembra muito aquele branco que cegava – como por efeito negativo do preto que define a incapacidade de enxergar – os personagens da história. Fora isso, esse lado visual capaz de inspirar comparações que por absurdas que pareçam fornecem algum consolo antes da chuva, tem o lado pior de tudo isso, que é o calor. Esse, que é extremo e sem suor, portanto de natureza bem diversa do calor dos litorais, pelo menos não se vê pela tevê – o que é uma benção para os de fora que apenas contemplam a visão do Congresso em brumas como uma curiosidade dos grotões de Niemeyer.

sábado, 18 de setembro de 2010

Adeus, 2010


A Copa acabou (perdemos), a eleição presidencial está praticamente decidida (veremos) e se você olhar com um pouco mais de atenção em volta há de perceber um certo clima natalino no ar. Quer dizer: 2010, este ano marcado por tragédias naturais como nunca se vira antes e por uma campanha eleitoral pela Presidência da República em condições igualmente inéditas, acabou. Não há por que prolongar mais este ano que foi tão difícil, embora certamente não inútil, uma vez que é do conhecimento de todos que dificuldades são o grande insumo do crescimento, seja pessoal ou institucional. Mas que 2010 não faz mais o menor sentido, disso não há dúvidas.

Basta apenas que alguém – o governo, não, que se o fizer será logo tachado de oportunista e eleitoreiro – tome a providência oficial e decrete: ainda é setembro, mas 2010, para todos os efeitos, terminou. Que ninguém mais se preocupe com a possibilidade de novas catástrofes como os desabamentos de Angra dos Reis, o terremoto do Haiti ou esse caso escabroso dos mineiros presos em algum ponto muito distante no subsolo do Chile. Um caso que comprova a tese que mais marcou este 2010 que já vai tarde: nunca antes na história da humanidade se viu tamanha sucessão de desgraças matando gente em massa e de uma maneira que, quando a gente acha que nada pior pode acontecer, vem algo ainda mais impressionante e inesperado.

Para além de evitar novas desgraças, abreviar em três meses o ano de 2010 ainda terá vantagens adicionais. Vai-se, com isso, economizar a energia elétrica consumida pelo país em três longos meses (e justo aqueles que pegam as festas de fim de ano, quando o consumo em geral e não só de energia é ainda maior). O mesmo princípio vale para a água e, pela lógica oposta, para a poluição que apavora os verdes. Três meses a menos, apagados do tempo e suprimidos das nossas memórias depois de despertadas em primeiro de janeiro de 2011, significarão, na certa, um povo mais descansado para iniciar um ano novo. Mais tranqüilo, menos ansioso e naturalmente mais disposto – como alguém que desperta de uma boa noite de sono depois de duas semanas trabalhando até mais tarde.

Para o jornalismo, será bom e será ruim. Depende da perspectiva pela qual se observe este período congelado. Será bom porque haverá uma demanda reprimida por notícias – imagine o senhor ficar três meses sem dar uma olhadinha no jornal, como se estivesse em coma no hospital, e a vontade que dará de um dia para outro descobrir tudo o que aconteceu, como dizia aquela comédia romântica do cinema, enquanto você dormia. Já vejo os repórteres e editores ouriçados entre aquários, reuniões e computadores enquanto correm para recuperar tantas histórias perdidas. E será ruim porque, de fato, logo os repórteres e editores se darão conta de que não há história alguma por recuperar e narrar aos leitores e espectadores. Simplesmente porque se o trimestre final de 2010 foi absolutamente suprimido do calendário humano isso significa que nada aconteceu entre outubro e dezembro do referido ano.

Isso pode ser frustrante para jornalistas e consumidores de notícia, mas poderá ser até bom para o país e o futuro presidente, que por sinal tomará posse justamente no momento em que o Brasil acordar para 2011 após os três meses eliminados de 2010. Pense bem: com outubro, novembro e dezembro chutados da realidade, quando é que aqueles mesmos jornais e jornalistas terão tempo de especular sobre o futuro ministério do novo (ou nova) presidente? Então o leitor ficará livre de uma série de pistas falsas, maldades construídas e malícias alimentadas, reputações prazerosamente detonadas, ressentimentos políticos de fim de ano, reportagens inteiras plantadas como outrora só se fazia com notinhas inocentes.

