domingo, 4 de abril de 2010

O Julgamento e seus afluentes


Parece que, na semana passada, todo mundo, embora tenha ido trabalhar normalmente, conversado com amigos e vizinhos como sempre, pago contas, feito compras e reclamado do trânsito como é de costume, também tirou o terno e a gravata do armário, pediu licença à família e sentou no banco dos jurados. Pois é, de uma maneira ou de outra, fomos todos integrantes do grande júri que monopolizou as atenções do país.

Não foi apenas um movimento em massa estimulado pelos jornais, tevês e congêneres. É que havia, no julgamento do casal Nardoni, um pouco do que se pode chamar de tribunal de nós mesmos – ainda que a gente custe a admitir à primeira provocação. E com uma vantagem a nosso favor: estávamos na cômoda condição de jurados informais. Nesta posição, somos bambas da Justiça, referência em ponderações, oráculos quanto se trata de pesar crime, culpa e castigo. Basta que nos abasteçam de indícios, verdades periciais, blocos de evidências e, já que somos humanos e não podemos negar, uma boa história que dê sentido a tudo isso – porque senão cada um daqueles itens não servirá para nada além de nos confundir.

O inegável é que, ao final do processo, cada um, esteja ou não no júri oficial, tem seu veredicto na ponta da língua: culpado ou inocente são apenas palavras formais, já que, no mais das vezes, a sentença que mora em cada cabeça tem um texto bem menos distanciado. É de “bem feito”, “teve o que merece” e “apodreça na cadeia” pra baixo.

Porque a tendência do ser humano, parece, é em 90 por cento dos casos, condenar. Ao menor sinal de deslize, estejamos falando de crimes ou coisas menos dolorosas, lá estará um de nós, representante da raça, de dedo apontado, pedra na mão, pronto para sentenciar: “culpado”. No caso em questão, do desumano crime de que são acusados os Nardoni, tratou-se de uma situação pior ainda. Um caso, digamos, mais sofisticado para a nossa escala de valores tão dependente de simplificações facilitadoras. No primeiro momento, logo após o crime, fomos aos poucos, e com enorme resistência, admitindo a possibilidade de que aquela criança tivesse sido morta pelo próprio pai, ao final de uma série de incidentes que teria contado com a participação violenta da madrasta.

Condenar madrasta é moleza – um lamentável padrão que a gente aprendeu nos contos de fadas. Agora, admitir que um pai tenha jogado a filha do sexto andar são outros quinhentos. O fato é que a polícia, a perícia e o promotor foram nos munindo de dados, formando uma história que narrativamente fazia sentido, de maneira que não houve outro jeito: engolimos a imensa perplexidade e aceitamos aquela versão que, construída a partir de indícios, podia até contrariar nossos instintos, mas ao menos dava ao episódio todo um encadeamento lógico que o tornava, se é que era possível dizer isso, minimamente crível.

O certo é que a dúvida, a danada da dúvida, voltou, na hora do julgamento, a perturbar o inconsciente coletivo do país. Todos os indícios periciais levavam à condenação do casal, mas, num crime sem testemunhas à mão, era preciso que esses elementos falassem francamente, sem ambigüidades – e nem sempre as peças do mundo judicial conseguem tal objetividade. Para complicar, não apareceu, no largo espaço entre o crime e o julgamento, qualquer outro indício à altura que confirmasse a versão do casal. Algo que, sendo sempre uma possibilidade, quanto menos se confirma mais insinua o risco de que ao crime cruel venha se sobrepor um erro judicial não menos doloroso.

Dito isso, pense no conforto da situação que você, amigo, viveu na semana passada: a de ser apenas um jurado informal. Talvez seja exagero dizer, mas ainda assim vale arriscar: de certa maneira, é possível que ser jurado do casal Nardoni tenha sido uma experiência tão difícil quanto ser um dos próprios réus do caso. Num dos lados do tribunal, a presunção de inocência personificada em dois rostos; num outro, a imensa carga da responsabilidade nas mãos de sete jurados. Não é por acaso que um julgamento desses parece funcionar como uma espécie de emblema vivo da espécie, pelo que contém de complexidade humana envolvida, embora ao fim e ao cabo tudo seja resolvido com base no elemento oposto – a simplicidade do argumento mais claro, mais verossímil, menos nebuloso. O ser humano, sabe-se, odeia, por instinto, a característica da nebulosidade.

Sentença proferida, caso encerrado, resta uma evidência maior do que júri, defesa e promotor. Fica a imagem do julgamento como o delta de um imenso rio, um Nilo de possibilidades que promotor e acusação tentam conter, cada um à sua maneira, pela força da palavra e do convencimento, a um curso de água principal, claro e cristalino como uma história crível, perto do qual todos os outros não passam de filetes sem futuro.

Às vezes vence o acusador, outras a defesa. Mas o fato é que os sedimentos que o rio traz de longe continuam lá, sujando de lama a sala da Justiça. Em casos como o do casal Nardoni, o julgamento e seus afluentes formam um estuário de incertezas que nos afoga enquanto a gente tem a impressão de estar apenas matando nossa sede de justiça. A conclusão é de que não chegamos nem perto de um método avançado de decidir sobre culpa e inocência em casos nebulosos como é este. Como se trata de uma falha congênita da espécie, quem sabe daqui a umas cem gerações?

O júri popular, como existe hoje, é o que dá pra fazer e, imperfeito que seja, temos de aceitar. Ao menos os grandes julgamentos nos ensinam algo sobre escala de valores. Como a dizer que, se o júri que mobiliza o país tem suas vulnerabilidades, imagine o caráter pequeno daqueles julgamentos que a gente faz a todo momento, escolhendo como réu um vizinho, um ex-amigo, uma celebridade, ou qualquer Madalena que esteja no ângulo de alcance das nossas pedras.

* Publicado no Novo Jornal (Natal - RN)

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