segunda-feira, 26 de maio de 2008

Um poeta revelado


Chego para trabalhar e estou empenhado naquela tarefa quase braçal de varrer a caixa do correio eletrônico, quase sempre entulhada de inutilidades (falo da caixa de e-meios da Câmara, não da de casa, que é sempre cheia de coisa boa) e me aparecem os versos abaixo. Uma pepita da poesia candando-piauiense, lapidada pelo nosso amigo Paulo José Cunha, jornalista, colega aqui na TV Câmara. Que PJ é poeta eu sabia - posto que ser poeta é uma condição existencial com a qual comunga o cidadão em questão. Agora, que PJ é poeta de publicar livros de poesia - que é uma coisa muito diferente de apenas "ser poeta" - lá isso eu desconhecia. Eu disse pra ele e repito pra vocês: porque ser poeta de publicar livros de poesia é arriscar-se num terreno perigosíssimo em que o autor ou prova-se um porra louca de letras improvisadas ou então mostra logo de saída que não fica na sombra de um Vinícius, um Bandeira, um Manoel de Barros e tantos outros. Não é pra qualquer um, não: publicou, está sujeito a ser rotulado de uma coisa ou outra. E aguentar as conseqüências, que vão de ser convidado para exposição de arte até ser xingado com palavrão impublicável na via pública. Quem é que tem coragem de se submeter a isso? Pois Paulo José tem - e não corre risco de ser xingado de "poeta" quando sai de casa sob a secura de Brasília ou o calor de Teresina.

Dito isso, divido com vocês o trecho de poesia da melhor qualidade que encontrei na minha caixa postal, do nosso amigo Paulo José Cunha. E olhe que é só um pedaço da "Cantiga da baixa umidade". Salve o poeta - até agora - desconhecido (ao menos por mim):

“O mato estala nos campos de setembro/ onde a vida perde o viço/ e o mundo é palha.// Tudo é fumo no horizonte desses campos/ lavados ao calor que avança em ondas.// O peito dói, e se esfarela/ como o barro calcinado nas queimadas.// Uma angústia se instala sem aviso./ Todo gesto é lento./ Até o silêncio agride.// Derrotado à fornalha dos cerrados,/ o frágil coração nem mais bombeia./ O sangue vira pó dentro da veia.// Nesta umidade baixa e relativa,/ qualquer canto de sereia me cativa,/ qualquer ponta de cigarro me incendeia”.

Domingo na quadra









Villa, Umberto e Burt



Burt Lancaster é a altivez em pessoa, mesmo derrotado, humilhado e em estágio pra lá de terminal na "Atlantic City" do filme de Louis Malle. Ele roda pelas ruas da cidade em reconstrução como a testemunha incômoda de um passado que cai como reboco de casa velha. Nem por isso perde a elegância. E é esse contraste que confere uma significado a mais à crônica do cineasta francês sobre os domínios americanos. É com se Louis Malle estivesse dizendo: não ligue, eles - os americanos e seu pequeno/grande universo - são assim mesmo; estão sempre destruindo algo para construir outra coisa; sempre enterrando precocemente cadáveres que ainda desejavam viver um pouco mais, para permitir o nascimento precoce, ansioso e veloz de uma outra ordem que mantenha tudo em eterno movimento.


Talvez por isso, por essa pressa, até a contracultura, que prometia uma renovação mais legítima desse panorama, se corrompe antecipadamente, como mostra outro personagem do filme. Salva-se o lindo pescoço de Susan Sarandon, mas para quê? "Atlantic City", esse breve e pessimista conto sobre a impaciente alma americana, reserva apenas um piedoso final aberto para a fêmea que lhe colore o cinza. Tratamento igual ao destinado a Burt, seu monsenhor medíocre, que perde tudo mas mantém o orgulho interior.

Um olhar orgulhoso e algo pedante é o que lança "Umberto D." para a sarjeta iminente nas cenas do clássico neo-realista de Vittorio de Sica. Como Burt Lancaster em "Atlantic City", seu Umberto, coitado, já foi feliz um dia (Burt, aliás, parece nunca ter sido tanto assim) como funcionário público do Departamento do Trabalho ou algo similar. Agora, ele vive seu ocaso na pior época possível para um italiano turrão: o imediato pós-guerra, com o país em reconstrução, o custo de vida batendo na estratosfera, o comunismo clássico batendo à porta - e os neo-realista registrando tudo. Umberto D., esse velho sem passado e sem futuro, vive de uma aposentadoria insuficiente para lhe custear comida e teto. E vê-se obrigado a deixar, muito a contragosto, o quarto confortável onde repousa sua velhice. A única companhia é um cãozinho que se revelará um coadjuvante quase humano ao longo da filme.

Duas cenas você que não viu o filme pode estar certo que ficarão marcadas nas suas retinas tão fatigadas quando as do poeta Carlos. A primeira é a que mostra o reencontro sofrido entre seu Umberto e o cãozinho, no momento exato e derradeiro em que ele recupera o animal prestes a ser exterminado na saída da carrocinha. Os dois se abraçam e é como se dois seres humanos dividissem um sentimento comum, mas trata-se de um velho falido e de um cão ordinário. Comova-se à vontade, que velho e cão ratificam o quão humanamente tocante pode ser um filme neo-realista cinquenta e tantos anos depois do seu lançamento.

A outra cena é mais primorosa: mostra seu Umberto, muito reticente, experimentando o gesto de quem pede esmola - humilde mas ao mesmo tempo soberbo, derrotado mas também vigilante, tenso com a possibilidade de algum conhecido passar por aquela praça e o flagrar com a mão estendida. Mas a delicadeza da cena tem o condão de resolver tudo ao menos por um instante: basta ele virar calmamente a mão estendida para cima, girando a palma para baixo, e o pedido de ajuda vira um cumprimento no conhecido que, sim, aparece logo logo por ali. Antes, porém, a consumação: alguém passa, se comove e Umberto D., sem querer e querendo, recebe sua esmola.

Orgulho, de novo ele - mas agora em leitura mais legítima e estimulante. Quem o ostenta agora é Heitor, um brasileiro que defende com unhas e dentes tal condição. O "Villa-Lobos" de Zelito Viana começa trôpego, em cenas que aparentam uma produção precária (como na que retrata a homenagem ao compositor numa universidade norte-americana), insiste numa montagem tipo vai-e-vem que quebra o envolvimento do espectador com o filme e com o personagem, mas, uma hora depois de iniciada a sessão, afinal você já se acostumou ao biografado em questão.

Antônio Fagundes prejudica um pouco o negócio, porque insiste numa interpretação que retoca mais a celebridade do que o homem - reflexo, imagino, de um conceito da direção. A surpresa acaba vindo de Marcos Palmeira, ator que, como filho do diretor, mais parece a princípio uma escalação privilegiada (principalmente se a gente levar em conta que, na época do lançamento do filme no cinema, muito se falou sobre o cachê excessivo que o jovem ator recebeu, incentivos oficiais contabilizados). Pois a verdade é que, lá para as tantas, é Marcos Palmeira mesmo quem salva a história, ao investir numa representação mais alucinada do compositor do Trenzinho do Caipira quando jovem. Esse estilo atirado e os brados nacionalista que ele lança aqui e ali, qual um Poliquarpo Quaresma de celulóide, conferem ao filme uma feição que o faz ir além de uma história de vulto histórico, pecado que a direção de Zelito Viana comete repetidas vezes.