O certo é que, por meio mística e absolutamente inédita, será preciso realizar algum tipo de ritual no momento da transição abrupta de 3 de outubro para o primeiro dia de 2011. Três de outubro, sim, porque a eliminação dos resíduos do ano atual só poderá ocorrer, naturalmente, após encerrada a votação; a apuração, a esta altura, parece um detalhe. Imagino alguma coisa como uma cerimônia ecumênica, reunindo correntes políticas díspares, como a nostalgia do PSOL, a superioridade dos tucanos e a nova classe média que o PT forjou para o desgosto da anterior, que nunca vai perdoá-lo por essa maldade. Mais um pouco do verde conveniente de Marina, uma pitada da ira contida de Ciro Gomes e, na apresentação, ninguém melhor do que a prefeita de Natal, esta cidade ecologicamente revolucionária. O sacerdote da pajelança que fará o país avançar no tempo e alcançar 2011 antes do resto do mundo poderá ser um tipo como Mangabeira Unger e, de coroinha, o senador Garibaldi Filho não ficaria mal.

No final, todos tomariam certo tipo de beberagem entre o guaraná da Amazônia e a grapete do morre-em-pé que algum dia existiu no Alecrim, cairiam em sono profundo e, bum, o fenômeno se daria. O ano de 2010 seria apenas uma memória, sem direito sequer àquelas retrospectivas obrigatórias que tomam horas de trabalho de jornalistas que poderiam muito bem estar fazendo coisa melhor – como investigar, sem pedras nos bolsos, o grau de mudança que ocorreu no país nos últimos anos.

E você nem precisou comprar presentes de Natal para a família – mas em compensação, também não ganhou nenhum, viu? Neste mundo, é sempre assim. Alguma coisa se ganha, outra se perde. Mas nunca como em 2010 – um ano que, por assim dizer, nem deveria ter começado.


*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Todo mundo sabe, mas é segredo (2)


A venda do escândalo da quebra de sigilo na Receita rende uma segunda postagem, a bordo de reportagem publicada nesse domingo pelo jornal “O Globo”. Pois o jornal enviou sua correspondente em Recife para um giro pelo interior pernambucano na missão de tentar descobrir se o povão simples sabe o que quer dizer “sigilo fiscal”. O tipo de reportagem de aquário, aquela decida por editores em êxtase no interior de uma sala envidraçada e à prova de qualquer contato com a realidade da vida brasileira lá fora.

A propósito, um parêntese: houve um período grande em Brasília em que as obras de reforma na plataforma superior da Rodoviária do Plano Piloto transformaram uma das áreas centrais da cidade – a passagem entre a Rodoviária e o Conjunto Nacional , pra quem conhece a cidade – em um caos urbano de camelôs, gente de todo tipo, trabalhadores e mendigos, desvios, carros e um sinal de trânsito permanentemente desativado. Era uma confusão infernal, a que uma amiga nossa, muito espirituosa, chamada de “Brasil”. Ali era “o Brasil”. Era assim que ela se referia àquela bagunça metropolitana. Só para concluir o parêntese, é preciso dizer que a reforma terminou e o local retomou a calma possível para a posição em que se encontra.

Pois bem: a reportagem do “Globo” de ontem sobre se o povo simples do interior pernambucano sabe o que é “sigilo fiscal” é algo assim como se alguém mandasse um repórter para “o Brasil”para fazer pergunta semelhante. Tipo da abordagem de quem divide o país em pedaços, com o povo da roça ignorante ali, o bairro de classe média melhorzinho acolá, o condomínio de luxo mais além. E é obvio que a repórter de “O Globo” já pegou o carrinho dela no Recife com as respostas ideais na cabeça. Claro que, no meio daquela gente humilde que ilustra a página do jornal, agricultores, carroceiros e feirantes por trás de suas bancas de melancia,
a ignorância formal – repare no adjetivo que estou usando aqui – resultaria em comentários toscos, noções vagas ou linguisticamente incorretas sobre o que seja “sigilo” e, mais ainda, “sigilo fiscal”. Agrava isso o fato de o conceito da reportagem – porque há visivelmente um propósito por trás disso – tentar tirar comentários ignorantes da gente que, inegavelmente, todo mundo sabe (embora nem todos se dêem ao trabalho de entender por quê) quer a eleição de Dilma e não a de Serra para a Presidência da República.

