terça-feira, 31 de março de 2009

Gabo e Guimarães



Acabo de ler as 71 páginas do primeiro capítulo de "Vivir para contarla", a autobiografia de Gabriel García Márquez. É muito agradável, bastante saboroso, uma iguaria literária na ponta da língua voltar a ler o escritor colombiano que colocou a literatura latino-americana em novo patamar com seu premiado "Cem anos de solidão".
É um prazer que faz cócegas no cérebro percorrer com os olhos e experimentar com os sentidos que a imaginação dispara cada linha das memórias de "Gabo", anos depois de ter lido alguns de seus outros livros - além de "Cem anos", "O amor nos tempos do cólera", saga amorosa entre charcos e perfumes que se abriga para sempre no coração do leitor, e "Crônica de uma morte anunciada", a história com que ele me foi apresentado, de um exemplar de biblioteca pública, com a novidade que era aquela pronúncia latino-poética, aquela maneira de narrar mais pegajosa, com palavras que parecem amolecer a mente do leitor, embebedá-lo com palavras a ponto de ele não resistir e tombar, ouvinte sonâmbulo do narrador, até a última página.
É a isso que me sinto retornando. É como voltar a ler Jorge Amado depois dos 40. A força irresistível do bom narrador, o paladar adocicado da escrita mais latina. Jorte, Gabo, Scorza, Marcio Souza, essas figuras fantásticas e suas criações amazônicas. E, como se trata, agora, do texto original, que meu portunholzinho de curso autodidatada felizmente vem conseguindo dar conta - imagino eu - então esse prazer lítero-paladar-olfativo que a escrita de Gabriel García Márquez produz fica ainda mais codimentado. Lê-se o texto original como se estivesse ouvindo a música de uma narrativa. Uma estranha conexão entre a substância da palavra escrita e o valor adjetivo da palavra cantada. É comum que eu leia se não em voz alta, em pronúncia sibilante, num entredentes que faz a boca pronunciar o texto baixinho para que meus ouvidos possam ouví-lo ressoar enquanto meus olhos o percorrem. Uma festa sensorial provocada por uma edição de bolso comprada naquela viagem a Buenos Aires.

E por acompanhar, aqui e ali, a leitura com essa verbalização à lá João Gilberto, é que a prosa memomorialística de Gabo acaba me lembrando sempre o monólogo de Riobaldo Tatarana no "Grande Sertão: Veredas" deste outro narrador latino de quatro costados, João Guimarães. A leitura labial destranca as portas e joga luz na casa antiga: nos dois casos, são, para mim, a entrada em linguagens que, embora estranhas, representam variantes do falar normal, em dialetos que alargam o poder que as palavras costumam ter no português comum. O espanhol original de García Márquez espande meus horizontes de leitor como o português movediço dos sertões de Guimarães já o fez antes, sem sair, a rigor, de dentro dos cercados deste próprio português pulador de cerca, como convém a todas as línguas de natureza criativa.

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