segunda-feira, 21 de junho de 2010

Bill and Bil


Quem frequenta a praia de Ponta Negra há de conhecer – ou ao menos já ter avistado – a figura impávida de Bil Pinto. Vendedor de CDs piratas do tipo que passa o domingo pra lá e pra cá entre o hostéis estrelados da Via Costeira e o pé do Morro do Careca, Bil Pinto se destaca entre seus colegas ambulantes pela destreza verbal, pelos reflexos rápidos quando se vê numa enrascada, e sobretudo pela lábia com que empurra pilhas e pilhas de calcinhas pretas e outras bandas do gênero para argentinos e nórdicos ansiosos por se tropicalizar o mais rápido possível.

Semana passada, Bil Pinto saiu de sua rotina e resolveu mudar o itinerário de seu carrinho de CDs. Decidiu se arriscar longe da praia, numa área mais dominada pelos bacanas. Afinal, pensou Bil, bom gosto musical não depende exatamente de dinheiro no bolso. De longe, ele viu a porta de uma universidade famosa e farejou uma boa possibilidade de vendas. Caprichou na arrumação dos CDs, mas preferiu não ligar o som do carrinho. Alguma coisa mais discreta poderia fazer mais efeito, pensou.

Era engano: o tempo passava e ninguém dava bola para o carrinho de Bil, cujo nome verdadeiro só poderia ser mesmo Severino. Pra quem não sabe ou esqueceu que foi pobre, Bil é o apelido mais frequente para quem se chama Severino em terras nordestinas. Não me pergunte o motivo – o que me interessa aqui é apenas a confusão que isso pode causar. Confusão que começou quando nosso Bil, ex-agricultor nascido em São José de Mipibu, resolveu pedir um copo de água na porta da universidade para aliviar o calor de rachar que o sol quente provocava. O porteiro da universidade olhou desconfiado, com aquela cara de preconceito autodefensivo que certo tipo de pobre nutre diante de outro pobre, e pediu um minutinho. Sumiu lá por dentro da universidade por um bom tempo.

De repente, chegou um bando de soldados, tudo de cara fechada como se estivesse indo pra guerra no Iraque. Depois, apareceram do nada uns helicópteros gigantescos do tipo que Bil, coitado, nunca tinha visto na vida. Um bonde viaturas policiais também chegou cantando os pneus, que nem nos filmes de assaltos que param Nova York e fazem sucesso nos DVDs que Bil vende na surdina. De um instante para outro, tudo em volta virou um ruge-ruge cinematográfico em torno de Bil que, esperto como sempre, tratou de fechar o carrinho de CDs. O jeito era procurar uma maneira de escapar dali de fininho, porque aquele alvoroço todo tava com a maior bandeira de que se devia a ele mesmo. Quem mandou deixar o bem-bom da praia e se meter na região dos bacanas? Pintou sujeira, geral.

Mas o nosso serelepe Bil Pinto não conseguiu escapar a tempo. Logo sentiu um puxão no braço. Era um soldado – um man in black dos mais enfeitados, com uns troços reluzentes na farda e no quepe – levando ele pra dentro da universidade. Preso, só pode – pensou Bil. Quando notou, o vendedor estava sendo empurrado para uma sala toda branca, piso brilhando que dava pra ver o fundo das calças, mesona de tampo de vidro de último tipo, uma tremenda tevê de plasma de dez milhões de polegadas na parede e, em volta, uma legião de engravatados – alguns tossindo, tentanto disfarçar o nervosismo. Bil não conseguia entender nada e muito menos por quê.

Ficou aquele clima estranho. Um silêncio. Baita constrangimento. Mas ninguém tinha coragem de fazer ou dizer nada. Bil estranhou, beliscou-se pra saber se não era um pesadelo, e nada. Tudo parado, instante suspenso, nem uma mosca para desanuviar a tensão. Foi quando uma senhora de cabelos meio avermelhados, óculos grandes, batom gritante e sorriso de dentes de tubarão aproximou-se do vendedor e perguntou, como quem fala com um cachorro de rua que insiste em se deitar em porta de mansão:

"Meu filho, quem é você?"
"Prazer, Bil."

A senhora de dentes grandes e cabelo com laquê se dirige a um engravatado, visivelmente nervosa, e o repreende, dizendo que se tratou de um engano absurdo e indesculpável. Não termina de dar a bronca e é interrompida pelo vendedor:

"Bil Pinto, minha senhora. Algum problema? Dá pra liberar minha pessoa agora?"


Ave, Clinton


Azar de Bil Pinto ter escolhido justo aquele dia para vender seu peixe na porta da universidade. Fosse outra data qualquer e ele não teria policiais de última geração, helicópteros “de Avatar” e nem mesmo a dança das viaturas imitando “Um dia de cão”. Bil Pinto, com um “ele” só e um “pê” de “pato”, passaria despercebido como um lote de Cds piratas que acabou de chegar para os vendedores do centro da cidade.

Em compensação, sua fictícia presença coadjuvante no cenário da visita do outro Bill, o Clinton, a Natal serve de espelho para o nosso recorrente deslumbramento diante da celebridade estrangeira. Não que a celebridade tenha culpa disso – e Clinton, pelo que se disse e se contou, portou-se em Natal como um cidadão comum até quando lhe foi possível, andando como um turista desavisado pelo Centro de Artesanato de Ponta Negra. O problema não é deles – é nosso. E nem a presença em massa de soldados americanos durante a Segunda Guerra nos valeu na hora de assumir um ar mais altivo e menos subserviente diante de tais visitantes. Ao contrário, parece que favoreceu ainda mais a qualidade espessa de nossa baba frente ao ser supostamente superior.

Não deve ser à toa que, enquanto 300 homens garantiam a segurança de Bill Clinton em Natal, a insegurança cada vez mais preocupante na cidade fazia seus estragos longe dos locais onde estava o ex-presidente norte-americano. Bil Pinto mesmo ficou sabendo, depois, que uma tia aposentada dele foi assaltada naquele mesmo dia ao sair de uma casa lotérica em Nova Descoberta. Quando parou para pensar em tudo que lhe aconteceu na porta e lá dentro da universidade, Bil Pinto concluiu, usando os conhecimentos que perturbam sua mente toda vez que assiste ao Jornal Nacional:

"É o provincianismo, estúpido!"


*Publicado no Novo Jornal (Natal-RN), uma semana após a visita de Bill Clinton à capital potiguar.

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