Mas o mundo é sempre mais complexo do que imagina a cabeça pequena dos jornalistas de aquário. E dá-se que, no meio das respostas toscas daquela gente simples de cidades como Casinhas, no agreste pernambucano, surgem clarões de discernimento que a autora da reportagem, naturalmente, lê de maneira propositadamente errada. Como a comerciante de 55 anos que responde:

- Sigilo é a descoberta de alguma coisa. E sigilo fiscal é a fiscalização de algo que está encoberto. Isso é coisa de campanha política, e todo mundo quer arranjar um jeito de se defender.

Outro entrevistado, lavrador aposentado de 68 anos, comenta do alto de sua sabedoria de vida, naturalmente desprezada pela reportagem que só enxerga nele a ignorância formal:

- Os políticos podem cansar de falar naquelas coisas difíceis, que é o mesmo que falar pra dentro. Pra gente, isso não conta, não.

Ou seja: por vias tortas, sem que o texto formal da reportagem admita (e aqui há ainda a boa fé de se supor que a autora tenha buscado refúgio nas entrelinhas para escapar do cerco do jornalismo de aquário), a gente simples que deveria ser usada como exemplo do brasileiro ignorante (quando não corrupto e antiético) que vai eleger Dilma presidente da República termina por denunciar, à revelia, esta própria “reportagem”. Cujo título, esteticamente atraente – “Sigilo, não sei o que é. Fiscal é o da feira” – completa o pacote. O subtítulo, abaixo, escancara o preconceito social que sustenta toda essa história materializada numa disputa eleitoral: “Tema do vazamento soa incompreensível para eleitor do interior”.
Para “O Globo”, o “eleitor do interior”, especialmente os nordestinos como os da pequena Casinhas, é analfabeto, ignorante e incapaz de entender abstrações elevadas como a noção de sigilo fiscal. Eu me pergunto: por que “O Globo” não tenta fazer, com um mínimo de honestidade intelectual, este mesmo laboratório de reportagem nas ruas do seu Rio de Janeiro original? E já arrisco uma resposta: por que os comentários, se não por ignorância presumida mas por inteligência emocional, podem soar tão destoantes do questionamento quando os daquela gente simples de que se aproveita a reportagem publicada ontem.

Vocês me perdoem a veemência do repúdio, mas é que eu me formei numa escola de jornalismo que tinha grande interesse em desbravar e conhecer o país, com a humildade que a informação precisa ter diante daquela parcela de realidade que ele não conhece tão bem. Desse ponto de vista, o interior mais distante e o grotão mais miserável eram um palco aberto para se entender o que o Brasil era e o que poderia ser. Isso foi nos anos 80. O século mudou, o país deu um salto qualitativo inegável, e aquele interior remoto – mas já nem tão remoto assim – tornou-se objeto de editorial preconceituoso disfarçado de reportagem dominical.

Todo mundo sabe, mas é segredo (1)


Estou diante da tevê que me mostra uma reportagem sobre o escândalo que pretende parar o país e, se possível, golpear uma eleição. É grave, por isso preciso prestar muita atenção. Arregalo os olhos, ativo em potência máxima os ouvidos. Mas já me incomodo porque a história que o repórter conta parece ter começado pelo meio – e não pelo início. Depois, vão surgindo nomes e nomes, todos suspeitos, claro. A seguir, surgem aqueles trechos destacados, em efeitos de computador, de documentos altamente comprometedores. As acusações, suspeitas, dúvidas e indícios permeiam toda a reportagem, que termina meio como começou – sem um final minimamente definido. E eu, do lado de cá do noticiário de tevê, fico me perguntando: se é tão importante, por que eu não entendi direito? Será que a minha capacidade intelectual – eu, sujeito formado em curso superior, e logo em Jornalismo – não dá conta de entender o caso que tem tudo para derrubar a candidata do presidente Lula e número um na preferência nacional à Presidência da República? A que ponto eu cheguei, constato, triste.

