terça-feira, 31 de março de 2009

Pixote globalizado


"Quem quer ser um milionário" é uma espécie de "Pixote" da Índia globalizada na era do cinema turbinado. Para além de toda aquela pirotecnia visual que dá ao filme todo um ar de grande viodeoclip-fim de mundo, de terceiro mundo pop, existe o olhar do protagonista, aquelas duas bolas pretas que parecem equipadas com um escudo invisível através do qual as impurezas do mundo real não passam. Um canal ótico por onde só vaza o que a vida tem de fábula - e este é outro dos componentes sutis mas não menos importantes que o filme utiliza, o que faz de seu protagonista não apenas um Pixote moderno mas também um Forrest Gump asiático. Quero dizer que o filme vencedor do Oscar 2009 é um tipo de fábula construída com base na realidade mais insuportável e, sendo assim, lembrou-me muito outros filmes enquanto a ele assistia.

Além de "Pixote", que dispensa explicações, e de "Forrest Gump", cuja explicação acaba de ser dada, "Quem quer ser um milionário" me lembrou muito "O caçador de pipas". Mais o livro do que o filme, na verdade, uma vez que no cinema a história do menino culpado por não ter defendido o amigo de infância no Afeganistão do tudo-ou-nada foi muito mais suavizada do que no texto original, este também já notavelmente aparado em suas arestas mais pontiagudas. Como no "Caçador", em "Quem quer ser" temos a trajetória infeliz de um menino situado num quadro realista e histórico sintomático da história recente - num caso o Afeganistão entrincheirado ora pelos russos, ora pelo Talibã; noutro, a Índia global, o país mais comentado dos últimos anos, com sua miséria perene, sua riqueza emergente ligada ao fluxo dos mercados, seus call centers que foram exaustivamente explicados no best seller "O mundo é plano" e que agora estão até na novela das oito.
Neste cenário, está um personagem massacrado pelas condições adversas em torno de si, tentando construir meio às cegas uma história de superação. Só que, no caso de "Quem quer ser", a superação é tão artificialmente que se torna fábula, e uma fábula de estrutura narrativa a certo ponto já bem previsível, em que a resposta para cada pertunta do programa de tevê de que o garoto participa, a gente sabe, vai precipitar mais um trecho de desgraças da vida que ele teve até aquele momento. Em "O caçador" é usado o mesmíssimo recurso: duas páginas antes, você já antecipa o que vai acontecer. Como não é um livro de suspense, não atrapalha - pelo contrário, até conforta, o que talvez seja uma das explicações para a história ter sido tão lida. Mas, literariamente, é sempre um pecadilho que subtrai um pouco do mistério desconcertante que as boas histórias costumam ter. Essa mesma engrenagem ficcional ocorre em "Quem quer ser" - basta você trocar o registro gráfico do livro pelo gatilho audio-visual com que trabalha o cinema.

E há ainda um outro filme que "Quem quer ser um milionário" lembra a todo momento. Dois filmes, pra ir um pouco além. O primeiro é bem diverso, mas só na aparência: "Moulin Rouge", com aquela colagem visual potente que parecia amarrar o público com cordas visuais hipnotizantes enquanto desfiava sua história em ritmo de música e dança. O segundo é meio óbvio: "Cidade de Deus". Aquela mesma estética plástico-feroz, aquele mesmo ritmo que suga o espectador para dentro da película, aquela mesma montagem matadora - e aquela mesma expressividade que todos esses elementos citados conferem ao filme de Fernando Meirelles -, estão presentes no vencedor do Oscar. Há uma cena flagrante, que é aquela em que a dupla de irmãos foge do policial favela adentro, entre becos, sombras, barracos e populares - em tudo semelhantes à sequencia de abertura de "Cidade", aquela do galo fugindo dos seus perseguidores entre as ruelas da Mumbai brazuca. A diferença é que "Cidade de Deus" é muito melhor do que "Quem quer ser um milionário" - vai muito além na sua investigação estética, na sua busca entre pop e realista, na sua pegada de cinema disposto a enquadrar tudo e esgotar o tema da tomada das favelas cariocas pelo tráfico.

"Quem quer ser um milionário", ao contrário, deixa, ao final da exibição, uma sensação confortável de que foi bom mas que também não foi além de um video rápido, desses que a gente vê no YouTube, sobre a realidade da nova Índia global, com sua miséria de sempre, sua riqueza emergente, seus novos gângsteres, seus prédios reluzentes e suas favelas gigantes. Com fábula, o filme é coerente, se completa e se basta - mas a realidade que ele tangencia é tão maior, e o personagem que ele explora é tão mais rico (especialmente na infância) que o espectador mais exigente fica com uma sensação de refeição interrompida. Parou ali pelo segundo prato. Faltou o terceiro, pra ser comido com as mãos como pede a cultura indiana, e a sobremesa, não obrigatória mas sempre bem-vinda, como sugerem os hábitos do outro lixo - o nosso, ocidental.

Um comentário:

Titina disse...

Tião vc escreveu aqui todas as minhas exatas impressões sobre esse filme. É isso mesmo.