quarta-feira, 30 de setembro de 2009

No ar rarefeito, com Valéria


O Sopão ouviu o novo CD de Valéria Oliveira, "No ar", que será lançado com show no dia 16 de outubro, na Casa da Ribeira, em Natal


Quem acompanha a trajetória de Valéria Oliveira e se surpreendeu com a virada pop do CD “Leve só as pedras” só precisa ouvir as três primeiras faixas deste novo disco, “No ar”, para perceber instintivamente que se trata de um aprofundamento, de uma continuidade ou de uma “obra em progresso” como está tão em evidência dizer atualmente, em relação ao disco anterior. Depois de ouvir o gingado romântico e levemente soul de “Dança e Música” e de deslizar por “Te Direi um Dia”, o ouvinte deságua em “Escuro” e, bingo, a luz sonora se acende: isso aqui é Valéria avançando mais dez passos no rumo da rarefação musical, da estilização que nos poupa de adereços e camadas desnecessárias e vai ainda mais direto ao ponto de um negócio chamado “música”, expondo a ossatura lírica das canções ao frio caloroso de sua voz, seu jeito de pronunciar um repertório em andamento.

“No Ar” consolida a caminhada da cantora que virou compositora e, não satisfeita, abriu, junto com parceiros como Luiz Gadelha, Simona Talma, Khrystal, Romildo Soares e outros uma frente que procura ir além da composição e da interpretação. A proposta é formatar, sob o sol potiguar e inevitavelmente com a influência distante dos tempos de bossa nova nas noites nipônicas, uma música particular, afinada com a sonoridade descarnada e no entanto vibrante que no panorama brasileiro atual cobre arcos que vão da banda Cê de Caetano aos já desfeitos Los Hermanos. Acrescente-se um certo timbre bem particular desenvolvido desde os anos 80 em uma esquina continental chamada Natal mais aqueles ecos do sambão setentista que volta soar Brasil afora pelas largas frestas dos arcos de suas Lapas e é só botar para tocar.

É uma música de pequenas formações – em cada uma das faixas de “No ar”, note, há no máximo seis músicos – , em construções econômicas que valorizam cada intervenção, fazendo os fraseados instrumentais dialogar com a intérprete que sabe bem com quem está falando, dada à condição de violonista tarimbada e reconhecida, que permite tal empatia. Como diz um trecho da letra de “Em Seus Braços”: “Nada é excesso, silêncio é voz”. Como se Valéria e sua turma tivessem pego as “pedras” do disco anterior, o “Leve só as pedras”, por si só uma imagem antecipatória da idéia de trabalhar musicalmente apenas o essencial, e jogado todas elas num triturador ainda mais potente e seletivo, do tipo que só deixa vazar essências de palavras, acordes e fraseados.

Em discurso, ritmo e repertório, o resultado é um novo mix de baladas de acento deliciosamente pop, sambas serrilhados como unhas bem aparadas de mulatas vaidosas, e até uma sessão final mais relaxada que chega a glosar de boleros com uma abordagem entre irônica, brincalhona e bem-humorada – mas sempre com um pé no minimalismo possível. Na primeira categoria se encontram as duas faixas iniciais, com um gostinho decantado do velho Cassiano e outros monumentos do soul music brazuca dos anos 70, além da saborosa e contagiante “Em boa hora”, com letra de Valéria e da lavra sonora denunciatória do sempre envolvente Sueldo Soares. Se os tempos fossem outros e este disco estourasse nas rádios, “Em boa hora” muito certamente seria o seu hit – é o momento do CD em que a busca do novo mais se permite ficar próxima às convenções que confortam os ouvidos, mas nem por isso é menos “no ar” do que o restante. No espectro das baladas, aqui e ali surge uma levada ou uma intervenção que, também em sintonia com a boa musicalidade atual, recicla subprodutos da Jovem Guarda, cuja matéria vem sendo também redescoberta com a parcimônia que só os novíssimos músicos parecem saber praticar.

A expressão “No ar” é bem reflexiva do conceito abstrato que permeia a caudalosidade musical do disco. Valéria, seus compositores e seus instrumentistas estão sempre falando sobre coisas não ditas, feitos não realizados, impressões dispersas que só podem ser capturadas com as teias de uma música desprendida de arroubos e letras mergulhadas em líquido poético de natureza menos viscosa quanto mais for possível. A não ser quando se trata de agarrar um gênero, sacolejá-lo até o ponto do enjôo e depois parar tudo, numa estática que gera bolhas de ironias inesperadas. É o que ocorre em duas das últimas faixas, “Madrugadas Frias” e o auto-enunciado antibolero “Sofrer faz parte do meu vocabulário” (uma música com um título desses só pode ser mesmo uma homenagem disfarçada de repreensão). O ouvinte pode relaxar e se divertir à vontade, que nesta reta final o experimento de Valéria e companhia permite que a cantora “solte a voz” (como se diz vulgarmente) e brinque com esquemas estabelecidos.


Na seqüência de sambas, uma praia sempre cara à Valéria que foi ouvinte de Clara Nunes e que casa com a atual leva de cantoras que lavam as escadarias da música popular brasileira, uma nota à parte para “Injúria”. É o tipo da composição que segue uma tradição do que já parece um subgênero dentro do vasto mundo da mais brasileira das músicas. É o samba desabafo, do amante despeitado que joga tudo na cara do parceiro, no que geralmente resulta em um desafogo até engraçado de tão passional – um espírito de crônica literária encarnado no cavalo da música popular. Não por outro motivo, e não apenas pela semelhança do título, a faixa lembra o “Injuriado” de Chico Buarque e até mesmo, embora em ritmo diverso, a “Tábua de Salvação”, criação valeriana do anterior “Leve só as Pedras”. E com a guitarra de Jubileu Filho se insinuando na divisão tipo balança-as-cadeiras, a faixa mostra que Valéria está bem atenta aos transambas daquela mesma banda Cê e de seu velho timoneiro rejuvenecido.

Nada disso é possível sem a virtuose dos instrumentistas que entram e saem nos momentos certos, comentam e interagem com a voz-violão de Valéria com o apuro que essas pérolas pedem, sejam pedras lapidadas ou rarefações absolutas. Vide, só pra ficar num exemplo, as evoluções entre o clarinete de Jotapê e o baixo de Tetsuo Sakurai (músico convidado) em “Razões”. Com tudo isso, “No ar” pode não ter o impacto de chegada que teve “Leve só as pedras”, mas em compensação tem a profundidade dos melhores estudos, aquele propósito especulativo que leva a uma música de ainda maior durabilidade. Enquanto o anterior era um disco de descoberta, este é um exercício de releitura, para muitas e muitas audições perseverantes, exploratórias e mais e mais incisivas. Respire fundo e aprecie como quem escala um penhasco belo e arriscado, por isso mesmo fascinante.

Um comentário:

Valeria disse...

oi Tião,
obrigada por você ter se debruçado sobre o som de no ar, e ter lhe emprestado sua voz. to feliz com sua participação.
espero que vocês possam estar conosco no lançamento.
abraços