Ou a que ponto eles chegaram – os donos da grande imprensa do país, com a concordância nem sei mais se forçada, envergonhada ou aberta dos seus empregados. Mas é preciso esquecer por um momento a questão maior, que é o tal escândalo da quebra de sigilo na Receita, para analisar a menor, que é a maneira como os jornalões tentam vender o escândalo de maneira a fazer dele uma boa peça no tabuleiro da sucessão. E aí é onde entra a minha suposta burrice, aquela incapacidade de entender o caso assistindo a uma reportagem do Jornal Nacional, que foi o que aconteceu num dia qualquer da semana passada. Ficou naquilo: nomes, suspeitas, trechos de documentos em destaque. Porque, pra começar, o Jornal Nacional, que ainda é um meio de informação que cobre o país todo e se alimenta do hábito noturno do brasileiro médio de assistir à televisão, supõe, com base nesta tradição, que é visto religiosamente todas as noites. E, com base nisso, a reportagem do escândalo a que assisti pressupõe que aquilo não é novidade pra mim, que eu acompanho o caso com a mesma avidez que lhe dedica, digamos, o senhor Ali Kamel. Eu e toda a massa de trabalhadores brasileiros.

Ora, se eu, que por dever de ofício preciso estar bem informado sobre os escândalos nacionais, tenho dificuldade em juntar as peças do novo caso noticiado pelo JN, imagine o conjunto dos brasileiros que, suponho, faz uso do jornalismo (no que o JN é, inegavelmente, o componente principal da cesta) muito mais como um elemento a mais a balizar sua visão de mundo e de suas necessidades como pessoa e cidadão do que como uma espécie de bíblia de histórias e princípios que ele precisa seguir e obedecer.

A soberba do jornalismo simpático a José Serra – o que não seria um mal em si, desde que não resultasse em noticiário viciado – é tamanha que ele julga que basta manter o caso em evidência todos os dias, a cada um deles acrescentando novos nomes e novos trechos de documentos em destaque que somente isso será suficiente para cimentar na mente do espectador a noção final de que a campanha de Dilma comete a ilegalidade de invadir a privacidade contábil da filha de seu opositor e que isso é o bastante para cassar a candidatura da ex-ministra. Se mais da metade dos brasileiros acha que Dilma, nas atuais circunstâncias, é a sucessora ideal para Lula, problema deles. A instituição do sigilo fiscal é maior do que a preferência democrática pela continuidade do governo Lula.

Não vou discutir a filosofia do princípio do sigilo fiscal, que a gente sabe bem a quem beneficia – e não é ao conjunto da massa dos cidadãos brasileiros. Também não vou entrar no aspecto muito menos nebuloso que é o fato de 90 por cento dos brasileiros burlarem, de alguma maneira, por menor que seja, o fisco – um fato no qual se esbarra a qualquer hora e a qualquer momento. Essas são apenas duas faces da moeda de múltiplas caras que representa a relação dos brasileiros com o sistema de arrecadação de impostos. Só preciso dizer que são, também, duas boas explicações para o fato de o escândalo não conseguir ter o efeito esperado pelo jornalismo pró-Serra – além do fato, já abordado no início deste texto, de que o praticante deste jornalismo está pouco se lixando se o público realmente vai entender o escândalo à venda, porque se não estiver é um problema de ignorância desse público e não uma questão de incompetência narrativa dos jornalistas.

(CONTINUA NA PRÓXIMA POSTAGEM)

sábado, 11 de setembro de 2010

Domingão da garotada



O álbum completo está aqui, na Hamaca.

Um filme capitalista (2)



Clique aqui para assistir, via YouTube, aos 10 minutos iniciais de "A terra treme"(leia mais na postagem abaixo).

