terça-feira, 17 de novembro de 2009
O caos de Moretti
Nanni Moretti, vocês sabem, é aquele italiano sempre associado a Woody Allen - embora eu ache, francamente, que são duas praias tão diversas quanto Areia Preta e Santa Rita - que dirige e atua em filmes de um senso de humor entre agridoce e perplexo sobre as coisas do seu país. Chegou por essas bandas primeiro com uma delicada e deliciosa fábula urbana e mediterrânea chamada "Caro Díário". Depois explorou suas experiências paterno-cotidianos em "Aprile". Mais tarde realizou, com o mesmo espanto quieto que utiliza nas comédias, a tragédia "O Quarto do Filho". Ultimamente, deixou um pouco a família de lado e abriu os braços para bradar - mas sempre mansamente, como é de seu estilo - contra todos os facismos, incluindo os atuais, que se abatem sobre a política italiana. O filme, um grande filme do qual pouco se falou, é "O Crocodilo" - grande filme, reforço. Deve ter esquecido algum título, mas o espírito é esse. Porque, na verdade, o assunto aqui é outra produção, a mais recente, em que Moretti não dirige - só atua. Só... até parece.
O filme é "Caos Calmo" e há pouco tempo saiu em DVD. Pra começar, não parece haver expressão melhor para definir o cinema de Moretti - seja com ator, seja como diretor - do que o próprio nome desse filme. Daí talvez as semelhanças com Woody Allen. Esse parentesco também se dá na preferência pelo cenário urbano italiano que está para Moretti como Manhatan para Allen (estava, porque de uns tempos pra cá o americano achou de sair filmando pelo mundo afora, embora a gente tenha sempre a impressão de que não passou da esquina). Como se dá no estudo leve e autoirônico do relacionamento entre pequenos grupos de pessoas. Mas as semelhanças acabam num ponto: enquanto o cinema de Allen é docemente triste e largamento cético, o de Moretti trai alegremente sua crença na superação e um tantinho assim a mais de fé no ser humano. Sem piadinhas nem trodadilhos.
Essa diferença é um dos pontos mais marcantes de "Caos Calmo", filme que, embora não dirigido por Moretti, parece conter o dna do seu cinema a cada fotograma. Ele é um sujeito que, meio catatonizado pela morte da mulher, resolve passar os dias, daí pra frente, diante da escola da filha pequena, esperando a hora de levar a criança de volta para casa. O Moretti deste filme é uma espécie de empresário do ramo do entretenimento que, efetivamente, só para justificar as lógicas desta ficção, pode se dar ao luxo de, traumatizado por um evento, largar o tragalho e se postar o dia inteiro diante de uma escola.
Mas o fato é que tal lugar se torna o ponto de equilíbrio para o personagem. Repare bem: quando algum desses eventos dramáticos - toc toc toc - ocorre na vida da gente, parece que viramos algo assim como uma agulha de bússola enlouquecida, agitando-se caotimente do sul ao norte, inquieta, sem parar, sem achar um ponto de equilíbrio. E a gente sofre para recuperar a quietude mental novamente - para achar esse ponto de equilíbrio tantas vezes físico que, para o Moretti do filme, é o banco da praça em frente à escola da filha. E lá ele fica, estabelendo contatos mínimos (mas ricos) com uma moça que passa com seu cachorro grande, uma mãe com seu filho excepcional, o moço do restaurante ali perto. O filme fala disso, mostra isso: o quanto é importante zerar a vida quando aqueles eventos ocorrem, criando um cenário novo e limpo, sem sinais do que era antes, para que o ser humano vá se recompondo aos poucos, sem balbúrdia, sem poluição de sentimentos e impressões. Moretti ora se distrai e se entedia com as conversas das mães dos outros alunos, ora recupera a concentração fazendo listas mentais aparentemente absurdas - como "as companhias aéreas pelas quais já viajei". De um jeito e de outro, são finos cordões onde se sustentar para conseguir caminhar normalmente outra vez. Termina que, lá naquele banco, ele acaba tendo despachos informais com sócios, discutindo uma fusão empresarial que corre como pano de fundo da história, ouvindo as confiências de um amigo posto sob suspeita de roubo, aconselhando em vão a cunhada intempestiva. Quer dizer: o grande sofredor acaba, lá no seu banco de praça, consolando os demais personagens que não passaram pelo trauma que o abateu, mas igualmente têm suas pequenas dificuldades a pesar nas costas.
"Caos Calmo" é um filme assim, bastante terapêutico - e é por isso que acabo me prendendo muito mais ao conteúdo do que vai na tela do que às estratégias formais que sustentam a narrativa visual. Sei que a categoria "filme terapêutico" contraria o mandamento das artes segundo o qual o cinema, a literatura, a pintura e outras formas de manifestação humanas neste terreno devem ser praticadas sobretudo para incomodar e interrogar. Jamais para qualquer espécie de consolação. Mas não me conformo, que o consolo, a morfina eventual também faz parte do processo humano, essa experiência tão rica e tão pouco restritiva, de fato. E ademais os filmes têm esse segundo poder subjacente que é mexer com as entranhas da gente enquanto imaginamos que estamos a lidar apenas com material de natureza puramente estética.
E por tudo isso que este "Caos Calmo", com sua febre de temperatura ambiente, funciona como um emplastro audio-visual que a gente pode grudar nas fissuras da alma sujeita às intempéries do imponderável.
*A propósito, passe agora para a "Hamaca" e assista a trechos de "Caos Calmo" e outros filmes de/com Nanni Moretti na barra de amostras de videos do Youtube.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário