segunda-feira, 3 de maio de 2010

Ratos do palácio na faixa de pedestres


A notícia mais impressionante em Brasília, depois de todo o rolo envolvendo o ex-governador Arruda – com o qual, naturalmente, não dá mesmo pra competir – é a fuga em massa dos ratos do Palácio do Planalto. A informação, divulgada com destaque pelo jornal Correio Braziliense, é de que levas de ratos, tanto do tipo camundongo quanto da categoria ratazana, estão fugindo em massa do palácio construído para ser a sede do pode Executivo, para o prédio do Senado, que fica ao lado.

A notícia é de que, neste êxodo forçado, os ratos do palácio têm dado preferência às instalações da Rádio e da TV Senado, onde devoram os lanches que funcionários distraídos guardam em gavetas outrora consideradas seguras. Resumo da ópera: ratos que durante anos se alimentaram muito bem das sobras das iguarias do palácio presidencial agora têm que se contentar com biscoitos tipo social club que servidores públicos usam para matar a forme no meio do expediente. É a crise brasiliense, que democraticamente não distingue ninguém e se abateu até sobre os ratos – ainda que sejam os ratos do Planalto, com seus crachás que os diferenciam dos parentes próximos, os habitantes dos bueiros.

Acontece que o Palácio do Planalto está em reforma há meses. Como tudo em Brasília, o que atrasa a reforma é o tombamento do prédio, que não pode ser modernizado assim sem mais nem menos. Tem que consultar o escritório de Niemeyer, carimbar no patrimônio histórico e manter intacto cada fosso sem qualquer mureta de proteção que agrediria o conjunto arquitetônico original. Resultado: deu problema com a instalação do novo sistema de ar condicionado – e a obra ficou parada um tempão.

Um tempão suficiente para que, desabitado pelo presidente, secretários, ministros, estrategistas, copeiras e afins, o palácio ficasse desprovido de qualquer resto de comida. Os ratos no porão suportaram até o limite da fome. Chegou um momento em que não deu mais e só restou a alternativa de cruzar a rua e buscar abrigo e alimento no Senado vizinho. Entre os fundos do Palácio do Planalto e alguns anexos do Senado fica uma via chamada N1. Não estranhem, que em Brasília é tudo na base da sigla. Não é muito poético, mas em compensação facilita um bocado a localização, funcionando com uma espécie de GPS informal.

Mas o que importa aqui para a nossa conversa sobre ratos e palácios é o fato de praticamente todos os dias eu precisar passar justo nesta via, a N1, a caminho do trabalho. Importa saber também que bem no espaço entre os fundos do Palácio do Planalto e o início das instalações da rádio e da TV Senado, existe uma outra coisa típica de Brasília – uma faixa de pedestres, que aqui virou uma instituição talvez mais respeitada do que o próprio Senado.

Até agora, toda essa explicação sobre ratos, palácios, respeito e instituições foi um preâmbulo necessário. Porque nossa história de hoje começa aqui, nesta faixa de pedestres. Foi onde eu parei o carro outro dia, para um transeunte atravessar a rua que separa os fundos do palácio dos anexos do Senado. O transeunte passou, mas eu mal tive tempo de empurrar de novo o pé no acelerador. Porque me apareceu outro pedestre na faixa, acenando qual um desesperado e dando pulinhos para ser visto, morto de medo de acabar atropelado pelos meus pneus.

Era um dos ratos do palácio. Um dos maiores, carregando um trouxinha de parcos bens nas costas, olhar triste mas ao mesmo tempo altivo, como seria o olhar de alguém pertencente a uma realeza derrubada. Começou a atravessar lentamente, com aquele ar soberano de quem já foi marajá mas perdeu tudo no jogo, aquela superioridade adquirida com a qual o ser humano se acostuma rápido e da qual tem uma dificuldade imensa de se livrar. Parou. Bem no meio da rua. Pensou, com ar de indeciso. Ainda bem que o horário era de pouco movimento e não havia outros carros atrás de mim. Movido pela curiosidade, nada fiz. Esperei o movimento seguinte daquela figura tão inesperada na faixa de pedestres.

O rato olhou para mim e, sem que eu esperasse, veio na minha direção. Encostou o cotovelo peludo e fedorento na janela do carro e entabulou uma conversa. Você se recusaria a ouvir o desabafo de um rato do palácio, apesar do mau hálito? Eu não tenho esse poder e fui todo ouvidos. O rato me disse que se chamava Gervásio, que vivia no palácio desde a construção, que assistiu à inauguração de Brasília quando era alegre e jovem num belo camarote subterrâneo, que arranjou seu primeiro emprego nos porões e teve dias de glória durante os governos militares, que jamais foi incomodado no que chamavam de Era Collor – muito ao contrário, adorou as novidades daqueles tempos –, que construiu um fusquinha com restos de batata para se locomover melhor nos subterrâneos do palácio durante a gestão de Itamar, que roeu pilhas de papéis durante os dois governos de FHC e mesmo assim jamais conseguiu entender mesmo o que quer dizer "ajuste fiscal".

Disse também que sua ruína, iniciada já há uns 10 anos, acentuou-se radicalmente quando um tal de Lula se instalou no palácio. Que desde que o cara chegou lá, a ratolândia teve que se contentar em comer restos de churrascos e outros pratos menores, que falta bom gosto e refinamento aos novos inquilinos, e que nesse tipo de classificação os ratos são especialistas. Que eles formam uma espécie de FGV roedora, capaz de detectar, pelo que se descarta para o lixo no porão, a qualidade do que é consumido nos andares superiores.

"E ainda por cima resolveram fazer essa reforma", finalizou Gervásio, não sem antes, como convém aos ratos de boa cepa, usar de ironia para dizer que nos tempos de FHC pelo menos a palavra reforma tinha outros significados. "Com esse povo do PT, não. É tudo literal, um pobreza." Achei melhor não discutir com Gervásio minhas simpatias político-partidárias. Nunca é bom pisar em alguém que já está bem por baixo, mesmo que seja um rato. E mesmo que seja um rato do Planalto.

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