Um filme capitalista


O título é dramático e chamativo - "A terra treme". O conceito, consagrado - o mais legítimo representante do neorrealismo italiano que marcou a história do cinema mundial. O método não fica por baixo - filmado sem atores, mas com pescadores representando o que de fato são na vida real. O momento, então, dispensa comentários - é o cinema feito nas ruínas que sobraram da Itália mais pobre depois da tragédia social e humanitária que foi a II Guerra Mundial. E o propósito incidental não deixa por menos - dirigido por um aristocrata comunista, um tipo único não só na história do cinema mas talvez da própria trajetória humana, Luchino Visconti, espera-se do filme nada menos do que um libelo por igualdade entre os homens em um momento crucial de reconstrução da história da espécie. A fotografia, naturalmente, é em preto e branco, o que diz pouco sobre a como ela toma forma na tela. É mais que branco e preto com nuances de sombra, é uma ausência de cor que torna ainda mais gritante a realidade que o filme espelha e refaz.

Era tudo isso o que passava pela minha cabeça quando peguei a caixinha do DVD de "A terra treme", disposto a preencher mais uma daquelas inúmeras lacunas referenciais que a gente vai deixando para trás enquanto vive a vida. Para além de confirmar cada uma das expectativas em maior ou menor grau - o que é comum ocorrer com obras consagradas - deu-se uma surpresa que o tempo explica melhor. Mas eu explico, antes: "A terra treme" contém de fato todos aqueles elementos que a expectativa levanta, mas no momento em que você se coloca diante da tela é como se todas as informações prévias virassem fumaça. É naquele instante de duas horas que o filme, como diz o gerente da locadora que frequento, "bate ou não bate". "A terra treme" bate, claro. A questão não é essa.

A questão é que, visto agora, neste século posterior, depois das quedas dos muros e dos mercados, o filme não tem como não adquirir outra qualidade. A qualidade da surpresa ao se notar que não se trata exatamente, como se imaginava, do registro de uma revolução - ou de uma revolta, para ficar num tom menor. Pelo menos não de uma revolta em termos comunistas clássicos, como também pressupõe a biografia de seu realizador. Não: "A terra treme" é na verdade a crônica de uma revolta absolutamente capitalista, com um grupo familiar tentando se livrar do jugo exploratório de uma cadeia econômica que os faz trabalhar muito e ganhar praticamente nada, para tentar o que atualmente se chama de "empreendimento próprio". O protagonista do filme não quer tocar fogo nos barcos e assassinar o atravessador a quem é praticamente obrigado a servir. O que ele quer é ser empresário.

E para isso, quem conhece o filme sabe, hipoteca a casa miserável onde se abriga com toda a numerosa família e arrisca-se ao máximo a pobreza que já não lhe vale muito. Tudo para fracassar no objetivo e tornar-se ainda mais miserável do que no princípio da história, como se isso fosse possível - mas, naquele cenário do sul miserável da Itália pós-II Guerra, era sim. Acontece que a miséria e falta de perspectiva naquela ilha empobrecida era de tal magnitude que nem capitalismo havia ali. E, embora o título do filme e a aura do seu realizador estimulem o espectador a imaginar que vão ver uma epopéia pró-comunismo do século passado, o que se vê mesmo é uma fracassada tentativa de instalar um arremedo qualquer de capitalismo viável. Falar em distribuição de renda naquele cenário já é um delírio - quando mais uma revolta de cunho clássico vermelho. É assim que "A terra treme" lembra, não se impressionem, o Brasil de hoje, o país possível e sonhado de um Lula, no retrato que compõem de um homem em buscar da independência econômica num cenário não revolucionário em termos clássicos. Assistir a este filme fará a antiga classe média, sobretudo seu segmento autonominado intelectual de vanguarda, a entender um pouco da nova classe média brasileira.

