sexta-feira, 23 de abril de 2010
Nós e o vulcão
Desde que o vulcão islandês começou a cuspir sua fumaça tóxica nos céus europeus eu lembro, o tempo todo, de José Saramago. Porque a história toda, que ocupa telejornais e produz um tipo, digamos, superior, de caos aéreo - bem diferente da bagunça brazuca, há de notar o leitor mais viajado - lembra demais os enredos do escritor português. Samamago é um mestre em criar situações imaginárias que colocam em xeque a realidade do mundo. Nas mãos dele, uma hecatombe não é um pretexto para o leitor burilar seu medo, mas uma chance para o seu apreciador refletir sobre coisas que parecem à prova de qualquer especulação, de tão estabelecidas que são. Em suma, o caso do vulcão islandês, com aeroportos paralisados e hotéis superlotados, é quase uma reedição da catástrofe que se verifica num livro como "A Jangada de Pedra", em que Saramago faz com que Espanha e Portugal, num cisma dos Pirineus, separe-se fisicamente do resto da Europa - a Europa superior - e passe a vagar no Atlântico, sem rumo e sem explicações.
É uma espécie de literatura-catástrofe de outra categoria, um gênero em que só Saramago consegue nadar de braçadas, com seus períodos extensos, suas frases superpostas, seu discurso de língua solta e sonoridade silenciosamente marcante. No "Ensaio sobre a Cegueira", que não li e ao qual me refiro apenas a partir do que vimos na adaptação cinematográfica de Fernando Meirelles, temos o mesmo ponto de partida, idêntica chave de produção de uma ficção que examina o mundo a partir de alguma alteração inesperada na translação das coisas. E novamente é como o vulcão islandês e suas nuvens venenosas: todos começam a ficar cegos, invertendo a ordem de poder no geral e no particular, reposicionando sentimentos, qualidades e defeitos em outra ordem, nova, piorada e ainda por cima marcada pelo caos.
Ainda algumas notas sobre o vulcão que nos apavora e nos distrai quando aparece, e aparece muito, na tevê: chego para trabalhar e paro diante da Globonews que mostra reportagem com o piloto do avião que conseguiu salvar os duzentos e tantos passageiros de um vôo entre Londres e a Nova Zelândia, quanto as quatro turbinas falharam a partir do momento em que a aeronave entrou, sem que a tripulação percebesse, numa das nuvens tóxicas produzidas pelo monstro islandês. Segundo a reportagem, a pane durou 15 minutos. Durante esta eternidade, o piloto - um velhinho de cabelos brancos, bem diferente do jovem intrépido de quem hoje em dia se espera quase tudo - conseguiu acalmar os passageiros e ainda tomar uma decisão que contrariava os manuais e os treinamentos com simulações de acidentes pelos quais havia passado. Assisti a pedaços da reportagem, curioso, de pé mesmo, em meio ao barulho da redação, mas pelo que entendi o piloto decidiu tentar religar as quatro turbinas de uma vez só, assim que o avião conseguiu sair da nuvem vulcânica. Ele deixa muito claro que isso contrariava totalmente as regras em vigor. E diz mais: que muitos dos outros procedimentos de emergência conhecidos como eficientes falharam, enquanto alguns previstos como inválidos se revelaram perfeitamente em funcionamento.
O que a história do piloto e do vôo Londres-Nova Zelândia diz pra gente é que numa típica situação de crise, 1) de onde você espera que venham contribuições para resolver ou ao menos diminuir o problema é bem possível que não venha nada; 2) de onde você menos espera que apareça uma luz, lá está ela, surpreendentemente piscando para seus olhos; 3) seguir o manual é tão importante quanto seguir o bom senso - e há momentos em que este bom senso não tem nada a ver com a lógica com a qual lidamos na normalidade. Aliás, o piloto também deixou esse último quesito bem claro: segundo ele, para salvar o vôo, foi preciso ter clareza e desprendimento para notar que era preciso abrir mão da lógica, e lançar mão de outras medidas. No caso, apostar na religação das quatro turbinas ao mesmo tempo - claro, depois de sair da nuvem e de tomar outras medidas para manter o avião no ar enquanto a fumaça tóxica ainda envolvia a aeronave.
Estamos, aqui em casa, Rejane, eu, minha mãe (que mora com a gente) e os meninos, no meio de um vôo metafórico desses em que não se sabe muito bem em qual aeroporto vamos pousar. Uma outra espécie de nuvem tóxica de fumaça se abateu sobre a nossa casa, forçando a gente a repensar nossa maneira de viver. Quando vimos, já havíamos rasgado o manual, feito o piloto daquele vôo. Há uma semana, vivemos sem empregada e sem babá, nos revezando nas tarefas de cuidar da casa, dar total atenção às crianças e abreviar gastos que, tão logo foram chamados às favas, revelaram-se surpérfluos. No geral, o que estamos fazendo é simplicar ao máximo nossa vida. Estamos trabalhando mais, com menos tempo ocioso do que antes. Mas também estamos mais ativos em cada atividade do dia-a-dia. Tem sido muito bom, embora ainda estejamos no início - e seja cedo para considerações mais definitivas.
E quando a gente passa diante do telejornal e ouve distraído as notícias sobre o vulcão islandês, por pior que seja o fato e a situação que essa catástrofe natural gerou, chega a dar vontade de rir - pela ironia da comparação. Ainda bem que, para cada brasileiro apreensivo com o pagamento das diárias além da conta nos hotéis europeus, aparece uma figura como este piloto de avião que, verdadeiramente diante da fera, enfrentou o monstro com as armas que tinha - a inteligência, o bom senso e a clarividência de rasgar o manual - sem choramingar por sair, durante infindáveis 15 minutos, da zona de conforto da vida.
Porque a zona de conforto, de tempos em tempos, acaba. Para todos e cada um. E, pensando bem, não é tão ruim que seja assim.
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Um comentário:
Passando só para dizer que tem uma acariense que mora na Islândia, porém longe da região do vulcão "sopinha de consoantes"!!
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