Descontados os momentos de mofo oficial, é um Brasil que se vê espelhado ali, na figura do nosso compositor mais célebre e proclamado, o criador que enxerga o país com olhos genoínos de quem de fato conhece sua gente - suas marcas mais profundas, sua música inaudível para quem, já naqueles tempos, tinha os ouvidos tapados pelo espírito pequeno que cultiva o alheio, o rico, o pronto, o (mundo) desenvolvido. E dá as costas para o que realmente somos. Há um momento em que Fagundes/Villa-Lobos discorre: "Não confundam o povo, a massa e o público. A massa é horizontal. O público é vertical. Já o povo é... diagonal". Espera aí, isso é um filme sobre a vida de um músico ou um documentário sobre mídia e política? Talvez seja as duas coisas - por sinal, o filme é honestíssimo ao mostrar o maestro sendo confrontado com o fato de "trabalhar para o Estado Novo" de Vargas. E é apenas em momentos em que é essas duas coisas e algo mais que ele se supera. Fato: as idéias de um homem, substrato para sua obra quando se trata de um artista, são sempre muito superiores à sua biofrafia.

E ainda há dois brindes: a presença acachapante de dois atores que, enquanto aparecem, fazem você esquecer sobre quem é mesmo o filme a que está assistindo. Um é José Wilker, como um músico-bebum-filósofo de bar da melhor espécie; outro é Ana Beatriz Nogueira como a primeira mulher de Villa Lobos, quase uma biografia à parte dentro daquela que o filme conta. Já Letícia Spiller, bela como sempre, histriônica como de costume, passa do ponto.

"Villa-Lobos, Uma vida de paixão", "Umberto D." e "Atlantic City": até que não posso reclamar do meu restinho de feriadão.

sábado, 24 de maio de 2008

O Banheiro do Papa




É como se os melhores princípios do neo-realismo italiano tivessem dado um salto no tempo e no espaço e desembarcado no cinema uruguaio de hoje em dia. Ou então como se Jacques Tati pegasse sua bicicleta, pedalasse com um pouco mais de força, atravessasse o Atlântico by bike como aquele menino que abrigou E.T., e fosse dar num pequeno povoado do Cone Sul. E tudo isso para encenar não uma comédia mímica francesa, mas uma quase tragédia coletiva sul-americana dotada de um muito especial senso de humor. Isto é "O Banheiro do Papa", filme que tem entre seus dois diretores o uruguaio/brasileiro César Charlone, consagrado diretor de fotografia de "Cidade de Deus" (o co-diretor é Enrique Fernández).

A esta altura, todo mundo já leu que "O Banheiro do Papa" conta a história de como uma pequena e pobre cidade da fronteira Uruguai-Brasil se preparou para faturar uns trocados com a passagem do papa João Paulo II por lá. O problema é que a tal presença papal foi mais uma visita-relâmpago do que o grande evento que os moradores esperavam. De forma que todo o já parco dinheirinho investido na preparação de salgados, lembranças e do tal banheiro - um sanitário coletivo a ser usado em troca de umas moedas - acabou boiando, como se diz na gíria do comércio mais precário. Não vieram as levas de brasileiros ávidos por lembranças, comida e um lugar onde se aliviar, como todos esperavam.

A história é meio verdadeira, mas a graça maior do filme é contar tudo a partir da vida de Beto, um muambeiro tão precário quanto a cidade onde vive. O sujeito leva a vida em fazer viagens entre o lugarejo uruguaio e a cidadela brasileira mais próxima para trazer mercadorias. Não é um sacoleiro internacional - está mais para mula de mercadinho. E o percurso, de 60Km, entre as duas cidades, ele faz de bicicleta. De maneira tal que a bicicleta é uma presença constante na tela, favorecendo as cenas de deslocamento, o movimento inútil de uma gente condenada a viver e morrer com aquela cidade em lenta decomposição.

E a bicicleta, pra lá e para cá, pendular e monótona como a vida desse pobre povo, leva o espectador o tempo inteiro a lembrar de um filme emblemático do neo-realismo italiano - "Ladrões de bicicleta". Mais do que o meio de transporte humilde, há também a semelhança do registro, pois o que se vê em "O Banheiro do Papa" é uma aproximação muito forte com a vida real da gente humilde da Latinoamérica. Isso sem falar nos rostos que tomam a tela, na força dos olhares que dispensam diálogos. Beto (César Trancoso, gigantesco ator que mal cabe nos limites da tela), o contranbandista sem nenhum glamour, parece um Belchior derrotado, apenas um desesperado latino-americano, com seus bigodes de Stalin, sua sina fronteiriça e seus olhos que cantarolam ora a sua imensa tristeza, ora a sua raiva imensamente contida, ora o seu pedido de compreensão. Com a doce faca amolada desses olhos dialogam sua filha e sua mulher, atores igualmente soberbos dessa crônica profundamente humana.

Às vezes doce, outras amargo, quase sempre retocadamente fotografado, muitas vezes chapliniano, "O Banheiro do Papa" é um primor de cinema contemporâneo, ao mesmo tempo em que nos remete a grandes momentos da sétima arte de todos os tempos. Um filme que dá nova diginidade a uma expressão tão desgastada quando se fala em produtos culturais do nosso tempo: "imperdível".

Agora, as fotos

















































Agora, as legendas (de cima para baixo): além de Tião, Rejane, Cecília e Bernardo, estão nas fotos o primo Tibério (camisa vermelha), a Tia Sandra (blusa preta), Nina Rodrigues (casaco branco, com Cecília nos braços), Rejane e Sandra num making off de almoço caseiro, Isabela (a menina de rosa na mesa do bolo, que é nossa vizinha e a grande amiga de Cecília), nossa amiga Jô e sua turma, Marcya Reis (com um sorrisão) e a outra Jô (a da TV Câmara, que mais uma vez fez o bolo da festa e muito nos ajudou nos preparativos da comemoração).

Bernardo, 1 ano


A gente chamava ele de "número dois". Porque, de certa maneira, a gente achava que ele, por chegar em segundo, iria ser aquela figura menos notada, aquela continuação natural da vida, um habitante a mais do nosso coração que, embora amado e sobretudo muito amado, não teria o mesmo impacto inicial proporcionado por Cecília. Pois Bernardo, em um ano de vida completado no último dia 19, já desmanchou caprichosamente, palavra por palavra, letra a letra, cada uma das frases acima. Não sobrou nadinha dessa expectativa que sobreviveu apenas nos três primeiros meses. Rapidinho, o "número dois" mostrou a que veio. E que, hoje, ninguém venha com numeração que ele chuta o pau da barraca e constrói uma nova matemática na nossa pequena mas feliz vida familiar.