Aqui, nos últimos anos, a terra também tremeu, à sua maneira. Mas o movimento das placas sociais se deu de maneira positiva, com a extensão da cidadania, inclusive financeira, a gente que durante anos foi figurante da economia e da política, como os habitantes que a pobreza torna quase invisíveis no cenário neorrealista do clássico filme italiano.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Fogo de cerrado


Aqui a situação no entorno do 7 de setembro é a seguinte: pela manhã, você abre a janela do quarto pra deixar entrar a friagem matinal, fecha os olhos, aspira e...descobre que tem uma baita fumaça no ar. No seu quintal mesmo. E não é que você tenha aderido ao superado método da queimada agrícola como técnica condenada de manejo de solo. O que acontece simplesmente é que você mora em Brasília – uma condição que felizmente não se aplica a boa parte dos leitores deste blogue que podem se considerar felizardos.

Antes que os leitores brasilienses saiam do sossego dos seus lares esfumaçados para reclamar de que a gente está a falar mal do prato que come – ou seja, da cidade onde vive e ganhamos dinheiro – é preciso que o blogueiro afoito lembre que, por maior que seja o amor por Brasília, alguma rusga há de haver quando chega o período agosto-setembro-outubro. São os meses mais pesados da seca brasiliense, esse fenômeno que dá novo significa ao dissílabo que o sul maravilha se acostumou a usar como caracterização meteorológica do Nordeste. Ah, o que é a seca do Nordeste com seus flagelados pra quem todo mundo pode enviar um donativozinho quando comprada à seca de Brasília, muito mais democrática, sem distinguir rico de pobre, a não ser pela capacidade dos mais afortunados de ter uma piscina em casa ou um lote maior de umidificadores de ar. Mesmo assim, quem vive aqui sabe, o dano é quase total. Em Brasília, seca é seca – e não se fala em atenuantes. O que é uma toalha molhada no quarto perto daquela coceirinha de pinicadas que dá na pele do cidadão enquanto ele tenta de alguma maneira ingressar no que o resto do país, especialmente as doces zonas litorâneas, chamam de sono.

De noite na cama, todo mundo sente o efeito da seca – e não estou falando de sexo, rapaziada. E de dia no trânsito é outra maravilha, especialmente pra quem tem criança pequena dentro do carro, mostrar aquele espetáculo de curiosidade quase natural que são os milhares de gramadinhos esturricados depois das queimadas urbanas que ninguém consegue controlar. Não sei os seus, mas os meus meninos ficam de queixo caído e olhar esbugalhado diante de tal acontecimento.

Às últimas notícias, chupadas do portal do Correio Braziliense: nesta quarta-feira, o Corpo de Bombeiros do DF tentava controlar dois grandes incêndios, o maior deles na reserva ambiental Estação Ecológica de Águas Emendadas, em Planaltina, e o outro na Chapada Imperial, próximo a Brazlândia. Tenho que explicar para meus dedicados leitores potiguares ou radicados no RN que Brazlândia, em períodos normais, é uma espécie de capital do morango no Planalto Central. É uma cidade pequena, coalhada de japoneses que transformaram suas terras em um painel agrícola em verde e vermelho, iniciativa que garante inclusive uma bem fornida festa do morango em período menos seco, claro. O Correio informa ainda que apenas na Estação Ecológica de Águas Emendadas mais de 90 militares trabalharam para apagar as chamas, sem falar em sete viaturas e um helicópero da corporação. Ah, sim, o jornal conta ainda que outros seis – eu li seis, está escrito no portal – incêndios em Taguatinga – cidade que dispensa maiores explicações – não foram “atendidos” – o verbo empregado pelo jornal foi esse mesmo – por falta de pessoal.

Bem: Taguatinga fica pra um lado, Planaltino no outro extremo e Brazlândia assim meio de banda. De maneira que, morando no Lago Norte – ainda que provisoriamente, num esquema de emoções de última semana – é natural que a gente se sinta cercado de fumaça por todos os lados. E compreenda muito bem que, até outubro se anunciar e novembro se instalar de vez, nada mais natural do que ao abrir a janela para deixar entrar a fiagem matinal, a gente na verdade esteja trazendo para casa um pouco daquele clima nem um pouco ameno que reina absoluto como o sol da tarde lá fora. E não vou nem falar nada sobre o calor – que de calor, quem me conhece sabe, eu gosto e muito. O problema é o fumaceiro e a falta de água na pele do ar.