terça-feira, 13 de julho de 2010

Estação De Palma


Todo filme de Brian de Palma tem pelo menos uma cena em que o personagem toma aquele banho de chuva. Não uma chuva qualquer, mas um temporal azulado que desaba como uma orquestra de tiros líquidos sobre a face do herói machucado. Um aguaceiro que deixa o ator em estado de quase desintegração, como se ele pudesse a qualquer momento se desfazer em pasta de gente, gel de pessoa, esgoto saturado em forma de medo, horror e tensão. Tanto quanto isso é verdade – e eu nem preciso ter visto todos os filmes do homem pra saber que a cena da chuva está lá, indefectível como o cigarro no bico do detetive de cinema noir – é igualmente válida a mesma pergunta em todas essas cenas. Nos filmes de Brian de Palma, já se disse, há sempre uma cena de protagonista borrado na chuva. O que não se disse ainda é: por que danado aquele protagonista molhado não usa um guarda-chuva, não se protege sob uma marquise, não levanta sequer a aba do sobretudo para livrar pelo menos os olhos do aguaceiro?

Simples, meu caro cinéfilo: porque, se o fizesse, não se molharia ao ponto de acrescentar tensão visual ao filme. De fato, em todos os filmes de Brian de Palma, por muitos (mas não eu) considerado um reles imitador barato de Alfred Hitchcook, é preciso, vital, imprescindível que alguém atravesse um temporal como quem passa pela cortina de ferro de um fato chocante da vida. Lá está a chuva, sublinhando ainda mais os quadros de De Palma, injetando incômodo na cena primordial, ainda que tal incômodo, com a chuva que qualquer um pode evitar, lá esteja em caráter aparentemente gratuito. Aparentemente. Porque a lógica da vida real não se aplica aos esquemas cênicos a que o senhor De Palma lança mão para fazer do cinema uma aventura tão inverídica quanto divertida – e sobretudo expressiva.

A chuva emporcalha cada sulco da cara naturalmente amassada de Al Pacino em “O Pagamento Final”, enquanto ele observa, do alto de um prédio e sob um temporal tsunâmico a namorada dançando em um salão protegido na construção ao lado. Daqui a pouco, está o casalzinho no café tão americano, ela linda com uma Jessica Lange renascida, e ele – bem, ele seco e aspirado como se nunca jamais em tempo algum houvesse se submetido ao bombardeio líquido da chuva fechada da cena anterior. Em “Vestida para Matar”, o adolescente que investiga o assassinato da mãe está também espionando uma janela – como são indiscretas as janelas dos filmes de Brian de Palma – para solucionar o mistério da trama. Em que condições? Debaixo de um toró daqueles, claro – uma chuva tão azulada quanto os solos de saxofone que fizeram a magia dos anos 80. Os mesmos anos de ouro deste cinema verdadeiro porque falso, eficiente porque forçado. Quem quiser realismo que vá visitar um presídio brasileiro. O cinema de Brian de Palma requer retoques e sombreados, com o que o espetáculo se faz mais marcante para a gente que aprecia a história do lado de cá da tela.

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