Bernardo disputa pau-a-pau com Cecília a atenção da gente, andou em menos tempo que ela (11 meses), já acorda discursando (ou será cantando?) seus fonemas infantis, como quem treina para logo-logo expressar em palavras o que ele já diz perfeitamente com aquele olhar incisivo. Os olhos grandes falam, gritam, reclamam, imploram. Tadinha de Cecília que, fomos descobrir somente meses depois, pega muito mais leve quando quer algo e ainda tem que aguentar irmão-pentelho, teimoso e insistente metendo a mão nos brinquedos dela - mentira, é ela quem rouba os deles e depois reclama quando ele se apossa.

Comemoramos esse primeiro ano, vimos amigos que há tempos a gente não encontrava, mostramos o bravo Bernardo para todos, corremos de um lado para o outro pra tudo dar certo - uma porção de coisas não deu mas a certa altura a gente também não se importou -, e ainda tiramos uma casquinha de Tia Sandra, que passou uma longa e divertidíssima semana aqui em casa preparando docinhos para Bernardo, Cecília e quem mais guarda na boca o sabor de uma velha infância.
E assim Bernardo passou da sua primeira marca nesta corrida de obstáculos que nós, adultos, tão bem conhecemos. A gente vai indo, tentando preparar o atleta em formação para ele ter a elasticidade que esse mundo maluco exige, mostrando que as provas não são fáceis, mas também deixando claro que é preciso saber enxergar o que o campeonato tem de estimulante. Para ele se sair tão bem quanto possível em quadra, mas também ter um olho atento para as belezuras que o observam da arquibancada - seja na geral ou nos camarotes. E vocês dividindo com a gente o prazer de jogar as partidas da vida. Salve Bernardo!

A face de Brasília




Luiz Carlos Vasconcelos é uma presença austera, um fantasma especulativo que caminha pelas quadras de Brasília, o olhar alinhado com a linha do horizonte, a intuição ligada em potência máxima, o andar cadenciado de quem no fundo flutua. Luiz Carlos Vasconcelos é o vaqueiro voador do romance de cordel na brilhante adaptação para o cinema feita por Manfredo Caldas. Luiz-o ator/Vaqueiro-o personagem podem estar na Asa Norte, no Núcleo Bandeirantes, chegando à cidade no aeroporto e sendo recebido pelo diretor do filme, ou então vaquejando naqueles descampados por trás da praça dos Três Poderes, em cenas pungentes que se projetam sobre os vidros modernosos dos novíssimos prédios do Judiciário na capital do país. Onipresente, esse vaqueiro ancestral, esse vulto materializado no corpo andante de Luiz Carlos Vasconcelos, na elegância transcendente de um caminhar que nos lembra, a contragosto, a anti-saga que gerou esta cidade.

Antes de tudo, "O Romance do Vaqueiro Voador" é meio inclassificável, como gênero. Como expressão cinematográfica de uma cidade, é um pequeno marco. Sem ser pretensioso, o filme leva para a tela o romance de cordel que conta a história de um entre os inúmeros peões nordestinos que morreram ao contruir Brasília. Nem morte matada nem morte morrida - morte "voada", ao cair do alto da estrutura metálica de um dos prédios em construção na futura capital. O poeta popular João Bosco Bezerra, autor do texto original, fundiu em um único personagem a tragédia comum de uma leva de candangos que trabalhou em ritmo exasperante e exaustivo para concluir no prazo as obras da nova capital. Nisso, parte da leva se foi, morta. Eram os acidentes, comuníssimos segundo os depoimentos que se vê no filme. Uma das testemunhas ouvidas lá conta que, somente no "28" eram quatro por dia. Quatro por dia, em média. Sabe o que era o "28"? Era o apelido que os peões davam ao esqueleto do que hoje é o Anexo 1 da Câmara dos Deputados. Justamente: uma das pernas daquele H situado entre as famosas bacias de Niemeyer. Quando lembro que de vez em quando preciso subir, digamos, ao décimo sétimo andar daquele prédio para pegar um documento funcional uo qualquer coisa assim, sinto o arrepio. Acontece que, na construção, esse era o prédio mais temido. O candango queria fazer qualquer coisa, menos trabalhar no "28" que, imagino, tinha esse apelido devido ao número de andares (vou conferir segunda-feira).

É de histórias assim que se compõe "O Romance do Vaqueiro Voador", um filme que amplifica uma verdade submersa que já havia sido explorada antes pelo igualmente soberbo "Conterrâneo Velho de Guerra", um clássico (embora injustamente desconhecido) de Wladimir de Carvalho. Só que "Conterrâneo..." é um documentário no sentido tradicional do formato. E é aqui que "Romance do Vaqueiro Voador" dá seu salto: Manfredo Caldas mandou para o espaço a rigidez das fórmulas e fez de seu filme um híbrido de poesia, música, documento e memória coletiva. Há instantes em que tudo isso se funde, com a ilustrativa imagem do rosto de Vasconcelos girando na tela sobre o céu mais azul de Brasília. É a tradução visual mais perfeita de tudo isso - dessa cidade híbrida e de suas contradições irrecuperáveis. Não há acerto de contas, embora o filme passe por episódios dramáticos como o massacre de operários no galpão de refeições da empreiteira Pacheco Fernandes. A denúncia surge como um elemento a mais no cenário de contradições que deu origem à Brasília de hoje.

Aliás, é preciso dizer, nem que seja a título de curiosidade, nenhum filme recente - ou dos mais antigos - retrata Brasília com tal fidelidade (a fidelidade possível, claro) quanto este "Romance". Quem não conhece a cidade e quer travar algum contato com ela via cinema deve assistí-lo. Em outras postagens, eu reclamava da falta de um filme que realmente espelhasse minimamente a Brasília misturada, caótica, segregada e ao mesmo tempo integrada de hoje em dia. Pronto: taí, é o "Romance". Manfredo Caldas conseguiu atingir esse difícil objetivo. Não é parcial como o niilismo desabalado de "A Concepção" (José Eduardo Belmonte) nem ingênuo como o oitocentista "O Sonho não acabou" (Sérgio Rezene). Tampouco forçadamente noir como "Brasília 18%" (Nelson Pereira dos Santos).

