terça-feira, 31 de março de 2009

Abu Ghraib, a cegueira e Santa Catarina


Você passa de um livro para outro, de um filme para um livro, de um telejornal para um filme - e as cordas invisíveis das conexões dando seus nós e desatando outros na sua cabeça. Digo isso porque vou falar de um livro, um filme e uma reportagem de televisão. O livro é "Cadeia de comando", a compilação de reportagens - de jornais e revistas - do americano Seymour M. Hersh, o mais festejado jornalista investigativo dos EUA, célebre autor da denúncia sobre o massacre de Mi Lai, no Vietnã, e ultimamente com fama reforçada por ter se dedicado a fuçar as entranhas do aparelho repressivo norte-americano entre Bagdá e Guantánamo na guerra de Bush, que é exatamente o tema do livro em questão.

Quem se dispuser a ler "Cadeia de comando", ademais disponível sempre a preços promocionais até em supermercados, que foi onde comprei meu exemplar, vai ter a chance de organizar minimamente a babel de informações que nos últimos anos recebeu sobre a trapalhada dos americanos entre o Afeganistão e o Iraque, passando por uma recuperação meticulosa do ataque terrorista de 11 de setembro. O ponto forte do livro - o gancho que o jornalista usa como liga para as várias frentes de derrota do guerreiro Bush e suas águias até então implacáveis - é a denúncia dos abusos no presídio de Abu Ghraib, aquele das fotos que chocaram o mundo, com soldados americanos obrigando prisioneiros iraquianos a se deixar fotografar com simulações de masturbação, corpos nus amontoados e similares.

A tese do livro é de que a conduta vista em Abu Ghraib não foi um exagero pessoal de soldadinhos sexualmente perturbados do interior profundo e puritano dos EUA, mas um recurso usado deliberadamente - mais que isso, planejado detalhadamente - pelo governo americano como forma de submeter os iraquianos pela via a que eles são mais vulneráveis: a vergonha ligada a questões sexuais. Seymour M. Hersh escreve: "A idéia de que os árabes são particularmente sensíveis à humilhação sexual tinha sido discutida entre grupos conservadores a favor da guerra antes das invasões do Iraque, em março de 2003. Um livro frequentemente citado era A mente árabe: um estudo sobre a cultura e a psicologia árabes, publicado em 1973 por Raphal Patai, antropólogo cultural que ensinava em Princeton e Columbia, dentre outras universidades, e que morreu em 1996. O livro inclui um capítulo de 25 páginas sobre os árabes e o sexo, descrevendo o sexo como tabu revestido de vergonha e repressão. (...) O assessor do governo disse que deve ter havido um objetivo sério, no princípio, por trás da humilhação sexual e das fotografias posadas. Acreditava-se que alguns prisioneiros fariam de tudo, inclusive delatar companheiros, para evitar a disseminação de fotos tão vergonhosas para familiares e amigos."

A investigação, a tese e o conjunto todo da denúncia do jornalista lembra, formatado em livro, um outro volume importante que compila reportagens de um outro momento histórico grave - o ensaio "Eichmann em Jerusalém", de Hannan Arendt, tema de postagens recentes aqui no Sopão. Temos em "Cadeia de comando" a mesma construção sobre ética, culpa, responsabilidade e punição equivocada - ou deliberadamente distorcida - que a filósofa alemã ergueu no seu livro sobre o julgamento do burocrata nazista pelos judeus sionistas. Prova de que o mundo, infelizmente, não muda com a velocidade que desejamos. E que a História se repete, sim, se não como farsa, certamente como uma espécie nefasta de teimosia.

Para dar um tempo nos horrores desta "Cadeia de comando", tento um entretenimento com substância e vou conferir, atrasado como sempre, a versão cinematográfica de Fernando Meirelles para o livro de José Saramago, "Ensaio sobre a cegueira" (que ainda não li). E o que se encontra no filme, para além de uma tradução visual honesta para as narrativas metafóricas do escritor português? Um outro horror, evocado e aos poucos concretizado quando a humanidade se vê presa de algum tipo de confinamento. No filme, a chantagem e a exploração sexual exercida pelo grupo mais poderoso dentro dos confinados pela quarentena da perda da visão remete absolutamente ao embate extremamente desigual entre os soldadinhos de Abu Ghraib e suas presas iraquianas. A metáfora de Saramago - o escritor que já separou, literal e sugestivamente, a península ibérica do resto da Europa em "A jangada de pedra" - não poderia ser mais verdadeira. A realidade brinca com a ficção qual um menino com sua bolinha de quicar.

E se você ainda duvida, deixe eu encerrar a longa postagem com a indicação da reportagem citada lá no início. Ariadne Oliveira, repórter da TV Câmara, onde trabalho, viajou com um grupo de deputados a Santa Catarina para ver, três meses depois das enchentes, como está a situação do estado e dos desabrigados. Quando perguntei pra ela o que de mais marcante encontrou, a repórter me respondeu com outra pergunta: "Você assistiu ao filme 'Ensaio sobre a cegueira'?" Àquela altura, ainda não havia visto. Mas, se fosse só para me inteirar do horror do confinamente humano, nem precisava: Ariadne me disse - e registrou na reportagem exibida pela TV Câmara - que quem ainda está nos abrigos de Santa Catarina sofre com as bebedeiras, as ameças e a violência inclusive sexual que inferniza as noites lá dentro, especialmente nos finais de semana.

Acho que ainda é possível ver a reportagem, procurando bem no site da tevê (http://www.tv.camara.gov.br/). O livro de Seymor M. Hersh, como disse, é uma edição da Ediouro fácil de encontrar e quase sempre com preço promocional (nos sebos, então, há pilhas dele, certamente de gente que esperava a narrativa do espetáculo da guerra e deparou com o horror da opressão). E o filme de Meirelles dispensa dicas de localização. Agora é só juntar os três e atar ou desatar seus nós cegos pessoais sobre a humanidade em geral.

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