quarta-feira, 14 de julho de 2010

Espiões, bicudos e bacuraus


Quem diria que, apenas um ano após as comemorações pelas duas décadas da queda do Muro de Berlim, espiões russos estariam sendo presos nos Estados Unidos? Pois foram, como a gente leu nos jornais e viu na tevê: 11 camuflados olheiros das ex-terras de Lênin fuçando segredos de polichinelo de enrolados ocidentais com os pés atolados no que restou do Iraque. Tudo bem que todo mundo só teve olhos para Anna Chapman, a espiã que degela corações e mentes com sua fachada de Bond girl, mas o fato é que no grupo estavam casais de meia idade, uma jornalista, gente com emprego regular. A própria Anna, quanto abstraída da estampa de capa da Playboy, era uma comuníssima corretora imobiliária.

Pois essa gente tinha em casa, além das crianças de praxe, aparelhos de ondas curtas e códigos secretos, como se vivêssemos todos na era cinzenta em que um casal do tipo gente como a gente virou espetinho de cadeira elétrica por suspeita de colaboração com os ogros do Kremlin. Por essas e outras, quem vive tranquilamente à brisa do Atlântico nas esquinas de Natal deve botar as barbas esquerdistas de molho, caso ainda as tenha, claro. É que, embora ninguém se lembre, temos uma vasta experiência quando o assunto é espionagem internacional.

E se no coração oscilante do mundo, os EUA, a polícia anda prendendo pretéritos espiões para os quais o tempo não parece ter passado, nada impede que reapareçam entre nós, potiguares, vultos de antigos e ambíguos agentes do Eixo da II Guerra, como baratas sonolentas que acordam de um sono prolongado e voltam às ruas para assombrar um mundo supostamente pacífico. Duvida? Pegue qualquer livro de história local e divirta-se com os acontecimentos dos tempos em que Natal era o Trampolim da Vitória para as tropas aliadas reunidas em Parnamirim Field sob o comando dos destemidos americanos...

Em apenas um dos capítulos de “Natal, USA”, o livro de Lenine Pinto que narra as peripécias daqueles tempos, o leitor curioso vai encontrar histórias tão incríveis quando a explosão de uma caneta-bomba jamais totalmente esclarecida ou o estranhíssimo hábito feminino de usar flores fluorescentes na lapela em noites de blecaute. Flores que, entendam bem, a leitura sugere terem sido uma mercadoria com muita saída no comércio muito particular da época.

A Natal que emerge de livros como este é uma cidade absolutamente estranha à nossa atual metrópole apressada. Parece mais uma Casablanca brazuca, habitada por um sem número de nacionalidades – holandeses, palestinos, romenos, sírios e por aí afora – atraídas como moscas pelo brilho temporário com que a presença norte-americana iluminou nossas dunas. Se não tínhamos um Rick Café por onde poderia circular, elegante e blasé, uma Ingrid Bergman vaporosa, havia, à guisa de cenário para conspirações, o Café Cova da Onça onde sempre poderia aparecer uma versão cacobla da estrela de cinema.

Atheneu iluminado


No capítulo da espionagem de guerra que vigorou em Natal, as histórias chegam a divertir. O riso despreocupado é obra da subtração da gravidade que o passar do tempo promove – ou produto do nosso muito particular e saudável hábito de rir da nossa própria imagem.

Fato é que até hoje não se sabe bem se é lenda ou verdade o caso do sujeito acusado de sabotar os aviões americanos derramando açúcar nos tanques de combustíveis. Certo mesmo, segundo o relato de Lenine, é que o tal acusado de sabotagem sumiu da cidade assim que o boato se espalhou. Também tem a história dos espiões que tiveram acesso às plantas do que seria a base americana ainda por construir e memorizaram tudo para redesenhar em croquis que iriam parar nas mãos dos inimigos. O que diriam em memória destes abelhudos esforçados seus descendentes atuais munidos de máquinas fotográficas digitais eficientes, discretas e silenciosas?

E o caso das luzes do Atheneu, que um distraído inspetor escolar teria esquecido de apagar justo na temporada de blecautes mais obrigatórios? Um vacilo desses, naquele tempo e lugar, equivalia a uma confissão de culpa sujeita a penalidades de guerra. E pior do que esse que deixou destacado na noite tropical todo o esplendor do Atheneu do anos 40 foi o discotecário que abriu a programação do dia da Rádio Educadora com o hino da Alemanha. Sim, o hino da Alemanha, em plena II Guerra. Se é que isso foi mesmo obra de um discotecário distraído. Há controvérsias, contra e a favor, até hoje. Mas a história ilustra bem o clima de mistério que vigorava na época.

Um clima geral de muitas suspeitas e desconfianças, de maneira que, embora os livros não digam claramente, só podemos concluir que, enquanto durou a Guerra, para andar em Natal o cidadão tinha que olhar para trás o tempo todo, para os lados, calcular bem a esquina onde poderia dobrar, o beco a evitar, a birosca providencial onde se esconder em caso de emergência. Agora imagine testemunhas – e protagonistas esquecidos – daqueles tempos voltando à superfície, repetindo aqui, de outra maneira, o flagrante dos 11 espiões presos nos EUA muito depois do fim da guerra fria. Com a profusão de blogues, colunas, notas e oráculos a dominar o confuso ambiente informativo local, daria um imbróglio bonito neste período de véspera de eleições.

Com a confusão ideológica – para não usar expressão menos nobre – que marca as candidaturas apresentadas, haveria trabalho para todos. Espião algum ficaria desempregado em cenário de tamanha deslealdade e incoerência partidária. E ninguém seria preso, claro, já que mudar a pelagem política para atender à sobrevivência momentânea não é crime. Se até os espiões – aqueles durões, clássicos, de antigamente, retratados nos livros de John Le Carré – trocavam de lado, porque haveríamos de cobrar legitimidade às gerações atuais? Pensando bem, bons tempos aqueles em que, além de espiões calejados, tínhamos inocentes bicudos e angélicos bacuraus.

*Publicado no Novo Jornal (Natal - RN)

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