O que faltava, nos ensina este "Romance", era ignorar convenções, investir numa montagem que recupera o fértil choque de idéias, sons e imagens, apelar para a tão desvalorizada poesia, coitada, e encontrar aquele elemento crucial de que o cinema nunca vai abrir mão quando quer expressar um sentimento, uma angústica, uma felicidade, uma época, um país ou uma cidade: um rosto. E isso encerra tudo: Brasília, com todas as suas mil faces, tem a cara de Luiz Carlos Vasconcelos. Um rosto que funde tudo, confundindo e explicando ao mesmo tempo, dando traços profundamente humanos à arquitetura antropológica de uma cidade e sua gente.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Um filme, um cinema


Os filmes da série Indiana Jones nunca serão filmes comuns para mim. Isso influencia a leitura que eu faço deles e você não tem obrigação nenhuma de concordar comigo. Mas se vai ler essas impressões aqui do novo filme da série, a que assisti há umas poucas horas, é bom saber os detalhes antes. Acontece que "Os caçadores da Arca Perdida" foi o primeiro filme que eu vi num cinema de classe, desses de capital, cheios de carpetes, com sala de espera e aquele climão de catedral. Ao menos foram essas as primeiras impressões que eu tive ao entrar com meu amigo Ítalo, que morava em Recife já há alguns anos, no cine Veneza, ali na rua do Hospício, quase de frente às Pernambucanas, centrão da capital pernambucano, 1981 ou 82, por aí.

Não se esquece uma experiência dessas. Eu vinha do cinema-poeira de Parelhas, o velho Rex de guerra. O máximo que havia visto fora dele era o cinema da coronel Martiniano, em Caicó, um grandão cujo nome esqueci, e onde assisti a uma sessão que misturou desenhos animados da Pantera Cor-de-Rosa com episódios esparços de um desses seriados espaciais dos anos 60. Então, de passagem por Recife na casa do meu amigo Ítalo, eu me vejo naquele templo que era o Veneza (é triste dizer que ele, como todos os demais cinemas de rua, fechou). Ainda lembro aquele cheiro que parecia uma mistura de hortelã, eucalipto e pipoca. Como lembro dos vidros reluzentes que tapavam os nichos onde brilhavam os cartazes dos filmes, cada um mais atrativo do que o outro. E a tela? E o "primeiro andar"? E o som?

E o filme que conjugou todos esses fatores? Foi justamente o primeiro Indiana Jones, com aquela coloração nostálgica, aquele ritmo frenético, aquele senso de humor que consagrou o personagem e seus coadjuvantes, aquela fantasia que desde então já era a marca de Spielberg que eu guardaria como a minha preferida e aquele punhado de cenas antológicas, se você considerar que o pop bem reaproveitado também rende uma senhora antologia. A pedra gigante rolando na sua direção, o chão de serpentes se mexendo sob a brancura dos pés de Karen Allen, o herói que contrariava a imagem clássica e respondia com tiros à exibição do lutador oriental, o momento deliciosamente mentiroso em que ele escalava, por assim dizer, o fundo de um caminhão para enfrentar um adversário e por aí vai. Um filme, um cinema, uma novidade para sempre.

Para sempre mesmo, é de se dizer. Porque o herói, agora já meio sexagenário, é ressuscitado pra gente matar a saudade enquanto os produtores ficam ainda mais ricos. Que seja. Não gostei muito da volta de Rock Balboa, outro ícone pop da infância, e fiquei me perguntando os motivos depois de assistir ao novo Indiana e me divertir a cada cena, cada diálogo. Notei que Stallone retomou Rock Balboa com uma ênfase muito forte na autopiedade: é o outono do lutador, que tem saudades da glória pretérita e arrisca voltar ao ringue numa bem pouco crível luta com alguém mais jovem. Sobra pena e falta credibilidade. Já com Indiana Jones, o que vemos é muita auto-ironia e uma dose de fantasia que torna-se tanto melhor quanto mais inverossímel for. E aí o gênero de filme em que "Indiana" se inscreve o favorece um pouco, claro: o Rock original era mais dramático, uma história de superação, enquanto as aventuras do arqueólogo de Lucas e Spielberg são a essência do entretenimento auto-evocativo, como uma grande aventura que relembra, ao mesmo tempo em que satiriza, os antigos seriados do cinema classe C. Daí os ganchos: será que ele vai escapar disso ou daquilo? E tome fantasia.

Li críticos fazendo comparações, esperando que o "novo Indiana" fosse melhor que os outros. Li textos dizendo que a atualização que é feita é o emprego mais incisivo de efeitos de computador que não podiam ser usados no início da série, por não disponíveis. É verdade, tudo isso se nota na tela. Mas o barato de um novo Indiana Jones é anterior a isso: é ser, sim, mais do mesmo. Se isso é feito com mais ou menos computação, é o de menos. O que não pode faltar é aquela carga de inventividade que ignora qualquer noção de plausibilidade e faz da aventura um conjunto de situações-limites de que o herói sempre se safa - se possível, com uma piadinha irônica na ponta da língua. E se o novo filme traz de volta a "Marion" de Karen Allen - embora fora de forma e muito menos endiabrada que no primeiro - e reserva uma surpresa (nem tão surpreendente assim, mas não convém revelar) que sugere novos episódios no futuro, melhor.

Se o Veneza não existe mais, a gente lamenta, claro. Mas que bom que Indiana Jones está de volta, retocado ou não com botox e computador.

Encontros e despedidas


O que é a vida louca vida. No mesmo horário em que eu e Rejane fomos ao aeroporto buscar Carlão, outro grande amigo nosso, Plácido Fernandes, estava embarcando em outro vôo para Belo Horizonte. Plácido, pernambucano de boa cepa (ainda se usa isso de boa cepa? não? por Plácido merece que se recupere a expressão), está iniciando uma nova etapa da vida profissional. Desde a última segunda-feira, dirige a redação do jornal O Estado de Minas, dos Associados, com a missão de arejar a publicação, dando a ela a dinâmica, o ritmo, a perspicácia que ele ajudou a injetar aqui no Correio Braziliense.

Quando cheguei a Brasília, pelas mãos de outro amigo, Adriano de Sousa, precisei de outro emprego além do de editor de textos na TV Bandeirantes. A cidade é cara e eu ainda era moço, tinha aquela disposição, vocês compreendem. Então Antônio Melo, que os potiguares lembram pelas reformas que fez na Tribuna e pelos primeiros anos da TV Cabugi, me arranjou uma vaga de redador no Correio. Melo queria que eu ficasse na editoria de Política (ele era o sub-editor), mas José Negreiros (que então era um dos integrantes da cúpula do jornal e com quem eu viria a trabalhar bastante depois) preferiu que eu ocupasse uma vaga que havia na editoria de Brasil. Essa história comprida toda é só pra dizer que foi assim que Plácido (e Renato Ferraz) se tornaram as minhas mais firmes amizades em Brasília, cidade onde eu só conhecia mesmo o compadre Adriano.

