No Jardim de Infância Jesus Menino e no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, R.D. era um colega boa-praça, do tipo que mesmo de calças curtas tem a característica de nem chamar atenção demais nem passar totalmente despercebido. O nome composto, que preservo para não expor a figura, talvez fosse o que mais o distinguia. Não era aluno brilhante, o que também não é de estranhar, afinal, do jardim ao primário ninguém é mesmo, naquela algaravia infantil feliz e indistinta da idade. E se tudo isso se passa numa cidade pequena, está composto o panorama sobre o qual se projetará um quadro imprevisível como convém àquela qualidade de futuro dramaticamente mais significativa.
Passou o jardim, acabou o primário, veio o ginásio com seu novo elenco de rostos e nomes, velhos colegas que somem e novos que aparecem não se sabe de onde, mesmo numa cidade de 14 mil habitantes. Mas é assim mesmo, em Florânia, Carnaúba, Parelhas, Pirenópolis, Formosa ou Assis. R.D. sumiu na poeira do tempo que apaga os rastros das primeiras convivências socio-escolares. Um dia desses, voltei a ter notícias do antigo colega: disseram que ele "estava bem de vida" - o que, em linguagem apropriada ao local, tanto pode querer dizer que é uma pessoa de razoável sucesso na vida quando indicar que se trata de alguém com mais dinheiro no bolso do que explica sua vida profissional. Ele teria assumido uma profissão típica de quem "vive bem" lá no velho Seridó de guerra e paz. Omito a profissão, porque a pista poderia ser mais evidente do que o texto pretende. O fato é que isso signifca que, visivelmente, para a população da cidade - hoje bem mais numerosa, mas ainda assim pequena - o nosso bravo R.D. vive além das posses que tem.
A explicação para esse desajustes é o tema dessa postagem: a expansão da violência que, segundo um estudo apresentado na Câmara dos Deputados no final da semana passada, tem crescido mais no interior do país do que nas grandes cidades. A fonte da informação é o Instituto Sangari, que apresentou à CPI da Violência Urbana o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros. O dado, digamos, tradicional, que ganha destaque é o aumento do índice de homicídios entre os jovens de 15 a 24 anos, que dobrou de 1980 até hoje, enquanto se manteve nas demais faixas etárias. Mas o ingresso da criminalidade pelo interior do país é o dado a mais - que, a rigor, não chega a ser novidade para os habitantes do Seridó potiguar ou sertão pernambucano. O instituto de pesquisas antenado e humano que cada um deles tem naturalmente na cachola dispensa levantamentos sociológicos e há tempos vem disparando seus alertas.
Voltemos a R.D.: o que corre é que, paralelamente ao seu trabalho convencional, ele exerce um outro tipo de atividade - por sinal, sabe-se que uma coisa favorece a outra, e mais não digo. R.D., meu antigo colega de jardim e primário, seria, a esta altura o leitor já percebeu, um traficante de drogas em atuação no interior de um pequeno estado nordestino. Suspeita-se gravemente de que seja, razão pela qual aqui não vai escrito seu nome nem sua profissão. Saber disso não faz com que eu desgoste de R.D. Tento até entender os caminhos que o levaram a essa vereda criminosa e clandestina oculta sobre sua vida normal na cidade. Lembro dele e aparece sempre o colega boa-praça - a imagem mais recente, já no ginásio - que, curiosamente, casa perfeitamente bem com o tipo meu-nome-não-é-jonhy que o ator Selton Melo fixou no cinema. Pensando bem, R.D., com aquela manha e maleabilidade exposta já no jardim de infância, tinha tudo para se tornar o que dizem que é. E o caráter detetivesco das cidades do interior também contribui para iluminar a suspeita: ao contrário das grandes maracutais, neste ambiente ninguém precisa ser procurador do Ministério Público para notar quando uma pequena e anormal fortuna está se formando aparentemente ao largo das normas legais. Dá na vista e dá o que falar - o que talvez facilite bastante o trabalho da polícia especializada no combate ao tráfico interiorizado nessa e em outras regiões do país. Pior para o meu ex-colega boa-praça.
Passou o jardim, acabou o primário, veio o ginásio com seu novo elenco de rostos e nomes, velhos colegas que somem e novos que aparecem não se sabe de onde, mesmo numa cidade de 14 mil habitantes. Mas é assim mesmo, em Florânia, Carnaúba, Parelhas, Pirenópolis, Formosa ou Assis. R.D. sumiu na poeira do tempo que apaga os rastros das primeiras convivências socio-escolares. Um dia desses, voltei a ter notícias do antigo colega: disseram que ele "estava bem de vida" - o que, em linguagem apropriada ao local, tanto pode querer dizer que é uma pessoa de razoável sucesso na vida quando indicar que se trata de alguém com mais dinheiro no bolso do que explica sua vida profissional. Ele teria assumido uma profissão típica de quem "vive bem" lá no velho Seridó de guerra e paz. Omito a profissão, porque a pista poderia ser mais evidente do que o texto pretende. O fato é que isso signifca que, visivelmente, para a população da cidade - hoje bem mais numerosa, mas ainda assim pequena - o nosso bravo R.D. vive além das posses que tem.
