Quem puder que explique as coincidências. O fato é que, das ladeiras de Olinda às praças de Campina Grande, do Parque das Dunas ao parque aquático Big Blue em Búzios, onde estive nessas férias, ou de Redinha a Maracajaú, como diz o frevo mas onde de fato não estivemos, um lugar simplório e semidesconhecido - na verdade, um recanto inserido numa paisagem essa sim bastante apreciada - ficou na memória nesta volta para casa como sinônimo de sítio ideal para zerar a mente, o que é, muito apropriadamente, um dos objetivos dessa instituição (a caminho de virar mercadoria, como tudo) chamada "férias". Direto ao ponto: voltei com uma lembrança muito boa de um determinado cantinho na barragem Gargalheiras, Acari-RN se é que algum leitor ainda ignora o lugar no mapa, que fez exatamente isso que eu disse nas frases anteriores: qual um faxineiro natural, saiu varrendo dos salões e das quinas da cuca tanto o poeirão quanto as sujeirinhas acumuladas pelo exercício dos dias, essa expressão que engloba trabalho, obrigações, rotinas, prestações e esquecimentos. Depois de aproveitar a calma, o silêncio, a qualidade contemplativa desse lugar bem específico, estava pronto para voltar pra casa e começar tudo de novo.
Chamei, comigo mesmo, o lugar de "Dormintório da tartagura" (veja na foto). O apelido se explica pelo fato de ter sido o mesmo lugar onde, um dia antes, eu e Cecília passamos vastos minutos acompanhando um filhotinho de tartaruga navegando na beirinha da barragem, no que parecia ser a busca de um recanto onde poderia se abrigar. Dia seguinte, voltei ao local já sem Cecília e me esbaldei no nada, qual um banhista zen. É que o "Dormitório da tartatuga" é um pedaço de prainha meio brejeiro, com uns tufos de mato num canto e ondas límpidas na maior parte de sua extensão. Ondas de açude, que produzem aquele som suave de um batimento bem diverso da virulência do mar - mas que, ainda assim, também soam uma música particular e especialmente relaxante. Ninguém mais, só eu - nem mesmo a tartaruga que nos levou a tal lugar. Só o banhista zen, o sol, a muralha da serra, a música da água.
É nesta parte que entra a tal da coincidência. De volta para casa, aproveitando a sombra da ameixeira no quintal - que aqui também a gente persegue um cantinho onde se possa, se não zerar tudo, ao menos diminuir a conta das aporrinhações - começo a ler um livrinho comprado há tempos e que, como tantos outros, estava me esperando pacientemente lá na estante. "Os vabagundos iluminados", do "on the road" Jack Kerouac, nessas edições de bolso práticas, bontinhas e nem um pouco ordinárias da editora L&PM. Este outro livro do mito da geração beat difere do seu clássico pop absoluto pelo fato de, aqui, Kerouac acrescentar punhados de filosofia e uma certa religiosidade oriental ao relato de suas contra-aventuras. Como sempre, ele anda de carona de um pedaço a outro dos EUA, participa (ou assiste, platonicamente) às farras de seus iguais insatisfeitos com a hipocrisia abastada da América dos anos 50, mas o forte mesmo são os vastos períodos de medicação em meio à natureza pura, na mais completa solidão ocasional, sob o frio tiritante do inverno ou sobre picos californianos onde dificilmente a presença humana se faz registrar.
É um belo Kerouac porque se permite pitadas de religiosidade onde antes só havia niilismo autosuficiente - e não se trata de uma religiosidade careta, mas de uma busca genuína que não se contenta com o clichê do escritor que tudo vê mas em nada crê. Mas ainda não cheguei lá: o ponto onde a jornada de Kerouac - no livro, sob a pele do personagem Ray Smith - e o "Dormitório da tartaruga" se encontram. Deixe eu recortar um trecho do livro que tudo vai se clarear na íris do olho que tudo enxerga dentro de sua mente:
- (...) logo volto para o Norte para visitar a mata úmida e as montanhas enevoadas da minha infância e meus velhos amigos intelectuais amargos e meus velhos amigos lenhadores bêbados, por Deus, Ray, você não terá vivido até ir lá comigo, ou sozinho. E daí eu vou para o Japão e vou caminhar por todo aquele país montanhoso para encontrar templozinhos antigos e escondidos e esquecidos nas montanhas e velhos sábios de cento e nove anos rezando para Kwannon em cabanas e meditando tanto que quando saem da meditação riem de tudo o que se mexe.