Renato era sub-editor de Brasil e foi o cartão de visitas melhor que pude achar por essas bandas. O sujeito sair de Natal e dar a sorte de entrar numa redação enorme, cheia de desconhecidos e ir trabalhar logo com um pernambucano típico - impaciente, inquieto, brincalhão e sem vergonha nenhuma de rir de si mesmo - como Renato é coisa que só Mãe Dinah explica, né, Renato? Agora, se ainda por cima, você tropeça em Plácido que, embora igualmente pernambucano e igualmente típico, sob outro ponto de vista é completamente diferente de Renato mas tão amigo quanto, aí a explicação só mesmo consultando Sobrenatural de Almeida. O curioso é que só bem depois, na segunda vez em que eu passei pelo Correio, é que fui trabalhar lado a lado com Plácido, fazendo a primeira página do jornal como redator. E pra encurtar a conversa, largo minha biografia e chego à de Plácido para lembrar que foi justamente o trabalho de redator (e mais que isso, de "criador", porque a capa do Correio tem uma linguagem já próxima da - boa - publicidade) que notabilizou Plácido, juntamente com a edição que ele faz do caderno Emprego (uma das coisas mais úteis que o Correio publica, se não a mais útil). Foi com base nessas duas frentes do trabalho dele que veio o convite - na verdade, quase uma convocação - para ele assumir a dianteira do Estado de Minas.

Plácido, compadre (sim, ele e Marleide são os padrinhos de Cecília; do mesmo jeito que Renato e Ana são os de Bernardo), isso tudo é para lhe desejar sucesso. Pra lhe dizer que esta semana comprei um exemplar do Estado de Minas e já notei, de cara, na capa, a diferença. Mais espaço, mais ilustração, mais hierarquia entre as ilustrações, um ar mais metropolitano de jornal que cultiva a cidade à qual informa; títulos que conversam mais com o leitor; enfim, tudo isso que é bem a sua marca e que o jornal já vai incorporando. Só não li o jornal por absoluta falta de tempo, coisa comum em semana de feriado lá na Câmara, que é, você sabe, também meu escritório de passagem onde leio e estudo entre a edição de um VT e outro. Já começou a dar certo e o único porém que eu posso incluir aqui é dizer que a sua presença na cidade também já começou a fazer falta. Queria ter promovido um encontro entre eu, você e meu amigo Carlão, para a comunhão da comunidade potipernambucana ficar ainda mais assentada.

Mas entendo que, por hora, Minas está na vez - e sorte dela de ter você como piloto dessa nova experiência no jornal que areja ainda mais o horizonte de bêagá.

P.S: na foto que ilustra essa postagem, Plácido e Marleide numa foto de um momento importante pra todos nós, o aniversário de um ano de Cecília.

Carlão passou por aqui


As nove histórias de J.D. Salinger; quatro pilhas de discos de vinil escoradas nas paredes com os de Cazuza encimando cada uma delas; a voz de Janis Joplin saindo da janela de um apartamento de um conjunto popular com alma pop e nome de pedra; um velho carro apelidado de "banheira" rodando rumo à casa de um amigo do amigo na zona norte; um fedelho genial e simpaticíssimo que aparece do dia para a noite e a quem logo apelidamos de Ptolomeu; umas domingueiras divertidas e intermináveis onde só quem não bebia era eu; um free atrás do outro pra compensar a sobriedade e suportar até quando desse a bebedeira do amigo querido; um velho vinil de Vitor Ramil que é muito mais do que uma rima pobre; uma fita cassete roubada de uma amiga com os melhores blues de Angela Roro; Jô partindo para Jardim com um carregamento extra de Todinho no bisaco; um conjunto de sofá vermelho e uma cozinha que servia de bar numa casa do conjunto Neópolis; uma pilha de filmes em vídeo alugados na locadora de Bal, no Posto Planalto; um controle remoto que, de tão amistosamente disputado, ganhou o apelido de "força" ("ei, quem tá com a força?"); três livros de memórias de Elias Canetti observando tudo calados lá na estante; uma noite especial no tal apartamento do lugar com nome de pedra em que a tevê passou pela primeira vez o especial de uma desconhecida chamada Marisa Monte (ao qual assistimos babando); um resto de reveillon na casa vizinha à casa de Neópolis, sob a hospitalidade de dona Delza; um expediente qualquer na redação da Tribuna, entre a preguiça e a poesia, a vontade de repolhar em casa e a excitação de uma matéria eventual; um vinil de Morissey, um CD de Cassia Eller (o segundo); uma bebezinha aos meus cuidados enquanto Jô ia ver qualquer coisa na casa ao lado; uma juventude constante; um futuro que a gente olhava de longe enquanto vivia o máximo que cada hora permitia, imaginando o que faria, o que diria, com que piada a gente se sairia se, por exemplo, alguém como Caetano Veloso, aquela figuraça daqueles tempos, sem mais nem porque entrasse sem bater à porta que ademais estava sempre aberta.


Esta semana, eu lembrei disso tudo e de muito mais. Só porque meu amigo Carlão (de Souza) esteve aqui em casa. Quanta alegria. Pena que foi só por um dia e eu não pude caminhar pela cidade tanto quanto queria e quanto ele merere. De manhã, percorremos lojas de discos e cheiramos o ar límpido das grandes livrarias. Mas, de tarde, quando saí para trabalhar, foi que Carlão se sentiu mais em casa: foi à W3, a avenida comercial da cidade onde um dia ele viveu na década de 80, e bebeu umas cervejas num lugar chamado Jequitibar. Eu continuo sendo um sujeito que não bebe - pior, nem fumar eu fumo mais, e vocês entedam que o emprego do adjetivo "pior" aqui atende a um outro tipo de expectativa nem um pouco ligado à saúde física. Mas, dizia, mesmo sem beber e sem fumar, esse foi justamente o momento que eu mais queria dividir com meu amigo. Carlão, rapaz: agora é assim. Toda vez que eu passar na W3 e vir - ontem, indo ao supermercado, eu passei e vi - o Jequitibar, vou lembrar de sua passagem por Brasília, por aqui em casa e pela minha vida, cabra velho. Volte outras vezes.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Recado à morena Marina


Marina, morena Marina, você se mandou. Marina, ministra Marina, me faça o favor: não pinte esse seu rosto tão brasileiro com as mesmas tintas que borraram a cara de tantos outros dissidentes de luxo. Tudo o que a gente não quer é ver sua estampa amazônica e brejeira, da mulher brasileira real que tanto veneramos, fazendo pose no ambiente azul do Plenário do Senado. Nós nunca tivemos motivo nenhum para lhe desculpar - você só nos deu orgulho ao espelhar o povo brasileiro - mas se cair na tentação de, no Senado, fazer par com a independência individualista e improdutiva de um Eduardo Suplicy ou um Cristovam Buarque, aí sim, morena Marina, vai nos decepcionar. Porque as possibilidades reais do Brasil ser bem conduzido - não perfeitamente, não idealmente conduzido, repare na diferença - não podem ser desperdiçadas diante de convicções tão estritamente pessoais. É preciso alguma tolerância - ou muita, doses cavalares dessa espécie de espírito de renúncia política - para evitar que o banco onde foram parar Fernando Gabeira, Frei Betto, Eduardo Suplicy e Heloísa Helena ganhe mais um integrante. Desculpe o exagero da comparação, ex-ministra Marina: sabemos que você não tem nada a ver com Heloísa Helena. O que a gente se pergunta agora é até que ponto a senhora vai conseguir manter quieto o seu lado Fernando Gabeira.

