segunda-feira, 7 de junho de 2010

De Budapeste a Tangará


Para escrever um livro sobre isolamento, desamparo e falta de integração, o escritor Bernardo Carvalho abalou-se até São Petersburgo, na Rússia. Depois de uma temporada curtindo a estranheza de ser um brasileiro na histórica cidade que já se chamou também Petrogrado e Leningrado, o escritor deu à luz o romance "O Filho da Mãe", bastante festejado como outros de sua lavra. Já o músico, compositor e também escritor Chico Buarque conta que jamais pisou na Budapeste que serviu de cenário e de título para uma de suas ficções mais recentes. Quando leio notícias como essas, sinto uma saudade danada de Tangará, cidade por onde passei inúmeras vezes, de ônibus ou automóvel, mas sempre em movimento, e onde em raras ocasiões botei os pés, literalmente falando.

Explico a conexão que tento estabelecer aqui entre São Petersburgo, Budapeste e Tangará: todas têm suas histórias para contar e, sendo assim, todas, independente do tamanho, da expressão demográfica e da fama histórica ou mundana, têm potencial para traduzir conceitos que assombram o ser humano desde os primórdios. A diferença, a favor de São Petersburgo e Budapeste - e contra nossa humilde Tangará - é o fato de que, pela natureza do funcionamento do mundo, sobretudo do mundo literário, e em particular do mundo literário atual, somente as duas primeiras têm capacidade de desenvolver aquele potencial. Se Tangará tem algo a dizer, falta-lhe charme para atrair um Bernardo Carvalho. Afinal de contas, se o caso era encontrar um lugar para um escritor de extração paulista como ele experimentar a sensação do deslocamento no meio, Tangará servia tanto quanto a célebre cidade russa.

Tangará é também, por sinal, uma excelente locação literária caso se queira erigir um romance cool e descolado sobre a natureza do transitório e do efêmero. Cidade de beira de estrada, rasgada e marcada pela banalidade sertaneja da BR-226, Tangará, com sua flora de lanchonetes e bares à margem do asfalto, sua carne de sol servida em sanduíches para passageiros de agonias outras, teria tudo para sediar a anti-epopéia desses personagens sem nome, sem rosto, sem futuro e sem passado que marcam a literatura intangível dos dias atuais.

Serra do Cajueiro

E não só Tangará: o mapa do Rio Grande do Norte está coalhado de cenários urbanos ou rurais prontinhos para o romancista angustiado utilizar como pano de fundo dos conceitos que tenta explorar via literatura. Vejamos: que melhor atmosfera para uma ficção que desvende os mistérios da placidez que não aquela das cercanias do açude São Bernardo, em Caicó? Se o caso é escrever uma boa narrativa que investigue a natureza da vastidão que contempla a condição humana, que tal largar tudo - emprego, família e aquela bolsa providencial - e se internar durante um mês à sombra das umburanas da Serra do Cajueiro, em Florânia?

E assim por diante. Para especular, pela literatura, sobre o vazio que atinge o ser humano neste novo milênio é provável que ninguém precise viajar para as tundras finlandesas. Nada disso: especialmente para nós, potiguares, basta passar uma quinzena apenas com a roupa do corpo numa cabana improvisada à sombra do Boqueirão de Parelhas, aquele intervalo entre serras que tão logo é avistado ao longe já instala automaticamente uma interrogação quase instintiva na mente de quem o divisa.

Outro tema bem contemporâneo é a frieza. Neste caso, pode parecer que as terras nordestinas como um todo, devido à sua quentura não apenas física mas sobretudo cultural, não são muito propícias como matéria prima da boa literatura. Ledo engano: aqui mesmo no país do elefante, temos Lagoa Nova e Cerro Corá, duas cidade que, pelo menos no meio do ano, sabem se oferecer como orquídeas inspiradoras para o filósofo disfarçado de ficcionista que busca elementos sobre os quais trabalhar a qualidade das coisas que não se deixam derreter.



Monte do Galo

Jogo rápido: para um romance sobre o rancor, a receita é contemplar coroas-de-frade na Gruta da Caridade, em Caicó; para uma grande obra sobre os aleijões subjetivos da alma, experimente mirar as escarpas pontiagudas do Monte do Galo, em Carnaúba dos Dantas; para um tratado literário sobre a solidez das coisas imutáveis, mude-se para o topo da Serra da Rajada, também em Carnaúba; para investir nas danações da brevidade da existência, colecione ocasos em Serra Negra do Norte; para espelhar em palavras a angústia de certas opacidades da vida, instale-se à beira do Poço do Saturno, no Gargalheiras de Acari.

De tudo isso se deduz que, para escrever sobre as geografias que vão por dentro do homem - afinal, o tema geral de toda a ficção praticada desde que o mundo é mundo, seja de boa ou má qualidade - não é preciso ir muito longe. Muito a menos a São Petersburgo, como fez o sofisticado Bernardo Carvalho para discorrer sobre a condição de se estar fora do lugar. Chico Buarque, ao menos, teve a clarividência de fazer de sua Budapeste imaginada um espelho do Rio de Janeiro que lhe serve de quintal.

Não dizem que a mais universal ficção tende a ser sempre a expressão de um cenário bem próximo, que o escritor avista da janela da cozinha? Então: Tangará fica mais perto do que Budapeste e, embora não tenha um milímetro do apelo turístico e da densidade histórica de São Petersburgo, é bem possível que fale mais alto à agenda das nossas interrogações. Ou à nossa geografia interna. Só não dá ibope - o que, em termos de literatura, deveria ser algo absolutamente dispensável. Pena que, hoje em dia, não seja.

*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

*A foto da igreja de Tangará que ilustra a postagem veio do Umas e Outras, de Clotilde Tavares

Um comentário:

Samarone Lima disse...

Que beleza, compadre.
Preciso voltar mais por aqui.
Samarone.