Peço uma porção de paciência zen aos sábios leitores do Sopão e acrescento só mais um trecho. Fique aí que vale a pena:
- Chamei o meu novo bosque de "Bosque da Árvore Geminada" por causa dos dois troncos de árvore nos quais eu me recostava, que se enrolavam um no outro, brotos esbranquiçados brilhando brancos na noite e assinalando, dezenas de metros à frente, o lugar para onde eu me dirigia, apesar de o velho Bob (o cão da família) esbranquiçado me conduzir pela trilha escura. (...) centenas de quilômetros de rochas cobertas de neve pura e lagos virgens e florestas altas, e lá embaixo, em vez do mundo, vi um mar de nuvens de marshmallow planas como um telhado, que se escondiam por quilômetros e quilômetros em todas as direções, transformando todos os vales em creme, as chamadas nuvens de estágio baixo, que vistas do meu pico de dois mil metros pareciam estar muito lá embaixo. (...) juntei lenha e identifiquei marcos geográficos com a minha panorâmica e meu detector de incêndios e dei nome a todas as pedras e fissuras mágicas, nomes que Japhy (o amigo de Ray, que é quem fala no primeiro trecho citado) cantara para mim com tanta frequencia: montanha Jack, monte Terror, monte Fury, monte Challenger (...)
E o livro todo é esse desfiar de especulação verbal e poética, embora impressa em prosa que jorra da boca de seu narrador compulsivo, sobre meditações naturalmente tão pouco concretas quando tangíveis são as paisagens que provocam tal exercício. Livro para se ler antes de sair de férias, na verdade, e não ao se retornar delas - porque, sem se tratar de auto-ajuda explícita (e há muito por aí de auto-ajuda não explícita sendo apreciada por gente que tem horror à auto-ajuda) prepara o espírito para viajar no sentido maior da palavra. Fiquei feliz por, mesmo lendo o livro na volta, constatar que, ao menos por algum tempo, tive nessas férias um instante de contemplação e meditação não planejada e tampouco sistematizada lá no "Dormitório da tartaruga". De resto, um lugar à disposição de vocês, como já ficou claro na postagem "Solar do Gargalheiras". A Semana Santa vem aí: que tal comprar o livrinho do Kerouac - disponível em qualquer boteco, naquelas prateleiras que giram com as capinhas da série L&PM Pocket, e escolher um lugar propício antes de arrumar as malas? Pode ser São Miguel, Gargalheiras, Santa Rita (né, Nossa Mana?), Exu Queimado...
Em todos esses citados, há a certeza de se encontrar um recanto eventualmente deserto - mas não inacessível - onde se pode confrontar a sujeira acumulada na cabeça com a mensagem muda da paisagem natural e, em consequência quase automática, sentir a mente se esvaziar de todo o supérfluo.
2 comentários:
acho que vou seguir sua dica e comprar o livro pra ler na semana santa. e ver se consigo, finalmente, conhecer são miguel do gostoso no feriado - mesmo que seja com chuva, o que parece muito provável ( aliás, faz mal não se for assim, gosto de praia com chuva). será uma bela maneira de comemorar meu aniversário, que este ano vai cair justamente nesse feriado ( e lógico que estou dizendo isso de propósito, só pro senhor lembrar de me dar os parabéns...). beijins.
p.s. - errata: onde eu disse "ler NA semana santa" leia-se "ler ANTES DA semana santa"...
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