A saída de Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente é a mais simbólica, dolorida, nevrálgica perda registrada em todo o governo Lula. Arrisco dizer que supera, no aspecto em que vou me deter, a queda de José Dirceu e o afastamento de Palocci. Dirceu era muito poderoso, nunca é demais lembrar que sem ele não haveria Lula presidente eleito - e essa é a grande verdade que a mídia, o Brasil, os eleitores insistem em ignorar. Palocci não era menos forte, uma vez que a oposição junto com a mídia haviam conseguido despachar Dirceu. Depois deles, todos os demais eram coadjuvantes, apóstolos políticos em torno da mesa de Lula, cuja figura, sabemos agora graças às pesquisas (não ao noticiário) só se fortaleceu enquanto tudo isso acontecia e os tucanos e demos davam milho aos pombos. Mas, nessa massa comum do ministério geral, havia uma figura em especial, sempre discreta, sempre brasileiramente ponderada, humilde mas austera, silenciosa mas marcante.

Era Marina, não por acaso, Silva, como Lula - como tantos de nós, brasileiros que até 2002 não haviam tido a oportunidade de ocupar o espaço central do poder político ou nele se ver verdadeiramente representado. É isso o que faz da saída de Marina uma perda em especial: se você pensar bem, depois de Lula ela é a figura do poder que mais espelha o conjunto da população brasileira. Ex-seringueira, de origem muito pobre, da região mais esquecida do país, originária da floresta distante, de saúde precária, uma lutadora sob qualquer aspecto que se olhe. Que chegou lá junto com o projeto de Lula. Que se manteve lá por seis anos. Ecologista, rosto fincado e uma doçura brasileiramente linda. Uma mulher na encruzilhada que redefine o projeto de um governo popular neste instante crucial.

E aqui já estou entrando num segundo aspecto que faz da saída dela um momento singular. Foi através da resistência de Marina em liberar obras de grande impacto para o país que ficamos todos expostos ao dilema apenas esboçado até agora. O que queremos, um governo ecologicamente corretíssimo, que sacrifique possibilidades de maior desenvolvimento mas preserve o meio ambiente de qualquer risco? Ou admitimos que o Brasil é um país grande demais, com uma população imensa, que não pode se dar ao luxo de abrir mão de recursos naturais para gerar riqueza, em nome da preservação mais rigorosa? É este o nosso impasse atual. Nada de cartão corporativo, nada de vazamento de informação. Este é o dilema real, esse é o problema posto. Eu fico com a segunda opção - e informo para que você que me lê agora saiba, e você tem esse direito. Mas o fato é que há uma discussão no país e a saída de Marina deu a esse debate a dimensão que ele merece.

O governo, o próprio Lula segundo o que a gente lê nos jornais, considera que havia exageros por parte do Ministério do Meio Ambiente. O presidente da República pode ter o carinho enorme que tem pela ministra, como ademais todos os que acompanham a trajetória dela, mas ele tem que tomar decisões. A escolha de Carlos Minc, ecologista de perfil mais gerencial e que se anuncia como alguém que comunga da visão infra-estrutural da ministra Dilma, já sinaliza para esse caminho. O fato é que, seja quem for o sucessor, um governo tem que definir estratégias para o país, tem que estudar caminhos, avaliar opções e finalmente se decidir - e, uma vez se decidindo, precisa ter o distanciamento de manter o fundamental dessa decisão, sob pena de colocar tudo, planos, estratégias, ações preventivas, tudo por água abaixo. E nisso precisa ter o distanciamento que a relação pessoal nem sempre permite.

Talvez seja o que acontece também, em outro plano, entre nós que admiramos a morena Marina, que não queremos deixar de cortejar sua serenidade, mas que também ficamos, não sem antes muito refletir, com aquela segunda opção acima grosseiramente esboçada. Desculpe, ministra Marina, perdoe o nosso mal jeito, nossa cara perplexa e momentaneamente desesperançada, mas a verdade é que não estamos de mal. Não estamos mesmo de mal com você. Entendemos sua motivação, como compreendemos os objetivos do governo com o qual você contribuiu por tanto tempo. Antes de ser ministra, antes de ser ex-ministra, o que a gente espera é que você, de volta ao Senado, dê àquela casa a dignidade que a oposição ali presente - e parte do governo tão mal representado - nega ao povo aqui embaixo. Pensando bem, você continua espalhando sua credibilidade sem pintura, sua calma contida de brasileira testada na dura realidade que o país reservou à nossa gente. Você não ia nos decepcionar e, embora tenha deixado o governo, sabemos, intuímos - e tomara que estejamos certos, se não será bem pior para nós mesmos - não vai nos abandonar.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

De meias verdades e conveniências


Um compromisso profissional, a edição de uma série de entrevistas dispersas sobre o aquecimento global, me levou a rever o filme de Al Gore, "Uma verdade inconveniente". Documentário muito celebrado, que eu já havia visto no cinema mesmo, quando passou aqui em Brasília, até meio despercebido numa daquelas salas minúsculas (mas sossegadas) do Liberty Mall. Ao contrário de meio mundo, não me impressionei muito com o filme estrelado por Al Gore, o político que perdeu por um triz, pra dizer o mínimo, a eleição presidencial americana para George W. Bush. Mas não sabia exatamente por que o filme não havia me causado maior impressão. Assistindo novamente, numa telinha pequena mas bem focada de um aparelho de DVD portátil, matei a charada: descobri que o austero, elegante e injustiçado Al Gore tem muito mais semelhanças com o chato do Michael Moore do que julga a nossa vã opinião midiática.

O que é que faz Michael Moore em filmes como aquele que mistura 11 de setembro com interesses da indústria do petróleo? Força uma teoria, ilustra sua tese da maneira mais espetacular possível, apela para personagens reais em situações limites que legitimam tudo isso e por fim enfia tudo goela abaixo do espectador, numa montagem que não lhe dá tempo para pensar em nada, para duvidar de nada, para flexibilizar o que quer que seja. Aboletado na poltrona do cinema, você é um prisioneiro da tese que Mr. Moore verte em imagens acelaradas na tela. E, sim, claro, isso tudo é feito com um certo toque de humor às vezes muito televisivo, outras vezes filtrado de uma certa ironia intelectual de botequim que também cai muito bem. E eu fico lembrando daquela cara que Paulo Henrique Amorim fazia quando apresentava telejornais na Globo depois da exibição de uma matéria mais incisiva: - Entendeu, otário?

Bom, isso é Michael Moore. E o que é Al Goore? É um gentlerman, um apresentador galante, um professor alinhado e didaticamente corretíssimo. É o que parece à primeira vista, mas numa segunda leitura, mais atenta, o que se vê em "Uma verdade inconveniente" - para além do conteúdo mesmo da tese apresentada no filme - é a apologia de uma idéia defendida até as últimas conseqüência, mas sempre em forma de espetáculo. Al Goore também usa todos os truques da boa ilusão cinematográfica para defender seu ponto de vista sobre o aquecimento global: a motivação preservacionista surgida após o episódio dramático com o acidente que o filho sofreu, seqüências e mais seqüências de lembranças infanto-juvenis da fazenda da família onde cresceu, cenas e mais cenas que o mostram reflexivo, pesadamente responsável pela preservação natural, enquanto faz anotações em vôos por sobre o nosso devastado mundo. Até mesmo o episódio da perda da eleição naquela apuração maluca para Bush ele utiliza como motor de sua estratégia audio-visual em conquistar o espectador para sua tese.

