terça-feira, 20 de abril de 2010

Num velho filme, um termômetro do tempo


Nada como o tempo para dar um novo sentido às coisas mais banais. Digo isso porque de vez em quanto gosto de ver ou rever um velho e ordinário filme, daqueles dignos não mais do que de uma sessão da tarde de antigamente, por pura nostalgia, curiosidade ou falta de paciência com artigos mais pretensiosos. Pois bem: esta semana botei no DVD player um desses produtos perdidos no esquecimento, que achei por acaso na prateleira da locadora da 104 Sul: o filme "Dr. Hollywood", com aquele subtítulo ainda pior: "uma receita de amor".

Não sei porque, sempre achei que esse subtítulo fosse "uma receita de sucesso". Estou enganado, mas só em parte, porque o filme também trata da expectativa pela ascenção puramente material. E, se fosse hoje, no cinema mais vulgar de entretenimento atual, você diria que essa tal "receita de sucesso" seria pisar no pescoço dos que estão abaixo sem um pingo de sentimento de culpa, puxar o saco de quem tem mais poder do que você tanto quanto desprezar quem vem abaixo, fazer amizades em função de interesses futuros, legitimar o pragmatismo mesmo nos momentos em que ele parece menos apropriado e por aí afora. Só que estamos falando de um filme ordinário feito na década de 80. E filmes velhos servem para, além de alimentar a nostalgia de quem tem mais de 40, mostrar como o mundo mudou.

"Dr. Hollywood", na sua insignificância cinematográfica, é, visto hoje, um belo termômetro de como o mundo mudou desde os tempos em que ele foi feito. Michael J. Fox, um astro daquela década, é um médico interessado em dar o pulo do gato, trocando o pronto-socorro sem glamour onde trabalha pela disputa de uma vaga cobiçada numa super e hiper clínica de cirurgia plástica de Los Angeles, daquelas onde salas envidraçadas e mesas de tampo transparente não dão espaço para qualquer tipo de humanidade. Acontece que, a caminho de LA, o médico tem que passar por uma cidadezinha minúscula onde sofre um acidente de carro e é obrigado a trabalhar prestando serviços no pobre consultório médico local durante uns dias.

Se o ponto de partida, que é o interesse do médico em ficar rico e sofisticado em LA, bate com os tempos atuais, o miolo, que mostra a temporada dele na cidadezinha, contraria cada uma das normas sociais, econômicas, morais e de bom gosto que vigoram atualmente. Parece uma bobagem dizer que, nestes poucos dias, o médico carreirista descobre o companheirismo, o valor da amizade, a importância que cada um de nós tem neste mundo se a gente fizer direitinho a nossa parte. Mas é exatamente isso o que acontece. Se você acha que tudo isso soa meio piegas, parabéns: você está perfeitamente afinado com os tempos atuais. Eu já me sinto um pouco deslocado, ligeiramente velho - e quanto mais essa sensação aumenta, mais desconfio de que me torno uma pessoa melhor.

E além do mais, "Dr. Hollywood", sempre imerso na sua insignificância artística, tem ótimos personagens excêntricos, que são os moradores da tal cidadezinha. Como o velho médico que, bêbado, recita toda a obra do poeta Walt Whitman. Ou o trio de velhinhas que assedia Michael J. Fox assim que ele chega à cidade, com uma malícia ingênua como não se vê muito no cinema atual. Ou ainda a garota que sonha em se mudar para a cidade grande, personagem deliciosamente caricato com que a então desconhecida Bridget Fonda rouba bem mais de uma cena. Até Woody Harrelson aparece sem sua habitual cara de psicótico, numa outra caricatura de caipira que permeia e dá graça ao filme.

Mas o que eu quero mesmo com essa história de filmes velhos, pieguismo deslocado, nostalgia prática e personagens como não se veem mais é apenas dizer que este "Dr. Hollywood", visto hoje, deixa de ser aquela produção ordinária de anos atrás para se transformar numa peça de museu que só denuncia, involuntariamente, os enganos do novo temop em que vivemos. Porque um filme desses dificilmente, mas muito dificilmente mesmo, seria feito hoje em dia. Não teria apelo, clima, atmosfera - em resumo, não seria nada vendável. E, se fosse, mais dificilmente ainda faria o sucesso que teve naqueles tempos.

"Dr. Hollywood" é um filme típico de locadora de VHS que eu nunca quis ver naqueles mesmos tempos. Porque naquela época eu só queria de Scorsese pra cima - e o "Dr. Hollywood' era bestalhão demais. Talvez fosse mesmo, naquele contexto pré-globalização, antes dos computadores, do youtube, de coisas como este blogue que você lê agora. Mas o mesmo tempo que se encarregou de raspar da minha pessoa uma certa camada de esnobismo juvenil também fez o seu trabalho sobre "Dr. Hollywood" e, muito certamente, de similares do mesmo momento histórico.

Isso mesmo: o assunto aqui é esse negócio chamado elegantemente de "momento histórico", que a gente não consegue, por mais que tente, enxergar enquanto está em andamento. Mas, duas ou três décadas depois a gente olha pra trás e lá está ele, límpido como uma alvorada no Seridó. É o tempo, o velho tempo de guerra, dando novo sentido às coisas, mesmo que seja um filme comum de uma era esquecida.

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