A explicação para esse desajustes é o tema dessa postagem: a expansão da violência que, segundo um estudo apresentado na Câmara dos Deputados no final da semana passada, tem crescido mais no interior do país do que nas grandes cidades. A fonte da informação é o Instituto Sangari, que apresentou à CPI da Violência Urbana o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros. O dado, digamos, tradicional, que ganha destaque é o aumento do índice de homicídios entre os jovens de 15 a 24 anos, que dobrou de 1980 até hoje, enquanto se manteve nas demais faixas etárias. Mas o ingresso da criminalidade pelo interior do país é o dado a mais - que, a rigor, não chega a ser novidade para os habitantes do Seridó potiguar ou sertão pernambucano. O instituto de pesquisas antenado e humano que cada um deles tem naturalmente na cachola dispensa levantamentos sociológicos e há tempos vem disparando seus alertas.
Voltemos a R.D.: o que corre é que, paralelamente ao seu trabalho convencional, ele exerce um outro tipo de atividade - por sinal, sabe-se que uma coisa favorece a outra, e mais não digo. R.D., meu antigo colega de jardim e primário, seria, a esta altura o leitor já percebeu, um traficante de drogas em atuação no interior de um pequeno estado nordestino. Suspeita-se gravemente de que seja, razão pela qual aqui não vai escrito seu nome nem sua profissão. Saber disso não faz com que eu desgoste de R.D. Tento até entender os caminhos que o levaram a essa vereda criminosa e clandestina oculta sobre sua vida normal na cidade. Lembro dele e aparece sempre o colega boa-praça - a imagem mais recente, já no ginásio - que, curiosamente, casa perfeitamente bem com o tipo meu-nome-não-é-jonhy que o ator Selton Melo fixou no cinema. Pensando bem, R.D., com aquela manha e maleabilidade exposta já no jardim de infância, tinha tudo para se tornar o que dizem que é. E o caráter detetivesco das cidades do interior também contribui para iluminar a suspeita: ao contrário das grandes maracutais, neste ambiente ninguém precisa ser procurador do Ministério Público para notar quando uma pequena e anormal fortuna está se formando aparentemente ao largo das normas legais. Dá na vista e dá o que falar - o que talvez facilite bastante o trabalho da polícia especializada no combate ao tráfico interiorizado nessa e em outras regiões do país. Pior para o meu ex-colega boa-praça.
Descontada a simpatia que a lembrança mantém intacta, o ponto a lamentar é mais embaixo: é o fato de R.D., colega de algaravia infantil, ter se tornado, motivos e motivações à parte, parte da engrenagem que abre novas rotas para o mercado das drogas no interior do Brasil, com o rastilho de pólvora inevitável que tal expansão prenuncia. Triste ligação entre a impessoalidade do Mapa da Violência apresentado aqui na Câmara (onde trabalho, daí a proximidade com a informação) e o afeto encerrado nas lembranças do povo da região onde nasci. É claro que tudo isso pode ser pouco mais que falatório - e que R.D. esteja limpo de qualquer suspeição, tomara que seja - mas ainda assim, as incursões da violência Brasil adentro são notórias e se, quiçá, passaram ao largo do meu colega boa-praça, não fizeram o mesmo com tantos outros que encontrou pelo caminho.
Pergunte para outro amigo meu, a quem posso dar nome e sobrenome, o jornalista Plácido Fernandes, que encontrei já depois de adulto. Nascido no coração do que antigamente a gente chamada de "Polígono da Maconha", Plácido já viu muitos colegas de primário abarcados pelas dobras dos novos mapas da violência que o Brasil comporta - e, lamentavelmente, expande.
Pergunte para outro amigo meu, a quem posso dar nome e sobrenome, o jornalista Plácido Fernandes, que encontrei já depois de adulto. Nascido no coração do que antigamente a gente chamada de "Polígono da Maconha", Plácido já viu muitos colegas de primário abarcados pelas dobras dos novos mapas da violência que o Brasil comporta - e, lamentavelmente, expande.
A foto que ilustra a postagem está no site da ABI (http://www.abi.org.br/) e mostra a fachada crivada de balas de uma casa na região do Polígono da Maconha, em Pernambuco, onde traficantes desviam água de um projeto da Chesf para irrigar suas plantações. A casa era de um homem de 82 anos que protestou contra o tráfico local e acabou assassinado, segundo as informações do site.
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