Nem é o caso de expor ou discutir aqui a tese. A questão, no caso do filme, é a anterior. É a forma como essa tese é defendida. A palestra-show de Al Gore passa uma impressão de racionalidade. Os momentos familiares humanizam a exposição de temas tão inconvenientes como o risco de extinção da vida no planeta. Mas num e noutro momento o que acontecé um processo de persuação que não permite ao espectador reagir sozinho ao que está sendo dito ali. Você não tem sequer tempo para isso. Falta um mínimo de ambiguidade, um tantinho assim de contraditório. Em um tema em que, efetivamente, existem pontos de vistas contrários - ou bem menos extremos - vindos de cientistas tão gabaritados quando o showman Al Gore (ou mais, é de se dizer) teria que haver um espaço que fosse para colocar alguma dúvida em cena. Mas o que o candidato derrotado faz é ridicularizar todas as posições em contrário, redundindo a piadas de balcão o pensamento de quem, a sério, não vê o quadro de devastação global nos mesmos termos que ele. Pense bem: quem é que faz exatamente isso com quem discorda dele? Michael Moore.

E assim vamos indo: Bush vira o demônio supremo do mundo, Gore é o santinho da hora. É assim, de estereótipo em estereótipo, que o mundo vai tomando as feições que tem hoje. E o garoto ecologista e avançado que considera o presidente dos EUA a encarnação do mal na Terra nem se dá conta de que o critica exatamente com os mesmos termos que ele, o presidente, utilizou para demonizar Sadam. Não importa, ninguém pára para pensar - importante é manter a cadeia opinativa em ação. E filmes como "Uma verdade inconveniente" alimentam essa máquina de meias verdades com sua desonestidade intelectual disfarçada de seriedade científica.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Betto e Gilberto


Em 2002, no momento ímpar em que Luís Inácio Lula da Silva ficou sabendo que acabara de ser eleito presidente da República, estava no apartamento de São Bernardo reunido com pouquíssimas e muito próximas pessoas. Havia a mulher e os filhos e alguns amigos. Um deles era Frei Betto; outro era Gilberto Carvalho. Naquele momento, o primeiro já era bastante conhecido por todos que acompanham a história política do país, a evolução da forças de esquerda dos anos 60 para cá, a parte do clero católico que se convencionou chamar de progressista. Já o segundo era praticamente um desconhecido - um amigo de Lula desde os tempos das greves dos anos 80 no ABC, ex-companheiro de trabalho e de militância sindical. O que importa saber aqui é que os dois estavam lá, naquele momento de emoção, aquele instante que tanto representou não só para Lula mas para todos que se identificaram politicamente com ele.

Hoje, mais de cinco anos depois, Lula reeleito, Lula no máximo da popularidade apesar de ter atravessado um período de profundo desgaste em meio a escândalos que fizeram a festa da oposição, temos outro quadro quando olhamos para a, digamos assim, intimidade política do exercício da Presidência segundo Luís Inácio Lula da Silva. Frei Betto retirou-se do governo, ao que nos foi dado entender enojado com o fato de o governo Lula ter se rendido às práticas políticas comuns no país - procedimentos que, acredita o religioso, Lula e seu governo tinham a obrigação de rejeitar. Já Gilberto, noticia a revista IstoÉ desta semana, está mais forte do que nunca. Exageros à parte, o fato é que Gilberto suportou o peso da política de todo dia - bem diferente mesmo da política idealizada pelo intelectual médio -, atravessou crises, ameaçou mas não saltou do barco (Lula não teria deixado, segundo IstoÉ), não se escandalizou publicamente e hoje comanda uma equipe de 50 pessoas nas entranhas burocráticas do Palácio do Planalto, como chefe de gabinete do presidente da República.

É por essas e outras que Frei Betto se tornou, para mim, uma das maiores decepções políticas dos últimos anos. Naturalmente a gente tem que respeitar a avaliação dele, que entendeu ser a realidade prática do poder algo pesado demais para carregar. Mas a gente também tem o direito de enxergar nisso uma fraqueza a partir do momento em que ele, fora do governo, continua exercendo seu direito de escrever nos jornais avaliações, diagnóticos e receitas para o país. A impressão que tenho - e isso é extensivo a outras pessoas - é de que Frei Beto aguarda o governo idealmente perfeito para "resolver" o Brasil. John Lennon dizia: "a vida é o que acontece enquanto a gente faz planos para o futuro". É isso, enquanto o religioso espera, incomodado com os detalhes da operação política de todo dia, o Brasil vai se transformando, à revelia de sua sensibilidade exacerbada. O bom é que enquanto isso ele pode continuar diagnosticando nossas mazelas - e são tantas, à disposição da sobrevivência de tantos escribas - nas páginas dos jornais.

Na outra frente, quase anônima, de trabalho quase braçal (imagine o que é coordenador a agenda de um presidente popular como Lula), de trabalho braçal mesmo (imagine o que é administrar por dentro as mil e uma crises que atingiram o governo Lula com ou sem a colaboração dos famosos aloprados), Gilberto segue, dia após dia, como um alcóolico anônimo que nunca espera mais do que atravessar um novo dia sóbrio, dando a contribuição para o país melhorar - se não estruturalmente, como ademais todos queremos, e não só os intelectuais médios, mas ao menos nas estratégias de distribuição de renda que forem possíveis, factíveis, executáveis.

Volto àquele momento crucial do primeiro parágrafo. Está tudo no filme que João Moreira Salles fez, "Entreatos", e que você pode ver em DVD. Frei Betto fez uma rápida e informal celebração com a família Lula para celebrar a certeza da histórica eleição. Uma coisa terna, um momento de congregação íntima para um sentimento muito maior que naquele momento tomava conta de um país inteiro. Já Gilberto fez algo muito prosaico, mas profundamente emocionante para quem assiste ao documentário: a pretexto de dar um abraço no amigo Lula, o que ele de fato fez foi cair nos braços do presidente eleito e chorar como um menino. Um homem feito, vivido, desabou em lágrimas no que parecia uma mistura de emoção com alívio - um suspiro amigo de quem, assim como o candidato, batalhou tanto até chegar àquele momento.

Hoje, pelo que vemos, Betto está de um lado - embora não necessariamente em "oposição" - e Gilberto em outro. O curioso é que o apóstolo da fé que celebrou a vitória com uma singela reza caseira acabou se revelando um descrente nas ações possíveis, optando pela deserção. E o homem comum, ex-metalúrgico e ex-sindicalista, é hoje quem comprova para os espectadores dessa história o valor da verdadeira fé - aquela que não se intimida com as tais montanhas, mas vai subindo aos pouquinhos, caindo aqui e ali, sem perícia mas com sabedoria e persistência. Hoje, Gilberto me parece mais sábio do que o religioso Betto. O valor daquele abraço chorado superou o da liturgia discreta.

O novo faroeste na tevê


Alguma coisa em "Deadwood" me lembra o filme "Sangue Negro". Alguma coisa, não. Muitas delas. Estão lá a mesma sordidez, as mesmas ranhuras dilacerando almas torpes, as mesmas sombras revestindo ambientes e pessoas, a mesma violência exacerbada que tanto causa espanto quanto fascínio e repulsa. Tudo ao mesmo tempo. Mas, atenção para o detalhe, estamos falando de um seriado de televisão. No cinema, toda crueza é perdoável. Toda projeção na tela de uma situação que existe de fato fora dela é digerível. Vide o espectro sangüinário de um filme com "Amores Brutos". Vide a aspereza visual e sensitiva do já citado "Sangue Negro". Vide até a brutalidade editorialmente induzida de "Tropa de Elite". Mas quando um seriado expõe na televisão tamanha carga de realismo, é sinal de que há algo novo no ar.


"Deadwood" é um seriado do tipo "Lost" - esses que contam uma história que vai se complicando ao longo dos capítulos, como uma novela brasileira, mas que também podem ser apreciados episódio por episódio, cada um fazendo sentido em si mesmo. Conta a história de uma cidade em formação em terras indígenas, a Deadwood do título, sustentada por garimpos e movimentada pelos mais imperfeitos tipos que já se viu na telinha caseira. O dono do principal saloom parece ser o suprasumo das mazelas do ser humano - mas essa impressão, apesar de rigorosamente alimentada a cada episódio, logo se revela uma meia verdade, já que as pessoas com quem ele convive, o espectador vai descobrir, não ficam atrás.


Na primeira cena, o protótipo de herói - a série precisa de um herói, sim, mas à altura da devassa que promove - é um xerife diante de uma turba sedenda de sangue. Entre a turba e o xerife, há um infeliz, um trapo humano, condenado. A turba quer matá-lo com as próprias mãos. O xerife-herói banca o correto: bate o pé enforca pessoalmente o condenado antes que a turba o faça. Ali mesmo, em frente à cadeia, improvisando corda e cadafalso. Se o herói é assim, imagine os antagonistas. Em resumo, o que o seriado mostra é uma visão crua, imperdoável, cínica e explicitamente violenta da conquista do oeste americano - tema que os velhos faroestes do cinema cansaram de tratar de forma romantizada. Hoje, é possível fazer isso. E, cena após cena, episódio sobre episódio, o que se vê é um apanhado ao contrário dos mitos fundadores da expansão americana. Aquela história que todos conhecemos: se os mitos foram mentiras necessárias para a formação de uma nação, mais cedo ou mais tarde alguém vai mostrar a verdade que eles encobriram. John Ford já havia dado pistas com "Rastros de Ódio", mas com uma suavidade que parece pó de arroz diante da poeira negra que essa série levanta.


Estou assistindo à primeira temporada. Acabei de ver os episódios do terceiro DVD, falta apenas um, mas já sei que não posso me empolgar demais. O aviso serve pra você, caso se interesse também em entrar no perigosíssimo território de Deadwood: sites na internet informam que o seriado ficou inacabado. Fãs reagiram furiosamente, bradando a qualidade do seriado com a mesmo fúria com que reclamam de seu caráter inconcluso. A título de conclusão, o que se pode dizer é que a tal cidade existe mesmo até hoje e fica no estado de Dakota do Sul. Mas isso eu também li na internet, de maneira que não sei se é verdade ou um novo mito contemporâneo que o antimitológico seriado produz, ainda que involuntariamente.

Um cerro no sertão


Uma reportagem no UOL-Turismo sobre as três casas do poeta Pablo Neruda, transformadas em museus em três pontos distintos do Chile - Santiago, Valparaíso e Isla Negra - me proporcionou uma inesperada conexão com uma pequena cidade potiguar. E uma conexão bem apropriada a esta temporada de início de inverno. Acontece que uma das casas, a da capital Santiago, conhecida como La Chascona - ou "a descabelada" em língua indígena quíchua - fica aos pés do cerro San Cristóbal. Pois bastou ler a designação espanhola para o que chamamos, em bom português, de morro, que a conexão se estabeleceu.

A cidade é Cerro Corá, situada entre Currais Novos e Santa Cruz. Um lugar que, plantado no alto de um conjunto de montanhas, ganha uma atmosfera - e aqui a palavra tanto vale no sentido figurado quanto no literal - diferente quando chega o meio do ano. Fiquei me perguntando por que uma cidade situada no sertão potiguar ganhou este nome espanholado de "Cerro" - e me perguntando também de onde virá esse igualmente exótico "Corá" que o completa. Claro que o fato de situar-se numa cadeia montanhosa explica o uso do termo geográfico. Mas por que em espanhol e não em português? Não sei a resposta e nem vou cutucar no Google para descobrir. Há certas situações em que é melhor manter o mistério, especialmente quanto este é um poderoso elemento de poesia. E, vai ver, foi por isso mesmo - pelo fato de este "Cerro" transmigrado de além dos Andes soar muito mais sugestivo para quem deu nome à cidade.

Garoto, passei uns dias em Cerro Corá durante o inverno mais pesado. Quando se chega a Lagoa Nova, cidade já um tanto elevada mas ainda menos que Cerro Corá, o sertanejo acostumado ao calor já começa a perceber uma grande diferença climática. Mas quando enfim você termina de serpentear por serrados e vê-se em Cerro Corá, o panorama é outro. Você fala - ou apenas respira - e produz aquela fumacinha invernal que nós, nordestinos amatutados, só conhecemos de filme. É de manhã ou meio-dia e você está na ampla e agradável praça principal metido num pesado casaco, numa elegância inusual que faria morrer de rir um habitante da Acari ali embaixo. Você assiste a noites belíssimas de tão estreladas, refrigeradas e entrecortadas por sons de festas. O São João local, como não poderia deixar de ser, tem um gostinho a mais que pede calor para aquecer o som das sanfonas tocando a mil no mercado municipal. O casario também tem um quê de virada do século - uma coisa meio Campina Grande, outro burgo sertanejo bafejado pelo frio ocasional.

Lendo a reportagem do UOL sobre as casas de Neruda lá longe, no Chile, vendo a bela galeria de fotos que também está no portal, deu uma vontade danada de correr para uma agência de viagens e comprar um pacote para a pátria do poeta. Como isso não é possível, vou me conformando por aqui lembrando que em julho vamos a Natal de férias. Uma vez em território potiguar, bateremos o ponto tradicional em Acari - e poderemos muito bem programar uma escapada poética até Cerro Corá. Só para respirar um pouco da friagem da mesma Latinoamérica que nos une a Neruda, conterrâneo de continente.